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APOSTILA DE SOCIOLOGIA Escola Municipal – Antonio Sampaio Prof. Kennedy 1. semestre/2007 GILBERTO Guga poderia virar um assassino? DOIS JOVENS, quase a mesma idade, poucos meses de diferença, comoveram, na semana passada, o Brasil. Um deles é branco, 23 anos, ganhou fama com uma raquete na mão. Outro, negro, 22 anos, ganhou fama com um revólver na mão. Na segunda-feira, Gustavo Kuerten, o Guga, cercado de fãs, deixava-se fotografar em frente à Torre Eiffel com o troféu que levou no torneio de Roland Garros, que o projetou para o primeiro lugar do ranking mundial _ e o deixou US$ 600 mil mais rico. Naquele mesmo dia, Sandro do Nascimento, cercado de policiais, depois de um atabalhoado seqüestro, era jogado num camburão, onde morreu sufocado _ ele queria R$ 1 mil. Ambos foram acompanhados, minuto a minuto, em tempo real, seja na quadra de tênis ou no ônibus. Cada qual ficou, em seu palco, quase quatro horas, conectados pela TV. Mas o suspense provocado pela raquete de Guga, nas quase quatro horas que precisou para derrotar o adversário, nos ensina sobre o que melhor podemos ser, graças à união da técnica, talento e perseverança. O suspense de Sandro, também quatro horas no ônibus em que tinha o mundo como adversário e uma refém nos braços, nos ensina sobre o que de pior podemos ser, graças à união da falta de técnica, despreparo e omissão. Pelo seu jeito desengonçado, Guga não inspirava confiança quando ganhou pela primeira vez Roland Garros e rompeu a barreira do anonimato. Sandro nunca inspirou confiança e só rompeu a barreira do anonimato quando seqüestrou, matou e foi assassinado _ seu único dia de notoriedade foi também seu último dia de vida, ele que escapara da notória chacina da Candelária. Se, numa hipótese absurda, jogássemos Guga, no mesmo ano em que nasceu, no ambiente que levou Sandro para a rua, provavelmente estaria preso ou morto. Guga chegou onde chegou porque recebeu apoio, estímulo e orientação. Vimos pela TV que, encerrado o jogo, domingo passado, ele quis saber onde estava seu técnico e, estilo menino travesso, subiu as cadeiras para abraçá-lo. Nas saudações, falou de seus familiares e, num simpático gesto provinciano, mandou pelas câmeras beijos para os parentes. Sabia que, por trás do troféu, estavam os familiares e o técnico. Todo grande vencedor tem uma grande dívida com alguém que o ajudou a prosperar. Sandro chegou onde chegou porque, ao contrário, lhe faltou apoio, estímulo e orientação. Não teve ajuda da família, da escola ou de instituições públicas. Pior, apenas serviram para marginalizá-lo, mantendo-o deseducado e, por conseqüência, desempregado. Por trás do corpo asfixiado estava a família desestruturada, devastada pela violência e pelas drogas. Todo grande derrotado também tem um grande crédito com alguém ou algo que o ajudou a afundar. Nessa quadra chamada Brasil, Guga e Sandro estavam divididos exatamente pelas linhas que incluem e excluem, que dão ou tiram chances, que fazem prosperar ou regredir. A quadra que faz derrotados e perdedores. Se temos mais medo e vergonha do Brasil do que orgulho e confiança é porque nossas linhas divisórias criam mais espaço para gerar Sandros do que Gugas. Desemprego, subemprego, baixos salários, educação pública ruim, políticas públicas indigentes para recuperar jovens, tratar drogados, assessorar famílias desestruturadas são os fatores que empurraram o transtornado Sandro para dentro daquele ônibus, no Jardim Botânico. Os números mostram, com clareza, como o desemprego atinge mais pesadamente aqueles com baixa escolaridade. E também mostram como a renda está caindo, especialmente nas regiões metropolitanas. Deterioração das regiões metropolitanas, baixa escolaridade, desemprego acentuado entre os jovens são as linhas dessa quadra de exclusão. Nesse jogo da morte, não há polícia que, de fato, funcione. Nem prisão que abrigue tantos delinqüentes. Vamos seguir tendo chances de produzir mais Sandros do que Gugas. Somos, enfim, uma nação de perdedores. TEXTO 2 Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. Jaime Pinsky. História da cidadania. (Org. Contexto 2003). ----------------------------------------------xxxxxxxxxxx---------------------------------------------------- Texto 3 - MODERNIDADE É HUMANIDADE Pensar qual o processo de desenvolvimento que queremos é um dos pontos fundamentais da Ação pelo Emprego e o Desenvolvimento. Temos