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27.4. CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE Como vimos, todo fato típico, em princípio, é ilícito, a não ser que ocorra alguma causa que lhe retire a ilicitude. A tipicidade é um indício da ilicitude. As causas que excluem a ilicitude podem ser legais, quando previstas em lei, ou supralegais, quando aplicadas analogicamente ante a falta de previsão legal. As causas legais são: - estado de necessidade; - legítima defesa; - estrito cumprimento do dever legal; - exercício regular de direito. 28 ESTADO DE NECESSIDADE 28.1. CONCEITO Causa de exclusão da ilicitude da conduta de quem, não tendo o dever legal de arrostar o perigo, sacrifica um bem jurídico para salvar outro, próprio ou alheio, ameaçado por situação de perigo atual ou iminente não provocado dolosamente pelo agente, cuja perda não era razoável exigir. 28.2. TEORIAS a) Unitária: o estado de necessidade é sempre causa de exclusão da ilicitude. b) Diferenciadora: se o bem sacrificado for de valor igual ao salvo, o estado de necessidade só exclui a culpabilidade. O Código Penal adotou a teoria unitária. 28.3. NATUREZA JURÍDICA É sempre causa de exclusão da ilicitude. 28.4. REQUISITOS a) Situação de perigo. b) Conduta lesiva. 28.4.1. Situação de perigo 28.4.1.1. O perigo deve ser atual a) Perigo atual é o que está ocorrendo. b) Perigo iminente é o que está para acontecer. A lei só fala em perigo atual, mas a doutrina considera que o agente não precisa aguardar o perigo surgir efetivamente para só então agir. Admite, portanto, estado de necessidade quando o perigo for iminente. 28.4.1.2. O perigo deve ameaçar direito próprio ou alheio Direito: a expressão abrange qualquer bem jurídico, como a vida, a liberdade, o patrimônio etc. Não se exige a existência de qualquer relação jurídica entre o sujeito e o terceiro, nem tampouco prévia autorização deste para que o primeiro aja. É imprescindível que o bem a ser salvo esteja protegido pelo ordenamento jurídico. Exemplo: o condenado à morte não pode alegar estado de necessidade contra o carrasco no momento da execução. 28.4.1.3. O perigo não pode ter sido causado voluntariamente pelo agente Damásio de Jesus (1991, p. 78) entende que somente o perigo causado dolosamente impede seu autor de alegar o estado de necessidade. Assis Toledo (2000, p. 185) entende que o perigo culposo também obsta a alegação de estado de necessidade, uma vez que a conduta culposa também é voluntária em sua origem. Assim, quem provoca conscientemente um perigo (engenheiro que, na exploração de minas, faz explodir dinamites, devidamente autorizado para tanto) age “por sua vontade” e, em princípio, atua licitamente, mas pode causar, por não ter aplicado a diligência ou o cuidado devidos, resultados danosos (ferimentos ou mortes) e culposos. Nessa hipótese, caracteriza-se uma conduta culposa quanto ao resultado, portanto crime culposo, a despeito de o perigo ter sido provocado por ato voluntário do agente (a detonação do explosivo). Nélson Hungria e Magalhães Noronha adotam também essa segunda posição. 28.4.1.4. Inexistência do dever legal de arrostar o perigo Se a lei impuser ao agente o dever de enfrentar o perigo, deve ele tentar salvar o bem ameaçado sem destruir qualquer outro, mesmo que para isso tenha de correr os riscos inerentes à sua função. Exemplo: bombeiro. A lei falou em dever legal, que é apenas uma das espécies de dever jurídico. Se, portanto, existir mera obrigação contratual, o agente não é obrigado a arriscar-se, podendo simplesmente sacrificar outro bem para afastar o perigo. 28.4.2. Conduta lesiva 28.4.2.1. Inevitabilidade do comportamento Só se admite o sacrifício do bem quando não existir qualquer outro meio de efetuar-se o salvamento. Não se admite o chamado commodus discessus, ou seja, a saída mais cômoda, devendo a destruição ser realizada quando absolutamente inevitável. O que significa “quando absolutamente inevitável?” Depende: - Para quem tem o dever legal de enfrentar o perigo, absolutamente inevitável significa que, mesmo enfrentando o perigo, seria impossível afastá-lo sem destruir outro bem. - Para quem não tem o dever de arriscar-se, a inevitabilidade decorre da impossibilidade de salvar o bem, a não ser com risco pessoal. 