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RAÍZES GRECO-LATINAS 
DA CULTURA PORTUGUESA 
ACTAS DO I CONGRESSO DA APEC 
COIMBRA 
1999 
Ficha Técnica: 
I CONGRESSO DA APEC. Raízes Greco-Latinas da Cultura Portuguesa 
Capa: Medeia de Séneca, representada em Segesta 
Arranjo de Vítor Torres 
Fotografia de Francisco de Oliveira 
© Associação Portuguesa de Estudos Clássicos - APEC 
Instituto de Estudos Clássicos 
3000-447 COIMBRA - PORTUGAL 
Impressão: Imprensa de Coimbra, Lda 
Tiragem: 1200 exemplares 
Depósito Legal 135842/99 
ISBN 972-98142-0-1 
Publicação subsidiada por: 
Fundação Calouste Gulbenkian· Fundação Eng. António de Almeida 
CAMÕES E A HISTÓRIA DA ROMA ANTIGA 
NUNO SIMÕES RODRIGUES 
Universidade de Lisboa 
Dado que a temática desta reumao é a raíz greco-Iatina da 
cultura portuguesa, e como a História de Roma tem sido o tema que 
mais tem ocupado a nossa investigação, voltámos ao autor de Os 
Lusíadas para analisar o modo como trata os factos históricos 
romanos. Há que dizer, porém, que este texto não tem a pretensão da 
novidade. Preocupa-se antes com uma sistematização de ideias, temas 
e reflexões, que foram já de algum modo abordadas, e que simples-
mente tentaremos desenvolver1. 
Borges de Macedo referiu, num estudo que toma Os Lusíadas 
fundamentalmente como uma obra de pensamento e de crítica, que o 
poema é uma narrativa explicativa da história de Portugal, uma inter-
pretação política e civil do português, de conteúdo didáctico, que pre-
tende provar que os Portugueses da Índia são os mesmos que fizeram 
do Portugal metropolitano uma nação independente2. Dessa forma, 
ass.ume também o poema o seu carácter celebrativo. Seguindo essa 
linha interpretativa, não é de estranhar que os Portugueses sejam fre-
quentemente comparados aos povos da Antiguidade, imagética IlÚtiCO-
apoteótica do Renascimento. Essa era uma forma de, pedagogica-
mente, exaltar a nação. Camões compara Portugal aos que são consi-
derados os maiores, os modelos, os referentes, numa palavra, os clás-
sicos. E entre esses povos figuram evidentemente os Romanos, os 
mais capazes, especialmente no dOIlÚnio bélico-político, os construto-
res da grande referência política europeia de âmbito universal: o Impé-
J O tema foi já abordado por alguns autores, entre os quais destacamos Kurt 
Reichenberger, «Vergleich und Überbietung. Strukturprinzipen im Epos des 
Camões», Germanisch-Romanische Monatsschrift, X, I, 1960, pp. 1-12 e Maria 
Helena da Rocha Pereira, «Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas» in 
Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, pp. 109-131. 
2 Jorge Borges de Macedo, «Os Lusíadas» e a História, pp. 11-12, 98, 113, 
146. 
183 
rio. Sendo Roma um clímax civilizacional, a comparação de Portugal 
e dos Portugueses com ela só os enobrece. Nobreza que se acentua 
quando a comparação permite a superioridade portuguesa como con-
clusão final. E são várias as vezes em que Camões não hesita em valo-
rizar o seu povo, ou por o fazer colectivamente igualou superior aos 
Romanos, ou por escolher um herói português e o comparar igualou 
superlativamente a um qualquer herói romano. Em diversas passagens 
camonianas encontramos essa 'tÉXV1l3 , em que o povo romano, ou 
Roma por si própria, é tomado como um todo e comparado a situações 
vividas pelo povo português ou por Portugal4. 
Analisemos os textos. A escolha de exemplos individualizados, 
retirados da história de Roma, para ilustrar quer a epopeia, quer a 
líricas, destaca-se da situação anterior pela personalização. Abundam 
os nomes ligados à história política de Roma, apesar de esporadica-
mente lá encontrarmos referências a figuras que fizeram história no 
campo da cultura, como Virgílio (Lus V, 98 ou V, 94), Ovídio 
(Elg III) e Plínio (Lus V, 50). Podemos sistematizar a selecção de 
figuras romanas a partir de três planos: as que se relacionam com o 
período republicano, as que se relacionam com o período imperial e as 
que são citadas como exemplo histórico, mas que na verdade fazem 
parte das narrativas das origens e da monarquia de Roma, por vezes 
lendárias, e em que muitas personagens e factos se confundem entre o 
mítico e o real. Já Tito Lívio e Plutarco mostravam estar conscientes 
do carácter lendário e poético dessas narrativas e suas personagens6. 
Todavia, a cultura latina incluíu-as nas suas histórias, sem «as refutar 
ou confirmar». Do mesmo modo, Camões utilizou-as como parte 
integrante desse património histórico-cultural. Aliás, tal como o 
3 K. Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden. Ein Beitrag zlIr 
dichterischen Gestaltung der Hõhepunkte im Epos des Camões», Aufsatze zur 
portugiesischen Kulturgeschichte, I, 1960, p. 81. 
4 De que são exemplos, LlIs I, 24; I, 26; II , 44; III, 21, 82, 95; IV, 7; VI , 30, 
43, 48; VIII, II ; IX, 12; X, 26; Red 33; Oit II. Para a epopeia e para a lírica 
camoniana, usamos as edições de A. J. Costa Pimpão. O próprio território português é 
frequentemente chamado Lusitânia, o nome da província administrativa correspon-
dente a parte do território nacional, durante grande parte da história de Roma, e os 
portugueses associados aos Lusitanos. 
5 O teatro camoniano, rico em referências mítico-culturais da Antiguidade, de 
que é exemplo máximo o mito de Antitrião, base da comédia de Plauto e da de 
Camões, é omisso em referências históricas, no sentido da análise que empreendemos. 
As cartas contêm apenas duas referências, que focaremos adiante. 
6 Tito Lívio, Prefácio, 6-10. Plutarco chama mesmo a alguns episódios fábulas 
ridículas. Plutarco, Numa Pompílio 15, 11. 
184 
historiador romano, usou-as como «modelos a imitar para uso próprio 
e do seu país» 7. 
Incluem-se nesta última categoria as referências a Rómulo e 
Remo. Figuras meio míticas, meio históricas8, facto de que Camões 
mostra estar consciente, ao escrever Rómulo, Baco e outros que 
alcançaram/ nomes de semi-deuses soberanos,! enquanto pelo mundo 
exercitaram! altos feitos e quási mais que humanos (Oit II). Comentá-
rio inserido no elogio do vice-rei da Índia, D. Constantino de Bra-
gança. Os dois gémeos são também citados na epopeia, a propósito 
dos filhos de D. Inês de Castro, repudiados pelo avô, D. Afonso IV: 
Com pequenas crianças viu a gente! Terem tão piadoso sentimento/ 
Como co a mãe de Nino já mostraram,! E cos irmãos que Roma edifi-
caram (Lus III, 126). A falta de piedade, que nem aos animais da 
Antiguidade faltou, demonstrada pela comparação é claramente uma 
crítica ao despotismo do rei. Numa Pompílio surge em segundo lugar 
na lista dos sete reis de Roma e Camões refere-se-Ihe na epopeia, 
usando-o como comparação com D. Nuno Álvares Pereira (Lus VIII, 
31). A cena é a batalha de Vai verde, mencionada nos estandartes. 
A personagem é o Condestável, que aguarda as tropas castelhanas. 
O poeta recupera uma referência feita por Plutarco na sua biografia de 
Numa Pompílio, em que o rei, esperando uma invasão inimiga, 
deposita toda a sua confiança nas divindades, dizendo que a elas 
sacrificava piedosamente9: «Pois eu (responde) estou sacrificando.» 
(Lus VIII, 31). Na lírica, a evocação permite fazer o panegírico de 
D. João III. Referindo-se a uma sepultura, o poeta joga em diálogo e 
pergunta pela identidade do jazente. Depois de uma lista em que se 
mencionam qualidades e se fazem naturais associações onomásticas, 
dignas de uma personalidade egrégia, surge o nome do rei romano que 
de imediato é substituído pelo monarca português, - E Numa? - Numa, 
não; mas é Joane (Son 160). No canto III, Camões refere-se a Sexto 
Tarquínio, filho do último rei etrusco de Roma (Lus III, 140). Este é 
também um episódio que se liga ao mundo da lenda, sintomática de 
pertinentes questões sócio-políticas, relacionadas com a passagem da 
7 Tito Lívio, Prefácio, 6-10. 
8 Tito Lívio I, 4-5; Plutarco, Rómulo 4-6; 8. 
9 Plutarco, Numa Pompílio 15, 12. A lírica camoniana tem também uma 
referência a este rei romano (Éc\ VII), porém, salienta-se a vertente mitológica, pois 
refere-se à metamorfose da ninfa Egéria em fonte após ade Carvalho, O virgilianismo de «Os Lusíadas» 
(Subsídios), Diss. Lic. policopiada, Lisboa, 1966. 
84 Virgílio, Eneida VI, 789-888. 
85 Virgílio, Eneida VIII, 626-671. Esta é uma enumeração tradicional. 
Encontramo-la também, por exemplo, na visão infernal descrita em Lucano, Farsália 
VI, 784-805 e em VII, 358 ss. 
209 
14 
camonianas: juntamente com Lucrécia, Valéria e Semprónia, referidas 
na oitava N, surge uma grega, a tebana Timóclia, cuja história se 
pode também ler no historiador grego, perfazendo assim um conjunto 
de mulheres plutarquianas86. As traduções latinas deste autor grego 
eram vulgares na Europa quinhentista, pelo que nem se coloca o pro-
blema clássico de saber se o poeta dominava o grego ou nã087. 
A existência de edições de Plutarco nos séculos XV e XVI demonstra 
a possibilidade de o poeta as ter consultado e a partir delas adquirido 
grande parte dos seus conhecimentos da história romana. O mesmo se 
pode dizer quanto a uma possível utilização de Tito Lívio e de Valéria 
Máximo. 33 entre as 43 personagens, dos períodos monárquico e 
proto-republicano, citadas por Camões foram tratadas por aquele 
historiador latino (c. 77%); e 32 estão presentes em V. Máximo 
(c. 75%). Também Tito Lívio era um autor suficientemente conhecido 
na Europa quinhentista88, pelo que nos é legítimo considerar que o 
historiador fazia parte do curriculum erudito de Camões, como teria 
sido uma das fontes possíveis para escrever algumas das passagens da 
epopeia, como da lírica. A formação liviana poderá ganhar crédito na 
referência da carta III a Cipião. A obra de Valéria Máximo, escrita à 
base da técnica da biografia comparada, ao usar os factos históricos 
como exemplos morais e paradigmas de virtude a seguir ou a evitar, 
86 Plutarco, Alexandre 12. Os valores que presidem à obra de Plutarco, dos 
quais podemos destacar o heroísmo, a honra, o amor à pátria, a perseverança, 
coincidem com os demonstrados por Camões, pelo que não admira que o poeta tivesse 
uma especial atenção para com o historiador. Há ainda dois aspectos que podemos 
salientar quanto à possibilidade de Camões conhecer Plutarco: um verso inserido em 
Lus V, 93, onde se lê sobre a preferência que Alexandre tinha por Aquiles, 
informação dada em Alexandre 26, 8; e o tema do auto El-Rei Seleuco, que parece ter 
sido retirado de Demétrio 31, 5-6; 32, 3; 38. 
87 Como atestam os exemplares que se encontram na Biblioteca Nacional. 
Refiram-se apenas alguns exemplos de incunábulos das Vitae de Plutarco em latim, 
publicados em 1470, 1478, 1499, 1491, 1532, 1558. Apesar de alguns camonistas 
estarem quase certos que Camões tinha conhecimentos de grego. Cf. Wilhelm Storck, 
Vida e obras de Luís de Camões I, p. 245; Américo da Costa Ramalho, «Sobre a 
cultura de Camões», Colóquio/Letras 47, 1979, pp. 70-73 e «A tradição clássica em 
Os Lusíadas», Estudos Camonianas, p. I e Maria Helena da Rocha Pereira, 
«O "Honesto estudo" de Camões» in Estudos sobre Camões, pp. 25-28 e «Presenças 
da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas» in Novos ensaios sobre temas clássicos /la 
poesia portuguesa, pp. 120-12 I. 
88 A título de exemplo, podemos também citar duas edições de Tito Lívio 
existentes na Biblioteca Nacional: uma de Treviso de 1485, e outra de Lisboa, de 
1593. 
210 
parece mesmo ter fornecido a Camões um modelo de trabalho para os 
seus textos poéticos89. 
