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VJllfilliWva OVJN3ANIv - Copyright © 1986 by Fondo de Cultura Económica, S. A. de C. V. Titulo original em espanhol: La lnvención de América. Copyright © 1992 da tradução brasileira: Editora Unesp, da Fundação para o Desenvolvimento da Universidade Estadual Paulista (FUNDUNESP) Av. Rio \3ranco, 1210 01206 - São Paulo - SP Fonc/Tnx.: (011) 223-9560 Duelos hucrnncionnis de Catalogação na Publicação (CIP) (C~l1Il1r:l Brasileira do Livro, SP, Brasil) "lOllllllll, EUI1IUlldo, 1906- A lnvcnção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir / Edmundo O'Gorrnan, tradução de Ana Maria Martinez Corrêa, Manoel leio Bellotto. - São Paulo: Edüora da Universidade Estadual Paulista, 1992. - (Biblioteca Básica) Bibliografia. ISBN 85-7I39-025-8 1. América - Descobrimento e exploração 2. América - Histórica I. Titulo. 11. Titulo. Reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. lU. Série. 92.1977 CDD-970.01 Índíces para catálogo sistemático: 1. América: Descobrimento e explorações: História 970.01 (....-' . r~ ~QMª.Q._éIQã>M 10 O . C. O T~ (f . ,1 "'--. VI ~ vI._-_ ..._ ..•...._~.,,-...,,- \) ~ "",",,1 f:,f' .• 1 ri' I I \ f, ...:: lJllj'I'('"i,//II/" Nlidll"!11 ;\'1/.111""111 i/i' 1\1. \1'" 111111Ihíi'/tlfI'l' '"11111 ~ J "li SUMÁRIO 9 Apresentação 15 Advertência 17 Prólogo 23 Primeira Parte História e crítica da idéia do descobrimento da América 69 Segunda Parte O horizonte cultural 97 Terceira Parte O processo de invenção da América 181 Quarta Parte A estrutura do ser da América e o sentido da história americana 209 Fontes " 211 Índice remissivo Até que enfim alguém t'eio me descobrir! Eplgraíc do dia 12 de outubro de 1492 num imaginário Diário íntimo da América. I Não será difícil convir que o problema fundamental da histó- ria americana consiste em explicar satisfatoriamente o apareci- mento da América no seio da Cultura Ocidental, porque essa questão envolve, a maneira de se conceber o ser da ;\Ii\(~ricn e o sentido que se há de atribuir à sua história. Pois bcru, lodos sabemos que a resposta tradicional consiste na afirlll:1(;:iod(' qUi' u América resultou do seu descobrimento, idéia que tem sido IH'i,j· ta como algo por si só evidente e constitui, nos dias de hoj«, 11111 dos dogmas da historiografia universal. Mas é possível rcnlnu-ntc afirmar-se que a América foi descoberta sem que se incorra i'lIl um absurdo? Esta é a dúvida com que queremos iniciar ('I>I:IS reflexões. Comecemos por justificar nosso ceticismo, mostrando por qu motivo é lícito suscitar uma dúvida, ao que parece tão cxt raV:1I(:IIIIC. A_tese é esta: que Colombo, ao chegar no. dia 12 dc outubro d L4.2.uuma pequena ilha que acreditou pertencer a um arqllipi~l:tg' adjacente ao Japão, descobriu a América. Mas perguntamos se iss foi em verdade o que ele, Colombo, fez ou se isso é o que agora s diz que ele fez. É óbvio que se trata da segunda e não da primeira afirmação. Esta colocação é decisiva, porque revela, de imediato, 26 EDMUNDO O'GORMAN que quando os historiadores afirmam que a América foi descoberta por Colornbo, não descrevem um fato em si evidente, mas sim nos oferecem a maneira pela qual, segundo eles, deve-se entender um fato evidentemente muito diferente: é claro que chegar a uma ilha que se acredita próxirna dollJ)iio não é a mesma coisa que revelar a existência de Ull1 cont iIH'IlI(' que, at~ então, ninguém suspeitava ue existisse. Em suma, v(\-!\(' que não se. trata daquilo que, por docl!mentos,->~alw-:,w «\I(' :I\'Olltl'('('II, mas de uma idéia a respeito daquilo 9..!1('S(' ~:IIl\' <lI\(' 1\('01111'('('11.Dito de oUlromodo, quando se asscguru (jlll' ( :OIOIIl!lOdescobriu 11 América, não se trata de um {,110, 11\:11\1111'('illl\('1\1\'da il\lcrl.2.rctação de um fato. Mas se isto é usslru, 1\1'1':\IIl'Ct'S$:\rio admitir que nada impede, salvo a preguiça 011 li 1'01i1111,que se ponha em dúvida a validade dessa maneira (wndiar ele entender o que fez Colombo naquela memorável data, embora seja apenas mais uma maneira, entre outras possíveis, de entender o ocorrido. r, lícito, pois, levantar a dúvida que temos suscitado. Levantada a dúvida, é muito importante compreender conve- nientemente o seu alcance, porque há o risco de se incorrer num equívoco que conduziria a uma lamentável confusão. Entenda-se bem e de uma vez por todas: o problema que colocamos não cous'i~pQ.u:jn_dÚvida se foi ou não Colombo quem descobriu a América, já que essa dúvida supõe' admitir a idéia de que a Âlnérica1~i~Je;c~beTta._NãO,~J1ns$.Q_PJ,;obl~ logicam~~te ante- rigr e m~ts radical e profundo,; .c..2~,,-sis~eeE:,112ôr em dúv~a se os a.contecin}!Dtos que até ago.!~ ~i~h~_vistos como o descobrimen- to d~~Alllérica_devem_ou .não continuaL~!~nds.ndo-se co[~o tal. Portanto, o que vamos examinar não é como, quando e quem mérica, mas se a própria idéia de que a América!oi a é uma maneira adequada de entender os acol~tecimef!:- tos, ístn é, se com essa idéia se consegue ou não explicar, sem objecão lógica, a totalidade do fenômeno histórico em questão. Nada, pois, tem de extravagante nossa atitude. É a atitude de ~n-; homem de ciência que, frente a uma hipótese, sujeita-a à revisão, seja para concordar com ela se não encontra uma explicação A INVI'N{;An PA AMI'I\HA melhor, seja para repudiá-Ia contrário. Tem sido sempre conhecimento. Estamos convencidos de que as considerações IlIlt\'1 it lll'~ "nll uficientes para que se nos conceda o benefício da dúvkln. U"I'1I1 não pensa assim, deve suspender esta leitura e coutinuur 1'I\I'II~tl" lado em suas opiniões tradicionais. Quem, ao contrário, entl'IHII'" que estamos diante de um verdadeiro problema, já deu o passo decisivo: despertou, como dizia Kanr, do seu sono dogmático. substitu! 11\ 1'01 111111'11,1'11\ l'iI~1l esta n I1lal'rIlII 1111pnll(n'~~11 do U.!}1avez colocada em dÚvida a validade da idéia que eX2lica o aparecimento da América como o resultado do seu descobrimento, devemos pensar de (jue modo se pode prová;la. EIll..urincí12io,.is.to não oferece maior dificuldade. Com efeito, como toda interpretação é resposta a uma exigência prévia, que é de onde deriva a sua verdade, o problema se reduz a examinar se referida exigência conduz ou não a um absurdo, porque é evidente que, se for assim, deve-se recusar a interpretação para substituí-Ia por out ra mais satisíatória. Mas então, como comprovar se isso acontece ('11111055 caso? Eis aqui a questão. Pois bem, como a idéia de que Colombo descobriu li Amóric», quando apertou a uma ilha que acreditava próxima ao [upão, lI:i, descreve o acontecimento histórico segundo aparece nos lcstCIIIU- nhos, é óbvio que a exigência que deu origem àquela interpretação l1ão procede do fundamento empírico do fato interpretado, isto é, é óbvio que lIiio se trata dc 1I11l0ilJ1Crpr:l't:a<rIio•.apQinda J)os..fuJ.Os~rL postcriori). mas de uma interpretação Cundí1da numa idéia prévia a respeito dos fatos ({LIJTiori). Se é assim, o que é que devemos examinar para averiguar em que consiste essa idéia prévia, para poder comprovar se conduz ou não a um absurdo? A. resposta não permite dúvida. já que é inútil examinar o fato interpretado, porque a idéia não depende dele, é claro que devemos examinar o fato próprio da jnlNprel'ação,..Ç{ue é um fato tão histÓrico como o outro. Numa palavra, para saber a que se deve a idéia de que Colombo descobriu a América, apesar de saber que ele executou um ato 7 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 28 EDMUNDOO'GORMAN muito diferente, é necessário averiguar quando..,_c.oJllo_e_pox Cl.-l!~se pensou assim uma primeira vez e por gue se continua_a_~ceitar. Vale dizer, será necessário reconstruir a história, não a do descobri- mento ela América, mas a ela idéia de que a América foi descoberta, o que não é <? mesmo. Isso é o que vamos fazer.' II J<i que nossa lal"('(;1 consisteem contar a história da idéia do descobrimento d:1 América, nossa primeira preocupação deve ser a awrigu:I~':io da origem dessa idéia. Sabemos que Colombo não (~responsável por ela. Quando, ent<io, concebeu-se pela primeira vez a viagem de 1492 como uma empresa de descobrimento? - Uma pesquisa documentar realizada em outra obra2 dcmons- Irou que a idéia foi gerada num relato popular, que os eruditos cl1ama.!.!{ çle "lenda do pjlorg anô..uiw.o". Vamos recordá-Ia breve- mente, de acordo com as informações do padre I3artolomeu de Ias Casas, testemunho mais direto que temos desse assunto. Diz gue , -- os rimitivos colonos da ilha Espanhola (Haiti começou a ser povoado por espanhóis em 14 , entre os quals iavia alguns que acompanharam Colombo na sua primeira viagem, estavam con-•.. ..