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Aquisição da propriedade móvel Introdução As formas de aquisição da propriedade móvel podem ser originárias ou derivadas. As formas originárias são: 1- ocupação; 2- achado de tesouro e 3- usucapião. As formas derivadas são por: 1- especificação; 2- confusão; 3- comistão; 4- adjunção; 5- tradição e 6- sucessão. 1) Formas originárias de aquisição da propriedade móvel 1.1) Ocupação Ocorre a ocupação (art. 1263 do Código Civil) quando alguém se apossa de uma coisa sem dono, adquirindo a sua propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei. Ou seja, a pessoa adquire um bem que não pertence a qualquer outra pessoa. Como exemplo, ocorre a ocupação nos casos que envolvem a caça e a pesca, ressaltando-se que a ocupação desses bens não pode causar danos ambientais, nos termos do art. 225 da Constituição Federal e do que consta da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente). Na situação denominada derrelição, também pode ser objeto de ocupação a coisa abandonada por alguém. Como exemplo, temos o caso de alguém que encontra um cão abandonado por outrem, adquirindo a sua propriedade. Não é o mesmo do que coisa perdida, pois esta não dá o domínio imediato àquele que a encontra, pois o dono anterior pode ainda estar procurando tal coisa. Aquele que perde uma coisa não perde a sua propriedade, estando privado de lhe exercer o domínio enquanto não a encontrar. Ocupação, assim, só pode se realizar sobre coisa abandonada, nunca sobre coisa perdida. Haverá, neste caso, a descoberta (anteriormente conhecida como invenção). Nesse caso, se o descobridor da coisa não conhecer o dono, deverá tomar todas as medidas para encontrá-lo, procedendo com boa-fé. Caso não o encontre, deverá entregar a coisa achada à autoridade competente (art. 1.233 do CC). 1.2) Achado de tesouro. Tesouro é conceituado (art. 1264 do CC) como sendo o depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória. O achado do tesouro como aquisição responde a regras relativas à vedação do enriquecimento sem causa: 1- O tesouro será dividido por igual entre o proprietário do prédio e o que achá-lo casualmente (art. 1264 do CC). Ou seja, se alguém achou um tesouro na propriedade alheia sem querer, com boa-fé subjetiva, haverá divisão da coisa meio a meio com o dono do imóvel. 2- O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio privado, se for achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado (art. 1.265 do CC). Se o próprio proprietário do imóvel achou a coisa, com exceção dos casos em que o tesouro é do interesse público, o tesouro será seu. Da mesma forma se aplica às situações nas quais o proprietário determinou que empregados ou prepostos realizassem a busca do baú de diamantes e os últimos o encontraram. 1.3) Usucapião de bens móveis A usucapião não é forma originária de aquisição somente da propriedade imóvel, também aplicando-se aos bens móveis. Temos duas formas de usucapião de bens móveis, a ordinária (art. 1.260 do CC) e a extraordinária (art. 1.261 do CC). Ocorre a usucapião ordinária quando alguém possui coisa móvel como sua, continuamente e de maneira incontestável, durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirindo-lhe, assim, a propriedade. Assim, os requisitos para ela são o justo título, a boa-fé, a posse contínua e incontestada e por três anos. Já a usucapião extraordinária ocorre quando a posse da coisa móvel se prolonga por cinco anos e independentemente de título ou boa-fé. Obedece somente ao requisito da posse ser mansa, pacífica e com intenção de dono por cinco anos. Prescinde da necessidade de justo título e da boa-fé (de forma diferente da usucapião de bens imóveis). Atualmente, são discutidas questões relativas à usucapião de veículos. Conforme refere Tartuce (2017) o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que, havendo inércia em caso envolvendo a alienação fiduciária em garantia, o veículo pode ser adquirido pelo devedor fiduciante, por meio da usucapião extraordinária. A inércia da instituição financeira em reaver o bem de sua propriedade vai conduzir à posse por usucapião extraordinária. No entanto, o mesmo não se aplica quando existe um contrato de arrendamento mercantil inadimplido de um veículo, sendo a posse caracterizada como precária. Ainda a transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do CC), sendo, por isso mesmo, impossível a aquisição do bem por usucapião. Questão importante e polêmica é a usucapião de veículo