Cícero, Lucano, Suetónio, Díon Cássio e Eutrópio são outros 
autores a que Camões poderá ter recorrido. Efectivamente, nestes 
escritores, como em Virgílio, Tito Lívio, Valério Máximo e Plutarco, 
podia o poeta ter encontrado toda a informação necessária para os 
textos em que se referiu à história de Roma. A possibilidade de isso 
ter acontecido comprova-se pelas edições castelhanas ou latinas destes 
textos nos séculos XV e XVI9o. Não negamos que Camões tenha lido 
outros textos e outros autores, mas teriam bastado estes para a compo-
sição final. Como não afirmamos que terá lido as edições hoje exis-
tentes na Biblioteca Nacional, mas que estas provam a possibilidade 
pela sua simples existência. 
Poder-se-á sempre alegar que algumas das referências à história 
de Roma dispensavam qualquer conhecimento profundo dos autores 
clássicos. l.e., não era preciso ler Plutarco ou Cícero na íntegra para se 
saber que Coriolano ou Catilina haviam sido traidores; ou ler César, 
para se ter noção do alcance das suas vitórias militares; mas era 
preciso conhecer minimamente os clássicos para se saber a forma 
como Pórcia se havia suicidado, das pescarias enganosas de Cleópatra, 
do sangue derramado na batalha de Aix, da vergonha de Albino em 
Cáudio, da coragem de Ceva ou das frases proferidas por Cipião ou 
Numa. Momentos em que não há uma mera sugestão de temas, mas 
a evidência de uma recolha documental. A honestidade científica 
89 Tal como forneceu ao contemporâneo de Camões, Montaigne. Na 
Biblioteca Nacional podemos encontrar algumas edições quinhentistas de Valério 
Máximo: Veneza, 1502 e 1527; Paris, 1513 e 1535; Leão 1556; Antuérpia, 1566. 
90 Só na Biblioteca Nacional podemos encontrar, por exemplo, uma edição 
castelhana de Lucano de Lisboa, 1541 e edições latinas que se distribuem entre 1448 e 
1576, publicadas em Paris, Antuérpia e Veneza; edições latinas de Suetónio de Leão, 
Antuérpia e Paris, de 1461, 1520,1535,1543, 1544,1548,1551,1553,1574,1591; 
edições latinas de Eutrópio de Milão, 1475; Basileia, 1532; Veneza, 1544; Poitiers, 
1554; edições latinas de Díon Cássio de Paris, 1548; Frankfurt; Leão, 1559 e italianas 
de Veneza, de 1533, 1562 e 1565. Livros que provam a difusão destes autores pela 
Europa quinhentista e, consequentemente, por Portugal. A livraria de D. Teodósio I, 
duque de Bragança em meados do século XVI, por exemplo, possuía, entre outros, 
exemplares de Plutarco e Tito Lívio; Aires do Nascimento, «A livraria de D. Teodósio 
I, Duque de Bragança», sep. Actas do Congresso de História no IV Cefltenário do 
Seminário de Évora, 1994, pp. 215, 218. Cf. J. V. Pina Martins, «O Humanismo na 
obra de Camões», Arquivos do Centro Cultural Português, XVI, 1981, p. xxii ; Maria 
Helena de Teves Costa Urena Prieto, «O "ofício de rei" n' Os Lusíadas segundo a 
concepção clássica», Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas, 1984, pp. 
772-779. 
211 
obriga-nos a admitir que Camões tanto poderia ter consultado os tex-
tos originais ou traduções latinas integrais, como antologias escolares 
ou florilégios, que então circulavam pela Europa com excertos dos 
autores clássicoS91. Não era impossível que algumas destas passagens 
lá viessem mencionadas. Como não era impossível que o poeta tivesse 
aprendido a história de Roma em epítomes ou em historiadores como 
Sabélico. Todavia, as Enneades, como as sínteses, também haviam 
sido escritas em latim. Esse factor associado à difusão das edições dos 
clássicos pela Europa do tempo de Camões e aos conhecimentos de 
latim do poeta não anula, de forma alguma, a hipótese de o poeta ter 
consultado, senão lido integral e directamente os originais.92 É claro 
que a imitatia de Virgílio e a leitura de autores como Petrarca e 
Sabélico proporcionam, muitas vezes, a Camões referências históricas, 
dispensando o poeta da consulta de textos ou da utilização de saber 
acumulado. Mas, importa referir que se exigia ao poeta a noção do 
significado do exemplo escolhido. I.e., não podia ser um exemplo 
arbitrário, até porque tinha de fazer sentido ao ser usado como parale-
lismo com um episódio da história de Portugal. Logo, exigia-se um 
conhecimento profundo tanto da história de Roma, como da história 
portuguesa, pois «importa ao poeta escolher os episódios e as figuras 
mais capazes de empolar e veicular uma certa interpretação da histó-
91 Como o de Rodigino, Antiquarum lectionum comentarii, com edições em 
Veneza, 1516, e em Basileia, 1566, onde se podem encontrar a maioria dos exemplos 
históricos citados por Camões. 
92 Apesar de se conhecer uma tradução portuguesa das Enneades por 
D. Leonor de Noronha, dama contemporâneade Camões. Apenas as duas primeiras 
décadas foram editadas em português, o que em termos históricos vai até Coriolano. 
Para se informar a partir do texto de Sabélico sobre outros períodos, Camões tinha de 
consultar o texto latino ou o resto da tradução manuscrita. Mas o problema que Jorge 
de Sena coloca para as fontes da história de Portugal utilizadas pelo poeta é também 
válido aqui. Teria Camões à sua disposição os clássicos, nas bibliotecas públicas ou 
privadas do Oriente? Tal como aquele autor propõe para os textos portugueses, talvez 
Camões tivesse lido estas obras na juventude, ficando apenas uma ideia geral do seu 
conteúdo, o que em parte justifica o tipo de referências generalistas (com a vantagem 
de que os clássicos corriam impressos pela Europa muito antes das crónicas 
portuguesas); ou consultou antologias ou obras de carácter enciclopédico, como as de 
Eutrópio (onde encontramos c. 51 % das personagens) e Valério Máximo, pouco 
extensas e onde podemos encontrar quase todas as referências camonianas à história 
de Roma, e por isso fáceis de transportar, e portanto de encontrar até no Oriente. 
Porém, A. Costa Ramalho refere a larga difusão de obras nesses territórios. Cf. Jorge 
de Sena, A Estrutura de «Os Lusíadas», 2a ed., p. 167; Américo da Costa Ramalho, 
Estudos Camonianas, pp. VII-VIII e R. M. Rosado Fernandes, «Camoens et l'héritage 
classique», Arquivos do Centro Cultural Português, XV, 1980, p. 7. 
212 
ria»93. Camões falou para os homens do século XVI numa linguagem 
apropriada; significa que o uso do símile só fazia sentido se fosse 
entendível; significa que os leitores de Camões apreenderiam a men-
sagem camoniana, porque também eles estariam familiarizados com a 
história de Roma. 
Em segundo lugar, há que abordar a função dos exempla da 
história de Roma em Camões. Já nos referimos ao carácter político-
didáctico da epopeia. Essa é uma das chaves-mestras para compreen-
der a retórica do exemplo. A mesma que serve para compreender a sua 
função em alguns poemas líricos (as odes e sonetos dedicados a figu-
ras políticas contemporâneas de Camões, por exemplo). N' Os Lusía-
das, as alusões à História Antiga são sempre articuladas com o pro-
cesso poético-narrativo que estrutura a acção do texto épico; funcio-
nam como comentários94. 
Podemos sistematizar os exempla segundo a sua função em 
quatro tipos: os episódios ou heróis da história da Roma antiga que 
são comparados com episódios ou heróis da história de Portugal, em 
que estes superam aqueles, Nunca consentiu Roma ennobrecer-se/ 
com triunfo ninguém, se não ganhou/ província que o Império acre-
centasse,! por maiores vitórias que alcançasse (Oit II); os exemplos 
em que os dois argumentos comparados se colocam a um nível de 
igualdade, explícitos no discurso de Vénus, porque tanto imitam as 
antigas/ Obras de meus Romanos (Lus IX, 38); a estes dois tipos de 
exemplos já se referiu Reichenberger95, porém, há ainda exemplos 
em que o elemento Roma não é superado pelo elemento português; 
como há simples menções poético-eruditas. Para a compreensão desta 
lógica, há que relembrar que, durante o Renascimento, Roma é tida 
como um clímax civilizacional e cultural, e que, portanto, igualá-la ou 
superá-la é conquistar um nível bastante elevado na concepção e filo-
sofia da história do poeta. Trata-se de um elogio a Portugal, em que a 
superação traduz a consciência de uma modernidade que soube ir mais 
além. Assim acontece com exemplos memoráveis, como as referên-
93 Maria Vitalina Leal de Matos, Introdução à poesia de Luís de Camões, 
p.22. 
94 Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, Introdução à poesia de Luís de Camões, 
p. 20 e Jorge de Sena, A Estrutura de «Os Lusíadas», 2" ed., p. 67. 
95 A tese da Überbietung, explícita em «Vergleich und Überbietung. 
Strukturprinzipen im Epos des Camões», Germanisch-Romanische Monatsschrift, X, 
I, 1960, pp. 1-12 e «Epische GrbBe und manuelinischer Sti!. Untersuchungen zum 
Probmium der "Lusiaden"», Aufsatze zur portugiesischen Kulturgeschichte, 2, 1961, 
p. 89. 
213 
cias a Trajano, sempre ultrapassado por Portugal; a batalha de Áccio, 
evocada como o novo conflito entre Oriente e Ocidente, mas de menor 
impacte quando comparada com as guerras dos Portugueses contra o 
Islão; Aljubarrota é tão importante como qualquer guerra púnica; ou o 
povo romano em geral, diversas vezes colocado aquém das 
capacidades demonstradas pelo português, de que são exemplos Que 
por ela se esqueçam os humanos/ De ... Romanos (Lus I, 24), ou Aqui 
ressurjam todos os Antigos,! A ver o nobre ardor que aqui se aprende 
(Lus X, 30), nem que para isso o poeta se veja obrigado a dizer, 
perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma (Lus X, 19). Justifica-se assim a 
«escolha» dos Portugueses para a missão do Oriente. Roma só ganha 
quando está em jogo a cultura. Na batalha, na conquista, na afirmação 
de valores bélicos, com o guerreiro, Portugal sempre igualou, ou até 
mesmo superou. São as qualidades que Vénus reconhecia nos 
descendentes de Luso (Lus I, 33). Porém, e curiosamente, quando se 
chega ao campo das letras, tópico querido ao Renascimento, homens 
como César ou Octávio conseguem sempre levar a melhor. Nem 
Vasco da Gama, herói da epopeia, demonstra essa qualidade. Antes 
pelo contrário, o poeta censura-o por a não possuir (é curioso verificar 
que essa não foi sequer uma perspectiva abordada pelo poeta em 
relação a D. Dinis, o rei português tradicionalmente ligado às letras). 
A escolha dos exemplos não é de forma alguma feita ao acaso. 
As figuras citadas são todas as que a própria Antiguidade havia 
também já eleito. São nomes reais que ganharam a apoteose porque 
exprimem os grandes momentos do processo histórico do crescimento 
de Roma como Estado e que simbolizam o grande grito colectivo da 
existência enquanto Povo. São o particular que vale pelo todo. Fazia-
se assim com que o momento histórico português ganhasse um 
significado universal, permitindo a fusão da orientação greco-Iatina da 
cultura mediterrânica com uma nova dimensão atlântica, que se 
assumiu na época modema, graças, em grande parte, ao contributo 
português. É com essa mesma intencionalidade que o poeta recorre a 
eles. Os exempla são também usados como simples referências 
eruditas. Encontramos comparações de situação, comparações de 
simples erudição e meras referências de enriquecimento épico; 
elementos para uma localização geográfica, por exemplo, como o 
Egipto, onde Pompeio perdeu a vida; ou como modelo ético, como a 
virtude de Lucrécia citada na carta III. Mas são também tópoi 
puramente líricos, símbolos evocados ao serviço do amor, da coragem, 
das virtudes femininas ou de um estado de alma, como Pórcia, Fúlvia, 
António e Cleópatra, Tarpeia ou mesmo Nero e Agripina. Na lírica, 
214 
como nas cartas, as comparações são mais sóbrias, predominando o 
sentido estético que valoriza a erudição poética, que recorre ao 
exemplo para acentuar um sentimento, um efeito ou uma característica 
lírica. A sobriedade atinge também a quantidade de exemplos: 16% 
contra os 81 % presentes na epopeia. O exemplum histórico é 
fundamentalmente um recurso épico. 
Há ainda a função cronológica do exemplo, e essa detecta-se 
essencialmente, por razões óbvias, n' Os Lusíadas. Se este tipo de 
argumentos é usado por Camões como paralelos que servem de 
clarificação, como símiles, da história de Portugal, é ao mesmo tempo 
uma interpretação, pelo que se toma necessário uma análise mais 
aprofundada. Convém relembrar que Camões sintetiza a história do 
seu país ao longo da epopeia, e que essa história se reparte pelos 
tempos da fundação da nacionalidade, pelos tempos medievais e pelos 
tempos modernos, contemporâneos do poeta (1497-1548); a «história 
narrada» e a «história vivida»96. Deste modo, toma-se pertinente 
verificar como os exemplos se distribuem ao longo da epopeia. Os 
cantos li, IV e VIII são os mais ricos em exempla. O primeiro 
concentra 26,8% do total de exemplos presentes na epopeia, o 
segundo 21,4% e o terceiromorte do rei, seu amado. 