-. - - - - --- vencidos de que o motivo-nue levou o.almirante a.fazer a travessia foi o desejo de mostrar a existência dç uJ11as_t(~.rr~_d_esconhecidas, das quais tinha noticja porinformaçõesque lhe dera um .píloto, suja embarcação havia 0do J~'2Sia às praias POI uma tempestade.' Considerando a distante data e o conteúdo do relato, é forçoso concluir que nele se concebe, pela primeira vez, a viagem de 1492 1. Este tema foi amplamente desenvolvido por mim no meu livro La idea de! rlcKllbrimienlO de América. No presente trabalho aproveito as pesquisas então realizadas e a das remeto o leitor que se interessa por detalhes polêmicos e documentais. Devo advertir, no entanto, que modifiquei algumas idéias; assim, a atual exposição representa melhor o que agora penso sobre o rema. 2. O'Gormnn, /-" id('a dei dcswbrimicnlO, Primera Parte, I, 2. 3. Las Casas, IlblOria de /m IlIdias I, XIV. Também Ovicdo, Historia, Primera Pane, li, ii, e Gomara, IlislOria General, XIII. /1;f;vI})ltlf Il A INVENÇÃO DA AMÉRICA 29 I i 1 J., .1 s» .:V.ti"> como uma empresa de descobrimento, pois ('111 IlIgar di' nclmitir ( verdadeiro objetivo qlle íncenrízou.Colourbo dU'g:1I ao ('XIU'I\\O oriental da Ásia - , afirma-se que sua f1ualid:ull' 1'1':1 Ilyd.lI' 1l'111I desconhecidas .. Esta maneira de entender a "lenda" (01 olljl'l.lIll1 jll"tI' 1I1I motivos. Alega-se que é indevido atribuir-lhe I1 ~1'lllhll' ..I" IIIIH\ interpretação da viagem colombina, primeiro, 1'111'111111.-1111illll"1 mcnto que se relata é Ialso e, segundo, porque 11"11'1111,1"1101,I"\,I esse objetivo, mas foi forjada como uma a 1'11\111'"li'lllh'lI p:1I I ',I' empregada contra os interesses e o presl[gio di' ( \11"-11111",,11'11 bem, admitindo a verdade destas duas ci rCl11I~1;11\t IiIW,Iln" I' .11111iI constatar que nenhuma constitui uma obj('~':ltl I1111'_11,1I,,~,I,( ,,1,\ efeito, a respeito da primeira, é óbvio que a iIlVlld,IfI'_ll'\'I,11I111I do relato não impede que contenha uma ill1('II'"I.U ,\•• 0111111t 1IIII,,'j- mente a que se refere. Se levássemos em ("Olltll I~I,I "II}llllt 11111,li maioria dos historiadores modernos af rmurin IH11I ~I'IIli tlll, 11'11' A Cidade de Deus de Santo Agostinho não ("(1111111111111.1111111\11\" tação da história universal, pois é falso que <,xi,t" 1111\:11'1('Vitl"'11I!tI divina que regule e governe os destinos 11\1111111\11"1\ ~1'lJ1l1llhl objeção é igualmente ineficaz, pois, a ser correio til 11\I 11 "'"dt!" I,'VI por objetivo criar uma arma polêmica contra II~ illll 11~NI"1l I' 11 prestígio de Colornbo, ela poderia servir para 1111111\\~111I1I'ltI, desse significado a uma interpretação da viagem, I': II111111'.\', 1'11111 continuar com o mesmo exemplo, se alegasse 11:111•.•t I p,'Mllh',,1 aceitar A Cidade de Deus como uma interprctnçü. 1 ILI IIINI,'qill universal, porque o objetivo de Santo Agostinho ao "'111'''1'.1[11'1';1, como de [ato foi, oferecer ao Cristianismo urna allllll IH,I'~111I11I contra os pagãos. Deixemos de lado, pois, essas supmt:l" I ti 111't,'H'~ e passemos a considerar a verdadeira dificuldade qUI' :'111I "t tl\'1 () {ato mesmo da existência da "lenda" e do amplo cn\ Iiltl ti 111, I 1111111 é sabido, se lhe deu de imediato." 4. Veja-se Marcel Baraillon e Edll1undo O'Gorman, Dos COllCC·P('/O",·.,.I,' /" IIII'CI' histórica COIImouvo ele Ia ielea ele! elescubrimiellto ele América, lmprcut» Unlvr-rshurlu, México, 1955. S, Para um inventário, veja-se [can Hcnry Vignaud, Htstoire Critif/lle de /a Grande Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 30 EDMUNDO O'GORMAN Não é fácil entender, num primeiro momento, como pôde surgir a "lenda" e porque foi aceita, a despeito e apesar da crença de que Colombo chegara à Ásia, versão que se divulgou como coisa pública e notória ao retorno da sua primeira viagem. A solução para este pequeno enigma tem preocupado a muitos escritores modernos, sem que, para dizer a verdade, o tenham resolvido satisfatoriamente, pois 011 S(~ limitam a mostrar sua indignação contra o anônimo "invejoso" que criou calúnia tão desairosa," ou então negam o problr mn C11Ilugar de rcsolvê-lo, alegando, contra toda a cvidônrin, <111(' :I crença de Colombo era um segredo do qual não csr.w.un inteirados os historiadores) Parece-me que a solução cnront rn 110 geral ceticismo com que foi recebida a crença de 10111bo,8 pois só assim se compreende que, fora dos círculos nci:lis bem inteirados, se duvidara da sinceridade desse "italiano burlador" como diziam alguns," e que, portanto, se tenha buscado uma explicação para a sua viagem, apoiada em alguma circunstân- cia mais ou menos plausível. É possível imaginar muitos possíveis pretextos, inclusive alguns eruditos acreditaram poder ressaltar o que consideram o "núcleo histórico" da "lenda" ,10 e até se poderia Entreprise de Chrisroplic Colomb, Paris, 1917. Com o objetivo de mostrar que a crença na lenda do piloto anônimo não foi tão generalizada, foram invocados os , testemunhos de Oviedo e de Las Casas, mas a verdade é que estes autores não negam a possivel veracidade dessa "lenda" embora tenham se inclinado a considerá-Ia duvidosa. Oviedo, I-listoria, Primcra Parte, l, ii e iv e Las Casas, I-listoria, I, XIV. 6. Entre os mais destacados historiadores que adotam esta atitude, encontram-se Gaffarel, Gallois, Humboldr, Haebler.Morison, Roselly de Largues, Ruge e Tar- ducci. 7. Enrique de Gandia, "Dcscubrimicnto de América" em I-listoria de América, publi- cada sob a direção de Ricardo Lcvenc, Bucnos Aires, 1940, v. Ill, p, 8. 8. Veja-se mais adiante. Terceira Pane, V. 9. Górnara, I-listoria General, xv. 10. Enrique de Gandia, "Dcscubrimicnro de América", op.cit., na nota 7 e Luis de UlIoa, EI pre.descubrimiento hispano-i:alalán de América em 1477, Paris, 1928. Gaudia, aproveitando trabalhos de Jaime Cortesão, "EI marino Pedro Vázquez de Ia Fronrcra y cl descubrimicnto de América" no Boletín de/Instituto de Irlt'estigaciones I-list6ricas, Bucnos Aires, 1933, que identifica Vázquez de Ia Fronrcra com Pedro Velasco eirado por Fcrnando Colombo, Vida dei Almirante, IX e por Las Casas, I-listoria, l, xiii, c sugere que se trata do personagem cujas viagens inspiraram a lenda do piloto anônimo. Veja-se Gandía, I-listoria de Cristóbal Colón análisis crítico de Ias [I/entes docunienlales y de 105 problemas colornbinos, Bucnos Aires, 1942. A INVENÇÃO DAAMÉIUCA pensar que alguma frase do próprio Colmilho I('llll:\ d:\do ~(\lllid( ao relato ou, pelo menos, que o tenha sllg(\I'jdo, II Estas especulações têm, no entant.o, \111\il\lI'lI'~~I' 11111110/1C'I:III1- dário para os nossos objetivos, pois ° imporuuu« I'~'lllc', 1111~\IIj:II' "I d" I' - hi -' da vi I I Iaen a como exp Icaçaollstoncaa Yl,tgl'lll, 11i i 111-'i' iI Pl\!' cesso do desconhecimento da finalidade 'lILC rculnuun 1i 11111111 vou e esta circunstância,,iLue charnaremos l'n 0('1111111,'111111111,111,11\'11 asiát'ico da emp"resa" é_,_nem mais nem IIH~IHl~1 111111\11""1,, 11"1 tQ.I.!,.l.ü\k.-püs.s.L"-eLajdéia-4ç_qp~olombo (k~1 11111111" ,'\1111'11111, segaRdG-b.a.vcrcUlPS_de-colupI.oxa,u,nüiJ; acl i:t 11Ic', Mas, se é certo que na "lenda" está o gCllllc' dl'~':,1 illt'-II"I'n ção, não devemos su pcrestimarseu alcance. F "I "'j,, '1111 1I\11 ~I' rata ainda do descobrimento da Américar Jluj, ,I "1111.\ i" "1'1'11110{ se refere a qmas rerrasindeterminadas nO~i'\1 '0(1 I ',I'" 111111,I' IlÍio é Ine.u.Q.s_Óh\LÍ.O-...qu~,_cLe._ac.º.rruLcomela, q Vl'1I 1:1111111'! 1•..•11,111it I,li seti.a.o-pi.loto_a.Llôuinw,_por....baver..sido_o priuuu. I 11'''' i '-'1111:11111 achado ..llest.;ls conclusões, infer~ que o (1n'lxi II\11I til tinLcW_'Lexjlicar de que !llllneira a vi~g<:!n de I 1i» J 1'\ 1l11111jill 1.111,. C0I11.O--1.I111aempresa desC9»ridora de te.u:as..igL\llli\d,I~1 lil'n\ fi i, 1111.. especificamente àAméríca,c como.se pode.atri bu II 11dl~UJ1111111'11 to.a.Colombcç.em Lugar dc.atribuí-lc ao seu.rival, (I I.111111qlll!~" 111111' lU o texto mais antigo em que Colombo aparece 1IIIIIIIIkIJIII bridor da América é o Sumario de Ia natural histor;1I rll' ItI~ 1II,IIrI\, de Gonzalo FernándcLde Oyiedo_, li:.éro· p-ublicadIUlll~.J' 1111.1 anos.após,a época em.que deve.ter.surgido a "lcmlu de! pllcl1\1 a-Flêl+~me.~-;.12Este pequeno livro é apenas 11111:\1"1"1 I1 dI li. Algo assim parece indicar lima (rase de Oviedo, Historia, Primeh.. !'1I11",11, vi IlI/' "Y de ver salido tan \'erdadero el Almirame, en ver Ia tierra en ellii'rll/lllll"" 10""1,, .11,111I, se lIlt'O más sospecha que él eSlaba certificado de/ piloto que se dijo I/I/P I/Irlllll ,"I 11111',111, segúlI se tocó de SI/50." 11.. Gomalo Fcrnándcz de Ovicdo y Valdés. Sumario de Ia Nawrrtl hi~wril' rli' 1m 11I(/itls, publicado pela primeira vez em Tolcdo, em 15 de fevereiro de 1526. 