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1 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Apresentação ................................................................................................................................ 4 Aula 1: Codificações e o Mito da Completude .............................................................................. 6 Introdução ........................................................................................................................6 Conteúdo ................................................................................................................................ 7 Fontes do Direito ...........................................................................................................7 Visão de Miguel Reale ....................................................................................................... 8 Código Civil de 2002 ...................................................................................................20 Encerramento ..............................................................................................................27 Referências .......................................................................................................................... 29 Notas ........................................................................................................................................... 34 Chaves de resposta ..................................................................................................................... 34 Aula 1 ..................................................................................................................................... 34 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 34 Aula 2: Dicotomia Público-Privado .............................................................................................. 37 Introdução ......................................................................................................................37 Conteúdo .............................................................................................................................. 38 Distinção do Direito .................................................................................................... 38 Não Direito ...................................................................................................................39 Referências .......................................................................................................................... 48 Notas ........................................................................................................................................... 52 Chaves de resposta ..................................................................................................................... 52 Aula 2 ..................................................................................................................................... 52 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 52 Aula 3: Recodificação do Código Civil ......................................................................................... 55 Introdução ......................................................................................................................55 Conteúdo .............................................................................................................................. 56 Recapitulando ................................................................................................................... 56 Doutrina e jurisprudência ...........................................................................................58 Recodificação - completa transformação ......................................................... 60 Resultado dessa descodificação? ................................................................................. 62 Referências .......................................................................................................................... 68 Exercícios de fixação ........................................................................................................ 68 Notas ........................................................................................................................................... 73 2 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Chaves de resposta ..................................................................................................................... 74 Aula 3 ..................................................................................................................................... 74 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 74 Aula 4: Influências da CF/88 no Direito Civil ............................................................................... 77 Introdução ......................................................................................................................77 Conteúdo .............................................................................................................................. 78 Pilares fundamentais ........................................................................................................ 78 Princípios ........................................................................................................................... 79 O Constitucionalismo contemporâneo .....................................................................81 Correta interpretação do texto ..................................................................................86 Princípio, valor e regra ..................................................................................................... 88 Referências .......................................................................................................................... 94 Notas ......................................................................................................................................... 100 Chaves de resposta ................................................................................................................... 100 Aula 4 ................................................................................................................................... 100 Exercícios de fixação ..................................................................................................... 100 Aula 5: Princípios constitucionais gerais l ................................................................................. 103 Introdução ................................................................................................................... 103 Conteúdo ............................................................................................................................ 104 Sistema igualitário e solidário ................................................................................. 104 Princípio da igualdade nas relações conjugais e união estável (art. 226, §5º, CF) ........................................................................................................................................... 110 Princípio da paternidade .................................................................................................. 113 Atividade proposta ................................................................................................... 131 Referências ........................................................................................................................ 132 Notas ......................................................................................................................................... 135 Chaves de resposta................................................................................................................... 135 Aula 5 ................................................................................................................................... 135 Exercícios de fixação ..................................................................................................... 135 Aula 6: Princípios Constitucionais Gerais II ............................................................................... 137 Introdução ................................................................................................................... 137 Conteúdo ............................................................................................................................ 138 Recapitulando ................................................................................................................. 138 Funções dos contratos................................................................................................... 140 Princípios clássicos de direito contratual.............................................................. 140 Princípio da autonomia privada ............................................................................. 150 3 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Princípio da intangibilidade dos contratos ............................................................ 152 Princípios contratuais contemporâneos ............................................................... 