Plutarco menciona a ninfa, Numa Pompílio 4; 8; 13; 15, mas é em Ovídio que se 
encontra o mito da metamorfose, Metamoifoses XV, 482. 
185 
monarquia à república em RomalO . A referência surge, n' Os Lusíadas, 
no contexto da história amorosa protagonizada por D. Fernando e 
Leonor Teles. O rei português, por ter cobiçado a então esposa de João 
Lourenço da Cunha, é comparado a várias figuras da Antiguidade, 
como Páris, David, Siquém e Tarquínio, que cobiçaram mulher alheia 
e que acabaram por provocar, sempre, desgraças. Associa-se o final da 
dinastia afonsina ao final da monarquia romana. Ambas as situações 
acabaram por inaugurar novos tempos. 
Das alusões à história da república romana, destacam-se 
facilmente os episódios referentes aos heróis dos primeiros períodos, 
também eles lendários, dos referentes às grandes figuras históricas do 
período clássico ou tardo-republicano, protagonistas das guerras civis 
e das guerras púnicas. Entre os primeiros, e a propósito do martírio do 
Infante D. Fernando, figura Marco Cúrcio (Lus IV, 53). Protagonista 
de uma lenda republicana, Cúrcio aceitou oferecer-se voluntariamente 
pelos companheiros e pelo povo romano, sacrificando-se ao abismo 
infernal que se abrira no Foroll . Paralelo adequado ao sacrifício do 
infante português. Outra figura desses tempos, citada por Camões, é 
Horácio Cocles. Herói das primeiras guerras de Roma contra os povos 
circundantes, é evocado pelo poeta através das profecias feitas por 
Tétis a Vasco da Gama (Lus X, 21). Entre os heróis portugueses aí 
referidos, destaca-se a figura de Duarte Pacheco Pereira, capitão de 
Afonso de Albuquerque, enviado à Índia em 1503. Este é comparado 
em forma de prolepse a Públio Horácio Cocles, cuja coragem evitou a 
invasão de Roma por Porsenal2 . Coriolano, outras das grandes figuras 
lendárias de Roma, celebrizada pela historiografia de Plutarco e pela 
tragédia de Shakespeare, é também mencionado (Lus IV, 33)13. 
A referência não é das mais positivas, pois o herói romano alinha com 
outras personagens consideradas traidoras à pátria romana, Sertório e 
Catilina. Trata-se de uma comparação que serve de juízo dos Portu-
gueses que em 1383-1385, e mais particularmente na batalha de Alju-
barrota, lutaram ao lado dos Castelhanos. O episódio de Coriolano, 
conhecido pela sua aliança com os V olscos contra Roma, servia a 
Camões de exemplo perfeito para o que pretendia expressar. O decên-
viro Ápio Cláudio, conhecido na cultura romana por ter tentado violar 
186 
10 Plutarco, Publícola 1; 12; Valério Máximo VI, I, I . 
11 Tito Lívio, VII, 6; Plutarco, Rómulo 18; Suetónio, Augusto LVII . 
12Tito Lívio II, lO; Plutarco, Publícola 16. 
13 Tito Lívio II, 33-35; Plutarco, Coriolano; Eutrópio I, 15. 
Virgínia14, é associado a Tarquínio, como outro referente da cobiça de 
D. Fernando (Lus III , 140). Outro exemplo engenhosamente proposto 
como comparação com o caso português. 
Os versos Não fez o Cônsul tanto que cercado/ Foi nas Forcas 
Caudinas, de ignorante,! Quando a passar por baxo foi forçado/ Do 
Samnítico jugo triunfante são uma referência a Espúrio Postúmio 
Albino. A passagem insere-se na segunda guerra sarnnita, marcada 
pela derrota de Roma, em 321 a. C.IS A evocação deste episódio 
pouco heróico, em que o exército romano foi humilhado, é feita por 
Paulo da Gama ao Catual. Através dela, o poeta exalta a dignidade 
demonstrada por Egas Moniz, quando se apresentou, juntamente com 
a família, envergando as vestes dos condenados, perante Afonso VII 
de Leão. Os Décios são também citados a propósito do martírio do 
Infante Santo (Lus IV, 53). Tal como Cúrcio ou Régulo, estas perso-
nagens pertencem a um património da cultura romana que as identifica 
como heróis que deram a própria vida em sacrifício de uma causa 
patriótica. Públio Décio Mus ofereceu a sua vida aos deuses infernais 
em troca da vitória na batalha de Véseris, e o episódio ter-se-ía repe-
tido com o seu filho, em batalha contra os Gauleses em Sentino, na 
Úmbria, em 295 a. C.; e com o seu neto, na batalha contra Pirro, em 
Ásculo, em 279 a. c. 16 O tema do sacrifício voluntário anda associado 
aos Décios Mus, o que levou o poeta a referir que Nem os Décios 
leais,fizeram tanto, como o infante de Avis. 
Ao período tardo-republicano pertencem outras referências que 
encontramos ao longo d' Os Lusíadas. As guerras púnicas, por 
exemplo, facto histórico que marca a grande viragem política de 
Roma, em que esta passa a assumir um protagonismo indubitável na 
História, são assinaladas por diversas vezes. A lírica evoca o conflito 
subtilmente 17, mas n' Os Lusíadas, quando Vasco da Gama inicia o 
relato do reinado de D. João I, e começa a descrever a batalha de 
Aljubarrota, não hesita em comparar o campo de batalha ao de 
Canúsio, onde, durante a segunda guerra púnica, Públio Cornélio 
Cipião, então tribuno com menos de vinte anos, encorajou os soldados 
de Roma a não sucumbirem à ofensiva militar infligida pelas 
tropas cartaginesas, mas a continuar pela sobrevivência de Roma 
14 Tito Lívio III , 44-58; Valério Máximo VI , I, 2; Eutrópio I, 18. 
15 Tito Lívio IX , 1-10; Valério Máximo VII , II, 17; Eutrópio II, 9. 
16 Tito Lívio VIII , 9-\0; X, 4-5. 
17 Son 150: se a Roma co ele aniquilaste, / nem por isso Cartago está 
contente. 
187 
(Lus IV, 20)18. Camões dedica uma estância completa à comparação 
que lhe permite aproximar a Apúlia de Aljubarrota, e a figura do 
jovem Cipião da do então também jovem Nuno Álvares Pereira, 
considerado o grande mentor do sucesso de 1385. O Condestável volta 
a ser comparado a Cipião no canto VIII, «Se quem com tanto esforço 
em Deus se atrevei Ouvir quiseres como se nomeia,! "Português 
Cipião" chamar-se deve (Lus VIII, 32). A situação em causa é de 
novo o conflito de Aljubarrota, agora comparado a Zama. Tal como 
Cipião, que não vacilou, nem quando a batalha parecia perdidal9 , 
também Nuno Álvares Pereira persistiu, acabando por alcançar a 
vitória. Como, aliás, aconteceu com o general romano. Cipião é 
também lembrado no canto seguinte, embora num sentido mais 
abrangente: Dá a terra Lusitana Cip iões (Lus V, 95). Na verdade, esta 
alusão surge lado a lado com as de outros líderes da Antiguidade 
Clássica: César, Alexandre, Augusto. O plural associado a cada um 
dos nomes é, evidentemente, uma forma retórica de o poeta aproximar 
heróis portugueses daquelas grandes figuras da história militar, pois 
por Césares entendemos o Júlio; por Alexandres entendemos o 
Macedónio; e por Augustos entendemos o Octaviano. Todavia, por 
Cip iões podemos entender mais que um, dado que essa foi uma 
família prolífica em heróis militares: Públio Cornélio Cipião, o já 
mencionado Africano e vencedor da batalha de Zama em 202 a. C., e 
Públio Cornélio Cipião Emiliano, o conquistador da Macedónia em 
168 a. c., e de Cartago em 146 a. C., por exemplo. A lírica camoniana 
regista também menções a esta família de generais. Os Cip iões a 
Roma engrandeceram (Son 161), diz o poeta num soneto 
supostamente dedicado ao duque de Bragança, D. Teodósio, 
representante de uma família que já teria levado Portugal a grandes 
glórias, como as que os Cipiões deram a Roma. Na ode VII, é a vez de 
D. Manuel de Portugal ser comparado aos grandes da Antiguidade. 
Entre eles, figura Cipião. O Africano é também uma das duas únicas 
personagens romanas assinaladas nas cartas de Luís de Camões. Na 
carta que escreveu da Índia, o poeta refere que um amigo que o 
acompanhava faleceu durante a viagem, e que as últimas palavras por 
ele proferidas teriam sido Ingrata patria, non possidebis ossa mea, 
frase que atribui a Cornélio Cipião (Car II, 2-3). Em Tito Lívio lemos: 
morientem rure eo ipso loco sepeliri se iussisse ferunt monu-
18 Tito Lívio, XXII , 53; Plutarco, Fábio Máximo 2-17; 21-23; Marcelo 9; 
25-26; Valério Máximo VI , VI, I ; VII, II , 16; Eutrópio III , 10. 
19 Tito Lívi o XXX , 31-35; Valério Máximo VIII, XV , I. 
188 
mentumque ibi aedificari, ne funus sibi in ingratapatria fieret20. 
O latim introduzido na carta é a utilização de um discurso directo que 
na verdade não consta no historiador romano. O que sabemos por Tito 
Lívio acerca dos sentimentos de Cipião para com Roma é através de 
uma narração indirecta, pelo que ou Camões leu as palavras do 
general numa outra fonte, ou o poeta simplesmente adaptou de uma 
forma realista, e daí o uso da frase latina, a ideia expressa por Lívio. 
É a propósito de outra batalha medieval portuguesa, a do 
Salado, que encontramos ainda uma referência às guerras púnicas. Diz 
Camões que Nem o Peno, asperíssimo contrário/ Do Romano poder, 
de nascimento,! Quando tantos matou da ilustre Roma (Lus III, 116). 
O Peno a quem o poeta se refere é Aníbal, general púnico, herói da 
segunda guerra púnica. Apesar de ser uma figura não romana, a sua 
«fama histórica» advém-lhe pela relação com Roma, e pela participa-
ção em factos decisivos da história, quer cartaginesa, quer romana. É, 
portanto, de toda a justiça, que o incluamos nesta análise, pois foi 
também, decerto, sob essa perspectiva que suscitou reflexões a 
Camões21. Foi Aníbal quem liderou o exército cartaginês, vitorioso 
em Canúsio22, e a sua sugestão surge no contexto da descrição da 
batalha que opôs D. Afonso N ao rei de Fez, em 1340. A vitória 
esmagadora do rei cristão é celebrada no poema com a comparação ao 
massacre de Canúsio provocado por Aníbal em 216 .a.C., ao mesmo 
tempo que se aproveita a diferença étnica entre Romanos e Cartagine-
ses, para de algum modo equiparar à diferença religiosa entre cristãos 
e mouros, intervenientes no conflito. Aníbal volta a ser lembrado 
alguns cantos mais adiante, a propósito da exaltação feita por Paulo 
da Gama (Lus VII, 71). O sentido do verso infere-se a partir da 
identificação das personagens. O Aníbal referido é o general 
cartaginês; Marcelo é Marco Cláudio Marcelo, cônsul em 222 a. C., o 
vencedor de Aníbal em Nola em 216 a. C., e o vitorioso de Siracusa 
em 211 a. C.23 A expressão camoniana é de clara retórica, que 
20 Tito Lívio XXXVIII, 53. A edição das cartas usada é a de Hernâni Cidade. 
21 Numa perspectiva lusitanista, seria natural referir os heroísmos púnicos, 
associando-os a heroísmos portugueses, pois «o inimigo do Romano era o natural 
amigo do Lusitano», como diz Rosado Fernandes, a propósito do tratamento de 
Aníbal e dos Cartagineses por André de Resende, em R. M. Rosado Fernandes, 
«Introdução» iI! André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, p. 25. Todavia, 
essa perspectiva não é a predominante, como vemos pelos textos camonianos. 
22 Tito Lívio XXII, 41-XLIV, 6; Plutarco, Fábio Máximo 2-3; 6-17. 
32 Tito Lívio XXIII, 15-17; XXVII, 42; Plutarco, Marcelo 10-12; Eutró-
pio III, 12. 