31 Maria Julia Realce 32 EDMUNDO O'GORMAN súmula prévia da Historia General que já escrevia então o autor e nele limita-se a registrar as informações acerca da natureza da América que, a seu ver, podiam interessar mais intensamente ao imperador Dom Carlos, a quem foi dedicado. Não surpreen- de que no Sumario só se encontre uma alusão ao nosso tema, mas uma alusão muito significativa. Remetendo o leitor :\ I Iiswria General, onde, conforme diz, tratará exaustivamente do assunto, Ovícdo afirma que,_.'.~.CQffiOé 8'Otó';o".Çolo'.1l ho., kst'ohri ..l.1 as t ndias (isto é, a América) em suaVi~ll de 1192.1 \ Isso l' iuclo, mas nãQS...Qouco se considerarmosque.aqui t('rl.~111()SaClfll.l:lda, gela grimeira vez.de modo inequívoco,a id('ia (,lIja Iti~tória estamos reconstruindo. Se não csuvésscrnos nas considerações preliminares, a opinião ele Oviedo seria muito desconcertante, porque, sem ter conheci- mcnto da interpretação prévia contida na lenda do piloto anônimo e da ocultação que nela se faz dos motivos que animaram Colombo e de sua crença de ter chegado na Ásia, seria muito difícil explicá-Ia. Com efeito, está claro que se a Oviedo parecia "notório" que o feito de Colombo foi descobrir terras desconhecidas, isto é, se lhe parecia que esta maneira de entender a viagem de 1492 era algo que não requeria prova nem justificação.teria de ser assim, pois era assim que se vinha entendendo há tempos. Tratava-se, pois, de uma opinião recebida que ele simplesmente recolheu e repetiu. Mas se isto parece indiscutível, não se vê 1.<10 facilmente por que Oviedo não se refere apenas ao descobrimento de regiões indcrcrminadas como acontece na lenda, mas especificamente às Índias, ou seja, à América. A razão de tão decisiva mudança é que, durante os trinta anos que haviam transcorrido desde o apareci- mento da "lenda" havia se desenvolvido um processo ideológico 13. Eis aqui a frase: "Que, como es noto rio, don Cristóbal Colón, primero almirante de estas Índias, Ias descubrió en tiempo de los católicos reyes don Fernanc/o y c/o,ia Isabel, abuelos de \'Iustra majestad, en el mio c/e 1491 y vmo a Barcelona em 1492 ... " O erro nos anos, que devem ser, respectivamente, 1492 e 1493, deve-se, com toda a probabili- dade, a uma falha de memória. A INVENÇÃOnA AMI'IU( ~A <~IC culminou, como veremos na Sl'gUllda Palt" d(~SI(' uubnllto, -oui a convicção de qlle as terras visiljldj\~ pelo ulmlnu 11(' em 14~ faziam parte de uma massa continental scparnda dll A41n (' (,()I\('(~- bkh!., portanto, como uma entidade geográfica dlSlltlla, (11:\111111111 de América por uns e de Índias Relos espanhói~.14 = Assim, Oviedo, ao dar como verdade indiscutível a intcr] )t'('III- ,':io da viagem de 1492 como empresa descobridora, uuubéru nsiderou, qlle~taLcLe5cQbrimento foi das Índias (América), uma vez que somente por essa identidade se conheciam as regiões encontradas por Colombo. nova maneira de entender a façauba colombiana que conforme acabamos de explicar, em interpretar um ato de acordo com os resultados de um processo de data muito posrcríor à do ato interpretado, suscilDIJ um grave problema que (·Of-~,*1-4@.s,taGa""rl~GT:ft\,~~@.~Q-Gl~~GF~G-qy.aLv.ai-g:i.J;a.r- Iocl-a--e-s-ta-€l*tr.aGr:Gil'}{I·Fi-a~I;}i.s-tGúa.-CmH....(}fGilG, d ifc.rGJ.1-tc.m&r:lte- da "lenda" afirma-se agora que o âescobrimeulO (Oi,....não, de regiões iudcrerminadas elU slla ídentídadecrcas.sím, de um contincnrc i1Ilprevisível. 8al"a~p.o..dc.r..afin:naLque Colambo revelou a exls.t.ência do referido cominenl'e, scrrí indispensável mamar que leve COIlS- ciência-..desse...sex:, cuj.a....existência dizem uue revelou, pois, d contrário, não se poderia atribuir a Colombo o descobrimento. A fim de que isto fique inteiramente claro, vamos citar um exemplo. Suponhamos que o zelador de um arquivo encontre um velho papiro num depósito. No dia seguinte, dá a notícia a um professor universitário de letras clássicas e este reconhece que se trata de um 1('XlOperdido de Aristóteles. A pergunta é esta-quem é o descobri- dor desse documento, o zelador que Q encontrou ou o professor (IUC o identificou? É evidente que se se considera como mero objeto l'I.;ico, como um papiro qualquer, foi o zelador quem o descobriu. I;,,1\(' é o caso da interpretação contida na lenda do piloto anônimo. Mas é igualmente evidente que se se considera o documento como I~,Sabemos com certeza que era assim que Oviedo concebia essas terras. Veja-se 11i,\lOri(l, Primeira Parte, XVI, Proêmio, Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 34 EDMUNDO O'GORMAN um texto de Aristóteles, seu descobridor foi o professor, pois foi ele quem teve consciência do que era. Assim, se alguém, informado a respeito do acontecimento, quisesse assegurar que o verdadeiro descobridor do texto havia sido o zelador do arquivo e que a ele cabia a fama científica do encontro, ninguém estaria de acordo a não ser que mostrasse que teve consciência do que havia encon- trado naquele depósito. ( esse, precisamente, o caso em que se coloca Ovícdo (' todos aqueles que, depois dele, vão sustentar que Colornbo (oi o <kscobridor da América. ],í se irá vislumbrando a dificuld"di' imlneut«, qu.uiclo não (01' mais possivel continuar dcsrouhcccndo o que em realidade pensou Colombo do seu achado. I~~lacrise, sem dúvida, não se apresentará de imediato, pOJ'C[IH" conforme dissemos, a conseqüência fundamental da "len- da" (oi, precisamente, ocultar aquela opinião. olocada dessa forma a questão, vamos examinar em seguida as tentativas que se fizeram para superá-Ia. Trata-se de três teorias sucessivas que integram um processo lógico e que, como se verá oportunamente, acabara fatalmente por levar ao absurdo a idéia do descobrimento da América. IV Uma vez lancada a idéia de que o gue havia sido descoberto. c:ra a 8Il)é.r:ica.~0~ um continente até então não só imprcvis- tç>como 11l!J.:)[evisivel,o único problema que resta~a~era a quem atribuir ..a..Jall.1ade t]Q,f;rra~dinário' feit~lõtõ an~i1imo O'l~ a CristóY\io Colombo, ou para falar em termos de nosso exemplo, ao zelador que encontrou o papiro ou ao pesquisador que o identificou como um texto de Aristóteles. Para resolver este con- flito, houve duas tentativas iniciais, arnbas insuficientes pelo que se verá em seguida, e uma terceira que soube encontrar a solução ao dilema. O conjunto desses esforços constitui a primeira gran- de etapa do processo.Vamos examiná-Ia em seus passos funda- mentais. A lNVENt.~AO nA AMI"l\ICA I, Pruucíra tcntativa' Ovicdo UisLOrja general) natural de Ias llLdi(ls.l~ I':I~11 II'~(': :I) 1\ explicação tradicional de como OC()I"f('\1 o d(,~('()IHIII\('I\I(\ da América é insatisfatória, porque o relato do piloto 1I11(\1\11I\(1 (' duvidoso. Mas supondo que seja certa a intervenção dPSI(' 11('11>0 nngcm, é a Colombo que corresponde a glória do descobrimento d:\s Índias. b) A razão é que, independentemente de ter recebido ou não a lnformacão do piloto anônimo, Colombo sou~ue eram as.terras ruja..c.xisli'ucia revelo", isto é, rcye consci{'ncia do ser dessas terras. c) Mas como? Colombo, disse Oviedo, sabia o que ia encontrar desde que propõs a viagem. Com efeito, como as Índias, explica, não sJo senão as Hespérides de Que tanta mencão fazem os cscrírorcs antigos, Colombo inteirou-se de sua existência e de seu ser, através da leitura dessas obras. Assim, sabedor de que tais ICITasexistiaJll C do qlle efi)))) e talyez Cor\j!\Ccido,além disso,_p.elo . . lcscobriu .16 2. Segunda tentativa: Gomara. liistoria general de Ias India;j.17 Eis a tese: a) A exp,licacão tradicional é satisfatória, porque o rcIal piloto anônimo é verdadeiro. b) o. G1bJ-ilosoL-pensar Que Colombo haja constatado a )(istência das terras qllc enconr[QlLCJ.rLlcill.u:as-.de.li~..s..clás_sicos. que.se.pode crcr (' qlle tenha conCroniadQ Q relato do piloto :l[\ônimo com as opiniões deJlomens dou tos acerca do Que diziam s antigos sohre "0111"["1$ terras.e.mundos;'. c) Çolombo.,-pür:talllo,_é-.a,pena5.....CLS,Cgulldodescobridor. O primeiro e verdade.i~ fOi? piloto anônimo, porque a ele se deve 15. Ovicdo, I-li5!Oria general y naU/ml de Ias India5, 151as y Tierra·Finne de! Mar Oceâno. A Primeira Parte foi publicada em Sevilha, 1535. 16. Ovicdo, Hi5!Oria, Primeira Pane, li, i-iv. 17. Francisco Lópcz dc Gomara, I-li5!Oria general de Ias Indias. Zaragoza, 1552-53. Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 36 EDMUNDO O'OORMAN o conhecimento das Índias, que até então haviam permanecido totalmente ignoradas.'8 Se considerarmos estas duas teses, constata-se que nenhuma consegue resolver satisfatoriamente o problema. A de Oviedo, é certo, reconhece o que deve ser atribuído ao descobridor, porque Colombo aparece comotendo consciência do ser específico das terras cujo descobrimento se lhe atribui. Mas o dcscobrirnenjo.poroutro lado, deixa de O ser porque. ao identificar-se a América com as Hespéridcs, j:1 11:10 Si' I r.un de. algo cuja existê!1Cia Iossc desconhe- cida, mas nu-r.uucurc dealgo esquecido ou perdido.'