furtado. Embora não seja possível na forma ordinária, entende-se pela admissão da usucapião extraordinária, uma vez que cessa a violência no momento posterior à prática do ilícito, tendo início a partir daí a contagem do prazo legal, ou seja, cinco anos. Assim, para a aquisição do veículo sem o justo título e a boa fé, são necessários 5 anos sem qualquer documento do proprietário, e até mesmo a boa fé. O veículo pode ser adquirido pelo possuidor, desde que, comprovada a posse mansa e pacífica por pelo menos 5 anos. 2) Formas derivadas de aquisição da propriedade móvel 2.1) Especificação A especificação consiste na transformação da coisa em uma espécie nova, diante do trabalho do especificador, não sendo mais possível o retorno à forma anterior (art. 1.269 do CC). A forma de aquisição é considerada derivada, pela existência, em certo sentido, de uma relação pessoal entre o dono da coisa anterior e o especificador, aquele que realizou o trabalho. Embora uma parte minoritária da doutrina considere a especificação como uma espécie de acessão, isso não é aceito pela maioria, pois a acessão requer união ou incorporação de uma coisa a outra, o que não ocorre na especificação, pois esta se constitui na transformação definitiva de matéria-prima em espécie nova, por meio de ato humano. Como exemplo, temos os casos da escultura em relação à pedra, da pintura em relação à tela, da poesia em relação ao papel. A modificação, portanto, é necessária e substancial, pois nos exemplos notamos a formação de espécie nova. As regras de especificação também têm relação com a vedação do enriquecimento sem causa: 1 - A espécie nova surgida será de propriedade do especificador, se não for possível retornar à situação anterior (regra fundamental e geral da especificação), o que se justifica pela alteração substancial da coisa, com surgimento de outra, sendo o trabalho de alteração considerado principal, enquanto que a matéria-prima é acessória, mas devendo o especificador indenizar o valor da matéria-prima ao seu dono (art. 1.271 do CC). 2- Se toda a matéria-prima for alheia e não se puder reduzir à forma precedente, será do especificador de boa-fé a espécie nova (art. 1.270 do CC). 3- Sendo praticável, ou melhor, possível a redução ao estado anterior; ou quando impraticável, se a espécie nova se obteve de má-fé, pertencerá ao dono da matéria-prima (art. 1.270, § 1.º, do CC). Ainda quanto a isso, o art. 1.271 do CC prevê que o especificador de má-fé não terá direito sequer à indenização pelo trabalho. 4- Em qualquer caso, inclusive no da pintura em relação à tela, da escultura, escritura e outro qualquer trabalho gráfico em relação à matéria-prima, a espécie nova será do especificador, se o seu valor exceder consideravelmente o da matéria-prima (art. 1.270, § 2.º, do CC). Esse valor excedente considerável deve ser analisado em cada caso, levando-se em conta também o valor de mercado da matéria-prima além da grandiosidade do trabalho efetuado. Também nessa situação, conforme o art. 1.271 do CC, o especificador que adquire a coisa nova deverá indenizar o dono da matéria-prima pelo seu valor. 2.2) Confusão, comistão e adjunção Essas três formas derivadas de aquisição da propriedade móvel estão presentes quando coisas pertencentes a pessoas diversas se misturam de tal forma que é impossível separá-las. Ocorre a confusão quando há mistura entre coisas líquidas (ou mesmo de gases), não sendo possívela separação. As espécies confundidas podem ser iguais ou não. Pode ser conceituada como confusão real, referindo-se à propriedade móvel, diferenciando-se do instituto da confusão obrigacional, que é uma forma de pagamento indireto em que se confundem, na mesma pessoa, as qualidades de credor e de devedor. Temos como exemplos de confusão real: as misturas de água e vinho (e entre bebidas em geral); de álcool e gasolina; de biodiesel e gasolina; misturas entre perfumes; etc. A comistão, por sua vez, é uma mistura de coisas sólidas ou secas, não sendo possível a separação. Exemplos: misturas de areia e cimento; misturas de cereais de safras diferentes, não sendo possível identificar a origem. Já a adjunção é a justaposição ou sobreposição de uma coisa sobre outra, sendo impossível a separação. Isso ocorre em casos como: tinta em relação à parede; um selo (ou gravura, cartão, figura) valioso em um álbum de colecionador. Esses três institutos jurídicos também observam regras diante da vedação do enriquecimento sem causa. Segundo o que consta dos arts. 1.272 a 1.274 do Código Civil, temos que: 1- As coisas pertencentes a diversos donos, confundidas, misturadas ou adjuntadas sem o consentimento deles, continuam a pertencer-lhes, sendo possível separá-las sem deterioração. 