189 
pretende exaltar a coragem e a bravura portuguesa no Oriente. Pois se 
Aníbal foi um bravo que só veio a ser derrotado por Marcelo, a 
bravura dos Portugueses excede a do próprio general púnico, pois 
Pera estes Anibáis nenhum Marcelo. As capacidades militares de 
Aníbal são ainda elogiadas quase no final da epopeia, quando o poeta 
diz que De Formião, filósofo elegante,! Vereis como Aníbal 
escarnecia,! Quando das artes bélicas, diante! Dele, com larga voz 
tratava e lia (Lus X, 153). Referência feita no contexto da série de 
exortações finais d' Os Lusíadas. É o passado dos Portugueses que 
testemunha a sua qualificação como líderes de capacidade provada no 
Oriente, pois para conseguirem a independência do seu território, 
diversas vezes tiveram de mostrar o que valiam24. Assim se 
compreende esta menção a Aníbal, que, num episódio narrado por 
Cícero25, troça de Formião de Éfeso. O filósofo peripatético teria 
apresentado ao general uma série de teses sobre estratégia militar, o 
que teria feito rir Aníbal, pois só a prática dá o conhecimento. Trata-se 
pois dessa mesma prática que Camões alega ser uma das vantagens 
dos Portugueses, como demonstrou ao longo de todo o poema, e daí o 
propósito da comparação. O exemplo histórico funciona como prova 
conclusiva dos argumentos desenvolvidos ao longo da epopeia. 
Outra alusão ao oficial púnico prescinde da referência bélica, a 
ele frequentemente associada, privilegiando a faceta do amor: Tu 
também, Peno próspero, o sentiste/ Despois que ôa moça vil na 
Apúlia viste (Lus III, 141). A sequência de nomes enunciados nesta 
passagem sugere um contexto de temáticas ligadas à paixão. Na 
mesma estância figuram Marco António e Cleópatra, e na anterior há 
referências a Tarquínio/Lucrécia e a ÁpioNirgínia. As comparações, 
centradas em figuras histórico-míticas, servem de pano de fundo à já 
referida história de amor entre D. Fernando e D. Leonor. A rainha, 
seguindo-se a tendência de Fernão Lopes, é retratada negativamente, 
como uma feiticeira que encantou o rei com suas artimanhas. 
A mesma filosofia que serve de base à construção da imagem de 
Cleópatra nos autores da Antiguidade. O exemplo de Aníbal segue o 
anterior, pretendendo-se uma paixão cega também para o general car-
taginês. Segundo Camões, Aníbal ter-se-ia apaixonado por uma rapa-
riga da Apúlia, onde o exército púnico esteve aquando da batalha de 
190 
24 Cf. Borges de Macedo, «Os Lusíadas» e a História, pp. 98-99, 113-114. 
25 Cícero, De Oratore rI, 18. 
Canúsio. Teria sido essa paixão a razão do atraso no ataque a Roma e 
da consequente perda de Itália pelos Cartagineses26. 
Ainda relacionadas com as guerras que opuseram Roma a 
Cartago, há as figuras de Marco Atílio Régulo e Quinto Fábio 
Máximo Cunctator. A primeira é citada por Camões na estância que 
compara o sacrifício dos heróis republicanos ao do infante D. Fer-
nando em Fez (Lus IV, 53). Régulo foi um general aprisionado pelos 
púnicos, enviado a Roma para negociar a paz, mas que aconselhou o 
Senado a continuar a guerra; quando voltou a África, foi torturado e 
morto. O seu patriotismo fez dele um herói na cultura romana27. Pelo 
cenário do episódio, o norte de África, pelas negociações políticas em 
jogo, e pela atitude frontal, destemida e patriótica de Régul028, esta 
era talvez a personagem da história de Roma que melhor se adequava 
à comparação pretendida por Camões. A segunda figura, Fábio Cunc-
tator, surge no último canto d' Os Lusíadas (Lus X, 21), associado a 
Horácio Cocles e a algumas figuras da história grega. O general 
Cunctator tornou-se célebre pela persistência e por desafiar os exérci-
tos de Aníbal, durante a segunda guerra púnica29. Por intermédio de 
Tétis, Cocles serve de modelo profético a Duarte Pacheco Pereira. 
As guerras romanas contra Pirro (280-272 a. C.), são também 
recordadas pelo poeta português. Após uma referência a Viriato e à 
26 Porém, nenhuma fonte antiga refere explicitamente este episódio. José 
M" Rodrigues concluíu que poderá ter sido recolhido em Petrarca. Este camonista 
compara a referência com uma passagem do Triunfo do Amor III , 25-28. O autor 
refere que alguns comentadores quinhentistas de Petrarca insistem em Plutarco como 
a fonte deste episódio. Porém, não é, de facto, o historiador grego o seu autor. 
O 」。ュッョゥウエセ@ português termina por dizer que a referência foi certamente extraída pelo 
poeta italiano em alguma obra hoje desaparecida. José Maria Rodrigues, Fontes dos 
Lusíadas, p. 441. Contudo, parece-nos legítimo falar de Valério Máximo como 
possível fonte da passagem. Este autor latino refere que «a luxúria de Cápua foi 
bastante favorável aos interesses da nossa república. Através do poder dos seus 
encantos, seduziu Aníbal, que não pôde ser vencido pelas armas e entregou-o, então 
facilmente vencível, aos soldados romanos. Foi ela quem seduziu o general mais 
vigilante e o exército mais intrépido ... » , Valério Máximo IX, I, 1. É possível que 
Petrarca, e com ele Camões, tenha individualizado uma figura anónima de acordo 
com a observação apontada por V. Máximo como a causa do abrandamento de Aníbal 
e seu exército. Pelo que, o verso seria apenas uma concretização anónima do que era 
conhecido a nível geral. 
27 Horácio, Odes III , 5; Tito Lívio XVIII; ValérioMáximo IX, II , I; IX, VI, I; 
Eutrópio II , 21; 25 e Cícero, De Officiis III , 27.100. 
28 Pois a tradição fez também de D. Fernando um herói que recusou a 
libertação, pelo seu patriotismo. 
29 Plutarco, Fábio Máximo 25-26; 29; Valério Máximo VII, III , 7-8. 
191 
dificuldade que foi para Roma neutralizá-lo, lemos o seguinte: Não 
tem com ele, não, nem ter puderam,! O primor que com Pirro já tive-
ram (Lus VIII, 6). A perífrase alude a Caio Fabrício, um homo nouus 
admirado na cultura romana pelos seus valores morais e pela sua 
incorruptibilidade, pois recusou uma oferta do próprio inimigo para 
trair Pirr03o. Como é sabido, Viriato foi assassinado traiçoeiramente 
por três falsos amigos, subornados por Quinto Servílio Cepiã031 ; daí o 
sentido do verso camoniano. Nesta passagem, Camões compara dois 
episódios da história de Roma entre si; mas o poeta considera um 
deles como também pertencente à história pátria, pela relação com 
Viriato. O que confere lógica à comparação. 
As guerras civis da república são outra fonte de exemplos da 
história romana que podemos encontrar em Camões. Ligadas a elas, 
encontramos várias figuras. Mário, por exemplo, é recordado alguns 
versos antes de Aníbal: Não matou a quarta parte o forte Mário! Dos 
que morreram neste vencimento,! Quando as águas co sangue do 
adversário! Fez beber ao exército sedento (Lus III, 116). O contexto é 
o da já referida batalha do Salado, e o argumento serve de imagem ao 
massacre aí ocorrido. A exaltação é feita com uma dose de superlati-
vidade em que se enfatiza o feito português. O exemplo romano é 
retirado de um episódio narrado por Plutarco, que refere o momento 
em que o exército romano, liderado por Caio Mário, depois de ter 
vencido em Aix os Ambrões e os Teutanos, teve de beber água de um 
regato onde o sangue fora abundantemente derramad032. O nome de 
Mário é relembrado no canto seguinte (Lus IV, 6), e o contexto volta a 
ser o de massacres militares: as guerras civis entre este e Sula servem 
de exemplo imagético-ilustrativo para as guerras levadas a cabo entre 
Portugal e Castela, entre 1383 e 1385. Não deixa de ser curioso o 
exemplo utilizado por Luís de Camões; como se o poeta considerasse 
a guerra entre Portugal e o reino castelhano como civil, fraterna. Na 
verdade, o conflito opôs também Portugueses a Portugueses. 
Pompeio e Júlio César são mencionados com o mesmo objec-
tivo comparativo que as referências acimas citadas. Aljubarrota e as 
cisões dentro das famílias portuguesas, como a do Condestável, cujos 
irmãos tomaram voz por D. Beatriz e Castela, e ele próprio que tomou 
voz pelo Mestre de Avis e Portugal, são razão para evocar mais um 
30 Plutarco, Pirro 21; Tito Lívio XIII (sum.); Eutrópio II, 14. 
31 Valério Máximo IX, VI, 4; Apiano 6, 12, 74; Díon Cássio XXII, 73; 
Eutrópio IV, 16. 
32 Plutarco, Mário 18. 
192 
confronto civil romano: Destes arrenegados muitos são/ No primeiro 
esquadrão, que se adiantai Contra irmãos e parentes (caso estra-
nho),! Quais nas guerras civis de Júlio feJ Magno (Lus IV, 32). Tam-
bém em Roma, durante esse período, houve famílias que se dividiram 
em apoios aos dois generais. O reinado de Afonso Henriques, as suas 
lutas contra os muçulmanos e a contenda com Fernando II de Leão 
motivam outras menções a Pompeio (Lus III, 71-73; IV, 62). Camões 
começa por evocar as vitórias contínuas e sucessos militares do cônsul 
roman033. Depois, são os conflitos partidários em Roma, que levaram 
à celebração do pacto político conhecido como o primeiro triunvirato, 
em 59 a. c., e ao casamento do general com Júlia, filha de César:34 
Que vença o sogro a ti e o genro a este! Um óbvio paralelismo entre o 
general romano, o vencido pelo sogro, e o rei português, vencido pelo 
genro; Porque Afonso verás, soberbo e ovante,! Tudo render e ser 
despois rendido (Lus III, 73), pois tal como o oficial romano foi ven-
cedor e depois derrotado pelo sogro, também o rei português surge 
como um vitorioso conquistador, posteriormente derrotado pelo genro. 
A derrota do general em Farsália é evocada nos versos: Já vencedor te 
vissem [a Pompeio] não te espantei Se o campo Emátio só te viu ven-
cido;/ Porque Afonso verás, soberbo e ovante,! Tudo render e ser 
despois rendido (Lus III, 73). Note-se, porém, a ordem retórica com 
que Camões organiza os versos: o interlocutor é Pompeio, que deve 
olhar um outro maior que ele, Afonso Henriques, rei de Portugal, que 
acabou por ter um destino como o dele. Não deve por isso, surpreen-
der-se ... A morte do general é evocada no canto seguinte, servindo de 
mera referência geográfica, a propósito das viagens de Pêro da 
Covilhã e Afonso de Paiva ao Oriente, durante o reinado de D. João II. 
O herói é identificado apenas pelo cognomen com que frequentemente 
é chamado na obra de Lucano e com que ficou historicamente conhe-
cido, E dali às ribeiras altas chegam/ Que com morte de Magno são 
famosas (Lus IV, 62)35. 
Quanto a Júlio César, há que referir, em primeiro lugar, que o 
seu cognomen assume n' Os Lusíadas a mesma função que na cultura 
33 Em versos como Posto que o frio Fásis ou Siene,! Que pera nenhum cabo a 
sombra inclina,! O Boates gelado e a linha ardente! Temessem o teu nome geral-
mente, incluindo nestas alusões a Arábia, a Judeia, a Mesopotâmia, a Cilícia e a 
Arménia (Lus III, 72-73). O poeta terá encontrado como fonte de inspiração deste 
passo o texto de Lucano, Farsália II, 583-594. Citado por A. J. Costa Pimpão (ed.), 
Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 338. 
34 Plutarco, Pompeio 47. 
35 Plutarco, César 48; Lucano, Farsália VIII, 536-711; Eutrópio VI, 21. 
193 
13 
romana. César é sinónimo de poder imperial, o homem que preparou o 
caminho para a construção do império, enquanto estrutura política. 
Essa imagem transparece na já referida estância do canto V, onde se 
lê: Dá a terra Lusitana . ..! Césares (Lus V, 95), ou, na lírica, Júlio 
César conquistou/ o mundo com fortaleza . ..! se livrou dos imigos com 
abrolhos (Red 33). É a figura da história romana mais vezes citada por 
Camões. Logo na dedicatória a D. Sebastião, o poeta inclui uma alu-
são à personagem, lendo-se: Pois se a troco de ... César, quereis igual 
memória,! Vede o primeiro Afonso (Lus l, 13). O romano, muitas 
vezes considerado erradamente como o primeiro imperador de Roma, 
é de alguma forma aqui retomado nessa função, ao se compararem as 
glórias do primeiro monarca português às do dictator. É, por excelên-
cia, a figura escolhida para servir de fiel comparativo ao primeiro rei 
de Portugal. No já citado verso da estância 32 do canto IV, César volta 
a ser citado, conjuntamente com Pompeio; e na estância 59 do mesmo 
canto, alude-se ao assassinato do ditador, apesar de o sujeito da refe-
rência serem os assassinos, Bruto e Cássio, e não a vítima: Quando 
daqueles que César mataram/ Nos Filípicos campos se vingaram36. 
