Logo Passei Direto
Material
Study with thousands of resources!

Text Material Preview

<p>Democracia: Um Conceito em Disputa</p><p>Carlos Nelson Coutinho</p><p>No mundo atual, boa parte da batalha das idéias que se trava entre as</p><p>diferentes forças sociais centra-se na tentativa de definir o que é democracia,</p><p>já que essa forma de regime político é hoje reivindicada por praticamente</p><p>todas as correntes ideológicas, da direita à esquerda. Ora, nem sempre foi</p><p>assim. Há algumas décadas atrás, o pensamento explicitamente de direita —</p><p>desde o catolicismo ultramontano até os diferentes fascismos — combatia</p><p>abertamente a democracia; até mesmo o liberalismo, em boa parte de sua</p><p>história, apresentou-se explicitamente como alternativa à democracia. Esta</p><p>situação se alterou na segunda metade do século XX. Por um lado, o fascismo</p><p>praticamente desapareceu como força atuante no cenário político mundial; e,</p><p>por outro, sobretudo a partir dos anos 1930, o liberalismo assumiu a</p><p>democracia e passou a defendê-la, ainda que não sem antes minimizá-la,</p><p>empobrecendo suas determinações, concebendo-a de modo claramente</p><p>redutivo. Assim, pelo menos nominalmente, hoje todos são democratas. É</p><p>curioso observar que até mesmo a ditadura militar brasileira, que durante 21</p><p>anos nos infelicitou, violando sistematicamente a democracia, jamais se</p><p>apresentou como antidemocrática; ao contrário, apresentou-se sempre como</p><p>uma “revolução” que defendia a “democracia” contra o “comunismo</p><p>totalitário”, o que era evidentemente pura mistificação ideológica.</p><p>Nesse sentido, devemos ter muita cautela, hoje, quando usamos a</p><p>palavra “democracia”. Um brilhante pensador francês do século XVII, La</p><p>Rochefoucauld, tem uma bela definição de hipocrisia: “Hipocrisia é</p><p>homenagem que o vício presta à virtude”. Ou seja, o fato de que todos hoje se</p><p>digam “democratas” não significa que acreditem efetivamente na democracia,</p><p>mas sim que se generalizou o reconhecimento de que a democracia é uma</p><p>virtude. A hipocrisia consiste em que, com extrema freqüência, essa palavra —</p><p>ainda que dita com ênfase — não significa absolutamente o que a história da</p><p>humanidade e o pensamento político entenderam e entendem por democracia.</p><p>2</p><p>O liberalismo, como corrente representativa da ascensão histórica da</p><p>burguesia como nova classe social e de sua consolidação como classe</p><p>dominante, nem sempre se apresentou como democrático. Os primeiros</p><p>pensadores liberais do século XVII — como John Locke, por exemplo, que pode</p><p>ser considerado o pai do liberalismo — não discutiam a questão democrática</p><p>porque ela ainda não se apresentara na época histórica em que eles viveram.</p><p>Ou seja, a tarefa que então se colocava às forças do progresso era o fim do</p><p>Estado absolutista, a consolidação de uma ordem burguesa com uma</p><p>superestrutura política de natureza liberal, na qual o poder fosse limitado pelos</p><p>direitos individuais considerados como direitos naturais.</p><p>Pode-se assim dizer que, pelo menos até a Revolução Francesa, o</p><p>liberalismo se situa à esquerda do espectro político. Talvez fosse ainda mais</p><p>correto dizer: até o surgimento de Jean-Jacques Rousseau, o qual, em meados</p><p>do século XVIII, não só elaborou uma crítica radical da sociedade existente e</p><p>apontou os limites ideológicos contidos no liberalismo (como se pode ver no</p><p>Discurso sobre a desigualdade), mas também formulou a proposta de uma</p><p>sociedade alternativa, profundamente democrática e popular (o que ele faz em</p><p>O contrato social). As idéias elaboradas por Rousseau orientaram a ação de</p><p>importantes sujeitos políticos durante a Revolução Francesa. Refiro-me em</p><p>particular aos jacobinos, revolucionários radicais liderados por Robespierre e</p><p>Saint-Just, expressão política e ideológica do “povo miúdo”; mas tais idéias</p><p>encontraram também desdobramentos nos primeiros pensadores comunistas,</p><p>como Grachus Babeuf, que promoveram a chamada Conjuração dos Iguais,</p><p>duramente reprimida no final do século XVIII. O surgimento do movimento</p><p>socialista, no tumultuado início do século XIX — com a transformação em ator</p><p>político não só do povo em geral, como na época da Revolução Francesa, mas</p><p>em particular do proletariado —, obriga ainda mais o pensamento liberal a</p><p>confrontar-se com o que poderíamos chamar de afirmação da democracia</p><p>moderna, que se expressa precisamente neste progressivo ingresso das</p><p>camadas populares na arena política.