28.4.2.2. Inexigibilidade de sacrifício do interesse ameaçado Deve ser razoável sacrificar um bem para salvar o outro. A lei não falou em valor maior, igual ou menor, mas apenas em razoabilidade do sacrifício. A razoabilidade não é a do agente, mas a de uma pessoa de senso mediano. Por exemplo: para uma pessoa de mediano senso, a vida humana vale mais que um veículo; um imóvel, mais que a vida de um animal irracional. 28.4.2.3. Conhecimento da situação justificante Trata-se do elemento subjetivo do estado de necessidade. De nada adianta estarem presentes todos os requisitos da excludente, se o agente os desconhecia. Se na sua mente ele cometia um crime, ou seja, se a sua vontade não era a de salvar alguém, mas a de provocar um mal, inexiste estado de necessidade, mesmo que, por uma incrível coincidência, a ação danosa acabe por salvar algum bem jurídico. 28.4.3. Causa de diminuição de pena Se a destruição do bem jurídico não era razoável, falta um dos requisitos do estado de necessidade, e a ilicitude não é excluída. Embora afastada a excludente, ante a desproporção entre o que foi salvo e o que foi sacrificado, a lei permite que a pena seja diminuída de um terço a dois terços. Trata-se de faculdade do juiz, e não de direito do réu. 28.4.4. Formas de estado de necessidade a) Quanto à titularidade do interesse protegido: estado de necessidade próprio (defende direito próprio) ou de terceiro (defende interesse alheio). b) Quanto ao aspecto subjetivo do agente: real (a situação de perigo é real) ou putativo (o agente imagina situação de perigo que não existe). c) Quanto ao terceiro que sofre a ofensa: defensivo (a agressão dirige-se contra o provocador dos fatos) ou agressivo (o agente destrói bem de terceiro inocente). 28.4.5. Excesso É a desnecessária intensificação de uma conduta inicialmente justificada. a) Pode ser doloso ou consciente: o agente responde dolosamente pelo resultado produzido. b) Pode ser não doloso ou inconsciente: o agente responde por crime culposo. 29 LEGÍTIMA DEFESA 29.1. CONCEITO Causa de exclusão da ilicitude consistente em repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, usando moderadamente os meios necessários. 29.2. FUNDAMENTO O Estado não tem condições de oferecer proteção aos cidadãos em todos os lugares e momentos, então, permite que se defendam quando não houver outro meio. 29.3. NATUREZA JURÍDICA Causa de exclusão da ilicitude. 29.4. REQUISITOS a) Agressão injusta atual ou iminente. b) Defesa de direito próprio ou de terceiro. c) Repulsa com meios necessários. d) Uso moderado desses meios. e) Conhecimento da situação justificante. 29.4.1. Agressão 29.4.1.1. Conceito de agressão Conduta humana que ataca um bem jurídico. Só as pessoas humanas, portanto, praticam agressões. Ataque de animal não configura agressão, logo não autoriza a legítima defesa. No caso, se a pessoa se defende do animal, estará em estado de necessidade. Cuidado: se alguém açula um animal para que ataque outra pessoa, nesse caso existe agressão autorizadora da legítima defesa, pois o animal é utilizado como instrumento do crime (poderia usar uma arma branca, uma arma de fogo, mas preferiu servir-se do animal). 29.4.1.2. Agressão injusta Agressão injusta é a contrária ao ordenamento jurídico. Trata-se, portanto, de agressão ilícita. A injustiça da agressão deve ser aferida objetivamente, independentemente da capacidade do agente. Assim, inimputável pratica agressão injusta, contra a qual cabe a legítima defesa. Admite-se: - Legítima defesa contra agressão de inimputável. - Legítima defesa contra agressão de qualquer pessoa acobertada por causa de exclusão da culpabilidade. - Legítima defesa putativa de legítima defesa putativa. Exemplo: dois inimigos,supondo que um vai agredir o outro, sacam suas armas e atiram pensando que estão se defendendo. - Legítima defesa real de legítima defesa putativa. Exemplo: “A” vê “B” enfiar a mão no bolso e pensa que ele vai sacar uma arma. Pensando que vai ser atacado, atira em “B”, que pode revidar em legítima defesa real. Note bem: a legítima defesa putativa é imaginária, só existe na cabeça do agente e, por conseguinte, objetivamente configura um ataque como outro qualquer (pouco importa o que “A” pensou; para “B”, o que existe é uma agressão injusta). - Legítima defesa real de legítima defesa subjetiva. A legítima defesa subjetiva é o excesso por erro de tipo escusável. Após se defender de agressão inicial, o agente começa a exceder-se, pensando que ainda sofre o ataque. Na sua mente, ele ainda está se defendendo porque a injustiça