? • A tese de Górnara, por sua vez, padece de defeito contrário: sustenta a idéia' de que se trata de terras, cuja existência se desco- . -- ~ nhccia, mas não se verifica, em troca, o requisito po!:. parte do lcscobridor da consciência dO..i}lleeram. f Em arnbas as teses, ainda que por motivos opostos, o ato que se atribui não corresponde ao ato que se diz tenha sido realizado. Estas reflexões mostram que a solução teria que combinar os respectivos acertos das teses precedentes, evitando suas falhas. Teria que ser rnantida a idéia de que se ignorava a existência das terras objeto do descobrimento, como o fez Gomara, e mostrar que o descobridor t~ve consciência prévia de que existiam, conforme quer Oviedo. Quem conseguiu conciliar extremos, ao que parece, tão incompatíveis, foi o bibliófilo e hurnanista 90m Fernand.Q Colombo, na célebre biografia que escreveu de seu famoso pai. Vejamos como e a que preço conseguiu Iazê-lo. 3. Terceira tentativa: rernando Colombo. Vida dei almirante.2o Eis a tese: a) Ningucrn, antes de Colombo, soube da existência das terras encOnLrou em 1492. .~ falso, portanto, que alguém lhe tenha 18. Gomara, Historia general, XIII e XIV. 19. Assim diz expressamente Ovicdo, Historia, Primeira Parte, Il, iii. 20. Fcrnando Colombo, Viria dei Almirante don Cristóbal Colón escrita por su hijo Dan Hernanrlo. A obra somente nos chegou na tradução para o italiano de Alfonso de Ulloa. Veneza, 1571. A INVHN<:Ao I1AAMi''i(lCA 7 (belo not leias delas e (ais lIC tcuhn lido SI1!lI\' \,In~ ('111 livros 1I1llig b) O quc ocorreu é quc Colombo teve ;t I(\('jl\ dl'!ll 11' 1\ Ildd('II~(' da. Europa teria gue existir um contincnte :lt(\ ('I \I :10 IIP IIlI'IIl!O, c) Mas se era ignorado, como então \'eye Colombo I(k'!n (h· (1111' existia] Ele a teve, se~ndo Dom Fernando, por 1111\1\ 1(I'lIilll in(crência decorrente de seus amplos conhecimentos ci(,lllln(,(l~1 de sua erudicão e de suas observacões. Isto é, teve essa cxt mordi- __ J~_ __ ' n.iria idéia C5;>1110hipótese científica." d) A emru:esa de 1492 não foi a confirmaçillu:le uma notícia ql~e Colornbo tivesse tido; foi a compr~vação en~pírica de sua hipótese, devida unicamente a seu talento. Com a viagem empreen- dida_elu...L492_, Colombo mostrou, portanto, a existência de um continente .igL1{WldQ,_lJii.ode regiões conhecidas embora esqueci- das.xonfcnnc quer Oviedo; ao mostrar sua existê~cia, revelou.2 (ll,e~e-r-a.,..flGr:q.lo'c-já_o....sabja._CoIDmhoj,.porra nJ9., Q...Ç!.fSCObridor iIid iSGut;Í-~-Ld~.I.nG.cica. e) Esse continente é conhecido então pelo nome de "Índias", mas isso não significa, como pretendem alguns, que C2.lomb tenlla-aG.I.:oo.i-tadoter chegado à Ásia..A explicação é que, snbcnd muito.Íacm ..que se tratava de um continente diferente, ele mcsm colo_cmulqllc.k..o,Q.LU.c,~llãosó por sua relativa Rroximidade da Índi:\ ( asiática, mas porque dessa maneira conseguil.;! .2~spertar a cobiça dosreis para lcvá-los a patrocinar a cmprcsa.U f) Deste modo, Dom Fernando não só aproveita a ocultação que existia a respeito das verdadeiras opiniões de seu pai, mas também provoca-a dclíbcradarnente ao dar uma falsa explicação do indício que revelava a verdade daquelas opiniões, pois é indiscutível que ele as conhecia. Com efeito, é lógico supor esse conhecimento por muitos e óbvios motivos e, entre outros, e não o menor, porque Dom Fernando acompanhou Colombo em sua quarta viagern.du- 21. Este é o sem ido das três causas que Dom remando alega para mostrar os motivos que, segundo de, teve Colombo para convencer-se da existência das terras que saiu a descobrir. remando Coloiubo, Vida, VI·IX. 22. lbid. VI. Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 38 EDMUNDO O'GORMAN rante a qual, depois de certa vacilação na terceira, o almirante ficou absoluta e inteiramente convencido de que todos os litorais que havia explorado eram da Ásia. Esta é a tão mal compreendida e dúbia tese de Dom Fernando Colombo.P Muito bem, verifica-se que esta tese, na qual a ocultação das idéias de Colombo não se deve mais a um mero ceticismo, mas sim a um çalclllado desejo de cscondcdas; consegue conciliar os dois requisitos do probicmn. I'~ele se concluir, portanto x,que nela se encontrou n solução adequada, mas, está claro, somente desde qüe.isc possa 1\\:11)1('1' oculta. a opinião de CaLQmbo sobre seu achado. D(~~de então por outro lado, a rivalidade entre o piloto anônimo c Colombo ficou definida a favor deste, porque se é certo que a lese de Gomara continuou tendo muitos adeptos importan- Ics,24 (~ igualmente correto que semelhante atitude não representa um novo passo, mas sim um leve abalo na inércia tradicionalista. Por esse motivo não cabe aqui ocuparmo-nos dela. Vamos exami- nar, por outro lado, por que a solução tão equivocadamente proposta por Dom Fernando entrou em crise, levando, desse modo, o processo à segunda etapa de seu desenvolvimento. Essa mudança é devida ao padre Las Casas, cuja intervenção será estudada em seguida. v Bartolomeu de Las Casas. Historia de Ias Indias.25 a) A premissa fundamental é a concepção providencialista da história: Deus é a causa mediara e -eHciente e011õinem, a causa 23. Para uma discussão mais ampla sobre esta maneira de entender a obra de Fernando Colombo, veja-se meu livro L.n idea dei descubrirniento, Segunda Parte,IV, 2, e I3ataíllon e O'Gorman, Dos concepciones sobre Ia tarea histórica, op.cír. 24. Sobre este particular, meu livro L.n idea dei descubrirniento, p. 69, nota 15. 25. I3artolomeu de Ias Casas, Historia de Ias Inelias, 1527-60. Publicada pela primeira vez em Madri, 1875.76. A INVHN(,:Ao 11AAMi"I\I(:A , imediata e instrumental. Assim, o U,('SCOhl'illH'llln<111 1\ I 1\(\ I'i('11 (\ o urnprjnjcnto de um desígnio divino, I'l'illizlldn !lI\! 1111\ 1101\\('111 escolhido para esse fim.26 b) ssse homem foi Cristóvão Cololllbo, a q\WIIl 1 )('(114 dploll [c todas as qualidades necessárias para realizar a (;\(;:1111111. 1 )i·~t:' maneira, agindo com liberdade dentro da esfera do inundo 11111\I 11I1, olornbo conseguiu intuir, por hipótese científica, não por rcveln- cão divina, a existência do continente das Índias, isto é, a América. Até aqui, L1S Casas acompanha de perto a argumentação ernprc- gada por Dom Fcrnando.t? c) Formalmente as duas teses são quase iguais, mas diferem no fundo porque, para Las Casas, o significado do descobrimento gravita exclusivamente em torno de SilO finalidi.ldr te~sa_ O essencial não se fundamenta, pois, na afirmação de que se conhe- 'eu uma parte ignorada da Terra, mas. na circunstância de que se trata de terras habitadas por homens ainda não iluminados pela luz evangélica. d) Esta diferença ideológica a respeito do significado da empre- sa a que Las Casas denominou "façanha divina", explica porque .ste, sempre acostumado a acumular razões, não se limitou i\ reproduzir a argumentação de Dom Fcrnando, tão cuidadosamente formulada para não denunciar o verdadeiro propósito que animnm olornbo. Com efeito, LIS Casas acrescentou tantos 1\\01 ivos quantos lhe ocorreram para explicar como Colombo pôde s:dwr que existiam as Índias e assim, sem se preocupar com as inevitáveis incongruências, o vemos juntar, numa heterogênea e indi~(~SI:l mescla, o mito da Atlãntida, os chamados versos proíóriros de Sõncca, a "lenda" do piloto anônimo e até ateoria das Hcspérklcs le Oviedo, tão duramente censuradas por Dom Fernando.ê" e) Mas o decisivo nessa maneira de proceder foi que Lrs Casas, possuidor dos documentos do almirante, não tratou de ocultar o 6. Ibill. I, íi. 7. Ibill. I, ií e v. 8. Ibill. I, vi· xvi. Também Fcrnando Colornbo, Vida, X. 19 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 40 EDMUNDO O'GORMAN objetivo asiático Que, na rea1idad.e,..JllOli.