</p><p>No primeiro momento, é fácil perceber que o liberalismo reage</p><p>criticamente contra a democracia. Recordo um pensador liberal, que combateu</p><p>3</p><p>o absolutismo na França: Benjamin Constant. Ele escreveu, em 1819, um</p><p>interessante texto, no qual afirma que a liberdade teorizada por Rousseau e</p><p>praticada pelos jacobinos seria a liberdade do mundo antigo, ou seja, a</p><p>liberdade de participar na formação do governo, o que implica a criação de</p><p>uma esfera pública da qual todos participam, onde todos são assim cidadãos</p><p>plenos. Em suma, onde todos são, ao mesmo tempo, governantes e</p><p>governados. Essa forma de liberdade, afirma Constant, não é a que caracteriza</p><p>os tempos modernos. A liberdade moderna, ao contrário, consistiria em fruir</p><p>na esfera privada os bens que os indivíduos obtêm graças a seus méritos</p><p>pessoais. Expressa-se aqui, com toda clareza, a distinção não entre a liberdade</p><p>antiga e a liberdade dos modernos, como queria Constant, mas sim entre a</p><p>liberdade democrática e a liberdade liberal: apresentar essa distinção como se</p><p>se tratasse de um problema histórico é o habilidoso modo pelo qual o liberal</p><p>francês evita dizer claramente que é contra a democracia. Desse modo,</p><p>Constant defende a idéia de que democracia é um regime do passado</p><p>(seguindo nisso o que já fizera Montesquieu), algo anacrônico e, portanto, não</p><p>mais válido na modernidade, no tempo da liberdade privada, da liberdade</p><p>entendida como direito de usufruir na esfera privada os bens que os indivíduos</p><p>constróem também privadamente. Não deixa de ser um modo bastante</p><p>inteligente de se posicionar contra a atualidade da proposta democrática, tal</p><p>como esta se manifestara na obra de Rousseau e na ação dos jacobinos.</p><p>Ao longo do século XIX, há alguns pensadores liberais — um deles é o</p><p>francês Alexis de Tocqueville — que já demonstram ter compreendido que a</p><p>democracia é algo irreversível precisamente no mundo moderno. Tocqueville</p><p>afirma que a igualdade de condições, o fato de que os indivíduos sejam</p><p>equalizados em suas condições materiais de vida e se sintam como iguais, é</p><p>uma tendência inarrestável — ele fala até em “desígnio divino” —, isto é, algo</p><p>que já não é possível impedir que ocorra. Mas essa tendência igualitária, diz</p><p>ainda Tocqueville, leva também necessariamente à fragmentação social, à</p><p>perda de consciência cívica e, finalmente, em conseqüência disso, ao</p><p>despotismo. Quando todos são equalizados, quando desaparecem os “corpos</p><p>intermediários” e todos se sentem como iguais, cria-se uma “tirania da</p><p>4</p><p>maioria”, que esmaga a liberdade individual. Haveria assim uma contradição</p><p>entre a igualdade e a liberdade. Ou seja: para o liberal Tocqueville, a</p><p>democracia é inevitável, mas é algo em si negativo. Para ele, o modo de</p><p>impedir a transformação da democracia em despotismo é fortalecer as</p><p>liberdades formais, os direitos privados; é também desenvolver o</p><p>associativismo nos moldes em que ele o via na sociedade norte-americana do</p><p>seu tempo, já que o associativismo impediria a emergência do poder</p><p>despótico.</p><p>Não vou me deter aqui na análise das reflexões de Tocqueville, que é</p><p>certamente um brilhante pensador, apesar de suas posições conservadoras. O</p><p>que importa observar é que ele vê a democracia como um fenômeno</p><p>irreversível no mundo moderno, mas contra o qual é preciso inventar</p><p>remédios, criando controles que a impeçam de se transformar em “tirania da</p><p>maioria”. Não hesitaria em dizer: Tocqueville teme a “tirania da maioria”</p><p>porque a maioria é popular e, conseqüentemente, para ele, isso levaria ao</p><p>despotismo. O fortalecimento do liberalismo é visto como um remédio</p><p>consistia no seguinte: como</p><p>controlar esse avanço democrático e submetê-lo à lógica da reprodução</p><p>capitalista?