uma massa de desempregados de “quarto mundo” enquanto a classe empresarial, ao pensar em emprego, pensa em um mercado para país de “primeiro mundo”. Quando pensamos em emprego pensamos em cres-cimento, em integração no processo produtivo? O que passa exatamente pela cabeça da sociedade e dos empresários que convivem com a fantástica situação dos países do primeiro mundo que têm um PIB sensacional... e o desemprego igual? (...) O grande desafio colocado hoje, principalmente para a ciência e a tecnologia é: como podemos pensar uma sociedade onde haja lugar, espaço e ocupação para todos os seus membros? Um processo capaz de incorporar e não de excluir e marginalizar, até porque não inventamos ainda uma sociedade onde 5% trabalham e 95% vivem de bolsa de estudo, ou de bolsa de consumo. Seria uma forma de distribuir a riqueza, dar “vale cidadania” pra todo mundo. O sujeito iria com o seu vale e teria saúde, educação, bolsa de alimenta-ção. Sem dúvida, um quadro formidável, mas totalmente irreal. O problema imediato é pensar primeiro o desenvolvimento humano. É essa a grande questão que desafia a ciência e, portanto, as pesquisas e a tecnologia a terem como principal parâmetro a sociedade. Na verdade, estamos diante de uma questão ética. A quem serve nosso conhecimento? A quem serve a economia? Para quem exatamente pensamos o desenvolvimento? Para darmos respostas a estes problemas, fica impossível olhar pelo retrovisor. É preciso pensar o futuro, em, como reinventar a sociedade, isto é, as relações culturais e econômicas e as relações de poder. Com essa visão, a ciência e a tecnologia podem perfeitamente questionar o mundo atual e contribuir para criar um novo, porque este, definitivamente, não está dando certo. O que é importante perceber é que estamos hoje diante da consciência de que o desenvolvimento humano se constitui no grande desafio moderno. Modernidade é humanidade. E essa visão só é possível para quem pensa a sociedade do ponto de vista ético. (...) Ironias à parte, entendo que deste ponto de vista, a contribuição das universidades e também do mundo empresarial, apesar de sua visão imediatista e muito ligada ao primeiro mundo, é da maior importância, porque quando qualquer setor coloca como questão central a estabilização da economia, faz aterrissar no centro de nossa agenda um problema, quando a questão central é: como eliminar, num prazo digno, a miséria, a indigência e a fome? E é para isso que inteligências e vontades têm que se dirigir. Quando colocamos o emprego como arma contra a miséria, apontamos caminhos e saímos Brasil afora cobrando essa resposta, porque não temos mais tempo. Estamos correndo contra o tempo, contra esta tragédia que se estabeleceu no país. O Brasil não pode mais aumentar a sua taxa de indigência, sua massa de indigentes. Não falamos mais de pobreza e sim de indigência – o estado extremo da miséria. A Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida e a Ação pelo Emprego e o Desenvolvimento existem, crescem e ecoam hoje em milhares de comitês, na mais densa corrente de solidariedade já construída nos últimos tempos, porque – mesmosabendo que está fazendo o caminho da história pela contra-mão – a sociedade brasileira confia na mudança. HERBERT DE SOUZA – (Adaptado) 1)Pode-se depreender da leitura do primeiro parágrafo que: (A) há, no país, uma massa de desempregados de “quarto mundo” aguardando uma oportunidade de se incorporar à classe empresarial. (B) há um descompasso entre as expectativas dos empresários quanto ao mercado e o nível dos desempregados. (C) para o autor, é a massa de desempregados de “quarto mundo” que fará subir o PIB nacional. (D) ao pensar em mercado de primeiro mundo, a classe empresarial demonstra ignorar o problema do desemprego. (E) a Ação pelo Emprego e o Desenvolvimento foi criada para que pudesse haver a estabilização da moeda. 2) Em “Seria uma forma de distribuir a riqueza, dar ‘vale cidadania’ pra todo mundo.” (l. 18-19), a expressão sublinhada reflete uma ironia do autor porque: (A) a cidadania não é conquistada através de um vale. (B) a riqueza, num país, distribui-se por meio de donativos. (C) a distribuição de vales não admite a exclusão social. (D) as bolsas de consumo propiciam as transformações sociais. (E) os subsídios desfazem a desigualdade social. 