não cessou, mas, objetivamente, ele já deixou a posição de defesa e passou ao ataque, legitimando daí a repulsa por parte de seu agressor. Exemplo: “A” sofre um ataque de “B” e começa a defender-se. Depois de dominar completamente seu agressor, pensa que o perigo ainda não passou e prossegue, desnecessariamente, passando à condição de ofensor. Nesse instante, começa o excesso e termina a situação de defesa, que agora só existe na imaginação de “A”. Cabe, então, legítima defesa real. - Legítima defesa putativa de legítima defesa real. Como se trata de causa putativa, nada impede essa situação. Exemplo: “A” presencia seu amigo brigando e, para defendê-lo, agride seu oponente. Ledo engano: o amigo era o provocador e o agressor; o terceiro agredido estava apenas se defendendo. - Legítima defesa contra agressão dolosa ou culposa. Não se admite: - Legítima defesa real contra legítima defesa real. - Legítima defesa real contra estado de necessidade real. - Legítima defesa real contra exercício regular de direito. - Legítima defesa real contra estrito cumprimento do dever legal. Em nenhuma dessas hipóteses havia agressão injusta. 29.4.2. Agressão atual ou iminente a) Atual: é a que está ocorrendo. b) Iminente: é a que está para ocorrer. Se a agressão é passada ou futura, inexiste legítima defesa. 29.4.3. Agressão a direito próprio ou de terceiro a) Legítima defesa própria: defesa de direito próprio. b) Legítima defesa de terceiro: defesa de direito alheio. Na legítima defesa de terceiro, a conduta legítima pode dirigir-se contra o próprio terceiro. Exemplo: bato no suicida para impedir que ponha um fim à própria vida. 29.4.4. Meios necessários 29.4.4.1. Conceito É o meio menos lesivo colocado à disposição do agente. Exemplo: se o agente tem um pedaço de pau ao seu alcance e com ele pode tranquilamente conter a agressão, o emprego de arma de fogo revela-se desnecessário para contê-la. A proporcionalidade no emprego do meio, em relação à agressão, também é requisito para a existência do meio necessário. Neste sentido, Assis Toledo (2000, p. 201-203): São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Assim, quando a diferença de porte dos contendores revelar que a força física do agredido era ineficaz para afastar a ameaça do espancamento, o emprego da arma poderá ser um meio necessário, se de outro recurso menos lesivo e também eficaz não dispuser o agredido. O STF já decidiu que o modo de repelir a agressão, também, pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame. Assim, o emprego de arma de fogo, não para matar, mas para ferir ou amedrontar, pode ser considerado meio menos lesivo e, portanto, necessário. Considere-se o exemplo do paralítico, preso a uma cadeira de rodas, que, não dispondo de qualquer outro recurso para defender-se, fere a tiros quem lhe tenta furtar umas frutas. Pode ter usado dos meios para ele necessários, mas não exerceu uma defesa realmente necessária diante da enorme desproporção existente entre a ação agressiva e a reação defensiva. Entendemos que a necessidade do meio não guarda relação com a forma com que ele é empregado. Interessa apenas saber se o instrumento era o menos lesivo colocado à disposição do agente no momento da agressão. No exemplo do paralítico, entendemos que a arma era o único meio possível para conter o furto diante de sua impossibilidade de locomoção, portanto, deve ser considerada meio necessário. A maneira com que foi utilizada essa arma (para matar, ferir ou assustar) diz respeito à moderação, e não à necessidade do meio. Assim, se a arma foi empregada para matar o ladrão, a legítima defesa estará descaracterizada, não porque o meio foi desnecessário, mas porque a conduta foi imoderada, caracterizando o excesso. 29.4.4.2. Desnecessidade do meio Caracteriza o excesso, doloso, culposo ou exculpante (sem dolo ou culpa). 29.4.5. Moderação 29.4.5.1. Conceito Emprego dos meios necessários dentro do limite necessário para conter a agressão. A jurisprudência tem entendido que a moderação não deve ser medida milimetricamente, devendo-se analisar as circunstâncias de cada caso. O número exagerado de golpes, porém, revela imoderação por parte do agente. Afastada a moderação, deve-se perscrutar se houve excesso. 