</p><p>Chamo a atenção para o fato de que, na visão do filósofo marxista</p><p>Georg Lukács, a democracia deve ser entendida não como algo estático, mas</p><p>8</p><p>como um processo. Por isso, ele julga ser sempre mais adequado falar em</p><p>“democratização”. Publiquei em 1979 um ensaio, muito discutido na época,</p><p>chamado A democracia como valor universal. Este título reproduz uma</p><p>expressão de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista</p><p>Italiano, expressão que usei — naquele momento de simultâneo combate</p><p>contra a ditadura e contra o dogmatismo “marxista-leninista” — como bandeira</p><p>de luta. Não teria nada a modificar hoje no que está dito naquele velho</p><p>ensaio, escrito há vinte e cinco anos atrás: mas certamente poria um outro</p><p>título, ou seja, A democratização como valor universal, já que o que tem valor</p><p>universal não são as formas concretas que a democracia adquire em</p><p>determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis,</p><p>sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas o que tem</p><p>valor universal é esse processo de democratização, que se expressa</p><p>essencialmente numa crescente socialização da participação política.</p><p>A partir do final do século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX,</p><p>pode-se notar que um número crescente de pessoas passa a participar da vida</p><p>política. Nos regimes liberais de sufrágio restrito, com sindicatos e partidos de</p><p>oposição ao sistema postos fora da lei, ocorre uma baixa participação política.</p><p>Temos, de um lado, a classe dominante organizada no Estado — o qual, na</p><p>época, Marx e Engels chamaram de “comitê que administra os negócios</p><p>comuns da classe burguesa” —, e, de outro, pequenos grupos clandestinos ou</p><p>semiclandestinos, clubes revolucionários de inspiração jacobina, que</p><p>expressavam a posição das classes trabalhadoras em oposição frontal ao</p><p>Estado. Enquanto isso, a grande massa da população não tinha nenhuma</p><p>participação política, nem mesmo eleitoral. É por isso que surge entre os</p><p>socialistas deste período — como, por exemplo, no revolucionário francês</p><p>Auguste Blanqui — a idéia de que a revolução proletária deve ser feita por uma</p><p>minoria revolucionária que age em nome do povo. Pode-se assim dizer que,</p><p>em comparação com esta situação claramente oligárquica, o processo de</p><p>democratização a que me referi se caracteriza por uma ampliação crescente da</p><p>participação popular, ou, como os marxistas italianos a chamam, pela</p><p>crescente socialização da política.</p><p>9</p><p>Mas esse processo de progressiva democratização, de socialização da</p><p>política, choca-se com a apropriação privada dos mecanismos de poder. Temos</p><p>aqui uma contradição: o fato de que haja um número cada vez maior de</p><p>pessoas participando politicamente de modo organizado, constituindo-se como</p><p>sujeitos coletivos, choca-se com a permanência de um Estado apropriado</p><p>restritamente por um pequeno grupo de pessoas, ou seja, apenas pelos</p><p>membros da classe economicamente dominante ou por seus representantes.</p><p>Essa contradição só pode ser superada — superação que é precisamente o</p><p>processo de democratização — na medida em que a socialização da</p><p>participação política se expresse numa crescente socialização do poder, o que</p><p>significa que a plena realização da democracia implica a superação da ordem</p><p>social capitalista, da apropriação privada do Estado, e a conseqüente</p><p>construção de uma nova ordem social, de uma ordem social socialista. Ou</p><p>seja: de uma ordem onde não haja apenas a socialização dos meios de</p><p>produção, mas também a socialização do poder. Dizendo isso, volto um pouco</p><p>atrás, chamando a atenção para o seguinte: esse processo de democratização,</p><p>que Tocqueville viu como algo irrefreável, choca-se com a lógica do capital.</p><p>Não se trata de um choque que ocorra num momento concreto, num dia-D e</p><p>numa hora-H, mas de algo tendencial: o processo de ampliação de democracia</p><p>implica choques permanentes com a lógica privatista do capital.