2- Não sendo possível a separação das coisas, ou exigindo dispêndio excessivo, permanece o estado de indivisão, cabendo a cada um dos donos quinhão ideal, diante da impossibilidade de determinação de um quinhão real, proporcional ao valor da coisa com que entrou para a mistura ou agregado. Aqui, caso uma das coisas puder ser considerada como principal, o dono desse principal será o dono do todo, indenizando os demais pelos valores que corresponderem aos seus quinhões, conforme o princípio de que o acessório segue o principal. 3- Se a confusão, comissão ou adjunção se operou de má-fé, à outra parte que estiver de boa-fé caberá escolher entre adquirir a propriedade do todo, pagando o que não for seu, abatida a indenização que lhe for devida, ou renunciar ao que lhe pertencer, caso em que será indenizada de forma integral. 4- Se da união de matérias de natureza diversa se formar espécie nova, à confusão, comissão ou adjunção aplicam-se as normas dos arts. 1.272 e 1.273, conforme determina o art. 1.274 do CC. Como exemplo, temos uma mistura de minerais da qual surge um novo. Nota-se nessa regra um equívoco, pois, como há o surgimento de uma espécie nova, o caso passa a ser de especificação (sendo que deveria ocorrer a aplicação dos arts. 1.270 e 1.271 do CC). 2.3) Tradição A tradição consiste na entrega da coisa ao adquirente, com a intenção de lhe transferir a sua propriedade. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição (art. 1.267, caput, do CC). Ainda a se concretizar na prática, contratos como a compra e venda e a doação, por si só, não traduzem a aquisição da propriedade móvel, que somente ocorre com a entrega efetiva da coisa. A tradição (e o registro) pertence ao plano da eficácia de um negócio jurídico (terceiro degrau da “Escada Ponteana”, sucedendo o plano da validade, sendo o primeiro o plano da existência). A tradição pode ser: 1- tradição real (por entrega efetiva ou material da coisa); 2- tradição simbólica (por existência de um ato representativo da transferência da coisa, como por exemplo na traditio longa manu, em que a coisa a ser entregue é colocada à disposição da outra parte); e 3- tradição ficta (por presunção, como no caso da traditio brevi manu, em que o possuidor possuía em nome alheio e agora passa a possuir em nome próprio, bem como no constituto possessório, em que o possuidor possuía em nome próprio e passa a possuir em nome alheio). Vale apena ressaltar que na situação tratada pelo art. 1.268 do CC (alienação a non domino, quer dizer, aquela realizada por quem não é o dono da coisa móvel), a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, o alienante se configura como dono ao adquirente de boa-fé e a qualquer pessoa. Assim, mesmo não ocorrendo a invalidade do negócio (não há lesão ao plano de validade), há a ineficácia da venda. Entretanto, se alguém adquiriu o bem de boa-fé (objetiva), esta deve prevalecer sobre a ineficácia decorrente da venda a non domino, mas somente no que diz respeito a bens móveis. Conforme o § 1.º do art. 1.268 do CC, salienta-se ainda que, se o adquirente estiver de boa-fé, e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição. Assim, a venda a non domino, que era inicialmente ineficaz, passa a ter eficácia plena, diante da presença da boa-fé e da aquisição posterior por parte do alienante. É o caso, por exemplo, de alguém vender um veículo acreditando que a propriedade já lhe pertence, sendo, entretanto, um engano, incorrendo em uma venda a non domino e, portanto, um negócio ineficaz. Mas, se o veículo foi adquirido de boa-fé, e efetivando-se a transferência posterior, o ato se torna plenamente eficaz. Essa eficácia superveniente tem efeitos ex tunc (retroativos), até a data da celebração do negócio original, uma vez que há uma confirmação posterior. Por fim, de acordo com o § 2.º do art. 1.268 do CC, a tradição não transfere a propriedade, quando tiver por título um negócio jurídico nulo. 2.4) Sucessão A sucessão hereditária de bens móveis, conforme o art. 1.784 do CC, também pode gerar a aquisição derivada da propriedade móvel, seja a sucessão legítima ou testamentária em sentido genérico (testamento, legado ou codicilo). REFERÊNCIA TARTUCE, Flávio, Direito Civil – Direito das Coisas. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.