No canto V, elogiam-se as capacidades oratórias de Júlio César, guer-
reiro eloquente, imagem que corresponde ao ideal renascentista do 
herói que domina as armas e as letras. A referência que serve de 
exortação das capacidades militares portuguesas, Vai César sojugando 
toda a França (Lus V, 96)37, é uma óbvia alusão à conquista das 
Gálias, que levou Júlio César a escrever um dos mais importantes e 
conhecidos textos da Antiguidade Clássica, e Camões a escrever E as 
armas não lhe impedem a ciência;! Mas, nôa mão a pena e noutra a 
lança. As façanhas do general em terras gaulesas são também lembra-
das, perifrasticamente, no canto III, inseridas na descrição que o poeta 
faz da Europa, Gália, ali se verá, que nomeada! Cos Cesáreos triunfos 
foi no mundo (Lus III, 16). No canto VIII, encontramos nova referên-
cia ao ditador. Na descrição das bandeiras, o escudo de Eneias d' Os 
Lusíadas, é recordado ao lado de Alexandre da Macedónia, evo-
cando-se a sua grandeza de poder, o qual não se assemelhava ao de 
Afonso Henriques, apesar de este se lhe comparar em valentia e em 
sucessos (Lus VIII, 12). Este verso parece ser um tópos literário,pois 
36Plutarco, António 12-13; 21-22; 38-50; Bruto 1; 14-17; 27-28; 34; 
César 66; Pompeio 16. 
37 Plutarco, César 18-27; Catão, o Jovem 33; 43-45; 51; Crasso 14; 15; 37; 
Pompeio 48; 52; 56-58; 83; Cícero 30; Lucano, Farsália I, 392; Eutrópio VI , 17; 
d. também Luís de Sousa Rebelo, A tradição clássica na lit eratura portuguesa, 
pp. 38-45. 
194 
Camões usa-o mais que uma vez e, já antes dele outros autores o usa-
ram também38. Quanto à lírica, na oitava dedicada a D. António de 
Noronha, sobre o desconcerto do mundo, é dada voz ao ditador 
romano, cujas palavras são significativas: Sou dino de memória;/ ven-
cendo vários povos esforçados/fui Monarca do mundo; e Larga histó-
ria/ ficará dos meus feitos sublimados (Oit I) . Como num diálogo, o 
poeta reconhece a veracidade das palavras do romano; porém, e tendo 
em vista o panegírico do seu destinatário, logo acrescenta que «esse 
mando e glória» foram efémeros, pois veio a morrer às mãos de Bruto 
e Cássio. É ainda na lírica que reencontramos o tópos armas e Letras. 
Na elegia VII, dedicada a D. Leonis Pereira, outro velho tema, Nunca 
Alexandre ou César, nas confusas/ guerras deixaram o estudo em 
breve espaço, versos que só confirmam a temática frequentemente 
aflorada na epopeia. 
Contemporâneos de César e Pompeio são Cássio Ceva, Cícero 
e Catilina. O partidário de Sula, mentor de uma revolta em Roma, 
formalmente acusado por Cícer039, é evocado por Camões no já men-
cionado grupo dos traidores (Lus IV , 33). Cícero é mencionado uma 
única vez ao longo da poesia camoniana: Igualava de Cícero a elo-
quência (Lus V, 96). O mote de citação é, como evidente, a sua capa-
cidade oratória, aqui comparada à também evocada eloquência de 
Júlio César, que, apesar de guerreiro, não desdenhava em capacidades 
retóricas e oratórias4o. O exemplo salienta uma vez mais o ideal renas-
centista. Ceva, o combatente de Dirráquio, é oportunamente citado 
como exemplo da coragem a ser demonstrada por D. Lourenço de 
Almeida. Ferido de morte, como o herói português, o soldado conti-
nuou a combater, recusando a rendiçã041 : Outro Ceva verão, que 
espedaçado/ Não sabe ser rendido nem domado (Lus X, 30). 
Entre as figuras da história republicana de Roma citadas por 
Camões, há ainda que destacar duas pela pertinência com que o poeta 
38 Zurara, por exemplo, ao estabelecer um confronto entre os feitos dos 
Portugueses e as conquistas dos dois generais, Gomes Eanes de Zurara, cap. LXIII; 
Cataldo Sículo, D. Pedro de Meneses e Sá de Miranda seguem o mesmo estilo. 
Citados por Ma. H. Rocha Pereira, «Presenças da Anti guidade Clássica em Os 
Lusíadas» in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, pp. 111-113. 
A autora relembra Plutarco, que juntou os dois generais no mesmo li vro. 
39 Cícero, Catilinárias; Tito Lívio , CI; CIII (sum.); Valério Máximo IX , XI , 3; 
Eutrópio VI , 15. 
40 Valério Máximo IX, XI , 3; Tito Lívio CXX (frag.). 
41 Plutarco, César 16, 3-4; Lucano, Farsália VI, 140-179; Valério Máximo 
III , II, 53; Suetónio, César 68. 
195 
o faz: Sertório e Viriato. A primeira pertence, de todo o direito à 
história de Roma. A segunda, tal como Aníbal, apesar de não romana, 
entra em cena a propósito da história pátria, mas também da de Roma. 
A razão pela qual decidimos isolar estas duas personagens prende-se, 
naturalmente, com a importância que elas têm para a história do 
território português, mas também com o facto de Camões, tal como 
André de Resende,primeiro, e Bernardo de Brito, mais tarde, seguir a 
«visão ... pré-nacionalista da história de Portugal»42. Que o poeta as 
considera duas das grandes figuras nacionais prova-se pelo facto de 
serem as primeiras mencionadas por Paulo da Gama ao Catual. 
Camões refere-se a Quinto Sertório por diversas vezes ao longo dt Os 
Lusíadas, e usa-o de forma ambivalente, quase paradoxal: por um 
lado, Sertório serve para referir casos de traição à pátria, alinhando 
numa apóstrofe ao lado de Catilina e de Coriolano (Lus IV, 33). Uma 
forma de heroísmo desadequada das outras referências camonianas ao 
herói, mas que apesar disso continua propositada no contexto para que 
foi escolhida. Por outro lado, Sertório encarna a rebeldia legitimada, 
uma vez que lutou ao lado dos Lusitanos/Portugueses pela Lusitâ-
nia/PortugaI43. No canto III, a propósito dos feitos de Afonso Henri-
ques e de Geraldo, o Sem Pavor, Sertório suporta a perífrase identifi-
cativa da cidade de Évora, Eis a nobre cidade, certo assentai Do 
rebelde Sertório antigamente (Lus III, 63). A expressão certo assento 
é utilizada com intenção de indiscutível presença44. Isto porque 
Camões segue Resende, que ao serviço de uma tese eborense não 
hesitou em forjar provas que atestassem a presença de Sertório em 
território alentejano (aliás, destaca a figura de Viriato, sob a mesma 
perspectiva45), fazendo dele um herói romano ao serviço da nação 
portuguesa. A utilização do adjectivo rebelde é bastante significativa, 
pois é a tónica que Camões pretende destacar. Rebelde contra a pró-
pria pátria, Roma, mas por uma causa justa, a dos Lusit;:tnos, os ante-
passados dos Portugueses na imagética camoniana, como na resen-
diana. Encontramos outra menção a esta personagem através de uma 
42 R. M. Rosado Fernandes, «Introdução» in André de Resende, As 
Antiguidades da Lusitânia, p. 26. 
43 Plutarco, Sertório; Valério Máximo VII, III, 6; IX, I, 5; Eutrópio VI, I. 
44 Cf. A. J. Costa Pimpão (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 337, 
nota 63. I -8. 
45 O tratamento da figura de Sertório, e suas relações com a cidade de Évora, 
por André de Resende é feito nas Antiguidades Lusitanas III, 124, publicadas depois 
da morte de Camões, mas redigidas antes; e na História da antiguidade da cidade de 
Évora, cap. III, publicada em 1553. 
196 
nova perífrase incluída na écfrase que se ocupa dos estandartes, Outro 
está aqui que, contra a pátria irosa,! Degradado, connosco se ale-
vanta (Lus VIII, 7). Este outro é Sertório, e Camões volta, nesta pas-
sagem, a associá-lo à primeira função a que o associara no canto III: a 
da revolta legítima, pois é pelos futuros Portugueses que o general 
renega as origens. Assim o justifica o final da estância: Escolheu bem 
com quem se alevantasse/ Pera que eternamente se ilustrasse. Na 
verdade, a sua imortalidade, no dizer de Camões, deve-se à aliança 
com os Lusitanos-Portugueses, e não ao facto de ser um romano 
rebelde. Fosse outro o povo a quem se associasse, e jamais seria 
Sertório recordado pela memória dos homens. O orgulho em ter tal 
figura entre as fileiras portuguesas é nítido, Vês, connosco também 
vence as bandeiras/ Dessas aves de Júpiter validas (Lus VIII, 8). A 
alusão termina com um preciosismo que Camões só pode ter lido em 
algum dos autores Clássicos, A fatídica cerva que o avisa.! Ele é 
Sertório, e ela a sua divisa (Lus VIII, 8). A tradição literária associa 
uma corça branca ao general. Este dizia tê-la recebido de Diana e 
afirmava que o animal lhe servia de oráculo, pois revelava-lhe o 
futur046. Camões evoca essa mesma tradição também no canto I, ao 
referir deixo a memória que os obriga! A grande nome, quando ale-
vantaram/ Um por seu capitão, que, peregrino,! Fingiu na cerva espí-
rito divino (Lus I, 26). 
Quanto a Viriato, a sua representação em Camões é talvez das 
mais interessantes e significativas. O final do século XVI português 
traria alterações extremamente importantes para o sentimento nacio-
nal. Como é sabido, durante os anos de governação espanhola, desen-
volveu-se em Portugal uma literatura autonomista que, entre outras 
características, acentuou figuras de heroísmo nacional, algumas 
pátrias, outras universais. Entre elas podemos destacar Ulisses, Sertó-
rio e o próprio Viriat047. Na verdade, já a atitude de André de Resende 
ao salientar Sertório e Viriato denunciava a aproximação desse com-
portamento literário. O espírito com que Camões se refere a Viriato é 
precisamente o mesmo: o herói lusitano é um antepassado dos Portu-
gueses, esquecendo queas tribos que liderava «se estendiam muito 
46 Esta história era céiebre na Antiguidade. Entre outros, mencionam-na 
Piutarco, Sertório 11; 20; Apiano, Ciu I, i 10; Vaiério Máximo i, 2, 4; Plínio, Hist 
Nat 8, 117 e Aul0 Gélio 15,22,3-5. 
47 Cf. R. M. Rosado Fernandes, «Ulisses em Lisboa», Euphrosyne, XIII, 
1985, pp. 139-161 e Hernâni Cidade, «A épica portuguesa sob o domínio filipino », 
Sep. Revista de Guimarães, 1940, pp. i-iS. 
197 
para lá de Mérida e que tanto podem ser consideradas antecessoras 
dos Portugueses como dos Castelhanos.»48 Seguindo a tradição que 
faz de Viriato um pastor49, o poeta cita-o diversas vezes ao longo d' 
Os Lusíadas. A primeira é durante o consílio dos deuses, através da 
boca de Júpiter, Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,! Que co a gente 
de Rómulo alcançaram,! Quando com Viriato, na inimiga! Guerra 
Romana, tanto se afamaram (Lus I, 26). A intenção da fala do deus é 
evocar a antiguidade do heroísmo lusitano, logo português, já desta-
cado nas lutas de resistência durante a ocupação romana da península. 
Convém recordar que a gente de Rómulo fora protegida por algumas 
destas mesmas divindades, nomeadamente Vénus e Júpiter, na epopeia 
de Virgílio, o que só aumenta o carisma dos Portugueses. Viriato 
assume claramente o papel do líder lusitano, desde a primeira referên-
cia. Tónica que predominará ao longo de todo o poema, onde o nome 
do caudilho é evocado. No canto III, é a personagem escolhida para 
inaugurar a galeria de ilustres que desfilam ao serviço da história 
portuguesa, Desta o pastor nasceu que no seu nome/ Se vê que de 
homem forte os feitos teve;! Cuja fama ninguém virá que dome,! Pois 
a grande de Roma não se atreve (Lus III, 22). A tendência sugerida 
é aqui enfatizada pela dedução etimológica que o poeta faz do nome 
do herói. Camões deriva o nome Viriato de uir, substantivo latino 
que, além de homem, significa também guerreiro ou soldado. Como 
parece ser a estrutura pensada pelo poeta, Viriato, como outras 
personagens da história portuguesa introduzidas no canto III, ressurge 
no canto VIII. O ressurgimento assume características ecfrásticas, 
imaginando-se um cenário majestosamente descrito pelo irmão de 
Vasco da Gama: 
- «Quem será estoutro cá, que o campo arrasa 
De mortos, com presençafuribunda? 