\,o.u~s.ua_\[iagemnem a conviccão de tê-Io alcan~ f) A razão é que, dada a perspectiva transcendentalista adotada por Las Casas, os objetivos pessoais de Colombo carecem de importância verdadeira, porque, quaisquer que tenham sido - confirmar uma informação, encontrar regiões esquecidas, confir- mar uma hipótese ou chegar ü Ásia - o significado da empresa não depende disso. Para L\~ Casas, Colornbo teve que cumprir fatal- mente as intenções divinas, independentemente das suas pessoais, de maucirn <")lIC clctc nninar o que Colornbo queria fazer e o que acreditou ter [cito é inteiramente secundário. O que interessa deixar claro é que Deus lhe inspirou o desejo de fazer a viagem e para esse fim qualquer explicação é boa. g) A mesma indiferença existe no que diz respeito ao problema do ser específico das terras encontradas, a ponto de se tornar difícil, senão impossível, precisar o que a esse respeito diz L1.sCasas.P A razão é sempre a mesma: tal circunstância carece de verdadeiro significado. Que importa se se trata das Hespérides, de um fragmento da Ilha Atlãntida, do Novo Mundo ou de regiões asiáticas? O que importa o que Colombo ou qualquer outro pense a esse respeito? Deus não pode ter interesse nos progressos da ciência geográfica. O importante é que Colornbo abriu o acesso a regiões da Terra, repletas de povos aos quais é urgente pregar a palavra revelada e conceder-lhos a oportunidade do benefício dos sacramentos antes que ocorra o fim do mundo, que Las Casas considera iminente." h) Portanto, se se há de dizer realmente quem foi o descobridor da América, deve ser dito que foi Cristóvão Colornbo, mas não em virtude dos objetivos e convicções pessoais que animaram sua empresa, mas como instrumento eleito pela Providência para realizar a transccndcntal façanha. Se há necessidade de se precisar 29. Meu livro, Ln idea de! deswbrimienw, p. 145-6. 30. ]bi(l. p. 146. Também L1s Casas, Á/Jologética historia, XXII. 31. L1s Casas, ]-]istoria, I, i. "". wanto los tiem/Jos y edad dei mundo más pmj,incua es a su fin, ... " A INVENCÃO DA AMÚRICA 41 o que foi que descobriu, deve-se dizer que não [01'11111tais ou quais regiões geograficamente determinadas, mas sim o oculto r.uninho por onde chegaria Cristo àqueles numerosos c esquecidos povos, para colher entre eles o místico fruto da salvação l~lel'llll.12 Esta é a tese de Bartolomeu de Las Casas e é esta a 1l1:IIWirack entender as muitas incoerências que, por sua vez, podem ocorrer na atenta leitura de sua obra. Mas então, qual é o sentido da intervenção de Las Casas do ponto de vista de nosso problema? Tratemos de explicitá-lo. Tal tese remete o significado da empresa ao plano transcen- dental da esfera religiosa, desvincula-a de suas premissas histórico- temporais e, portanto, em si mesma não representa nenhum avanço no desenvolvimento do processo que estamos reconstruin- do. Mas isto não quer dizer que careça de importância. Pelo contrá- rio, como na Hiscoria de Las Casas admite-se e 12rova-sequal foi o propósito gue teve Colombo ao emp!:.Ç,Çndg sua viagem de 1492 e s~fessa sua crença em tê-Io realizado, depois disso já não será possível con,lil..llF!L9cultando plena e cabalmente esse propósito e essa~çX~!lça..COlll a intervenção de Las Casas, çonscqücnrcmcnrc, entraem çrise a primeira grande etapa do processo c se inicia, ::\sSi!21, a possibilidade de um novo e fl.undamenral d~senv_ol~m~. t:l~~::o baseia-se para nós seu significado decisivo. h)$:.~~\\!'l! l' I~.:(!-7'~"(\ 1.00·' (,\,\ ;.J'., '. .':~~\)~i,'.~J\.Dt .•_ '-.•.". '. • - -' fi:' VI \.<i;~..', .- ,~.$'''''' '·rle.r~~7.. ~de se pensar que, a partir do momento em que se tornou p.alellte~c.Q!.!J_~.$temk!Q.hoirre[utÚve! a verdade do objetivo asiático da~v.iag€J;J,;}~de..1A.9-2,_c.ra.f1r..ecisJLab.HndQnara idéia de nela ver uma enapresa.desccliridora de lerras toralraente.Igncradas •..para com- 32. Veja-se meu livro La idea dei descubrimiento, p. 152 -3. A este respeito expressa- mente afirma Las Casas que a façanha de Colombo consistiu em ter sido ele "el primem que abrió Ias /mertas de este mar oceáno, por onde entró y él meud a estas tierws tan remotas y reinos, hasta entonces tan incógnitos, a Nuestm Sal,'ador Jesllcristo". I-listoria, I, ii. Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 42 EDMUNDO O'GORMAN prccndê-la co.!!!Q.ocorreu: uma tentativa de ligar a Europa ~a Ásia la..r:ota do.Qcin.s;nte -,Eça tal, com efeito, a conseqüência a que se deveria chegar se não tivesse existido o impedimento lógico da premissa que, conforme sabemos, condiciona todo esse processo, a saber: que a interpretação daquela viagem como um ato desco- bridor de terras desconhecidas havia ficado como coisa evidente. Em razão .disso permaneceu, pois, a mesma situação lógica, conti- nuando, portanto, o problema de como atribuir a Colombo o descobrimento da América; agora, apesar e a despeito de se saber que seus propósitos foram outros, vamos dedicar este item ao estudo dos esforços que se fizeram para resolvê-Ia, que não serão senão tentativas de conciliar a tese de Dom Fernando com os dados proporcionados por Las Casas. Com efeito, não poderia ser outra a orientação geral deste novo relato. 1. Hcrrcra. Las décadas.)) a) Em termos gerais, Herrcra se atem à argumentação de Dom Fernando. Pam clc,Lalollloo tivera consciêJ1Cia de g~e.xistiam a.s-Lndias íAIMriQ!), graçasa uma hipótese científica, e a viagem de 1492 não foi senão a maneira de cornprová-la. o) Mas, diferentemente de Dom Icmaudc.c.díanre da neces- sidade de fel" em conta cs.dados rczclados...por Las Casas,J-Ierrcra afirma U!lÇ" scm cxplicar como ncm por Quê, Colo~lbo se convcn- ccu.dc.quc liavia çbegado.iLÁsia,.isto édlue na primeira viagem, Colcuiho n;:lQ.comp.roYQLLSuaJÜpótese. c) O engano no qual incorreu o almirante persistiu ao longo da segunda e da terceira explorações; ES na quarta e última, lonl-0o-ccrtificou-:sc_de_s_e_lLeXLo_ao ter notícia certa da existência do...M..u:..do SIlI, isto é, do Oceano Pacífico. 33. 1\I\I0l\io de I lerrera y Tordesillas, llisloria general ele los hechos de [os castellanos en Ias islas y Tierra Firme dd Mar Oceríno. A Primeira Parte, que contém as quatro primeiras Décadas, foi publicada em Madri, 1601; a Segunda Parte, que comem as quadro Décadas finais, também foi publicada em Madri, 1615. d) Foi assim, portanto, que Colomlx: (1111111111'1111'plit1I' 1'Il1I\- provar sua hipótese inicial, de mnncirn '1\11' 111'111'1'1\I'\'HI" 111,111l1i1 a ele o descobrimento da América, j;\ <tI 11'111111~I" 1111.1",11I1l111I1th, ~I' encontrava esse desconhecido continente, ('01110 11111"11'111Ii'w consciência do que rcvclava.ê" Pondera-se, sem dificuldade, que esta lese não COIll'l'H\lI'1I11'11I11'1 devidamente aos acontecimentos denunciados pelo padre I.:\i'l (;Ii~lh, uma vez que só acrescenta na interpretação a circunstância dl' '1\1(' Colornbo.acrcditou teu:lli:gado à Ásia, mas não que fosse eSle, desd(' o início, seu objetivo. A esse resQeito, Herrcra altera dclibcradamcnu O qill:afinna L1S Casas.); Com isto (ica demonstrado que, para auiluiir ..a..ColOlnho o descobrimento, era illeciso sustentar que ele liavia jido cQn.s.citOÓ'j do ser cspçcifico das tefli.lS encontradas. A tese, pois, é uma primeira tentativa de superar a crise; mas, com toda a evidência, a tática não podia se sustentar indefinidamente. Teria que chegar o momento em que se admitiria o objetivo asiático da empresa, porque só assim, por outro lado, se compreenderia por que Colornbo se convenceu de que as regiões encontradas eram asiáticas, circunstância que naturalmente Herrcra não pôde explicar. Esse momento se apresentou anos mais tarde, conforme dOClIIlWII- tarn dois autores, cujos textos vamos considerar em seguida. 2. I3eaUIllOl1t. Al)(lmlO.~6 a) A empresa (ora motivada por dois possíveis ohklivlls: dGScohriLullLcolltinentc_dcsconhecido, cuja rXiSIC!~\('iaCIlI(Hllho havia inferido por hipótese científica, e chr1i:.!r ;) Á~i;\, (';\~Il 11;-'0 achasse o.J:cLcüdo_col1tinentc. 34. Para uma exposição detalhada da tese de Hcrrcra, veja-se meu livro I II ItI"" d"l deswbrillliento, Terceira Pane, VI, 2. 35. Para um cotejo entre os dois textos, lbiel. p. 176-7. 36. Fr. Pablo ele Ia Conccpción Bcaumonr, Aparato para Ia inleligencia de 1(/ C1ón/clI setálu:a de Ia Sanla l'rot'íncia de S(m Pedra y San Pablo de MicltoaclÍn de e~la Nllrllfl Espwia. Último terço do século XVIII. Trata-se de uma longa introclução à Cr6nica de Michoacân do mesmo autor. A primeira edição, mais incompleta, é de 1826; a edição completa, com a Crónica, Archivo General de Ia Nación, México, I 932. I~a edição que utilizamos. 4 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 44 EDMUNDO O'GORMAN b) Durante a priJIlcira..e..<LSeg:unda.-viagens,-Colombo crê que está na Ásia; mas na terceira exp-Ioração-hODstataque havia chegado a praias.do.continente desconhecide,-que quis encontrar desde o início~ c) Foi assim que Colombo descobriu a América, pois, em que pese seu equívoco anterior, acabou por comprovar a hipótese inicial.F Esta maneira de entender a empresa e de atribuir o descobri- mento a Colombo é muito semelhante à de Herrera; trata-se ainda de um compromisso Iundado na solução de Dom Femando. De fato, o modo de nela introduzir, sem alterar sua essência, o equívoco de Colombo, é o mesmo que adotou I-Ierrera , mas agora sem inconseqüência, porque o objetivo asiático_j~ap-arcc.e..lormulado mo finalid;:gle da~ll!presa,~inda gue secundário, ao ladQ do o,bjelivo de descobrir um continente desço!JhççLdo. A tese de Dom remando ainda se mantém, mas já íoi dado o passo que acabará por arruiná-Ia. Sigamos a trajetória deste inevitável desenlace. 