153 Referências ........................................................................................................................ 172 Notas ......................................................................................................................................... 178 Chaves de resposta ................................................................................................................... 178 Aula 6 ................................................................................................................................... 178 Exercícios de fixação ..................................................................................................... 178 Aula 7: Funcionalização da propriedade privada ...................................................................... 181 Introdução ................................................................................................................... 181 Conteúdo ............................................................................................................................ 182 O mistério do capital ................................................................................................ 182 Conceito de posse ................................................................................................... 185 Titular da posse .............................................................................................................. 186 Da funcionalização da posse e da propriedade ......................................................... 187 Interesse geral ................................................................................................................ 188 Função social da propriedade ...................................................................................... 189 Fundamento comum e essencial da aparência de bem..................................... 190 Ordenamento positivo ............................................................................................. 191 Conflito interpretativo ............................................................................................... 191 O contrato .................................................................................................................. 193 Opção progressista ........................................................................................................ 193 Referências ........................................................................................................................ 200 Notas ......................................................................................................................................... 204 Chaves de resposta ................................................................................................................... 204 Aula 7 ................................................................................................................................... 204 Exercícios de fixação ..................................................................................................... 204 Aula 8: Sociedade de Risco e de Informação ............................................................................ 206 Introdução ................................................................................................................... 206 Conteúdo ............................................................................................................................ 207 Revolução tecnológica ............................................................................................ 207 Referências ........................................................................................................................ 226 Notas ......................................................................................................................................... 229 Chaves de resposta ................................................................................................................... 231 Aula 8 ................................................................................................................................... 231 Exercícios de fixação ..................................................................................................... 231 Conteudista ............................................................................................................................... 233 4 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Nesta disciplina, estudaremos os elementos de Direito Civil Constitucional. Iniciaremos o estudo com a formação histórica e sociológica da codificação civil brasileira (CC/16 e CC/02). A partir da análise das principais características dos códigos civis brasileiros descreveremos os movimentos de constitucionalização, publicização, despatrimonialização, repersonalização, descodificação e recodificação do Direito Privado brasileiro. Em seguida, discutiremos a influência desses movimentos sobre o sistema privatístico brasileiro, dando ênfase especial à constitucionalização. Definiremos a Constituição Federal como eixo central do ordenamento jurídico brasileiro (inclusive das relações privadas) e, a partir dela, estudaremos os princípios constitucionais gerais aplicáveis ao clássico tripé civil: família, contratos e propriedade. Definiremos todas as bases principiológicas do Direito Civil, consideradas importantes, para o exercício profissional comprometido com as transformações sociais. Sendo assim, esta disciplina tem como objetivos: 1. Estudar a evolução histórica e sociológica da codificação brasileira; 5 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL 2. Compreender os movimentos influenciadores do Direito Civil brasileiro e seus reflexos na atual codificação; 3. Analisar a superação da clássica dicotomia do Direito Público e do Direito Privado; 4. Descrever os princípios constitucionais no Código Civil de 2002 e a consequente função social do Direito Civil; 5. Observar a constitucionalização do Direito Privado e seus reflexos no tripé clássico do Direito Civil: família, propriedade e contrato; 6. Identificar os desafios dos impostos pela Era da Informação e pela Sociedade de Risco ao Direito Privado. 6 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL IntroduçãoVocê está iniciando o módulo que abordará os Elementos de Direito Civil Constitucional. Para compreender esses elementos, é preciso antes relembrar aspectos importantes da codificação civil brasileira e os movimentos que deram origem ao que se denomina atualmente de constitucionalização do Direito Civil. Iniciaremos, então, relembrando a teoria das fontes e apresentando as respectivas críticas; pontuando o caminho histórico legislativo dos códigos civis brasileiros e suas principais características. Terminaremos nosso estudo com os movimentos transformadores do Direito Privado. Todos esses assuntos servirão de fundamento para as aulas que estão por vir, dando-lhe a base para a compreensão do novo Direito Civil brasileiro e os seus reflexos na jurisprudência. Objetivo: 1. Compreender os aspectos e características da codificação civil brasileira; 2. Identificar os movimentos que influenciaram o Código Civil vigente e estudar seus reflexos práticos. 7 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Conteúdo Fontes do Direito Você se recorda das fontes do Direito? O vocábulo fonte designa origem, gênese. Portanto, seriam fontes do Direito os fatos ou atos que lhe dão origem. Evidente, dessa forma, que as normas que formam o Direito não têm uma origem única. Classicamente, costuma-se classificar as fontes de Direito Positivo em fontes formais e fontes materiais. Você consegue se recordar a que elas se referem? Fontes formais São as normas ou regras vigentes decorrentes de um processo legislativo. São fontes formais do Direito Positivo: costume; a lei; a jurisprudência; a doutrina; os negócios jurídicos. Fontes materiais São as necessidades sociais que impõem a elaboração de uma regra ou norma. São valores sociais que orientam ou integram o conteúdo da norma. Fontes do Direito Você se recorda das fontes do Direito? O vocábulo fonte designa origem, gênese. Portanto, seriam fontes do Direito os fatos ou atos que lhe dão origem. Evidente, dessa forma, que as normas que formam o Direito não têm uma origem única. Classicamente, costuma-se classificar as fontes de Direito Positivo em fontes formais e fontes materiais. 