Grandes batalhas tem desbaratadas, 
Que as Águias nas bandeiras tem pintadas! ,,50 
48 R. M. Rosado Fernandes, «Introdução» in André de Resende, As 
Antiguidades da Lusitânia, pp. 25-26. 
49 Cf. por exemplo Tito Lívio LU (sum.); Diodoro Sículo 33, 1, 1-4; Díon 
Cássio 22, 73 e Eutrópio IV , 16. 
50 Como já referiu Costa Pimpão, as águias pintadas, como símbolo do 
exército romano, são uma adaptação do poeta, visto que as águias eram de metal, fixas 
em hastes tranportadas pelos legionários. Cf. A. J. Costa Pimpão (ed.), Os Lusíadas de 
Luís de Camões, p. 422, nota 5.1-8. 
198 
Assi o Gentio diz. Responde o Gama: 
-«Este que vês, pastor jáfoi de gado; 
Viriato sabemos que se chama, 
Destro na lança mais que no cajado; 
Injuriada tem de Roma afama, 
Vencedor invencível, afamado. (Lus VIII, 5-6) 
E a descrição continua na estância seguinte, até ser reintrodu-
zido Sertório, como o segundo grande herói nacional. Ainda no 
mesmo canto, a propósito da exiguidade de Portugueses face à quanti-
dade de soldados castelhanos em Aljubarrota, Camões recorda o cau-
dilho, «Sabe-se antigamente que trezentos/ Já contra mil Romanos 
pelejaram,! No tempo que os viris atrevimentos/ De Viriato tanto se 
ilustraram (Lus VIII, 36). A interpretação mantém-se. Mas, nesta 
passagem, o poeta acrescenta o tópos do pequeno que vence o gigante, 
uma retórica frequente também desde a Antiguidade, retomada n' Os 
Lusíadas, por influência, talvez, de Fernão Lopes e suas descrições de 
Aljubarrota51 . Repare-se que com Viriato e Sertório, Roma e os 
Romanos deixam de ser os modelos de ilustração e heroísmo a compa-
rar aos feitos dos valentes portugueses, para passarem a ser, embora 
reconhecidos como bravos e imperiosos, os inimigos contra quem os 
nossos primeiros heróis lutaram e resistiram. Camões sugere-o com 
Aníbal, como se explica de modo natural, mas define-o claramente 
com estas duas figuras, tomando-as indissociáveis da história nacio-
nal. A lírica camoniana cita Viriato apenas uma vez: Alegra-te, ó 
guerreira Lusitânia! por este Viriato que criaste (San 150). Trata-se 
de um soneto dedicado a D. Fernando de Castro, aqui comparado ao 
guerreiro lusitano. 
Figuras de transição entre a república e o império, Marco 
António e Octávio, o futuro imperador César Augusto, são evocados 
logo no canto I: 
Nunca com Marte instructo efurioso 
Se viu ferver Leucate, quando Augusto 
Nas civis Áctias guerras, animoso, 
O Capitão venceu Romano injusto, 
Que dos povos da Aurora e do famoso 
Nilo e do Bactra Cítico e robusto 
A vitória trazia e presa rica, 
Preso da Egípcia linda e não pudica: (Lus II, 53) 
51 A retórica do número é talvez uma referência inspirada em alusões de 
Eutrópio, como em IV, 7; V, 2, 8. Quanto à influência de F. Lopes, vide José Maria 
Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, p. 288. 
199 
É impossível não reconhecermos nestas palavras de Camões os 
versos incluídos na écfrase do canto VIII da Eneida de Virgíli0 52. 
A alusão à batalha de Áccio, em que Octávio e Agripa derrotaram 
definitivamente Marco António, é colocada na boca de Júpiter, em 
tom de profecia-promessa feita a Vénus (tal como na Eneida, em 
relação aos Romanos, é colocada na descrição do escudo de Eneias) a 
propósito dos feitos militares dos Portugueses. Estes superarão no 
Oriente até os momentos bélicos que tornaram famosos os grandes 
homens da Antiguidade. No canto em que desfila o maior número de 
figuras históricas, aparece uma referência ao segundo triunvirato: 
O concerto fizeram, duro e injusto,! Que com Lépido e António 
fez Augusto (Lus III, 136). O contexto camoniano é o reinado de 
D. Pedro I, mais concretamente a perseguição que fez aos carrascos de 
Inês de Castro. Camões cita a extradição dos executores de Castela, 
chamando-lhe um concerto ... duro e injusto. A comparação reside no 
facto de, depois da formação do triunvirato em 43 a. C., os assassinos 
de Júlio César terem sido perseguidos, tendo-se mesmo chegado a 
publicar uma lista dos homens a eliminar53. Marco António e Octávio, 
sempre referidos n' Os Lusíadas em associação com outras figuras, 
aparecem ainda mais duas vezes. Os seus nomes são usados como 
comparação com D. Afonso V e D. João II, Destarte foi vencido 
Octaviano,! E António vencedor, seu companheiro,! Quando daqueles 
que César mataram/ Nos Filípicos campos se vingaram (Lus IV, 59). 
O poeta refere-se à batalha de Filipos, em que Cássio e o seu exército 
foram derrotados por António, que se sagrou vencedor; mas em que 
Bruto conseguiu ainda resistir ao exército de Octávio, derrotando-o. 
Octávio saíu assim vencido de Filipos54. A comparação é feita com a 
batalha de Toro, em 1476, em que o Príncipe Perfeito participou, 
ajudando o pai. As tropas comandadas por si saíram vencedoras do 
combate, como as de Marco António; enquanto as comandadas por 
Afonso V foram derrotadas pelo rei de Aragão, como as de Octávio. 
No canto do Adamastor lemos uma digressão crítica em que o poeta 
julga a cultura dos seus contemporâneos: 
Octávio, entre as maiores opressões, 
Compunha versos doutos e venustos 
(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira, 
Quando a deixava António por Glafira). (Lus V, 95) 
52 Virgílio, Eneida VIII , 675-688; cf. Tito Lívio CXXXIlI (sum.). 
53 Plutarco, César 64-66; António 89; .firuto 14-17; 27; Tito Lívio CXX 
(sum.). 
54 Plutarco, Bruto 38-53; Tito Lívio CXXIII (sum.); Eutrópio VI, 25; VII, 3. 
200 
Como apropriado, não estamos perante a evocação de mais um 
feito bélico, mas sim perante o elogio tipicamente renascentista, em 
que se reconhece o valor da formação cultural de grandes homens de 
armas. Octávio é elogiado pela sua capacidade poética. Os dois 
últimos versos da estância, que têm por referente principala figura de 
Marco António, aqui aparentemente desprovido da sua companhia 
egípcia, têm dado oportunidade às mais variadas interpretações de que 
falaremos adiante. Apesar de ser quase sempre chamado Augusto55, e 
à excepção de duas, as situações históricas referidas que envolvem o 
primeiro imperador de Roma são todas anteriores ao Principado e 
todas contemporâneas e associadas a Marco António. Camões deixa 
também cair a possibilidade de associar o título do primeiro imperador 
romano ao nome do rei de Portugal, 。オァオウエオsO」イeセ。」イGエᅮᅦN@ Esta relação 
associada à concretização de Roma como império poderia perfei-
tamente ter servido como encómio de D. Sebastião. Porém, o poeta 
parece preferir advertir o rei em forma de alegoria56. As duas 
excepções em que Augusto é evocado no seu papel de imperador 
provêm do campo cultural e não do campo político: uma perífrase, na 
epopeia, em que é associado a Virgílio, como o Herói protector de 
poetas (Lus V, 94); e na lírica, na ode dedicada a D. Manuel de 
Portugal. Nesta, o contexto é uma vez mais a exaltação do binómio 
armas/letras. Associado a outros grandes generais, Octaviano é 
chamado coluna da ciência gentil (Ode VII) . Ao filho do conde de 
ViIlÚoso, Camões chama o seu Mecenas, um dos companheiros e 
aIlÚgos de Augusto, conhecido pela protecção que deu às letras do seu 
tempo. 
O recurso a exemplos datados do período imperial é muito 
menor. Na verdade, é César quem assume a simbólica político-
-imperial em Camões, enquanto Augusto jamais desempenha esse 
papel. Dos Júlio-Cláudios, apenas o último imperador é mencionado. 
A evocação de Nero é fundamentalmente negativa, e é introduzida no 
texto poético com a função de comparar as suas acções com as do 
55 Camões chama-lhe Octávio apenas uma vez, Lus V, 95; e uma outra 
Octaviano, Lus IV, 59. Até na referência mais próxima da Eneida (II, 53), Camões 
segue Virgílio, pois chama a Octávio Augusto, o que é um anacronismo, visto que este 
só assumiu esse título em 27 a.c., e Áccio aconteceu em 31 a.c. 
56 Cf. Américo da Costa Ramalho, «O mito de Actéon em Camões» in 
Estudos Camonianas, pp. 55-82 e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «O mito de Actéon 
como alegoria e como símbolo na poesia de Camões» in Camões: Labirintos e 
Fascínios, pp. 155-162. 
201 
sucessor de D. Afonso II; precisamente um dos reis menos heróicos na 
história e historiografia portuguesas: Não era Sancho, não, tão deso-
nesto/ Como Nero, que um moço recebia! Por mulher e, despois, hor-
rendo incesto/ Com a mãe Agripina cometia (Lus III, 92). O conflito 
entre o monarca português e a nobreza e o clero do seu tempo origi-
nou o caos na ordem interna do país e criou uma imagem negra do seu 
reinado. Camões segue essa visão negativa do quarto rei português, 
como se infere de Sancho segundo, manso e descuidado; mas apesar 
da negatividade do monarca, a retórica camoniana não hesita em des-
valorizá-la perante a perfídia de outros monarcas da história universal. 
A alusão ao comportamento homossexual e incestuoso de Nero poderá 
ter sido inspirada nos textos de Suetónio ou de Plutarco, historiadores 
que referem as relações do imperador com o liberto Esporo e com 
Agripina, a própria mãe5? Nem tão cruel às gentes molesto,! Que a 
cidade queimasse onde vivia (Lus III, 92) é evidentemente uma refe-
rência de Camões ao incêndio de Roma de 64, que levou à condena-
ção dos cristãos, e que alguns historiadores sugerem ter sido causado 
pelo próprio imperador58. A escolha cai sobre comportamentos consi-
derados eticamente piores que a má administração ou as fraquezas 
políticas do monarca português. Acusações que no contexto ético 
cristão reduzem ao mais baixo nível a personalidade do imperador, 
conseguindo-se assim um efeito que de algum modo valoriza 
Sancho II. É também a negatividade que traz Heliogábalo à memória. 
Os seus excessos e obscenidades tomaram-se tão famosos que a 
guarda pretoriana acabou por assassiná-lo, lançando o seu cadáver ao 
Tibre. A referência ao comportamento do imperador sírio segue a 
mesma linha da alusão a Nero, estando a ela associada: Nem tão mau 
como foi Heliogabalo,! Nem como o mole Rei Sardanapalo59. Quando 
57 Suetónio, Nero XXVIII e Plutarco, Galba 19; Díon Cássio LXII , 13,28; 
LXIV, 8. E. Paulo Ramos identifica o Moço com quem Nero se envolveu sexualmente 
com um Pitágoras. Díon Cássio menciona esse Pitágoras, um liberto do imperador, 
LXII , 28; todavia refere um Esporo como o rapaz que servia de mulher ao imperador. 
Suetónio fala também de Esporo e Dorítoro, o liberto com quem o imperador se 
prostituía. Cf. E. Paulo Ramos (ed.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 425. 
58 Tradição sugerida por Tácito, Anais XV, 38-44; Suetónio, Nero XXXI; 
XXXVIII; e sustentada por Díon Cássio LXII, 16; Eutrópio VII, 14 e Paulo Orósio, 
VII, 7. 
59 Eutrópio VIII, 22; Díon Cássio LXXIX . É também em Eutrópio que 
encontramos a expressão ln priuata uita mollis (VII, 11), semelhante a mole 
Sardanapalo (Lus III, 92). Talvez Eutrópio e Díon Cássio tenham sido a inspiração 
desta passagem, pois Díon Cássio chama Sardanapalo a Heliogábalo em LXXIX, 22; 
LXXX , 1. 
202 
a comparação é positiva, os Portugueses excedem; quando é negativa, 
ficam aquém. Não sendo dos mais historiografados das Antiguidade, 
é curioso que este imperador seja referido na epopeia, como na 
lírica: Heliogábalo zombava! das pessoas convidadas,! e de sorte 
as enganava! que as iguarias que dava! vinham nos pratos pintadas 
(Red 112). 