3. Robertson. The histary af america.38 a) O autor inicia sua exposição descrevendo o horizonte histórico que serve de Iundo para a sua tese. No final do século XV, afirma, o grande anseio da Europa era abrir uma comunicação marítima com o remoto Oriente. A esta preocupação geral vincu- \ Ia-se a empresa de Colombo. Não se trata, pois, de uma inexplicável ou extravagante ocorrência nem de uma inspiração divina, é uma façanha do progresso científico do espírito humano. ./ b) Situada assim a empresa, Robertson passa a explicar em que consistiu o projeto de Colombo. Pensou, afirma, que navegando em direção ao ocidente teria necessariamente que encontrar terra. Mas Colombo estava em dúvida a respeito do que seriam as regiões que podia achar. Com efeito, tem motivos científicos para suspeitar, 37. Para urna exposição detalhada da lese de l3eauIllont, veja-se meu livro ta idea del descubrimiento, Terceira Pane, VII, 2 A. 38. William Robcrtsou, The History af America, Londres, 1777. /\ INVEN(,~AO 1)/\ /\tvtl':I(J( :/\ " que encontraria um continente descolllH'cido; IIIII~, pOI (11111() lado, tem razões para acreditar que iria chegar a plllill~ 11,1:11 ir:I'>, ( :Ololll!lo inclina-se mais por esta última possibilidade, IIHI~11 dllVidil (' II própria essência do projeto., c) Quando Colombo, por fim, obtém os meios pai':! ('11'1'1('('11' der a travessia, Robcrrson.n.apresenta sulcando O_OC(';\I\O dl'l'idi· damente em busca da Ásia, mas sempre com a reserva de que inlvez encontre, atravessado no caminho, o continente que havia intuklo hi potc:.!:ica..!..n~nte. d) Ao achar terra, Colombo convence-se de que.chcgou,à Ásia c por isso, explica Robertson, foi batizada com o nome de Índias. Mas o almirante não abandona a dúvida inicial. Na segunda viagem, suspeita de que tenha incorrido em um equívoco que, no entanto, não consegue desfazer até a terceira viagem. Foi então quando soube, com certeza, que havia encontrado o continente desconhecido que, desde o início, imaginou que podia descobrir. ÇQlombo l' pois o descobridor da América pcrqun. ao comprovar Um:Ldt!-s_&uasfinalidades da em12resa~~ plena consciência do que havia rcvclado.P A tese tem uma óbvia semelhança com a anterior, mas a diferença implica um manifesto progresso para a crise definitiva da velha solução de Dom remando a qual, no entanto, ainda subsist como base para poder atribuir a Colornbo o descobrimento da América. Rcgísrrcesc.quc ..Rolxrrson não apenas posmlo O ol~elivo asíáricc.ccaic.uuaa.da s diLas.1iualidades..d<L.Clu.p.rcs.a."..senãogue a considera a principal Alhn do mais, e jsto é decisiYQ, exlili.ca-a cQDla...óhü<1-de.nlw ...das.ciccunstâucías.h isto ricas .-Âssitn.-o...de~ej.o de .Colombo, ...de.xhcgar à.. Ásia.....j-ªnão se admit:e somente p<:.!a exigêncÍ<Lde dar raz.ã..o....ag.s dados tevelaslos por bs Casas, mas se C.ODverteu...na J2.IóRriacondi<2Q....para entender o acontecimento. Neste momento, por conseguinte, opera-se uma mudança diarne- trai a respeito da situação que tornou possível a crença no relato do piloto anônimo. Por isso, o objetivo de descobrir um continente ignorado, mas inundo por hipótese científica, passa a um segundo 39. Para urna exposição detalhada da lese de Robertson, veja meu livro ta idea del desCllbrirniento, Terceira Parte, VII, 2 B. Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 46 EDMUNDO O'GORMAN plano não por mera atitude tradicional, mas com o objetivo de poder responsabilizar Colombo por um descobrimento que, de outro modo, não se saberia a quem atribuir. Estamos no limiar deuma mudança decisiva: a tese de Dom Fcrnando, em que culminou a idéia do descobrimento intencional da América por um Colornbo consciente do que fazia, encontrou em Robertson um último baluarte. O próximo e inevitável passo consistirá no abandono definitivo dessa pretensão, quando se colocará, então, a dificuldade de se atribuir a Colombo um ato de cuja natureza não teve, no entanto, a menor idéia. Inicia-se, assim, a segunda grande etapa do processo. VII A crise sobreveio, explicavelmente, quando um erudito espa- nhol, Martín rernündez de Navarrete, divulgou numa coleção impressa os principais documentos relativos às viagens de Colorn- bo. Dessa maneira, ficavam superadas as ambigüidades no relato do padre l.as Casas, tornando-se patente não só que Colornbo havia projetado ir à Ásia, mas também que nunca estivera conven- cido de não ter realizado esse desejo. Era inevitável, pois, que o paulatino processo de revelação do objetivo asiático alcançasse definitivamente sua culrninação. Foi o próprio remández de Navarrcte que, na Introdução da sua obra, registrou com nitidez o (ato. Vejamos o que disse. 1. Navarrcte. Colcccióll.4o a) À semelhança de Robertson, a empresa de Colornbo é explicada e justificada como uma das tentativas para satisfazer o anseio geral de estabelecer uma rota marítima com a Ásia. < . 40. Marun Fcrnándcz de Navarrcrc, ColeccióTl de 10.1 I'iajes y descllbrimientos, que hicieron flor lIlflr Ias espwloIes desde fines dei siglo XV, COTl I'(lrios dowmentos inéditos concerniemes a Ia IlÍ.ltoria de Ia lIlarina castellaTla y de 10.1 eswblecimientos es/)arloles en bulias. Madri, 1825.37. A INVENCAo I)AAMI':RICA b) Mas, diferentemente de Robcrison I' dll«(lJ('k~ <lU(' 0111111'('('" deram, para Navarrete o projeto de Colomlx: \'OIlIlINtill 11111'11111< nisso. A grandeza da façanha, pois, não se nrlH' li 11I< Id(\III~1/111' 11 inspiraram; está, sim, na ousadia de buscar O Olll\lllhu pllnl 11 Índias pelo rumo do ocidente. c) Portanto, já nada se diz da famosa e su Colombo havia elaborado sobre a exLstência de raassa.ccurinenral, d) De acordo com o exposto, Navarrete admite que, até a sua morte, Colombo acreditou que as terras por ele exploradas perten- ciam à Ásia; mas ao mesmo tempo conclui que, com o achado de 1492, Colombo realizou o inesperado e assombroso descobrimen- to da América, porque, com admiração universal, diz, deu a conhecer um novo mundo." Vê-se bem: nesta tese já não resta o menor vestígio do motivo pelo qual se vinha atribuindo até então o descobrimento a Colem- bo. Não obstante isso, continuava a ser-lhe atribuído. Como e por quê? S~ conforme temos longamente expli.cado, traia-se deum ato que requer do a~~~iêDçia do SItie realizª-,...,ÇQrnQI..cntjlo, responsabilizar Ç.llbo.,..de_q.Uell1,..exp..Les.~alll.eotese afirrna qu ca-r:Gb-ia-dd.a.Eis aqui o problema constitutivo desta segunda etapa. Para esclarecer o enigma, vamos examinar os textos pertinentes. It'~~'qlll' lH!ddn 2. Irving. Lifc and voyages of columbus.42 a) Uma vez mais, a empresa é explicada em termos do anseio pelo estabelecimento da comunicação marítima com a Ásia. b) Para determinar em que consistiu o projeto de Colombo, Irving examina a tese de 00111 Fcrnando. De acordo com ela, diz Irving, Colornbo chegou a concluir que "havia terra não descoberta na parte ocidental do oceano; que era acessível; que era fértil e, 41. lbid. Introdução, I, ii. 42. Washington Irving, Life and Voyages of Co/umbus, 1828. 47 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 48 EDMUNDO O'GORMAN finalmente, que estava habitada" ,43 isto~,_a famosa hipótese de que Colombo teria intuído a existência da América. ~- . c) Mas a Irving parece que a argumentação de Dom Fernando é ambígua e padece de certo defeito lógico.f Por isso, prefere tirar suas próprias conclusões. Afirma que o argumento decisivo que induziu Colombo foi a idéia de que a Ásia era facilmente acessível pelo ocidente.f Irving desconhece, pois, outras finalidades da empresa que não seja o objetivo asiático. d) No reluto das outras quatro viagens, Irving esmera-se em mostrar <J.IIC durante todo o tempo Colombo esteve convencido de haver c.xplould;-regiões da_Asi,L~ esclarece que__de jamais se nvcuccu do coritrário.w Não obstantecsta maneira tão explícita de admitir o que lombo quis e acreditou fazer, Irving não atribui à empresa o sentido correspondente. Desde o início e ao longo de todo o livro, admite ser esta a maneira pela qual Colornbo descobriu a América. f) No entanto, Irving não esclarece por que motivo entende assim. Trata-se, pois, de uma intervenção que considera óbvia, mas passível de se averiguarem seus motivos. g) Ik!1J,_eJ]l uma 12as~agem nunrdos apê!ldLc~s dp. obra.f parece QlLeJrvillg atribui a C.Q1Qmbo_odescobrimento, em virtude de haver sido ele o primeiro a encontrar o continente americano; mas uma atenta leitura da obra não autoriza semelhante conclusão. Sabemos com certeza que Irving não se atem à prioridade no achado físico, pois reconhece como prováveis as expedições dos normandos a praias americanas, realizadas vários séculos antes. 