3) quarto parágrafo o autor afirma: “Modernidade é humanidade. E essa visão só é possível para quem pensa a sociedade do ponto de vista ético." (l. 38-40) Assinale a opção que NÃO confirma esta idéia. (A) Um país avança e se desenvolve satisfatoriamente quando há a adequada integração da sociedade ao processo produtivo. (B) Ciência e tecnologia constituem fatores indispensáveis ao desenvolvimento, se tiverem como parâmetro a sociedade. (C) O crescimento de um país se dá à medida que há a prioridade para o desenvolvimento humano. (D) O emprego deve ser sempre planejado em função do tipo de desenvolvimento que se quer para o país. (E) O crescimento de uma país mede-se pelo comportamento de primeiro mundo, demonstrado pela sociedade. 4)Em “... e também do mundo empresarial, apesar de sua visão imediatista e muito ligada ao primeiro mundo...” (l. 42-44), a parte sublinhada pode ser substituída, sem alteração de sentido, por: (A) quanto à sua visão imediatista. (B) caso seja sua visão imediatista. (C) em razão da sua visão imediatista. (D) enquanto sua visão é imediatista. (E) ainda que considerando sua visão imediatista. --------------------------------------------------------------xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx----------------------------------------------------- AS QUILHAS O explorador norueguês Thor Heyerdahl provou, com a sua viagem de 1947 na balsa “Kon-Tiki”, que índios peruanos poderiam ter chegado às ilhas dos Mares do Sul numa embarcação rudimentar, sem qualquer instrumento ou conhecimento mais sofisticado de navegação, apenas se deixando levar pela correnteza. O “Kon-Tiki” era uma réplica perfeita dos barcos usados pelos peruanos, menos num detalhe, que Heyerdahl só descobriu depois de ter feito a histórica viagem da costa do Peru ao arquipélago Tuamotu. Durante muito tempo Heyerdahl admirou a coragem dos índios e se perguntou que motivos, que demônios, os teriam levado a enfrentar o mar e o desconhecido, sabendo que não poderiam voltar, que suas vidas estavam entregues à corrente. Não se sabe se a admiração de Heyerdahl aumentou ou diminuiu quando ele descobriu o detalhe que lhe escapara na reprodução das balsas, um jogo de quilhas que permitia aos índios navegar contra a correnteza e, portanto, voltar. A compulsão da aventura e a vertigem da descoberta que impeliam o homem primitivo eram precedidas de uma necessidade mais forte, a do retorno, a da segurança de um caminho para casa. As quilhas talvez tenham tornado os índios ainda mais incompreensíveis para o norueguês, e a admiração pelo seu engenho talvez roubasse um pouco da admiração pela sua aventura. Pois mais remoto para o espírito moderno do que a coragem crua do empreendimento, mesmo suicida, é essa outra compulsão primitiva e quase animal do retorno. Heyerdahl pode ter se sentido traído. Ao mesmo tempo que eram mais sofisticados, os índios eram menos modernos do que ele supunha. Não tinham rompido com tudo e se entregado à corrente, não tinham abandonado o apego animal ao centro das suas vidas, o mesmo instinto que faz o peixe subir cascatas para desovar no lugar em que nasceu. O homem moderno é o que esqueceu o que no bicho é um instinto, o caminho de casa. (...) Quanto mais se afasta do bicho mais o homem se desorienta no mundo. Mas é só voltando que ele pode contar o que viu e fez, e torná-lo coerente e real com o seu relato. (...) As quilhas eram a segurança de que sua aventura seria relatada e teria um sentido, para os índios peruanos. A aventura humana não é a realidade, é só a sua matéria-prima. Existir é colher subsídios para a história que vai se contar em casa e, contando-a, integrar na experiência comum da espécie. Perto do fogo, com as crianças em volta e os cachorros em paz. (04/1 1/89 - Luis Fernando V erissimo - Comédias da Vida Pública. Com adaptações) 1)Pela leitura do texto, pode-se concluir que o explorador norueguês: (A) fez a mesma viagem que os índios peruanos. (B) pretendia, com sua viagem, desacreditar os índios peruanos. (C) acreditava que os peruanos esconderam um detalhe dos civilizados. (D) nunca chegou aos Mares do Sul, na balsa “Kon-Tiki”. (E) não acreditou que os peruanos fizessem a viagem sem instrumentos. 