As outras alusões imperiais são referências positivas. Tito é 
menCionado como um cruzado de Deus contra uma Jerusalém judia 
(apesar de em 70 d. c., quando a cidade foi tomada, este não ser ainda 
imperador). Depois da comparação dos massacres ocorridos durante 
as guerras civis de Roma com a mortandade causada por Afonso IV 
entre os Mouros, Camões introduz uma· estância em que faz o 
paralelismo da situação com a tomada de Jerusalém por Tito e 
Vespasian060. O massacre evocado é o dos Judeus, o povo pertinaz no 
antigo rito; os outros, que com o Islão se opõem à cristandade. 
Considera-se a atitude do futuro imperador como uma Permissão e 
vingança ... celeste (Lus III, 117). Na verdade, reside neste verso a 
essência da comparação: tal como a de Tito, também a investida do rei 
português é considerada como uma missão divina. A interpretação 
camoniana da passagem segue o espírito judeo-bíblico ao aceitar Ciro 
e Alexandre como braços armados de Deus61 . Outro imperador 
romano mencionado por Camões é Trajano. Além de Augusto, é a 
figura imperial mais vezes referida em todo Os Lusíadas. Logo 
na proposição lemos os versos Cale-se de Alexandro e de Trajano 
(Lus I, 3). Nestas palavras adivinha-se a intenção do poeta: interessa 
relevar os feitos dos Portugueses, superadores até dos Antigos mais 
conceituados. Importa referir que com Trajano, durante muito tempo 
considerado o modelo do imperador perfeito, o império alcançou o seu 
apogeu territorial e polític062. Daí, o sentido das palavras do poeta; de 
onde se infere que Camões tinha consciência do significado do 
período antonino na história de Roma. O discurso de Baco no mesmo 
canto カッャセ。@ a acentuar essa ideia, Qu'eu, co grão Macedónio e 
Romano,! Dêmos lugar ao nome Lusitano? (Lus I, 75). O Romano a 
60 Suetónio, Tito V; Díon Cássio LXV, 4-5; Eutrópio VII, 20; VII, 21. 
61 2 Cr 36,22-23; Esd 1,1-4; Dn 8, 5-7, 20-21; F. Josefo, Ant. Judaicas XI, 
337. Particular e significativa é a referência a Jesus Cristo, que profetizara a queda da 
cidade, logo dois versos abaixo; uma das poucas menções explícitas ao seu nome 
n' Os Lusíadas. 
62 Díon Cássio LXVIII 15-16; 30-32; Eutrópio VIII , 2-5. 
203 
que o poeta alude tem sido identificado com Trajan063. O deus do 
vinho refere-se à chegada à Índia pelos Portugueses, feito já antes 
alcançado por Alexandre e por esse imperador64, que é mais uma vez 
referido com a mesma intenção: Dali vão em demanda da água pura! 
(Que causa inda será de larga história)! Do Indo, pelas ondas 
do Oceano,! Ondenão se atreveu passar Trajano (Lus IV, 64). 
O contexto é o reinado de D. João II e a expedição em busca do 
Preste João, em 1487. Camões alude à ida à Índia, pelo golfo pérsico, 
através do Índico, por onde nem o prestigiado imperador ousou 
passar. A referência continua, desenvolve e aplica a intenção deli-
neada logo em I, 3. O filho adoptivo e sucessor de Trajano, Adriano, 
é mencionado apenas na lírica. A referência verifica-se no soneto 
dialogado, já mencionado a propósito de Numa Pompílio, onde o 
imperador é chamado grão senhor do mundo (Son 160). Uma 
afirmação que confirma o conhecimento que Camões tinha dos 
Antoninos65. 
Finalmente, as mulheres de Roma. Decidimos isolar estas per-
sonagens pela autonomia com que os seus nomes surgem em Camões. 
As referências espalham-se pela lírica e pela epopeia. Do período das 
origens, encontramos Tarpeia e Lucrécia. A versão que Camões evoca 
para referir Tarpeia é a que narra a traição e cupidez que acabaram por 
levar a jovem à morte66. Isto porque o poeta evoca a figura numa 
digressão em que reflecte sobre o valor e a vilania do ouro, conside-
rando-o como uma das principais razões que levam os homens à cor-
rupção e ao desvio moral: Pode tanto em Tarpeia avaro vício/ Que, a 
troco do metal luzente e louro,! Entrega aos inimigos a alta torre,! Do 
qual quási afogada em pago morre (Lus VllI, 97). Heroína também 
histórico-lendária, Lucrécia surge n' Os Lusíadas, desfilando inomi-
nada, paralela e perifrasticamente com Tarquínio (Lus I, 140); na 
lírica, é uma das ilustres referidas na oitava em que se defende 
D. Catarina, presa por adultério (Oit IV) ; e é uma das duas perso-
nagens mencionadas nas cartas (Car III). Exalta-se sempre a virtude 
da matrona, que abdicou da vida pela honra. Na mesma oitava, fala-se 
de Valéria, também um modelo virtuoso. A identificação desta per-
63 Cf. A. 1. Costa Pimpão Ced.), Os Lusíadas de Luís de Camões, p. 305, 
nota 75. 
64 Díon Cássio LXVIII, 29; Eutrópio VIII , 3; cf. Paulys Realencyclopadie der 
classischen Altertumswissenschaft IXa, cols. 1290-1301. 
65 Cf. Díon Cássio LXIX, 9; Eutrópio VIII, 6-7. 
66 Tito Lívio I, 11; Plutarco Rómulo 17-18; Valério Máximo IX, VI , 1; 
Eutrópio I, 8. 
204 
sonagem é menos pacífica, pois conhecem-se vanas Valérias na 
história de Roma que se coadunam com o contexto do poema. Poderá 
tratar-se de Valéria Luperca, heroína lendária, escolhida para sacrifí-
cio a Juno, aquando da epidemia que assolou a cidade de Falérios; 
como da irmã de Publícola, que intercedeu junto da mãe de Coriolano 
em favor de Roma; como da filha do mesmo herói, refém de Porsena, 
por vezes confundida com Clélia; como poderá tratar-se da republi-
cana Valéria, esposa de Sérvio e irmã dos Messalas, conhecida pela 
sua fidelidade conjugal, por se considerar eternamente casada, apesar 
de viúva; ou da imperatriz, filha de Diocleciano, e esposa de Galério, 
que repeliu as propostas de matrimónio de Maximiano II, o que a 
levou ao exílio e à execução por ordem de Licínio67. Todas são perso-
nalidades que se coadunam com o grupo de mulheres mencionado no 
poema, logo, potenciais candidatas a uma identificação lógica. Con-
tudo, talvez o poeta se refira à Valéria da família Messala, pela virtude 
e castidade denunciadas, mais próximas do tema do texto camo-
niano68, e dado que é colocada junto a Semprónia, uma figura coeva. 
Esta é provavelmente a esposa de Cipião Emiliano e irmã dos Gracos, 
mulher determinada no seu combate político, que lutou contra o 
marido ao lado dos irmãos69. 
A Fúlvia referida por Camões é indiscutivelmente a primeira 
mulher de Marco António, que desempenhou um papel político bas-
tante importante durante os conflitos que se seguiram à morte de 
César. Terá suscitado a discórdia entre Octávio e António e mesmo 
67 Os exemplos citados podem ser vistos em Plutarco, Paralelos menores 35; 
Coriolano 33; Publícola 18-19. O florilégio de Rodigino cita o primeiro e o último 
exemplos, t1. 890f e l003e. 
68 Não estamos de forma alguma de acordo com Manuel dos Santos Alves, 
que identifica esta figura com uma «mulher, que em Roma ticou célebre pela sua 
luxúria», pois é uma posição totalmente antagónica à intenção dos versos. Este autor, 
decerto, pensa em Valéria Messalina, esposa de Cláudio. Cf. M. Santos Alves, 
Dicionário de Camões, p. 304. 
69 A leitura de Semprónia é proposta por Costa Pimpão em detrimento de 
Sofrónia, como se lê na edição de 1616 das rimas. O comentador seiscentista 
J. Franco Barreto lia ainda Sofrónia, e o contexto histórico confere lógica a essa 
interpretação paleogrática, dado que o poeta poderia estar a referir-se à matrona 
romana cristã, que, qual Lucrécia, preferiu o suicídio a um adultério forçado com 
Maxêncio. O exemplo é, de algum modo, ainda mais adequado que o de Semprónia; 
mas não tão convincente pelo contexto histórico e pela fonte provavelmente 
consultada, cf. Plutarco, Tibério Graco 1; 4; Tito Lívio LlX (sum.). Outra Semprónia 
conhecida é a que esteve envolvida no processo de Catilina, referida por Cícero. 
Porém, esta mulher, perseguida por traição, não parece também adequar-se ao 
contexto camoniano. 
205 
assumido os interesses do marido, desafiando o irmão deste a apoiar 
a sua causa70. Surge n' Os Lusíadas associada a uma Clafira 
(Lus V, 95). Quanto à identificação de Gláfira, o caso já não é tão 
pacífico. José Ma Rodrigues interpreta a passagem, referindo que os 
últimos dois versos da estância são uma prova complementar dos 
versos anteriores7l . W. Storck propõe, para a identificação desta 
personagem, uma confusão onomástica, entre Gláfira e a actriz Citéris, 
mencionada por Plutarco, por quem António se apaixonou 72. Costa 
Pimpão coloca a hipótese de a Gláfira do epigrama de Marcial, 
aproveitado por Camões, se tratar de um pseudónimo, tão ao gosto da 
poesia romana, que ocultasse alguma outra mulher mais conhecida, 
como a própria Cleópatra. Essa hipótese fora já sugerida por Faria e 
Sousa, ao jogar com o significado do adjectivo grego yÀdiz Díon Cássio que foi Marco António quem fez seu pai rei (XLIX, 32), logo, o 
triúnviro, necessariamente, não só a conheceu, como terá'convivido com ela. Todavia, 
a fragilidade da hipótese de Augusto se referir àquela princesa no epigrama assenta no 
facto de tanto Josefo, como Díon Cássio e Plutarco, o principal biógrafo de António, 
serem omissos em relação a qualquer ligação sentimental entre ambos. De qualquer 
modo, a identiticação pode ser irrelevante, se se tiver em conta que a passagem pode 
ter sido obtida através de um processo de contamillatio, em que o poeta estivesse mais 
206 
Todavia, Apiano e Díon Cássio referem esta amante de Marco 
António, provando a sua existência real, tratando-se de um caso 
ocorrido na Primavera de 41 a.C., antes do encontro com Cleópatra 
em Tars074. 
A romana Pórcia, filha de Catão e esposa de Bruto, republicana 
fervorosa que acabou por se suicidar devido à acusação de 
envolvimento na conspiração que levou ao assassinato de César, é a 
base de todo um soneto dedicado ao amor e à morte (Son 71): - Como 
fi zeste Pórcia, tal ferida? é o verso que dá início à interrogação do 
poeta pelas causas de tal acto. Ao escrever - Pois porque comes, logo, 
fogo ardente,! se a ferro te costumas?, Camões demonstra conhecer 
o episódio histórico, que conta como a matrona engoliu brasas por 
lhe ter sido proibido tocar em qualquer espécie de arma de ferr075 . 
A única figura imperial feminina evocada é Agripina Menor 
(Lus III, 92). A passagem foi já referida a propósito da alusão a Nero, 
sendo o tema de Agripina a célebre acusação de adultério incestuoso 
entre mãe e filho, feita por alguns historiadores latinos76. 
Por fim Cleópatra, a estrangeira celebrizada, tal como Aníbal e 
Viriato, pela sua relação com a história de Roma. Já a assinalámos 
ao longo das passagens referentes a Marco António. A Egípcia de 
Lus II , 53 é evidentemente Cleópatra VII, a última rainha do Egipto 
lágida, esposa de César, primeiro, e de Marco António, depois. Em 
Camões, as referências à ultima dos Lágidas vêm constantemente 
associadas a este. A relação, odiada pelos Romanos, denuncia-se nos 
textos de Virgílio e dos diversos autores antigos que dela deixaram 
testemunho, e emerge nos textos camonianos. O casal é evocado a 
propósito da relação amorosa, similarmente odiada por alguns Portu-
gueses, que marcou o final da dinastia afonsina. O exemplo surge 
assim aos olhos do poeta como bastante apropriado, confirmando a 
tradicional imagem negativa, da mulher que se evidencia em termos 
políticos. Inserido numa listagem de casais histórico-míticos, como 
Siquém e Dina, Hércules e Ônfale, David e Betsabé, Páris e Helena, 
que têm como denominador comum a preponderância de um elemento 
preocupado com a lógica da comparação do que com a identificação desta 
personagem, secundária no contexto. 
74 Apiano, Guerra Civil 5.7; Díon Cássio 49. 32. 3-4; d . Diana Delia, «Fulvia 
reconsidered» in Sarah B. Pomeroy (ed.), Women's History & Ancient History, 1991, 
Chapei Hill and London, Univ. North Carolina Press, pp. 197-217. 