43. lbid. I, v. 44. Rc{crindo-se à a rgumcntação de Dom Fernando, diz: " ... and lhe chain of deducliom here fumished, [hollgh not perhaps lhe most logical in us conca[ena[ion, erc. .. " lbid. I. v. 45. lbi(l. I, v. 46. "Un[il his las[ brealh he e1llerlained lhe idea [ha[ he had mere/y opened a new way [O lhe old resorrs of 0Pllle1ll commerce, and had disco,'ered some of lhe wild regiom of lhe Eas!." lbid. XVIII, v. 47. "When '€;olwl.lblls fim IOllched a shore of lhe New World, even [hollgh a [tonuer island, he had achie"ed his enlerprises; he had accomplished ali Iha[ was necessnry 10 his [auie; lhe gteat problem of lhe ocean "'as sol"ed, lhe world which lay beyond i[s Weslern Walers 'ms disco,'ered." lbid. Apêndice, X. A INVENCÀO nA AMt'·llICA Essas expedições, pensa, não constituem, 1\0 ('lItullto, 11111 dl'S('O' brimento propriamente dito da América, porq\l(' 11 I'\'WIIlI,'llolIssllII btida não transcendeu a esfera dos interesses palt indlll('~IIllqtll'l(, povo e porque, além disso, os próprios normaudos logo 1\ 11111\'111"11111 no esquecimeuto.f h) Irving insinua que na empresa de 1492 concorre \1111 elemento de intencionalidade que não existe nas viagens normnu- das e que, por outra parte, não se acha claramente no projeto que :t motivou e que atua, apesar do equívoco em que Colomb incorreu ao pensar que havia visitado litorais da Ásia. A essa misteriosa intencioI~alidade deve-se, portanto, que continue vigen- te a idéia de que, com o achado de 1492, a América foi descoberta. Esta é, em resumo, a tese de Washington Irving, o primeiro historiador que narrou a empresa admitindo, sem compromissos, o que Colombo quis fazer e o que pensou. Este é, entretanto, o mistério que rodeia a tese. Examinemos o texto que esclarecerá o enigma. 3. Humboldt. Cosmos."? a) Este eminente pensador também situa a empresa dentro d ambiente e dos anseies da época em que ocorreu. Não se limita a assinalar a conexão mas oferece também uma idéia do dcvir histórico, dentro do qual o acontecimento fica visceralmente articulado e apenas em relação a este ganha seu verdadeiro sentido. b) Em termos gerais, trata-se da concepção idealista da história 1:10 predominante, sobretudo na Alemanha, durante a primeira metade do século XIX. Sua premissa fundamental, lembre-se, ronsiste em crer que a história, em sua essência, é um progressivo (' incxorável desenvolvimento do espírito humano em busca da 11I{'t:l da sua liberdade, de acordo com a razão. Para Humboldt, lHo I/)íl/. Apêndice, XIV. lil. Alexandre von Humboldr, Cosmos; essai d'une descriplion physique du monde. Paris, IH66-67. Para noticias bibliográficas, meu livro La idea dei descubrimienlo, p. 267, IInta 1. 4 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 50 EDMUNDO O'GORMAN essa busca fundamenta-se noslentos, mas seguros, avanços dos conhecimentos científicos que, ao ir conquistando a verdade a respeito do cosmos, acabarão por dar ao homem uma visão absoluta da realidade, base inalterável para estabelecer as normas de sua conduta futura e das relações sociais. c) Mas o homem, por si só, e não por intervenção divina, é quem deve cumprir a finalidade imanente da história e trabalhar, assim, sua própria felicidade. Isto não significa que os indivíduos tenham necessariamente consciência desse suposto objetivo nem que abriguem o propósito de alcançá-lo, porque ao longo da história vai se realizando, independentemente dos anseies e das vontades pessoais. Assim é significativo o que fazem os homens, mas o que fazem enquanto instrumentos dos desígnios da história. d) Acontece que, dentro dessa concepção teleológica do devir humano, é possível responsabilizar um homem por um ato cuja significação transcende o sentido que tem, em virtude das inten- ções com que o executou, desde que sejam de natureza que, independentemente do seu conteúdo particularista, esteja de acor- do com os desígnios da história. Assim é possível e deve-se dizer que esse homem teve consciência do significado transcendental do seu ato, não como indivíduo, mas sim como instrumento das intenções imanentes à marcha histórica. e) À luz destas premissas, Hurnboldt compara o sentido que tem, respectivamente, a empresa de Colornbo e as expedições nonnandas do século XI. Para isso reconhece, sem reservas, a verdade histórica dessas expedições e também o fato de que Colombo acreditou ter visitado terras asiáticas, pois esse tinha sido o seu objetivo. f) Do ponto de vista cronológico, é inevitável concluir que os normandos foram os descobridores da América e que a viagem de 1492 foi apenas um rcdcscobrirnento. Mas esta é uma maneira superficial e falsa de considerar a questão, porque o mero achado físico não é o significativo. É necessário examinar o problema a partir da intencionalidade de ambos os atos. A tNVENt,'AO DA AMI'I\H ~A g) Assim consideradas, as cxpedi,'(Ws 1\(1I11111I\d:l~~Il()11111f:llo 1'1l<:\I:lI,porque o achado de terras amcrirnun» dl'vl'-sl' 11111111111!lV(' 'l'I{' foi lançada em direção a elas por umn 1('IIII1I'14llldl'.() 11111 . orrcspondc ao impulso de um cego fcnõrncuotclúrlro 1JIlIIli'll'l\l( 10 dcstino humano, de sorte que, do ponto ele ViSl1Idll 'H111 motivação, não constitui um descobrimento da América <[11(',pu. ,h·(1niçào, implica um ato intencional. A empresa de Colombo, em compensação, não é um aCOI1I('. I imcnto fortuito, porque resulta de um projeto científico qu rorrcsponde ao impulso do trabalho intelectual, longa e penosa- 111('I1Lecultivado desde o alvorecer da humanidade. Não é um ato .rrbitrário e indiferente ao destino histórico do homem, de maneira que, por sua motivação, pode constituir um verdadeiro descobri- 'I\('l1tO. 11) Constata-se (]ue Humboldt, fiel à sua visão, desconsidera, ptu:screm carentes de sentido, os propósitos c as crenças pessoais .I" Çolombo; se o ato realizado por ele p'arece intencional c não f; )rtuit:Q~Otql(e o cousideI:a-l"tão-CO..lllü indivíduo mas com nsuauuenrc dos de"signi.o..s..da..higória. i) Ainda que estas considerações bastem para explicar por <[\1(' "no é possível atribuir aos nonnandos o descobrimento ela ÂIl\('" Iira, elas não esclarecem por si sós o sentido concreto que 1('111:I empresa de Colornbo como descobrimento nem como pode S('J' ai ribuído à sua pessoa. Se sabemos que não se trata de UIII alo íortuito, ainda não sabemos em quê consiste nem como COIOlld)() 1'II111preo seu papel de instrumento dos desígnios da história, Ú!lira husc para conceder-lhe o título de descobridor. j) O que faz da empresa colombiana o ato significativo que S conhece como o descobrimento da América é que, nessa empresa, n'alizou-se um desses progressos dos conhecimentos científicos em q\l(' se fundamenta, segundo vimos, a própria essência da marcha do homem em direção ao seu destino histórico. Foi assim qu 1'111regou à contemplação dos sábios, vicários dos interesses da luunanidadc, uma porção desconhecida do globo terrestre, abrin- .lo-sc a possibilidade de completar, com o estudo das regiões 51 Maria Julia Realce Maria Julia Realce 52 EDMUNDO O'GORMAN tropicais da América, a visão científica da parte do cosmos que é diretamente acessível à observação. Com este enriquecimento, tão longamente esperado, o progresso do espírito humano logo pôde alcançar a sua primeira culminância, porque foi possível assentar as bases inalteráveis de conhecimentos absolutos, as bases, enfim, da nova revelação, "a ciência do cosmos", da qual Alexandre von Humboldt é o evangclísta e o supremo pontífice. k) Mas se nisso se fundamentou o descobrimento da América, como responsabilizar Colombo por tão grande façanha? Pode-se realmente ai ribuir-lhc? Humboldt responde afirmativamente. Não " ali nua, que Colombo tenha sido um sábio nem mesmo um mediano homem de ciência, embora possuísse um espírito inquie- to que muito o distingue de um vulgar aventureiro, unicamente atento ao proveito próprio. Não, a razão decisiva é que Colombo foi sensível à beleza do mundo tropical e soube anunciar a boa nova da existência de tais regiões. Jamais se cansa de contemplá-Ias e de extasiar-se com elas; em seus escritos, esforça-se por transmitir o entusiasmo que elas lhe provocam. Por isso, em que pese sua tosca linguagem, se alça sobre Carnões e outros poetas da sua época, presos ainda às ficções literárias de uma suposta natureza arcaica e artificial; também por isso, Colombo é o descobridor da América. De fato, o poético vôo de seu entusiasmo foi a via adequada para noticiar à Europa, onde pousava o espírito da história, a abertura desse novo campo de observação, em que consiste, definitivamente, o ato descobridor. Foi assim que Colorn- bo desempenhou, cabal e plenamente, seu papel de porta-voz dos interesses da humanidade e de instrumento das intenções da história. l) Nada disto acontece no caso das expedições dos normandos. Beneficiários de um achado fortuito, souberam apenas fundar uns estabelecimentos comerciais que, por outro lado, mostraram-se precários. Além do mais, como as regiões setentrionais por eles exploradas não ofereciam um novo espetáculo da natureza, se por acaso a notícia do achado ultrapassou o estreito círculo dos povos A INVENCAo DA AM('RI(;A para os quais era familiar, não 1'0<1('ti'I' uenluunn sjHllillc;\~'; verdadeira. Não houve, pois, um dcscobrtuicuro pl'OprillllH'lltv e1ito.5o Eis aqui esclarecido o enigma que rodeava a 1('14(' (h, 11 VIIl!