29.4.5.2 Excesso a) Conceito É a intensificação desnecessária de uma ação inicialmente justificada. b) Espécies - Doloso ou consciente: o agente responde pelo resultado dolosamente. - Culposo ou inconsciente: o agente responde por crime culposo. - Exculpante: não deriva nem de dolo, nem de culpa (legítima defesa subjetiva). O fato é atípico. c) Observações - Legítima defesa sucessiva: é a repulsa contra o excesso. - Legítima defesa putativa: é a errônea suposição da existência da legítima defesa por erro de tipo ou erro de proibição. - Legítima defesa subjetiva: excesso por erro de tipo escusável, que exclui o dolo e a culpa. 29.4.6. Conhecimento da situação justificante Mesmo que haja agressão injusta, atual ou iminente, a legítima defesa estará completamente descartada, se o agente desconhecia essa situação. Se, na sua mente, ele queria cometer um crime, e não se defender, mesmo que, por coincidência, o seu ataque acabe sendo uma defesa, o fato será ilícito. 29.5. DIFERENÇAS ENTRE LEGÍTIMA DEFESA E ESTADO DE NECESSIDADE Neste: - há um conflito entre dois bens jurídicos expostos a perigo; naquela, há uma repulsa a ataque; - o bem jurídico é exposto a perigo; naquela, o direito sofre uma agressão atual ou iminente; - o perigo pode ou não advir da conduta humana; naquela, a agressão só pode ser praticada por pessoa humana; - a conduta pode ser dirigida contra terceiro inocente; naquela, somente contra o agressor; - a agressão não precisa ser injusta; a legítima defesa, no entanto, só existe se houver injusta agressão. Por exemplo: dois náufragos disputando a tábua de salvação. Um agride o outro para ficar com a tábua salvadora, mas nenhuma agressão é injusta. Temos, então, estado de necessidade versus estado de necessidade. 29.6. COEXISTÊNCIA ENTRE ESTADO DE NECESSIDADE E LEGÍTIMA DEFESA É possível. Exemplo: “A”, para defender-se legitimamente de “B”, pega a arma de “C” sem a sua autorização. 30 ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL 30.1. CONCEITO O dever tem de constar de lei, decreto, regulamento ou qualquer ato administrativo, desde que de caráter geral. No caso de resolução administrativa de caráter específico, ou seja, dirigida ao agente, pode haver obediência hierárquica, mas não cumprimento de dever legal. Exige-se que o agente se contenha nos rígidos limites de seu dever, fora dos quais desaparece a excludente. Por exemplo: execução do condenado pelo carrasco; prisão legal efetuada pelos agentes policiais; morte em batalha. 31 EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO 31.1. CONCEITO A expressão direito é empregada em sentido amplo, abrangendo todas as formas de direito subjetivo, penal ou extrapenal. O exercício irregular ou abusivo do direito, ou com espírito de mera emulação, faz desaparecer a excludente. 31.2. OFENDÍCULOS Aparatos facilmente perceptíveis destinados à defesa da propriedade e de qualquer outro bem jurídico.Constituem exercício regular de direito, no entender de Bettiol e Aníbal Bruno. Para Assis Toledo , Damásio de Jesus, Nélson Hungria e Magalhães Noronha, constituem legítima defesa preordenada, já que o aparato é armado com antecedência, mas só atua no instante da agressão. 31.3. DEFESA MECÂNICA PREDISPOSTA Aparatos ocultos com a mesma finalidade que os ofendículos. Podem configurar delitos culposos, pois alguns aparatos instalados imprudentemente podem trazer trágicas consequências. Para Damásio de Jesus (1990, v. 1, p. 344), nos dois casos, salvo condutas manifestamente imprudentes, é mais correta a aplicação da justificativa da legítima defesa. A predisposição do aparelho constitui exercício regular de direito, mas, no momento em que ele atua, o caso é de legítima defesa preordenada. 32 CULPABILIDADE 32.1. CONCEITO Juízo de censurabilidade realizado sobre uma pessoa que pratica um fato típico e ilícito. Trata-se de pressuposto para imposição de pena. De uma forma mais simples, poderíamos conceituar culpabilidade como a possibilidade de declarar culpado o autor de um fato típico e ilícito. Quando se fala, por exemplo, que “Edmundo foi o culpado pelo fracasso do Corinthians”, está associando-se à expressão “culpado” uma ideia de reprovação, de desagrado, de censura. O referido termo não combinaria, por exemplo, com a ideia de sucesso (Fulano foi o culpado pelo êxito de sua empresa). Assim, culpa (lato sensu) e reprovação caminham lado a lado. Está presente a culpabilidade quando a sociedade pode apontar o dedo para o agente e dizer: “você errou e, por essa razão, será punido”. A culpabilidade somente será exercida depois de se ter verificado que o