8 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Você consegue se recordar a que elas se referem? Fontes formais São as normas ou regras vigentes decorrentes de um processo legislativo. São fontes formais do Direito Positivo: costume; a lei; a jurisprudência; a doutrina; os negócios jurídicos. Fontes materiais São as necessidades sociais que impõem a elaboração de uma regra ou norma. São valores sociais que orientam ou integram o conteúdo da norma. Visão de Miguel Reale Fato é que as fontes decorrem sempre de uma necessidade social, ou seja, a produção de normas resulta das transformações sociais que impõem o repensar ou o atuar do Direito visando à manutenção e garantia da paz social. Miguel Reale critica a teoria das fontes (teoria clássica) afirmando não ter ela vinculação com a realidade jurídica, vez que a construção das normas se daria sempre sobre uma base fática composta por valores preexistentes. O que isso significa afirmar? Significa que a lei não cria nada novo, apenas determina o comportamento humano de acordo com esses mesmos valores. Fundamentada nesse raciocínio está a teoria tridimensional do Direito elaborada por Miguel Reale com base no culturalismo, ou seja, reconhece-se que não existe uma separação ou uma unificação absoluta entre fatos, valores e normas. Portanto, as fontes “são processos ou meios em virtude dos quais se positivam com legítima formação obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto 9 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL de uma estrutura normativa” (REALE, 2009, p. 140). Por isso, não se pode considerar a lei como fonte exclusiva do Direito, reconhecendo-se também à doutrina, à jurisprudência, aos costumes e aos negócios jurídicos também papel importante na formação do Direito. Codificação e Consolidação A partir dessa visão, interessa-nos iniciar o nosso estudo analisando as codificações civis brasileiras como fontes formais do Direito Privado. Por isso, antes de estudarmos a codificação brasileira, é preciso retomar outra diferenciação: será que você recorda a diferença entre Codificação e Consolidação? Codificar: É o “o ato pelo qual se elabora a sistematização das diversas regras ou princípios relativos à matéria que faz de um ramo do Direito” (PLÁCIDO; SILVA, 2008, p. 302). Código, portanto, é um sistema coordenado de regras reunidas em um único texto e, assim sendo, o processo legislativo que o cria é considerado mais complexo uma vez que exige a busca de valores e princípios comuns. Consolidar: É o “ato de reunir em um único texto as diversas leis que se referem a um determinado assunto ou que compõem a regulamentação a certa e determinada atividade ou a certo e determinado serviço” (PLÁCIDO; SILVA, 2008, p. 302). Trata-se, portanto, de criação legislativa mais simples do que a codificação, refletindo-se em uma justaposição organizada de leis já existentes e vigentes sobre determinado assunto. Construção legislativa do Código Civil de 1916 10 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Lembradas essas diferenças, vamos estudar o histórico da codificação civil brasileira para tentar compreender como os movimentos sociais e doutrinários influenciaram na elaboração dessas leis. O Direito Português foi uma das grandes fontes de Direito Privado brasileiro. Vigente, mesmo após a Independência do Brasil, o Direito Português (em especial as Ordenações Filipinas), no que se refere às relações privadas, só foi definitivamente excluído do ordenamento brasileiro com a entrada em vigor do Código Civil de 1916. Linha do tempo: construção legislativa do Código Civil de 1916 Acompanhe, na linha do tempo abaixo, como se desenvolveu a construção legislativa do código civil. 1824 Com a Independência do Brasil, ganhou espaço o movimento codificador do Direito Civil, tarefa inclusive prevista na Constituição Federal de 1824 (art.179). 1845 Barão de Penedo Visando promover essa tarefa em 1845, o advogado Francisco Inácio de Carvalho Moreira (conhecido como Barão de Penedo) defendeu junto à Ordem dos Advogados Brasileiros a necessidade da codificação das leis civis, incitando o Legislativo a dar início aos trabalhos. 1858 Teixeira de Freitas 11 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL À época, o legislador optou por primeiramente realizar a consolidação das leis civis vigentes. Para tanto, o Ministério da Justiça, em 15.02.1855, contratou o Bacharel Augusto Teixeira de Freitas, concedendo-lhe o prazo de cinco anos para finalizar e classificar todas as leis civis existentes até o momento. Teixeira de Freitas, embora tenha realizado impressionante trabalho, não chegou a concluir a sua classificação das leis, vez que optou o governo a dar início ao trabalho de consolidação das leis civis, trabalho concluído em 1858 e aprovado pelo Imperador em 24 de dezembro de 1858, com o nome de Consolidação das Leis Civis, lei que permaneceu vigente até 1917. A Consolidação apresentada por Teixeira de Freitas tinha mais de duzentas páginas apenas de introdução, na qual o autor expunha o método, a seleção e as classificações adotadas e, por isso, considerada como um dos mais importantes documentos do Direito brasileiro. O corpo da lei continha 1333 artigos, todos com notas explicativas. Teixeira de Freitas também optou por dividir seu trabalho em Parte Geral (a qual regulava as pessoas e as coisas) e Parte Especial (que se destinava aos direitos pessoais e aos direitos reais), adotando, portanto, o sistema pandectista alemão. No mesmo ano em que a Consolidação foiaprovada, o Decreto n. 2318 autorizou a contratação de um jurista para apresentar o tão almejado Projeto do Código Civil Brasileiro. Teixeira de Freitas foi contratado em 10.01.1859 e foi realmente durante os trabalhos do código que seu notável conhecimento acadêmico pôde ser desenvolvido. Em agosto de 1860, imprimiu-se a Primeira Seção do que ficou conhecido como Esboço de Teixeira de Freitas, logo em seguida, publicaram-se a Segunda e a Terceira Seções da Parte Geral e a Primeira e a Segunda Seção da Parte Especial; a Terceira parte foi publicada apenas em 1865 e, até aqui, o Esboço já contava com 3.702 artigos. Já com os trabalhos bastante avançados, Teixeira de Freitas manifestou-se com dificuldade de terminá-lo, não só porque seus vencimentos estavam atrasados 12 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL desde 1861 (quando seu contrato havia acabado), mas porque não estava satisfeito com os rumos tomados pela Comissão revisora (Presidida por Visconde de Uruguai). Em 1866, o autor desiste de acabar o projeto, abandonando-o inacabado com 4.908 artigos. Embora o Esboço não tenha sido concluído, acabou servindo de influência para outros países: Código Civil Argentino de 1865; Código Civil do Paraguai e Código Civil do Uruguai, países em que o autor ficou conhecido como o “Savigny americano”. Suas ideias sobre a unificação do Direito Privado foram recebidas por países como o Japão (1898) e a Itália (1942). No entanto, a busca por um Código Civil brasileiro continuava. 1866 Em 1866, Teixeira de Freitas deu um novo rumo ao seu trabalho cedendo aos apelos do movimento de unificação do Direito Privado que propunha a unificação em uma única lei das normas civis e comerciais. No entanto, essa ideia unificadora não foi bem recebida pela doutrina e pelo legislador que tendia mais a aceitar a unificação do direito obrigacional do que a unificação de todo o Direito Privado. 1872 Nabuco de Araújo Em 1872, foi contratado Nabuco de Araújo, que tinha o prazo de cinco anos para apresentar seu projeto. Findo o prazo, no entanto, o autor nada tinha feito além de reunir material e elaborar a divisão que pretendia seguir. Foi-lhe concedida prorrogação de prazo sem vencimentos. Diante da necessidade de manter a si e à sua família, tomado pelas atividades profissionais, Nabuco de Araújo acabou optando por conservar, no que fosse possível, o Esboço de Teixeira de Freitas, imprimindo-lhe suas impressões e estudos pessoais. Nabuco 13 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL de Araújo faleceu em 1878 sem terminar sua obra, levando consigo seus pensamentos e estudos, impossibilitando a qualquer um dar continuidade ao projeto. 1881 Felício dos Santos Assim, em 1881, o Governo contratou o jurista Felício dos Santos. O trabalho intitulado “Apontamentos para o Projeto de Código Civil Brasileiro”, composto por 2692 artigos, chegou a ser encaminhado a uma Comissão revisora (1889), mas com o advento da República o trabalho não foi concluído. 1890 Antônio Coelho Rodrigues Após a proclamação da República, assumiu os trabalhos do Projeto de Código Civil Antônio Coelho Rodrigues (que já havia participado de comissões revisoras anteriores) (em 15 de julho de 1890). Seu projeto foi finalizado em 11.01.1893, em Genebra e, por isso, acabou contando com forte influência do Código de Zurique. Nomeada Comissão revisora (Presidida por Torres Netto), o projeto foi rejeitado por nele terem sido constadas graves imperfeições. 1896 Saldanha Marinho No entanto, afirma-se que o projeto não teria sido recebido pela Comissão porque Saldanha Marinho encabeçava o movimento que pretendia aprovar o Projeto de Felício dos Santos. Diante dessa controversa situação política, Coelho Rodrigues optou por oferecer seu projeto ao Senado, tendo recebido como 14 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL relator Gonçalves Chaves. A Comissão nomeada chegou a indicar a aprovação do projeto após revisão. Remetido o projeto à Câmara em 1896, acabou sendo esquecido. 1899 Carlos de Carvalho A ansiedade por um Código Civil brasileiro aumentava e, em 1899, Carlos de Carvalho publicou em Bruxelas a Nova Consolidação das Leis Civis Brasileiras (ou Direito Civil Brasileiro Recopilado), que nada mais foi do que uma atualização da Consolidação feita por Teixeira de Freitas e vigente na época. 1900 Clóvis Beviláqua Então, no mesmo ano, foi contratado Clóvis Beviláqua que, com base nas leis alemãs e francesas, no Esboço de Teixeira de Freitas e no Projeto de Coelho Rodrigues, entregou no mesmo ano seu projeto. Em agosto de 1900, a comissão revisora presidida por Epitácio Pessoa encerrou seus trabalhos e, em 17 de novembro de 1900, o projeto foi apresentado ao Congresso que, após inúmeras discussões, apresentou seu parecer em 18 de janeiro de 1902, apontando-se a necessidade de diversas alterações. 