75 Plutarco, Bruto 53; Valério Máximo V, I, 11; Díon Cássio XLVII , 2. 
76 Suetónio, Nero XXVIII-XXIX . 
207 
feminino enfeitiçador sobre um elemento masculino enfeitiçado e por 
isso derrotado, lá vem o exemplo de António e Cleópatra: De Marco 
António a fama se escurecei Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado 
(Lus III, 141). As festas de Melinde, promovidas para alcançar suces-
sos diplomáticos com os Portugueses, são a oportunidade criada para 
nova referência: Com usadas e ledas pescarias,! Com que a Lageia 
António alegra e engana (Lus VI, 2). Camões alude a uma anedota 
que se encontra em Plutarco. Durante uma pescaria assistida pela rai-
nha, António, envergonhado por nada pescar, ordenou que alguns 
pescadores mergulhassem e prendessem ao seu anzol peixes recente-
mente pescados, de modo a fazer uma boa figura perante a mulher 
amada. Tendo percebido a artimanha, no dia seguinte, Cleópatra orde-
nou que um dos seus servos prendesse ao anzol de António um peixe 
já salgado, o que provocou o riso geral entre os assistentes77. Assim 
enganou Cleópatra a António, ao mesmo tempo que provocava a ale-
gria; itens referidos pelo poeta português. É ainda a recriação de uma 
festa na ilha dos amores, provavelmente influenciada por Ovídio, que 
relembra a rainha, confirmando-se a imagética da sedução e da luxúria 
oriental que Cleópatra parece sempre ter inspirado a historiadores, 
pintores e poetas: De iguarias suaves e divinas,! A quem não chega a 
Egípcia antiga fama (Lus X, 3). A lírica também a menciona ao lado 
de uma série de figuras da mitologia clássica e bíblica. A redondilha 
«ABC em motos» usa a rainha para exemplificar a letra «C», evo-
cando o mítico suicídio, questionado por Plutarco78 e imortalizado 
por Shakespeare: Cleópatra se matou/ vendo morto a seu amante 
(Red 33). 
Depois da análise, a síntese. Que conclusões tirar desta siste-
matização? Em primeiro lugar, há que abordar o problema das fontes. 
Apesar da problemática da Quellenforschung ser bastante debatida, e 
polémica, entre os camonistas, volta a ser pertinente no âmbito deste 
trabalho. Que textos consultou Camões para obter as informações que 
mostra conhecer? José Ma Rodrigues, na sua obra clássica, fez um 
estudo quase exaustivo das fontes que Camões usou para escrever Os 
Lusíadas79 . Entre elas, há autores que poderão ter fornecido, em 
77 Plutarco, António 29. 
78 Plutarco, António 86, 1-3. Será a omissão da áspide uma prova de que 
Camões leu Plutarco e aceitou as reservas do historiador quanto à veracidade do 
episódio? 
79 Obviamente que as leituras que lhe permitiram escrever a epopeia serviram 
também para a lírica, e vi ce-versa, pois fazem parte da formação cultural do poeta. 
208 
segunda mão, elementos para algumas das citações anteriores. Parale-
lamente às fontes da história de Portugal, como as crónicas, Camões 
recorreu a outras para formular as comparações. Petrarca, por exem-
plo, como se verifica pela passagem referente a Aníbal, desconhecida 
tal como está formulada em qualquer dos autores antigos, porém men-
cionada pelo poeta italiano; ou pela passagem referente ao epigrama 
de Octávio dedicado a Fúlvia80. Sabélico é outro exemplo, comprová-
vel a partir de citações como as referentes a Numa Pompílio, à batalha 
de Aix ou às pescarias de António e Cleópatra81. Apesar de este 
último exemplo se encontrar em Plutarco82, como em outros autores 
que escreveram sobre a rainha, ele é também citado nas Enneades de 
Sabélico, o que para J. Ma Rodrigues é prova irrefutável de que 
Camões retirou a passagem do historiador italiano. 
Porém, a questão não nos parece ser assim tão linear. Entre 
outros autores, Lourenço de Carvalho provou que o leitor d' Os 
Lusíadas esbarra constantemente com passagens reminiscentes da 
Eneida, já para não falar dos latinismos frequentemente usados pelo 
poeta83. Os cantos VI e VIII do poema latino são os que podem ter 
fornecido o maior número de sugestões históricas ao poeta português. 
Entre os heróis que desfilam no inferno virgiliano, encontramos 
Rómulo, os Décios, os Cipiões, Fabrício, Fábio Máximo, César, 
Augusto, um «sogro» e um «genro» e até um «púnico»84. No escudo 
de Eneias, Vulcano representa Coc1es, Catilina, a batalha de Áccio e 
alude a Tarpeiae arcis85. Temas indiscutivelmente presentes em 
Camões. Na verdade, estes dois cantos de Virgílio são também uma 
teoria da história de Roma e, de algum modo, Camões segue a pers-
pectiva virgiliana. 
Mas além de Virgílio, há que considerar outros autores antigos. 
Das 43 figuras da história romana mencionadas, 34 foram ou biogra-
fadlls ou simplesmente referidas por Plutarco nas Vidas Paralelas, o 
que corresponde a c. 79% do total. O próprio contexto de algumas 
referências aponta para Plutarco como uma das mais prováveis fontes 
80 José M' Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, pp. 441, 445. 
81 Idem, ibidem, pp. 267, 274, 355. 
82 Plutarco,António 29, 5-7. 
83 Joaquim Lourenço16%. Estes correspondem precisamente 
aos da narração da história de Portugal por Vasco da Gama, e à 
descrição dos estandartes, em que se repete a lição, renovada em 
forma de síntese, por Paulo da Gama. Aliás, os exempla surgem 
sempre nas narrativas históricas, nunca nas イョ■エゥ」。ウ セ@ pois são aquelas 
que permitem a utilização de matéria histórica para compreender a 
própria matéria histórica. Entre eles, há que destacar a utilização de 
algumas figuras. D. Afonso Henriques é diversas vezes comparado a 
Júlio César, interpretado como figura de fundação, como guerreiro 
conquistador, e de longe a figura da história de Roma mais citada. Em 
Camões, este assume o protótipo do rei fundador, também ele um 
guerreiro conquistador. Os momentos críticos de 1383-1385 são 
comparados à guerras civis, pois em ambas as situações se verificaram 
famílias politicamente divididas. Cipião, um dos mais bravos militares 
da história romana, é a prefiguração de D. Nuno Álvares Pereira, 
por mais que uma vez. Exemplos da república que Camões associa 
aos que considera ser os principais momentos da medieval idade 
portuguesa. Aliás, essa associação, república romana/medieval idade 
portuguesa, parece estar subjacente à consciência do poeta. 
96 Jorge de Sena, A Estrutura de «Os Lusíadas», 2' ed., p. 71. 
215 
Em termos de quantidade, a república romana contribui com um 
maior número de exemplos que o império ou até a monarquia. Talvez 
porque evoca os tempos clássicos de Roma, as figuras de maior vir-
tuosidade e também, seguindo a linha do que verificámos atrás, devido 
ao carácter histórico da epopeia. Trajano, o imperador do auge, é a 
figura mais vezes evocada como argumento exemplar para os tempos 
modernos (tendo em conta que Camões considerava a viagem do 
Gama, a descoberta do caminho para a Índia e consequentes aconte-
cimentos políticos como momentos da sua contemporaneidade, tem-
pos modernos). Assim acontece, por exemplo, na proposição, onde o 
poeta diz cantar o peito ilustre Lusitano (Lus I, 3), e para que isso 
aconteça devem esquecer-se até as navegações de Trajano, com quem 
Roma chegou ao seu apogeu político. Aqui é o povo português, 
enquanto entidade colectiva, que supera a grande figura da Antigui-
dade romana. A escolha de exemplos do período imperial como argu-
mento de momentos coevos de Camões é por isso bastante significa-
tiva: como se o poeta tivesse noção da diferença que o separava dos 
primeiros tempos da nação. Essa consciência demonstra-a' no soneto 
Ao nosso Portugal (que agora vemos/ tão diferente de seu ser pri-
meiro) (Son 161). Não significa que, pontua.Jmente, não seja usado um 
exemplo imperial para caracterizar um episódio medieval (como 
Sancho II e os imperadores Nero e Heliogábalo, por exemplo), ou 
vice-versa; mas há uma constante na identificação de algumas perso-
nagens, como Afonso Henriques/Júlio César, Nuno A. Pereira/Cipião, 
império de Trajano/império de D. Manuel. A consciência da dimensão 
imperial dos novos tempos, da nova ordem económica e social, 
patente em teorizadores políticos seus contemporâneos97, é uma evi-
dência em Camões, e nenhum verso o explicita melhor como aquele 
em que Camões não hesita em chamar à capital portuguesa a <<Dova 
Roma» (Lus VI, 7). Na verdade, expressa-se uma teoria da história, 
que nos permite distinguir uma estrutura interpretativa global do 
poema. Uma atitude que corresponde à prática dos historiadores do 
tempo de Camões. Mas a lírica assume também a função político-
didáctica dos exempla. Os guerreiros da Antiguidade são também 
frequentemente evocados como modelos de homens de poder, uma 
projecção ética, para o tempo de Camões. Falta-lhes, porém, a dimen-
97 Cf. Frédéric Mauro, «L'expansion portugaise à l'époque de Camões», 
Visages de Luís de Camões, pp. 95-107 e Luís Filipe Thomaz, «O projecto imperial 
joanino», Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, I, 
pp. 81-98. 
216 
são diacrónica, como é evidente, pela natureza imediata desse tipo de 
textos. 
Viriato e Sertório são dois exemplos particulares. Um, porque 
Camões, seguindo a linha interpretativa de André de Resende, o asso-
cia à história pátria, fazendo dele o primeiro herói português. Uma 
filosofia que, como vimos, evoca a aproximação dos textos autono-
mistas do século seguinte. O outro, porque Camões, seguindo a 
mesma filosofia, o subtrai à história de Roma para o ligar definitiva-
mente à de Portugal. Com estas duas personagens, como com Aníbal, 
desvia-se a tendência interpretativa geral do poeta em relação à histó-
ria da Roma antiga. Como aliás tinha de ser. Com estas duas per-
sonagens, Roma deixa de ser um modelo a seguir, para ser o modelo 
do inimigo a combater. Apesar disso, mantém-se como imagem de 
valor e valentia, o que só valoriza quem o combate. E neste caso, 
os combatentes eram os Lusitanos, antepassados indiscutíveis dos 
Portugueses. 
O comportamento de Camões para com a história de Roma 
não é um facto isolado. Na verdade, insere-se numa filosofia contex-
tuaI mais abrangente, particularmente quinhentista, e que se verifica 
em diversos autores seus próximos ou contemporâneos: como Ariosto, 
Erasmo ou Montaigne, entre os estrangeiros; ou Zurara, João de 
Barros, António Ferreira, Diogo do Couto, Heitor Pinto e Castanheda, 
apenas para citar alguns entre os portugueses98. Neles, como em 
Camões, Roma é uma imagem de poder, de valor bélico, de modelo a 
seguir pelos seus feitos. Porém, em Camões ganha particular impor-
tância, tanto pela natureza dos seus escritos em geral, como pela mis-
são didáctica d' Os Lusíadas, em particular. No tempo do poeta, as 
intenções da historiografia latina, o testemunho de exemplos morais e 
cívicos, de paradigmas e modelos, foram bem sucedidas, em grande 
parte devido aos trabalhos do autor d' Os Lusíadas. É assim um teste-
munho evidente da relação da cultura portuguesa de quinhentos, que 
então se criava, com a história clássica, com a história de Roma em 
particular. A riqueza dos exemplos, a quantidade de referências, o 
rigor com que são feitas só abonam em favor do poeta, testemunhando 
da sua vasta cultura e erudição, confirmando o tão citado «honesto 
98 Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Guiné I; VI; XVlII (onde o cronista 
demonstra ter consultado Tito Lívio); XXVIII; XLVlII; João de Barros, Década I 
Prólogo; I, IV; Década IV VI, I; António Ferreira, Carta 1.1.102-103; Diogo do 
Couto, O Soldado Prático Cena V, 10-24; Cena VII; Frei Heitor Pinto, Imagem da 
vida cristã, pp. 42-29, por exemplo. 
217 
estudo» camoniano, evidenciando ao mesmo tempo o valor que no 
tempo de Camões se dava à cultura clássica. A recuperação de temas 
da história da Antiguidade como forma de mensagem ético-política é 
um artifício artístico-literário que voltará a ser usado por autores euro-
peus como Shakespeare, David, Ingres, Verdi ou Bellini. E através de 
Luís de Camões, também a história de Roma passou a fazer parte das 
raízes greco-Iatinas da cultura e pensamento portugueses. Cultura essa 
que no século XVI, ao pedir que ressurjam todos os Antigos,! A ver o 
nobre ardor que aqui se aprende (Lus X, 30), pretendeu fazer de 
Lisboa nova Roma (Lus VI, 7). 
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