</p><p>Coloca-se assim uma questão: como o capital e seus representantes</p><p>enfrentaram esse processo objetivo de democratização, que é um processo,</p><p>digamos, “espontaneamente” subversivo? Com muita freqüência, como se</p><p>sabe, simplesmente recorrendo à ditadura aberta. Não se pode explicar o</p><p>fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, a série de ditaduras militares que</p><p>conhecemos na América Latina nos anos 1970 e 1980, se tais regimes não</p><p>forem entendidos como reação da classe burguesa (que abandona nesse</p><p>momento qualquer veleidade liberal) a essa crescente democratização,</p><p>tendencialmente anticapitalista. Mas há algumas outras respostas mais sutis,</p><p>uma das quais é, precisamente, a tentativa de assimilar elementos isolados da</p><p>democracia e pô-los a serviço da perpetuação da ordem capitalista.</p><p>10</p><p>Neste sentido, chamo a atenção para uma tendência muito marcada,</p><p>que se inicia já em meados do século XIX e atravessa todo o século XX, ou</p><p>seja, para a crescente tendência do Estado burguês no sentido de se converter</p><p>num Estado bonapartista. O bonapartismo não se manifesta necessariamente</p><p>por meio de um Estado abertamente ditatorial; o que o caracteriza é a</p><p>presença de formas personalizadas de poder, expressas na figura de um líder</p><p>carismático que diz representar os interesses do povo e/ou que se apresenta</p><p>como um árbitro entre as classes sociais. Ocorre que, depois da conquista do</p><p>sufrágio universal, é por meio deste instituto de origem democrática que o</p><p>líder carismático busca sua legitimação. Trata-se de um processo muito bem</p><p>analisado pelo filósofo italiano Domenico Losurdo. Por meio desta tendência</p><p>bonapartista, o sufrágio universal deixa de ser uma arma potencial de</p><p>emancipação da classe trabalhadora e se converte num instrumento de</p><p>legitimação de chefes carismáticos que, dizendo falar em nome do povo, na</p><p>verdade representam os interesses de quem pretende conservar a ordem</p><p>capitalista. Losurdo caracteriza essa utilização bonapartista do sufrágio</p><p>universal como um processo de “des-emancipação”.</p><p>E aqui recordo que um notável sociólogo burguês moderadamente</p><p>liberal, Max Weber, propôs em 1919 — no momento em que a Alemanha,</p><p>derrotada na Primeira Guerra Mundial, buscava se reconstruir como república</p><p>através de uma Constituinte — um dispositivo constitucional pelo qual o</p><p>Presidente da República, mesmo num regime parlamentarista, deveria ser</p><p>eleito por sufrágio universal e direto. Na concepção de Weber, isso</p><p>possibilitaria o que ele chamou de “democracia cesarista”, na qual um chefe</p><p>carismático, com poderes autoritários, supostamente capaz de se situar acima</p><p>dos conflitos de classe e de se apresentar como representante de toda a</p><p>nação, inclusive frente ao Parlamento, obteria sua legitimação precisamente</p><p>através do sufrágio universal, do voto popular. Embora Weber a designasse</p><p>como “democracia cesarista”, parece-me mais correto chamá-la de “ditadura</p><p>legitimada pelo sufrágio universal”. Não é difícil perceber que este “tipo ideal”</p><p>weberiano tornou-se a realidade efetiva de muitas das “democracias”</p><p>ocidentais do século XX; basta lembrar, por exemplo, o emblemático caso de</p><p>11</p><p>Charles De Gaulle na França. Esta modalidade de bonapartismo — que Losurdo</p><p>chamou de “bonapartismo soft”, para distingui-lo do autoritarismo aberto — é</p><p>um dos modos práticos pelos quais a burguesia tenta esvaziar o potencial</p><p>revolucionário do sufrágio universal.</p><p>Outro pensador liberal que buscou responder teoricamente a esse</p><p>desafio da democracia foi o austro-americano Joseph A. Schumpeter,</p><p>conhecido sobretudo pelos seus trabalhos econômicos. Schumpeter foi um dos</p><p>primeiros pensadores liberais a valorizar positivamente a expressão</p><p>“democracia”, mas tentando pô-la — por meio de uma sua definição</p><p>minimalista — a serviço da conservação da ordem existente. Assim como</p><p>Mosca,</p><p>Schumpeter diz que não se formam maiorias, que a política é feita por</p><p>elites; o povo, para ele, não consegue juntar razão e interesse, ou seja, é</p><p>incapaz de definir racionalmente o seu real interesse e, por isto, seu voto é</p><p>sempre manipulado pelas próprias elites. Em outras palavras: o povo não sabe</p><p>votar, não sabe escolher bem os seus representantes, não sabe traduzir os</p><p>seus interesses em proposições racionais. Mas pouco importa se o voto</p><p>popular é racional ou não: para Scumpeter, se diferentes elites se submeterem</p><p>a eleições periódicas e competitivas, estaremos numa democracia.