1902 Ruy Barbosa Aprovado em Plenário da Câmara, em 1902, o projeto foi remetido ao Senado onde recebeu como relator o Senador Ruy Barbosa, que fez questão de elaborar sozinho o relatório e que acabou dando início a uma das mais 15 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL acirradas batalhas linguísticas já registradas no Brasil. Ruy Barbosa e Clóvis Beviláqua (com auxílio do gramático Carneiro Ribeiro) trocaram inúmeras correspondências que, embora sejam de conteúdo linguístico inestimável, pouco representaram em discussões jurídicas. Mais informações Ruy Barbosa Após inúmeras críticas sobre a demora em finalizar a apreciação do projeto e uma tentativa de por si terminar os trabalhos, Ruy Barbosa acabou se desligando das funções. O projeto, então, permaneceu no Senado até 1912, tendo sido devolvido à Câmara com 1736 emendas. Apenas em 1915 as emendas foram finalmente apreciadas pela Câmara, sendo 94 rejeitadas. Remetido novamente ao Senado, 24 emendas das 94 rejeitas foram aprovadas. Reapresentado à Câmara, 9 dessas emendas foram novamente rejeitadas. Finalmente, aprovou-se, em 26 de dezembro de 1915, o Projeto 168-A. O Projeto foi sancionado em 1 de janeiro de 1916, com vacatio legis de um ano. O Código Civil (de 16 ou de 17 em virtude da data em que entrou em vigor - Lei n. 3.071/16) é considerado o antepenúltimo código oitocentista. Devido à demora de seu processo legislativo, o código representa em sua generalidade o Estado Liberal, com grande proteção da propriedade, sendo, por isso, considerado individualista, patrimonialista, patriarcal (extremante conservador quanto às relações familiares) e latifundiário (proteção da propriedade independente da sua função), representando a doutrina vigente no final do século XIX; formalista e fechado, o que deixava pouco espaço à atuação dos operadores do Direito na determinação do sentido das normas; privilegiou a forma linguística ao invés da técnica jurídica. Devido ao demorado processo legislativo logo após a sua entrada em vigor, já se identificou a necessidade de sua atualização. A série de leis esparsas 16 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL alteradoras do Código Civil de 1916 tem início com a Lei n. 3.725 de 15 de janeiro de 1919 e, depois disso, não mais parou. Diante das constantes críticas apresentadas ao projeto em 1940, foi nomeada uma nova Comissão composta por Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Hahnemann Guimarães. Essa Comissão apresentou, em 1941, um Anteprojeto do Código das Obrigações, propondo o que se denominou de unificação do direito obrigacional (inspirado no Código Suíço das Obrigações), movimento que não encontrou grandes defensores no legislativo. A partir do governo Jânio Quadros (1961), iniciou-se um movimento de reforma dos códigos brasileiros. Então, em 1963, OrlandoGomes apresentou o Anteprojeto de Código Civil. Os trabalhos da Comissão revisora terminaram em 15 de julho do mesmo ano. Em seguida, Caio Mário da Silva Pereira, Theophilo Azevedo Santos e Sylvio Marcondes apresentaram Anteprojeto do Código das Obrigações, anteprojeto que chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional juntamente com o Projeto de Orlando Gomes, onde acabaram sendo abandonados pelo governo. O Brasil buscava, agora, uma legislação civil mais atualizada e que atendesse às transformações impostas pela migração do Estado Liberal para o Estado Social. Classicamente, os códigos sempre foram considerados um espaço de ausência de valores o que, para a Modernidade, conferia-lhes segurança inabalável, imune a qualquer subjetivismo. No entanto, contemporaneamente, percebeu-se que essa ausência de valores acaba sendo excludente, uma vez que tudo que está contido nas molduras classicamente construídas nem sempre representa o que poderia nelas estar efetivamente contido. Assim, a realidade fática acabou criando sociedades à margem do sistema jurídico classicamente construído, uma vez que certas pessoas e/ou situações não conseguem ser enquadradas às molduras institucionalizadas pela Modernidade o que pode, evidentemente, causar um descompasso grave entre realidade social e tutela jurídica. Você 17 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL consegue identificar situações sociais que estão à margem da lei por não se enquadrarem nas molduras clássicas? Diante dessa constatação de distanciamento entre o Direito e a realidade social, surgem movimentos recodificadores. Atualmente, será que podemos identificar no Brasil um movimento recodificador? Recodificar, explica Ricardo Luiz Lorenzetti (1998, p. 270-271), “consiste em identificar os dogmas existentes nessa dispersão: na tendência jurisprudencial, na lei especial, no costume”. Portanto, afirma o autor, “a recodificação não é uma obra do legislador, mas da dogmática”, o que nos faz refletir se realmente esse movimento está presente no Brasil. Novo projeto de Código Civil Em 1967, o governo nomeou o jurista Miguel Reale para coordenar a Comissão que apresentaria um novo projeto de Código Civil. Os trabalhos da Comissão foram distribuídos da seguinte forma: José Carlos Moreira Alves (Parte Geral); Sylvio Marcondes (Direito de Empresa); Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família); Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações); Ebert Vianna Chamoun (Direito das Coisas); Torquato Castro (Direito das Sucessões). 18 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Cabendo a Miguel Reale sistematizar o trabalho final com base no que ele denominou de normativismo jurídico concreto. Construção legislativa do Código Civil de 2002 Acompanhe na linha do tempo abaixo a construção legislativa do Código Civil de 2002: 1824 Em 1969, foi nomeada a Comissão revisora e elaboradora do Código Civil que finalizou seus trabalhos em 1972. 1845 O Anteprojeto do novo Código Civil recebeu 700 emendas, sendo sua redação definitiva finalizada em 1975. No mesmo ano, o então Presidente Ernesto Geisel encaminhou o Projeto de Lei do Executivo (n. 634-B) ao Congresso Nacional. 1858 Em 1983, o Projeto foi aprovado na Câmara, sendo enviado ao Senado em 1984, onde ganhou o número 118. No Senado, foram apresentadas 360 emendas e, logo após, o projeto foi arquivado. 1991 Em 1991, o Senador Cid Sabóia de Carvalho desarquivou o Projeto e, após parecer da Comissão Especial, designaram-se Miguel Reale e José Carlos Moreira Alves como encarregados de apresentar a necessária reestruturação da proposta. 1997 19 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Apenas em 1997 o Projeto é aprovado pelo Senado e, no mesmo ano, encaminhado à Câmara dos Deputados, onde se indicou a necessidade de sua adequação ao texto constitucional vigente a partir de 1988. 2001 Feitas as adequações, o projeto foi aprovado em 15 de agosto de 2001, retornando à Comissão Especial da Câmara dos Deputados para adequação de sua redação. A Comissão era presidida pelo Deputado Ricardo Fiúza, que aprovou o projeto em 20 de novembro de 2001. 2002 O projeto foi sancionado em 10 de janeiro de 2002 com 2.046 artigos, publicado no dia seguinte com vacatio legis de um ano e, portanto, vigente a partir de 11 de janeiro de 2003 - Lei n. 10.406/02). 20 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Atenção O Código Civil vigente manteve a divisão em Parte Geral e Parte Especial, apenas adequando a ordem dos livros à nova sistemática civilista; realizou a unificação do Direito Obrigacional, revogando a Parte Primeira do Código Comercial e unificando as obrigações civis e mercantis; optou por não abordar temas que à época ainda eram considerados polêmicos, regulamentando apenas o que já estava consolidado; adotou como princípio orientador o princípio da socialidade (marca importante do culturalismo), preocupando-se em dar prevalência a valores coletivos sobre os valores individuais; impõe às relações privadas o princípio da eticidade, para tanto utilizando cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, permitindo uma maior abertura do sistema e impondo uma participação mais ativa dos operadores do Direito na determinação do sentido e alcance das normas. Código Civil de 2002 Afirma-se que o Código Civil de 2002 representa o Estado Social, personalista, embora nele ainda se possa encontrar alguns resquícios do patrimonialismo. Nota-se que tanto o processo legislativo do Código Civil/16 quanto o processo legislativo do Código vigente foram extremamente longos o que, por óbvio, provocou críticas, ao ponto de se afirmar que o Código Civil de 2002 nasceu velho. Será? Código Civil As codificações, por essência, são generalistas e não poderia ser diferente em virtude do trabalho envolvido em sua elaboração. Embora alguns doutrinadores, como Savigny, entendam ser este um ponto negativo que leva à fossialização 21 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL desses sistemas, não se pode de todo afastar a utilidade social e jurídica das boas codificações. Atividade proposta Vamos fazer uma atividade! Vários são os projetos de lei que visam retirar assuntos importantes do Código Civil, dando-lhes tratamento próprio ou, até mesmo, codificando-os em estatutos autônomos. Assim, por exemplo: Projeto de Lei Complementar n. 1572/2011 e Projeto de Lei do Senado n. 487/2013- Propõem a criação de um novo Código para o Direito de Empresa brasileiro. Projeto de Lei do Senado n. 470/2013 - Propõe a criação de um Código das Famílias (ou Estatuto das Famílias), retirando todo o assunto Família e Sucessões do Código Civil e criando um novo e específico código para esses temas, trazendo regras de direito material e de direito processual. Consulte esses projetos e reflita: será que realmente o movimento descodificador não tem limitações para a criação dos denominados microssistemas? Será que realmente é necessário criar novos códigos para assuntos específicos ou seria mais adequado deixar que o Direito nacional se desenvolva sem as amarras de uma codificação? Para lhe auxiliar a refletir leia: AZEVEDO, Reinaldo. Atenção leitores! Eles criam 1.150 leis por dia para infernizar a nossa vida e nos tornar, mas improdutivos, menos felizes, mais pobres e menos inteligentes. Chave de resposta: A resposta é livre. Porém, temos o seguinte comentário: Nota-se que a centenária polêmica entre a manutenção das codificações e o sistema de livre desenvolvimento de leis esparsas decorre de questões de alta Filosofia legislativa que, diante de uma Sociedade de Massa e de Informação, cada vez mais envolta em tecnologias, produz questionamentos cada vez mais 22 ELEMENTOSDE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL frequentes em virtude da incapacidade do Direito de acompanhar as constantes transformações sociais. Movimentos da constitucionalização Afirma-se que o Código Civil de 2002 representa o Estado Social, personalista, embora nele ainda se possa encontrar alguns resquícios do patrimonialismo. Nota-se que tanto o processo legislativo do Código Civil/16 quanto o processo legislativo do Código vigente foram extremamente longos o que, por óbvio, provocou críticas, ao ponto de se afirmar que o Código Civil de 2002 nasceu velho. Será?! O Código Civil vigente foi fortemente influenciado pelos movimentos da constitucionalização, repersonalização, despatrimonialização, publicização e descodificação do Direito Privado. Conceitos Para compreender a influência desses movimentos no Código Civil de 2002, vamos primeiro, conceituá-los. Constitucionalização No Brasil, a partir da Constituição de 1934 (influenciada pela Constituição de Weimar - Alemanha), vários assuntos que até então eram tidos como problemas exclusivamente de Direito Privado passaram também a ser uma preocupação constitucional (ex.: família, contratos e propriedade). No entanto, foi com a Constituição Federal de 1988 que a constitucionalização realmente se evidenciou no Brasil, fazendo surgir o movimento denominado Direito Civil Constitucional (objeto de estudo deste módulo). Repersonalização O Direito Civil Constitucional é fruto do processo de elevação ao plano constitucional de princípios que até então eram considerados exclusivos do Direito Privado. Impõe-se agora a análise das relações privadas a partir da 23 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Constituição Federal e não exclusivamente a partir do Código Civil, não só no que diz respeito à matéria civil constitucionalizada, mas também analisando-as a partir dos direitos fundamentais, princípios e valores constitucionais. Trata-se de movimento que procura valorizar o ser sobre o ter, reconhecendo- se o indivíduo como ser coletivo; colocando-se a pessoa como o centro de realização de seus interesses. É movimento que impõe ao Direito Privado a observação a princípios como o da justiça distributiva e da solidariedade social, priorizando-se a pessoa e a realização de seus interesses imediatos. Depatrimonialização Busca recolocar a pessoa como centro de proteção do Direito Privado, valorizando-se a sua proteção em detrimento da propriedade e do patrimônio. Visa à combinação de situações subjetivas patrimoniais com situações jurídicas extrapatrimoniais, reconhecendo-se o patrimônio apenas como o suporte ao livre desenvolvimento da pessoa. Descodificação É movimento que embora reconheça o Código Civil como eixo central do Direito Privado, também compreende a necessidade de regulação de situações especiais por leis específicas, inclusive por meio da criação de microssistemas ou sistemas autônomos (CLT, CDC, ECA, Estatuto do Idoso...). O problema do excesso da descodificação é que pode ela gerar um sistema fragmentado e até mesmo lacunoso ou contraditório. Por isso, embora seja uma tendência, a descodificação deve ser realizada com prudência dogmática e técnica para evitar a perda da unidade do sistema. Publicização Favorece a extinção da dicotomia público-privado (que será estudada na próxima aula), propondo a renovação da estrutura da sociedade e adaptação do Direito a essas novas estruturas, aproximando a harmonização de interesses públicos e privados (em detrimento da supremacia daquele sobre este). Além 24 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL desses movimentos, o Código Civil foi também influenciado pelos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade. Eticidade Promove a incorporação e aproximação de valores éticos aos institutos jurídicos, promovendo uma valorização das regras básicas de comportamento correto tanto nas relações patrimoniais quanto nas relações extrapatrimoniais. Caracteriza-se pela valorização de pressupostos éticos na ação dos sujeitos, impondo-se deveres jurídicos de conduta. Trata-se de princípio que pode ser especialmente verificado nos arts. 113, 187 e 422, CC, que agregam a boa-fé objetiva ao ordenamento civil, impondo-a como um dever jurídico positivo, exigindo a conduta leal, honesta e proba, determinando a colaboração intersubjetiva em todas as relações. Socialidade Promove a funcionalização de direitos subjetivos e a ampliação dos vínculos dos indivíduos com a sociedade. Deixa a função social de ser apenas um limite à autonomia privada, para agora impor um dever de consciência social às relações privadas. Trata-se de princípio que pode ser verificado nos arts. 421 e 1228, CC. Operabilidade Impõe a adoção de conceitos mais claros (embora algumas imprecisões técnicas ainda possam ser verificadas como a confusão entre rescisão, resolução e resilição); a sintonia entre todas as Partes do Código. Passado e presente Embora influenciado por esses movimentos e princípios e considerado bem mais flexível que Código Civil anterior, fato é que o Código Civil de 2002 representa a permanência do passado no presente (Luiz Edson Fachin), mantendo dicotomias anacrônicas e dissociadas da realidade social. Percebe-se que: 25 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Classicamente os Códigos sempre foram considerados um espaço de ausência de valores. Modernidade conferia-lhes segurança inabalável, imune a qualquer subjetivismo. Contemporaneamente percebeu-se que essa ausência de valores acaba sendo excludente, uma vez que tudo que está contido nas molduras classicamente construídas nem sempre representa o que poderia nelas estar efetivamente contido. A realidade fática acabou construindo sociedades à margem do sistema jurídico classicamente construído, uma vez que certas pessoas e/ou situações não conseguem ser enquadradas às molduras institucionalizadas pela Modernidade. Por isso, a clássica lógica formal do Direito Civil que, por meio das categorias de fatos jurídicos admite juízos de exclusão, acabou revelando um conformismo racional com estruturas jurídicas absolutas que encontram-se hoje em pleno questionamento justamente por estarem dissociadas da sociedade e da realidade histórica. Ao definir o que é juridicamente relevante, o Direito clássico moderno exclui fatos que acabam não sendo considerados jurídicos, mas que socialmente possuem inquestionável relevância. Pilares fundamentais Os pilares fundamentais do Direito Privado clássico (contrato, propriedade e família) não dão conta de outras possibilidades que surgem na contemporaneidade como a ideia da cidadania e de coletividade. Contrato Propriedade Família 26 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL O presente, já com vistas ao futuro, clama pela substituição do indivíduo- centrismo (remanescente do século XVIII) pela pessoa concreta (o novo sujeito do Direito contemporâneo), justamente porque tal racionalidade oitocentista não consegue conviver bem com a ideia de coletivo, marcante na contemporaneidade. Nesse contexto, há certas relações que são ditas não jurídicas apenas por não se enquadrarem nas molduras clássicas e, portanto, passam a pertencer ao não direito, embora acabem ingressando no Direito como uma necessidade social. Próximas aulas Nas próximas aulas, abordaremos o fato de o Direito não dever reduzir as relações sociais a categorias insulares que acabam não só dissociando totalmente o Público do Privado como também formando juízos apriorísticos em sua maioria includentes ou excludentes. Público alvo Também não se pode exigir que o Direito deva ter um comportamento tipificador. Isso quer dizer que o Código Civil brasileiro, fruto da permanência do discurso moderno no presente, não se coaduna maiscom o contexto social, podendo-se, então, falar em relações de direito e de não direito que acabam se assentando em uma racionalidade excludente que compreende o sujeito apenas abstratamente. Estudo do direito