2)“Heyerdahl pode ter se sentido traído.” (l. 28) A traição a que o autor se refere está associada à(ao): (A) possibilidade de retorno assegurada pelas quilhas. (B) apego dos índios às aventuras marítimas. (C) empreendimento suicida dos índios peruanos. (D) medo do mistério e do desconhecido. (E) retorno dos índios peruanos aos Mares do Sul. 3)Para o autor os índios peruanos eram menos modernos do que imaginava Heyerdahl porque: (A) tinham coragem para enfrentar mares desconhecidos. (B) ignoravam o valor do retorno ao lugar de origem. (C) não tinham perdido o sentido de sua vida. (D) não davam valor à própria vida. (E) só admitiam viagens sem aparelhos sofisticados. -----------------------------------------------------xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx---------------------------------- Primeiro animal clonado no mundo, a ovelha Dolly está sofrendo de artrite aos cinco anos e meio de idade. O anúncio, feito pelos cientistas envolvidos em sua criação, reabriu a polêmica sobre o envelhecimento precoce dos animais clonados e do desenvolvimento de problemas de saúde decorrentes de defeitos genéticos oriundos do processo de clonagem. Segundo Ian Wilmut, que coordenou a equipe responsável pela clonagem de Dolly, a enfermidade atacou a pata traseira da ovelha. A artrite é uma doença comum entre ovelhas, mas costuma acometer os animais de idade mais avançada. Dolly nasceu em 1996 e, portanto, seria ainda muito nova para desenvolver artrite. O surgimento imprevisto da doença reforça a teoria de que o processo de clonagem pode provocar defeitos genéticos graves. - Infelizmente, essa é mais uma prova de que os procedimentos atuais de clonagem são ineficazes. Já sabíamos que somente uma pequena parcela dos embriões clonados chega a nascer, mas, agora, tudo indica que alguns destes animais se tornam mais vulneráveis a algumas doenças - afirmou Wilmut. Segundo o cientista britânico, é muito difícil estabelecer, com toda a certeza, se Dolly desenvolveu a artrite em razão de ser um clone ou devido a um outro distúrbio não relacionado a esse fato. Ele pediu às empresas de biotecnologia e aos laboratórios que compartilhem informações sobre a saúde de animais clonados para que se possa detectar alterações em comum. Alguns cientistas defendem a tese de que animais clonados seriam propensos ao envelhecimento precoce. A clonagem é feita a partir do DNA de um indivíduo maduro, inserido num óvulo. Dolly foi criada a partir do material genético de uma ovelha de seis anos e, por isso, os especialistasdiscutem se ela teria cinco anos (seu tempo de vida) ou onze anos (a idade do DNA usado). - Os cientistas acreditam que podem combinar os genes de uma forma controlada, mas não podem. Esse controle é uma ilusão - afirmou Sarah Kite, diretora de pesquisa da União Britânica pela Abolição da Vivissecção.- A verdade é que ninguém compreende de que maneira exatamente os genes atuam e que tipo de problema podem desenvolver os animais sujeitados a técnicas de biotecnologia - disse. Wilmut afirmou estar desiludido com o estado de Dolly, mas frisou que é necessário dar continuidade às investigações sobre técnicas de clonagem, que já produziram centenas de animais em todo o mundo. - É uma tecnologia com diversas aplicações potenciais para o tratamento das doenças degenerativas. Só precisamos ter um pouco mais de cautela - afirmou. Alguns cientistas consideram inevitável que a clonagem de seres humanos se converta em realidade, seja com fins reprodutivos, para casais que não podem ter filhos, ou terapêuticos, como fonte de células-tronco. Wilmut afirmou que os problemas de Dolly revelam que a criação de bebês clonados é precipitada. - Já temos provas suficientes para dizer que seria completamente irresponsável pensar na criação de um ser humano por clonagem. ----------------------------------------------------------xxxxxxxxxxxx---------------------------------------------------- RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA (Horace Miner) O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se nem todas as as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda descobertas, o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma tribo ainda não descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento humano. Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para os rituais dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente compreendida ainda hoje. Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po- To- Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade. A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são dispensados em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a eles associadas são singulares. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas características através do uso das poderosas influências do ritual e do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas casas e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, muito freqüentemente, é feita em termos do número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmica às paredes de seu santuário. Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes santuários e obter descrições dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados são conseguidos através de uma serie de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os médicos-feiticeiros, cujo auxilio deve ser recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médicos-feiticeiros não fornecem a seus clientes as poções de cura; somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dadiva, providenciam o encantamento necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento após seu uso, mas os colocam na caixa-de-encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são especificas para certas doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias, são muitas, a caixa-de-encantamentos está geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas substâncias é a idéia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente à qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o adorador. Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de ablução. As águas sagradas vêm do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro. Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por "sagrados-homens-da-boca". Os Nacirema têm um horror quase que patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado acreditam ter uma influência sobre todas as relações sociais. Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: Existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças que se supõe aprimorar sua fibra moral. O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui um rito bucal. Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano. Estes profissionais têm uma impressionante coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote-da-bocaabre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância natural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é tolher a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem a degenerar. Esperemos que quando for realizado um estudo completo dos Nacirema haja um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade destas pessoas, Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da- boca, quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolve certa dose de sadismo. Se isto puder ser provado, teremos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. Foi a estas tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte específica dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres usam colocar suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos. Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos, movimentam-se serenamente pelas câmaras do templo. As cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recuperem. Sabe-se que as crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disto, adultos doentes não apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter-se conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação. O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem resultar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e aguilhadas dos médicos-feiticeiros. Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das pessoas no médico feiticeiro. Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um "ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos; particularmente, teme-se que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os ritos corporais secretos. A contra-magia do doutor bruxo é inusitada por sua carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus problemas e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Nacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado, e uns poucos indivíduos reportam a origem de seus problemas aos feitos traumáticos de seu próprio nascimento. Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos. Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é na realidade, pouco freqüente. Quando grávidas as mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu: ------------------------------------------------------------xxxxxxxxxxxxxx--------------------------------------------------------- �PAGE � �PAGE �10