</p><p>Essa redução drástica do significado de “democracia” inicia-se com</p><p>Schumpeter, mas prossegue com Giovanni Sartori, Robert Dahl, Norberto</p><p>Bobbio e muitos outros pensadores liberais contemporâneos, conservadores ou</p><p>progressistas. Democracia passa a ser, assim, o cumprimento de alguns</p><p>procedimentos formais — as famosas regras do jogo —, sendo o principal deles</p><p>a existência de eleições periódicas, nas quais o povo (de resto, segundo estes</p><p>liberais, sem muita consciência do que está fazendo) escolhe entre elites. Não</p><p>é casual que se tenha chegado mesmo a uma chamada “teoria econômica da</p><p>democracia”, segundo a qual a disputa política segue as mesmas leis do</p><p>mercado. Quando leio Schumpeter e seus epígonos, sempre me vem à</p><p>memória a ironia com que Rousseau, em O Contrato social, publicado em</p><p>1762, tratava os ingleses: os ingleses pensam que são livres, dizia ele, mas</p><p>são livres apenas um dia a cada quatro ou cinco anos, ou seja, no dia em que</p><p>votam para o Parlamento.</p><p>12</p><p>E por que Rousseau diz isso? Porque ele tinha uma concepção de</p><p>democracia radicalmente diversa daquela predominante no pensamento liberal</p><p>contemporâneo. Para o autor de O contrato social, democracia significa</p><p>participação de todos na formação do poder. Só é legítima uma lei quando</p><p>aprovada pela assembléia popular; o povo soberano não delega sua soberania</p><p>a representantes, mas apenas comissiona, ou seja, nomeia funcionários que</p><p>executam sua vontade. O governo, segundo o pensador genebrino, não tem</p><p>nenhuma soberania, mas é formado precisamente por comissários do povo,</p><p>sendo este o verdadeiro e único soberano. Jean-Jacques, portanto, não aceita</p><p>o instituto da representação (caracteristicamente liberal), mas defende uma</p><p>democracia direta, com plena participação popular. A definição schumpeteriana</p><p>da democracia como escolha periódica de elites por meio do voto seria tratada</p><p>por Rousseau com a mesma ironia com que tratou o regime liberal inglês do</p><p>seu tempo.</p><p>Além disso, essa nova versão minimalista ou “procedimental” da</p><p>democracia despoja-a completamente de qualquer dimensão econômica e</p><p>social. Estaríamos diante de um regime democrático sempre que certos</p><p>procedimentos fossem observados: eleições periódicas disputadas por mais de</p><p>uma elite, um parlamento funcionando (ainda que com escassos poderes</p><p>diante da ditadura cesarista do Executivo), etc. É evidente que Rousseau</p><p>também não aceitaria essa definição puramente formal. Para ele, a igualdade</p><p>não se limita ao direito formal de participar do tal “mercado político”; a</p><p>igualdade tem uma base material, sem a qual o cidadão não poderá participar</p><p>igualitariamente da construção do que ele chama de “vontade geral”, motor da</p><p>soberania popular 1. Rousseau dizia que, numa sociedade legítima, ninguém</p><p>pode ser tão pobre que seja obrigado a se vender: ele estava assim</p><p>claramente condenando o trabalho assalariado, ou seja, dizendo que a</p><p>democracia que ele pregava era incompatível com o principal instituto do modo</p><p>de produção capitalista. No pensador genebrino, portanto, democracia é</p><p>1</p><p>Recentemente, num programa de televisão, um importante cientista político brasileiro —</p><p>politicamente progressista, mas vinculado teoricamente às concepções “procedimentais” de democracia —</p><p>afirmou que nosso país vive hoje num regime plenamente democrático. E, diante da observação da</p><p>entrevistadora de que continuavam a existir entre nós fortes desigualdades econômicas e sociais, o cientista</p><p>não vacilou em sua resposta: “Mas o problema da igualdade real nada tem a ver com a democracia”!