civil Dessa forma, nesta aula pretende-se realizar o estudo do Direito Civil reconhecendo-se a travessia que se opera na contemporaneidade, ou seja, a necessidade de reconhecer que o passado não é uma página virada, mas é parte do presente e de um futuro que ainda não se consolidou (Luiz Edson Fachin). Nessa caminhada que se impõe, deve-se também reconhecer que a fórmula insular classicamente imposta encontra-se dissociada da sociedade, não 27 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL correspondendo o estatuto jurídico vigente às necessidades de uma sociedade plural. As molduras modernamente construídas não se adéquam à nova proposta emancipatória, mais próxima das necessidades sociais e que têm por ponto de partida o indivíduo como ser coletivo. Encerramento Por fim, tem-se que as dicotomias tão fortemente presentes na formação da racionalidade moderna devem ser, na atual realidade, reconhecidas como fator de aproximação de todo o contexto social. Deve-se reafirmar a pessoa concretamente, tomada em suas necessidades e aspirações, dissociada, portanto, do conceito insular e totalmente excludente contido na categoria clássica de “sujeito de direitos”. Propõem-se novos limites e possibilidades sem que com isso se apague totalmente o passado e se distancie prontamente do presente. A travessia, portanto, deve ser constantemente refeita para que se possam repensar significantes de acordo com as exigências do contexto social. Atenção Na busca por essa repersonalização do Direito Civil, veremos que não se busca apagar totalmente os ensinamentos clássicos, mas a superação de seu tecnicismo e neutralismo como forma de fazer com que o Direito atenda mais rapidamente às demandas sociais. Trabalho que exige a transposição de grandes obstáculos originados da permanência de significados clássicos e de seus significantes que se pretendiam perenes, bem como a compreensão de que o Direito é fruto de transformações sociais e, hoje, essas estão ocorrendo tão rapidamente que o modelo clássico já não dá mais conta de tutelá-las. 28 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Deve-se entender o indivíduo como expressão da forma de ingresso no mundo jurídico e não mais apenas como um sujeito definido para um conjunto de objetos. Vamos entender como isso funciona nas próximas aulas. Atividade proposta Analise a charge e indique as principais diferenças entre o Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002. Legenda: A balconista da loja de roupas diz: - Pela nova lei, sendo o seu mulher, o lojinha passa a ser minha também! Rapaz do outro lado do balcão diz: - E pela antiga você deveria ter casado virgem! Lembradas essas diferenças, indique três dos maiores avanços da legislação em vigor e responda: a maior ingerência do Estado nas relações privadas é adequada? Justifique sua resposta. Chave de resposta: Estudamos, nesta aula, que o Código Civil de 1916, sendo fruto do Estado Liberal, era um código individualista, patrimonialista e patriarcal; enquanto o Código Civil de 2002, fruto do Estado Social, é um código personalista, solidarista e marcado pela igualdade. A maior ingerência do Estado sobre as relações privadas é resultado da constatação de que pessoas 29 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL em condições de vulnerabilidade ou vítimas de desigualdades precisam de proteção especial. Então, ainda que se possa criticar essa intervenção estatal, fato é que ela se mostrou necessária para proteger vulneráveis e restabelecer o equilíbrio em diversas relações jurídicas. Referências CAENEGEM, R.C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. Carlos Eduardo Lima Machado. Revisão Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. FORMIGA, Armando Soares de Castro. Aspectos da codificação civil no século XIX. Curitiba: Juruá, 2012. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LORENZETTI, Ricardo Luiz. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. MIRANDA, Pontes. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. Material complementar Para saber mais sobre as leis e normas, leia os artigos e matérias disponíveis em nossa biblioteca virtual. 30 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Exercícios de fixação Questão 1 Sobre o Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 é correto afirmar que: I. O Código Civil de 1916 foi elaborado por Teixeira de Freitas e, por representar o Estado Liberal, representa também uma sociedade paternalista, patrimonialista e latifundiária. II. O Código Civil de 2002 foi elaborado pela Comissão Miguel Reale e representa o Estado Social, ou seja, trata-se de lei mais igualitária e que prioriza a pessoa sobre o patrimônio. III. O Esboço de Teixeira de Freitas não influenciou nenhuma legislação da América Latina, sendo considerado obsoleto e distante da realidade social. IV. O Código Civil de 2002 é considerado tão patrimonialista quanto o seu antecessor, priorizando a proteção da propriedade e dos contratos em detrimento da proteção da pessoa. a) A opção I está correta b) A opção II está correta c) A opção III está correta d) As opções III e IV estão corretas Questão 2 Sobre as fontes do Direito é correto afirmar: a) Apenas a lei pode ser considerada fonte do Direito. b) A doutrina não constitui fonte do direito, pois não tem caráter de imperatividade. 31 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL c) Considerar que a jurisprudência não é fonte de direito corresponde a afirmar que apenas a lei pode ser considerada fonte de direito reconhecendo-se o poder do Estado acima de todas as demais instituições sociais. Questão 3 São características do Código Civil de 2002: I. A manutenção do sistema familiar patriarcal. II. A adoção do princípio da socialidade. III. Dá preferência a valores individuais sobre os valores coletivos. IV. Caracteriza-se por ser um sistema mais aberto do que o anterior por adotar como técnica legislativa o uso de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. V. Ausência de qualquer influência do Código Civil de 1916. a) Apenas I e II estão corretas. b) Apenas II e III estão corretas. c) Apenas II e IV estão corretas. d) Apenas V e III estão corretas. Questão 4 São características do Código Civil de 1916, exceto: a) Prevalência da proteção da pessoa sobre o patrimônio. b) Concentração do pátrio poder nas mãos do homem. c) Sistema considerado fechado que deixava pouco espaço para a atuação dos operadores do Direito. d) Preferência pela forma ao invés da técnica jurídica. 32 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Questão 5 Sobre a codificação é correto afirmar: a) A alteração de um código se dá simplesmente pela alteração formal de seus dispositivos normativos. b) São leis gerais que não admitem nenhum tipo de mudança ou complementação por serem consideradas completos. c) A rigidez dos Códigos apontada como por muitos doutrinadores como uma de suas desvantagens,pode também ser uma vantagem uma vez que garante uma maior unidade ao sistema evitando contradições. Questão 6 Sobre os movimentos do Direito Privado é correto afirmar que: a) A partir da constitucionalização do Direito Privado, vários institutos que antes eram exclusivamente privados passam a ser institutos de Direito Público. b) O Direito Civil reconhece apenas o patrimônio da pessoa como garantia de uma existência digna. c) A publicização do Direito Privado favorece a extinção da dicotomia público-privado, promovendo a harmonização desses interesses. Questão 7 O Direito Civil Constitucional é criação meramente doutrinária, não se podendo falar em análise das relações privadas a partir dos direitos fundamentais, princípios e valores constitucionais. a) Certo b) Errado Questão 8 33 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Sobre os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade pode-se afirmar que: a) O Código Civil vigente difere da resilição, rescisão e resolução contratual, realizando, dessa forma, o princípio da operabilidade. b) A socialidade apenas se verifica abstratamente no Código Civil de 2002, não tendo sido expressamente prevista. c) A eticidade promove a aproximação de valores éticos e jurídicos criando um dever jurídico positivo de conduta leal. d) A eticidade trouxe à legislação civil o princípio da boa-fé subjetiva, impondo-se essa como norma de conduta entre as partes contratantes. Questão 9 Sobre a codificação civil brasileira, é correto afirmar que: I. A manutenção da lógica formal do Código Civil permite sua aproximação da realidade social e histórica. II. O Código Civil precisa aproximar-se da realidade social entendendo o indivíduo como ser coletivo, garantindo-lhe o mínimo existencial. III. Os pilares clássicos do Direito Civil contrato, propriedade e família sofreram pouquíssimas alterações no Código Civil vigente em virtude da prevalência necessária do indivíduo-centrismo. IV. Os novos movimentos do Direito Civil propõem que todos os institutos clássicos privados sejam substituídos por novas categorias e institutos, protegendo o sujeito de direitos definido para um conjunto de objetos. a) Apenas II está correta b) Apenas II e III estão corretas c) Apenas I está correta d) Apenas V e III estão corretas 34 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Questão 10 Os institutos e categorias adiante são fruto da influência da Constituição Federal de 1988 na elaboração do Código Civil de 2002, EXCETO: a) O poder familiar igualmente compartilhado entre o homem e a mulher. b) A boa-fé objetiva em todas as fases da relação contratual. c) A função social da propriedade. d) A manutenção da distinção entre filhos gerados na relação matrimonial e filhos extramatrimoniais. Contemporaneidade: Quando se trata de um conceito, uma prática ou referencial ainda adotado por uma sociedade ou parte desta. Aula 1 Exercícios de fixação Questão 1 - B Justificativa: O Código Civil de 1916 foi elaborado por Clóvis Beviláqua e não por Teixeira de Freitas. O Esboço de Teixeira de Freitas, embora não utilizado no Brasil, foi influenciador de diversas legislações civis, especialmente, o Código Civil Argentino. O Código Civil de 2002 foi influenciado pelo movimento de repersonalização do Direito e, embora ainda guarde alguns aspectos patrimonialistas, garante mais proteção à pessoa do que o Código anterior. Questão 2 - C Justificativa: A lei não deve ser considerada a única fonte do direito sob pena de se afirmar que apenas existe Direito legislado (projeto de redução do pluralismo). 35 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Questão 3 - C Justificativa: O Código Civil vigente abandona o sistema patriarcal, substituindo- o pelo sistema igualitário; dá preferência a valores coletivos sobre os individuais e manteve, no que foi possível, a estrutura e institutos do Código Civil de 1916. Questão 4 - A Justificativa: O Código Civil de 1916 era patrimonialista e não personalista. Questão 5 - C Justificativa: A alteração de um código não se dá apenas pela alteração formal dos seus dispositivos normativos, mas decorre também dos processos de interpretação e das alterações sociais. Questão 6 - C Justificativa: O fato de vários institutos de Direito Privado passarem à categoria de direitos constitucionais não os torna institutos de Direito Público. O Direito Civil embora também se destine a regular a relação da pessoa com seus bens, não se restringe apenas a essas e, a partir do movimento de despatrimonialização, determina-se a realização de seus interesses a partir da proteção e valorização do ser e não do ter. O patrimônio deve ser suporte ao livre desenvolvimento da pessoa mas não é garantia de existência digna. Questão 7 - B Justificativa: O Direito Civil Constitucional é fruto da constitucionalização do Direito Privado e impõe a análise das relações privadas a partir dos direitos, princípios e valores constitucionais. Questão 8 - C Justificativa: Embora o CC/02 tenha adotado distinções mais claras e precisas, ainda há confusões conceituais e, entre elas, está a confusão entre as formas de extinção dos contratos. A socialidade pode ser expressamente constada como, por exemplo, nos arts. 421 e 1228, CC. A eticidade trouxe à legislação 36 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL civil o princípio da boa-fé objetiva (norma de conduta) e não a boa-fé subjetiva (forma de conduta). Questão 9 - A Justificativa: A manutenção da lógica formal do Código Civil o distancia da realidade social e histórica. Os pilares clássicos do Direito Civil sofreram grandes alterações no Código Civil vigente, especialmente em virtude da repersonalização do sistema provocada pelo movimento de constitucionalização. Deve-se entender o indivíduo como expressão da forma de ingresso no mundo jurídico e não mais apenas como um sujeito definido para um conjunto de objetos. Questão 10 - D Justificativa: A CF/88 veda qualquer distinção aos filhos, especialmente se decorrente da origem da filiação. 37 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Introdução Na aula anterior, discutiram-se os movimentos e princípios influenciadores do Direito Privado contemporâneo, apontando-se para a necessidade de reformulação de categorias e institutos clássicos que já não dão mais conta de diversas situações sociais, especialmente as decorrentes das novas tecnologias. Nesta aula, você estudará como a publicização do Direito Privado vem provocando o fim da clássica dicotomia público-privado impondo a harmonização entre esses interesses e o reconhecimento de que a dignidade da pessoa humana deve ser o ponto de equilíbrio entre interesses individuais e coletivos. Objetivo: 1. Compreender a dicotomia Direito Público-Privado e a publicização do Direito Privado; 2. Estudar a superação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. 38 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Conteúdo Distinção do Direito Você deve recordar que, classicamente, divide-se o Direito Objetivo em Direito Público e Direito Privado, distinção feita desde o Direito Romano. No Direito Romano, fixou-se a distinção em virtude da necessidade de fixação de regras capazes de diferenciar os bens do Império Romano do patrimônio particular do Imperador; e sobre a necessidade de conceder alguns direitos subjetivos aos estrangeiros. Então, dessa ideia inicial, firmaram-se as seguintes molduras: Direito Público é o destinado a disciplinar os interesses gerais da coletividade ou interesses públicos; Direito Privado é o conjunto de preceitos que regulam as relações interprivadas, o locus normativo privilegiado do indivíduo. Mais tarde, essadicotomia romana público-privado foi encampada pelo modelo liberal que viu nas codificações uma forma eficaz de organização e regulação da sociedade e do Estado, mas que, desvirtuando a sua natureza inicial de direito do cidadão, concebe o Direito Privado como destinado a proteção de direitos individuais. Então, no século XIX, o liberalismo jurídico consagrou a completude e unicidade do Direito, que passou a ter como única fonte o Estado e firmou a concepção de homem como sujeito abstrato (sujeito de direitos). O Código Civil passa a ser considerado a “Constituição do Direito Privado”, eixo central das relações privadas tendo como referência apenas o cidadão dotado de patrimônio. 39 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Não Direito Com o enfraquecimento do Estado Liberal e a evolução das relações sociais, a compartimentação do Direito em Público e Privado mostrou-se atemporal, desideologizada, ineficiente e distante da nova realidade social; a prevalência do ter sobre o ser impediu a valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material. O exercício de direitos vinculados à apropriação de bens resultou na criação de paradoxos: como a existência de pessoas que não são sujeitos de direitos por não se enquadrarem na moldura classicamente imposta e, por consequência, a não regulação de diversas relações sociais (não Direito). Esse é o caso, por exemplo, dos embriões excedentários (embriões congelados e obtidos para realização de técnicas de reprodução humana assistida). Os embriões excedentários não se enquadram na clássica moldura de sujeito de direitos, como também não se pode tratá-los como objetos. Como tutelá-los, então? Compreensão da publicização Em virtude dessa revisão de categorias clássicas do Direito Privado, manifesta- se importante a compreensão da publicização do Direito Privado como movimento que compreende o processo de crescente intervenção estatal nas relações privadas (especialmente por meio de normas de ordem pública), característica do Estado Social. É nesse contexto que surgem microssistemas que tentam regular relações específicas e teorias que visam acabar com tal dicotomia, como é o caso: Do Direito do Consumidor (CDC) Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Estatuto do Idoso. 40 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL A publicização do Direito Privado deu-se, num primeiro momento, com a denominada descodificação que, no Brasil, operou-se com a edição de um número significativo de leis extravagantes, o que provocou indubtavelmente a descentralização do Direito Privado (antes centralizado na ideia de monossistema do Código Civil) para atender às necessidades sociais. Também reflexo dessa nova concepção do Direito Civil foi a recepção na Constituição Federal de temas antes classificados pela dicotomia clássica como afetos apenas ao Direito Privado como, por exemplo, o direito à privacidade. A constitucionalização do Direito Privado provoca transformações substanciais na forma de se compreender as relações interprivadas. Deixa-se de se buscar espaços distintos para se buscar uma unidade hermenêutica, harmonizando-se interesses públicos e privados na busca da proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Publicização do Direito Privado Assim, a publicização do Direito Privado tornou mais nítido o pretenso fim da dicotomia Direito Público e Direito Privado. Tal fenômeno traz em si a renovação da estrutura da sociedade e a adaptação do Direito à nova realidade econômico-social, o que não pode ser tido, no entanto, apenas como uma adaptação do modelo vigente para atender à realidade que se apresenta. Direito Público Direito Privado Intimamente vinculado à publicização do Direito Privado, outro princípio se mostrou importante: a sua despatrimonialização. Não há mais sentido em se 41 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL manter a proteção ao direito de propriedade na forma concebida no modelo liberal, ou seja, a prevalência do ter sobre o ser. Busca-se a valorização do ser, do conhecimento e da educação. A despatrimonialização