</p><p>13</p><p>incompatível com capitalismo. É verdade que Rousseau é anticapitalista do</p><p>ponto de vista de uma economia de artesãos e de pequenos proprietários</p><p>rurais, isto é, de um modo de produção mercantil simples, que o capitalismo</p><p>de seu tempo estava inexoravelmente destruindo. Jean-Jacques não é</p><p>socialista; seu anticapitalismo é romântico e passadista, mas certamente ele</p><p>está nos indicando aqui alguma coisa de extrema atualidade, a saber, que não</p><p>há democracia efetiva onde existe excessiva desigualdade material entre os</p><p>cidadãos.</p><p>Ademais, essa desigualdade material impede que haja até mesmo uma</p><p>democracia política efetiva. Dou alguns exemplos. Todos sabemos que numa</p><p>eleição, do ponto de vista formal, cada um de nós tem um voto e o dono de</p><p>uma rede de televisão também tem um voto. Sabemos que o voto, por</p><p>exemplo, de um Roberto Marinho, depositado na urna, vale tanto quanto o</p><p>nosso. Mas ele tem o poder de conquistar milhões de votos através da</p><p>manipulação feita pelos meios de comunicação que domina como proprietário</p><p>privado. Isso transforma a suposta igualdade formal entre nós apenas numa</p><p>aparência. Outro exemplo: todos temos formalmente o direito de ir e vir. Sem</p><p>dúvida, se tirarmos o passaporte na Polícia Federal e comprarmos uma</p><p>passagem na Varig ou na Air France, poderemos ir a Paris e voltar. Todos</p><p>temos este direito formal, mas sabemos muito bem que nem todos podem</p><p>exercê-lo. Há os que não podem ir nem do Méier à Gávea porque não têm</p><p>dinheiro para pagar o ônibus. Com isso, estou querendo dizer que a</p><p>democracia — se a entendermos no sentido forte da palavra, isto é, no sentido</p><p>da igualdade, da participação coletiva de todos na apropriação dos bens</p><p>coletivamente criados — tem também uma dimensão social e econômica. Não</p><p>há efetiva igualdade política se não há igualdade substantiva, a qual passa</p><p>necessariamente pela esfera econômica. E não é preciso ser marxista ou</p><p>socialista para dizer isso: Rousseau já o dizia em pleno século XVIII.</p><p>Portanto, a disputa ideológica hoje não tem tanto como objeto a</p><p>oposição explícita entre democracia e antidemocracia, como ocorria até</p><p>meados do século XX, mas sim a oposição entre diferentes conceitos de</p><p>democracia. Com efeito, como já observei antes, nenhum ator político</p><p>14</p><p>significativo se posiciona hoje abertamente, nem no Brasil nem no mundo —</p><p>salvo, talvez, em alguns regimes fundamentalistas islâmicos —, contra a</p><p>democracia. Por conseguinte, quando nos dispomos hoje a avaliar uma</p><p>situação como sendo ou não democrática, temos que saber previamente qual</p><p>conceito de democracia estamos utilizando. Não podemos nos limitar, para</p><p>fazer tal avaliação, apenas ao nível dos procedimentos formais. Se nos</p><p>mantivermos neste nível, quase todos os Estados hoje existentes são Estados</p><p>de direito. Stalin, por exemplo, fez promulgar na ex-União Soviética, em 1934,</p><p>uma Constituição formalmente democrática (ele até dizia se tratar da</p><p>Constituição mais democrática do mundo!), que assegurava aos cidadãos</p><p>soviéticos os direitos de opinião, de voto, de ir e vir, etc. — e nós sabemos o</p><p>que ocorria na realidade, ou seja, o terrorismo brutal de uma ditadura</p><p>despótica.</p><p>Portanto, não basta estatuir regras do jogo. Temos aqui, certamente,</p><p>uma condição necessária, mas que está longe de ser suficiente para que exista</p><p>efetivamente uma democracia. Para isso, é preciso, por um lado, que tais</p><p>regras sejam efetivamente democráticas, ou seja, que contemplem a presença</p><p>não só de formas de representação, mas também de institutos de democracia</p><p>direta, participativa; e, por outro, que existam também as condições jurídicas</p><p>e econômico-sociais para que tais regras sejam efetivamente</p><p>cumpridas.</p><p>Temos então que a definição minimalista de democracia é uma mera ideologia,</p><p>cujo objetivo principal é esvaziar a democracia do caráter subversivo que,</p><p>tanto teórica como praticamente, caracterizou-a desde sua origem.</p><p>15</p>cumpridas. 
Temos então que a definição minimalista de democracia é uma mera ideologia, 
cujo objetivo principal é esvaziar a democracia do caráter subversivo que, 
tanto teórica como praticamente, caracterizou-a desde sua origem. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 15