do Direito Privado frise-se, não significa retirar-lhe o seu conteúdo patrimonial, mas, sim, a funcionalização do próprio sistema econômico valorizando-se a dignidade da pessoa humana. Modelo liberal clássico A neutralidade do Direito como fruto do conjunto de relações lógicas impostas pelo modelo liberal clássico não encontra mais respaldo social. Busca-se a funcionalização e vinculação ao contexto histórico o que provoca um pluralismo jurídico que reconhece na perspectiva interdisciplinar a convivência e intersecção de relações públicas e privadas, vinculando-se lei e realidade social. Na superação da dicotomia, busca-se a preservação dos interesses coletivos e da dignidade da pessoa humana, valorizando-se o ser sobre o ter (repersonalização do Direito Privado), numa verdadeira inversão dos valores clássico-liberais, não se podendo, nesse contexto, falar em produção normativa definitiva e final, mas, sim, em produção normativa intimamente ligada à realidade e necessidades sociais. Supremacia do interesse público sobre o particular Compreendida a superação da dicotomia público-privado como fruto da publicização do Direito Privado, vamos entender o que é a “supremacia do interesse público sobre o particular”. Interesse público O reconhecimento da supremacia do interesse público sobre o particular sempre foi um dos axiomas do Direito Público moderno, proclamando em qualquer situação a prevalência do interesse público (ou coletivo) sobre o privado. No entanto, quando se fala em publicização do Direito Privado, propõe- 42 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL se a harmonização entre interesses públicos e interesses privados, reconhecendo-se que a exarcebação do coletivo também pode ser fonte de injustiças, de programas autoritários, de desarmonia social. Coletividade Daniel Sarmento (2007, p. 30) ensina que costuma-se associar o público à esfera dos interesses gerais da coletividade, que dizem respeito à pessoa humana não como particular, encerrado no seu microcosmo de relações, mas como cidadão, membro e partícipe da comunidade política. Já o privado corresponde ao perímetro das vivências experimentadas em recesso, fora do alcance da polis, que não concernem à sociedade em geral, mas a cada um, como indivíduo. De acordo com a bela metáfora de Nelson Saldanha, público e privado seriam “o jardim e a praça”, cada um com princípios e lógicas próprias. Estado e sociedade Com o advento do Estado Social, reconheceu-se que Estado e sociedade não poderiam estar rigidamente separados e delimitados por categorias estanques, daí, o fenômeno da publicização do Direito Privado. No entanto, a sua crise e a complexidade das relações sociais e jurídicas da sociedade contemporânea, embora incapazes de anular aquele processo, passaram a exigir novos estudos para conferir outros contornos ao “jardim” e à “praça” delineados e definidos, agora, pelos múltiplos espaços da vida humana que se cruzam constantemente. Pare e reflita Como pode o Direito Privado, por meio de categorias clássicas, dar conta, por exemplo, do fenômeno das redes sociais? Você é capaz de perceber que as redes sociais, na metáfora de Nelson Saldanha, seriam o “jardim”? Ou seja, tratam-se de espaços privados, mas abertos aos olhos públicos em que o Direito de privacidade de feição liberal não dá mais conta de tutelar. 43 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Compreende-se, então, que o espaço público deixa de ser associado exclusivamente à atividade estatal e o privado exclusivamente a interesses particulares. Os espaços, agora, entrecruzam-se! Para tentar determinar o ponto de equilíbrio, sustenta-seque se a pessoa humana é o valor-fonte de todo o ordenamento jurídico e de toda sociedade e, por isso, é necessário identificar elementos para a construção de uma proteção a zonas de autodeterminação da pessoa capazes de tutelá-la nos múltiplos espaços de sua atuação. Par público/privado O par público/privado, então, deve ser entendido como constitutivo de uma ordem jurídica única, orientada pela Constituição Federal, cujos valores são igualmente importantes para a realização da pessoa e do seu respectivo mínimo existencial. É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo “privado”, em sua acepção original de “privação”, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros. [...]. Uma vez que a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência e, portanto, da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam 44 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL emergir da treva da existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina a nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública. [...]. O termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Esse mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum [...]. Somatório de interesses gerais Pode-se, então, concluir que o homem necessita de um espaço público para definir sua própria existência, comprovar a própria realidade, o que possibilita o desenvolvimento de uma “condição objetiva da vida”. Nesse contexto, não se pode negar a existência de interesses públicos, mas esses devem ser compreendidos como um somatório de interesses gerais (coletivos e particulares) cuja satisfação a sociedade confere ao Estado, representando, então, o verdadeiro bem comum (princípio da ética comunitária e da política jurídica). No entanto, frise-se, “não se trata de absorver o individual no público, mas sim de adotar uma perspectiva pública que permita a convivência social, estabelecendo competências e limites”. O problema não é, portanto, de prevalência a priori entre interesses, mas sim, determinar o conteúdo que deve prevalecer e quando deve ter primazia. Por isso, parte-se da noção entre interesse público primário e secundário. O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os 45 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica [...]. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. [...]. Os recursos financeiros provêem os meios para a realização do interesse primário, e não é possível prescindir deles. [...]. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário (BARROSO, 2007, p. 13-14). Por isso ampla, anacrônica e equivocada ideia da “supremacia do interesse público”. Afirma Humberto Ávila (2007, p. 190-191) que o interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado [...]. Em vez de uma relação de contradição entre os interesses privado e público há, em verdade, uma “conexão estrutural”. Se eles – o interesse público e o privado – são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre o outro fica prejudicada, bem como a contradição entre ambos. [...]. Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os interesses privados não estão principalmente em conflito, como pressupõe uma relação de prevalência. Daí a afirmação de Häberle: “eles comprovam a nova, aberta e móvel relação entre ambas as medidas”. Impossível, então, identificar um único interesse público universal em uma sociedade complexa como a contemporânea. Há tantos interesses públicos quanto forem as situações que exigirem a sua identificação. Bem como, é impossível pensar a total dissociação de elementos privados dos fins conferidos ao Estado, já que esses interesses também devem fazer parte do que se considera “bem comum”. 46 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Portanto, a mera referência a valores metajurídicos contidos numa ideia geral de existência de um único interesse público universal não pode justificar a prevalência absoluta desses sobre interesses privados. Conclui Gustavo Binenbojm (2007, p. 167) que o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível. O instrumento desse raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade. Veja-se que não se nega, de forma alguma, o conceito de interesse público, mas tão somente a existência de um princípio de supremacia do interesse público [...]. Encerramento Por isso, o que se pretende agora é o reconhecimento que o interesse individual também é capaz de realizar, um interesse não egoísta que terá tanta proteção quanto teria o interesse público. Você é capaz de identificar no seu dia a dia outras situações (além das redes sociais) em que as noções de interesse público e de interesse privado podem se confundir? Atividade proposta Observe a charge e responda: Por que no Brasil o senso comum ainda parece acreditar na supremacia do interesse público sobre o privado? Para confirmar essa afirmação, pergunte a pelo menos dez pessoas que você conheça (independente da formação escolar) e anote: quantas delas afirmaram que interesses públicos sempre prevalecerão sobre privados e peça uma simples explicação. 47 ELEMENTOS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Legenda: Rapaz diz: Sou daltônico. Não consigo distinguir o vermelho do verde! Político diz: Sou político brasileiro. Não consigo distinguir o público do privado! Observe a charge e responda: Por que no Brasil o senso comum ainda parece acreditar na supremacia do interesse público sobre o privado? Chave de resposta: A clássica distinção entre interesse público e privado é muito mais antiga do que a concepção de que esses interesses podem ser analisados de forma harmoniosa, por isso, a impressão geral de que os interesses públicos necessariamente