(.'1i Eis aqui a solução que corresponde à segunda etapa do IlJi)(·(''lNO. Apesar da ameaça que significou o pleno reconhecimento d(l propósitos de Colornbo e da sua idéia de haver explorado regkkll Ia Ásia, pôde-se satisfazer a exigência de manter em vigor a velha interpretação da empresa de 1492 e resolver o problema de atribuir a Colombo o ato do descobrimento. Para isso, foi necessário recorrer ao arbítrio filosófico de postular, acima das intenções individuais, uma intencionalidade imanente à história que, na esfera leiga, é a contra partida dos desígnios divinos do providen- -ialisrno cristão, conforme a tese do padre Las Casas. Mas agora, semelhante arbítrio produziu o efeito contrário, porque em lugar de revelar como verdade histórica os propósitos pessoais de Co- lombo e a sua crença de os haver realizado, tornou-os sem efeito por serem historicamente inoperantes. Foi assim, portanto, qu pela segunda vez, se bem que de um modo mais sutil, ocultou-se () objetivo asiático da empresa e a convicção que Colombo eleve I('J" explorado regiões da Ásia, ocultação necessária, como sabemos, para poder atribuir-lhe o descobrimento da América. Com a tese teleológica que examinamos, o processo recuou :'\ sua segunda trincheira; agora só nos resta ver como sobreveio a crise final quando, em virtude da dissolução do dogma idealista, ()i necessário renunciar ao seu apoio. T entar-se-á, veremos a segui r, \l1ll último recurso para manter a idéiado descobrimento da América, mas um recurso que serve apenas, definitivarncntc, p.ira Irvclar o absurdo que implica semelhante maneira de explicar aparecimento dessa entidade. ',no Para uma exposição mais detalhada da tese de Humboldr, veja-se meu livro LII idell tli'/ dcswbrimien!O, Terceira Parte, X, 2. ',I , 1~1\l I rving encontramos um eco nítido da tese idealista explicitada tão magisiralmcn- li' por Humboldr. Irving, op, cit., XVIlI, v. 5 ~---..-:..;~ Maria Julia Realce Maria Julia Realce 54 EDMUNDO O'GORMAN VIII Enquanto se pôde acreditar, com o idealismo, que a história era um processo em que fatalmente iam se cumprindo, segundo Kant,52 as intenções da Natureza, situadas além da esfera dos propósitos e das vontades individuais, a viagem de Colombo pôde continuar a ser entendida como o descobrimento da América, conforme a concebeu Alexandre von Humboldt. Mas quando aquela persuasão filosófica, ou melhor dizendo, quase religiosa, entrou em crise depois de haver alcançado o ápice, os historiadores, ainda que os primeiros rebeldes, pouco souberam até que ponto ficavam desamparados e expostos. Em decorrência das orientações fixadas pelo positivismo científico, a verdade histórica deveria repudiar o ilusório auxílio de todo o apriorismo metafisico por ser mpiricamente não comprovável e ater-se, em troca, à observação dos fenômenos para poder reconstruir, segundo a célebre fórmula de Ranke, o que" em realidade aconteceu". Isto quer dizer que os historiadores se comprometeram a reconhecer, como fonte do sentido dos acontecimentos históricos, os propósitos e as convic- ções pessoais dos indivíduos que deles participaram. Dir-se-ia que, finalmente, havia chegado para a empresa de Colombo a hora de que fosse compreendida com o sentido que teve para ele. Mas o certo é que, apesar das novas exigências metodológicas e das inúmeras pesquisas que enriqueceram a historiografia colombiana desde os fins do século XIX, manteve-se a interpretação tradicional na unânime crença de que Colombo havia descoberto a América quando, em 1492, encontrou uma ilha que acreditou pertencer a um arquipélago adjacente ao Japão. Para termos uma idéia da maneira pela 'qual se sustentou essa velha idéia, convém, antes de tudo, fixar a tese respectiva, para cujo efeito vamos empregar o texto que, entre outros possíveis, parece representativo, tanto pela sua recente publicação, quanto pelo 52. Kanr, Idea de !tna historia universal en sentido cosmopolita, 1784, Preâmbulo. A INVENÇÃO DA AMÉRICA aplauso com que foi recebido e, também, pela scricdad prestígio científico do seu au to r. 4. Morison. Admiral of the ocean sea.5 a) Corno é de rotina, a empresa sil1la-se no ambicnt« cln ('porn e, em particular. relaciona-se com o desejo comum que huvln "do estabelm,mento da comunicação ~n~at:.ítin~acom ;s regi~es cxtrcmc orientais da Ásia. b) A idéia central que motivou Colombo, diz Morison, foi concretizar esse anseio, mas escolhendo a rota do poente. Seme- lhante projeto nada tinha de novo. O extraordinário no caso de Colombo não foi, pois, a ocorrência, mas o ter-se convencido de que era factível e a decisão de realizá-Ia. Morison admite como finalidade única da empresa o objetivo asiátíco." c) Na narração das quatro viagens, o autor reconstrói minucio- samente os itinerários e esmera-se em identificar no mapa atual da América os lugares visitados por Colornbo. d) Morison empenha-se, além disso, em mostrar que, em mci às mais variadas hipóteses de detalhe, Coíombo sempre csicv .onvencido de que havia chegado à Ásia desde a primeira vez qu ncontrou terra em 1492.55 e) Apesar de um reconhecimento tão expresso das intenções pessoais de Colornbo e da sua opinião a respeito do que havia feito, Morison não tem nenhuma dúvida de que, em verdade, o que' o Almirante realmente fez foi descobrir a América. Mas, como e por quê? f) Explica, numa passagem decisiva, que embora Colornbo I \:10 tenha tido jamais o propósito de encontrar o continente ',\ S!lIllUcI Eliot Morison, Admiral of the Ocean Sea, A lire of Christopher Columbus. I\(mon, 1942- '" Ihl(1. VI. ',', I, verdade que Morison diz que, na terceira viagem, Colornbo "admitiu ter "IIIOl1lrado um novo couunenre". lbid VI, v. I, p. 76, mais adiante esclarece que I'.~I· "OUlrO mundo", como denominou-o Colombo, não era para ele senão um t1,·•• ·I,"hecido apêndice da Ásia. lbid. XXVII, v. 2, p, 40-!. 55 pelo Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 56 EDMUNDO O'GORMAN americano nem tenha abrigado a suspeita de que existia, a verdade é que descobriu a América inteiramente por acidente, por casuali- çlade.56 Eis aqui, pois, a resposta que corresponde à terceira etapa do processo, a tese do descobrimento casual, que hoje se ensina e se venera como verdade e que serviu de ponto de partida para esta pesquisa. Com ela, portanto, termina a reconstrução histórica que nos propusemos a fazer. Vamos agora examinar essa tese para ver se contém 011 não um absurdo, segundo antecipamos. IX J;í que se trata de colocar à prova uma interpretação, é couve- nicnte, antes de tudo, ter uma idéia clara do que isso significa. O essencial a respeito consiste em reconhecer que qualquer ato, se for considerado em si mesmo, é um acontecimento que carece de sentido, um acontecimento do qual, portanto, não podemos afirmar o que seja, isto é, um acontecimento sem ser determinado. Para que o tenha, para que possamos afirmar o que seja, é necessário atribuir-lhe uma intenção ou um propósito. No momento em que fazemos isso, com efeito, o ato ganha sentido e podemos dizer o que éj concedemos-lhe um ser entre outros possíveis. A isto se chama uma interpretação, assim, podemos concluir que interpretar um ato é dotá-Ío de um ser ao atribuir-lhe uma intenção. Exemplificando: vemos um homem sair de sua casa e dirigir-se a um bosque próximo. Esse é o ato considerado em si mesmo como um puro acontecimento. Mas o que é esse ato? Obviamente pode ser muitas coisas diferentes: um passeio, uma fuga, um reconhecimento levado a termo com fins lucrativos, uma explora- ;ão científica, o início de uma longa viagem ou, enfim, tantas outras 56. lbid. VI, v. I, p. 76. A lNVENCAo DA AMljIUCi\ 7 .oisas quantas possam ser imaginadas, s(,lllpn' (11, 1I('()J'do ('01\\ n intenção que se supõe naquele homem. Isto parece claro e não há necessidade de nck- illsi~lll'. MII,~ (\ necessário, por outro lado, ver que essa possibilidnde qlll' lI'IlI()!-l de atribuir um sentido. a um ato ao interpretá-lo, tem um 1111111\'. A intenção que se supõe deve-se atribuir a um agente, não lH'n'-:~I\' riamente capaz de realizá-Ia por si mesmo, pois que se pode VIIII'I' de outro, mas sim necessariamente capaz de ter intenções, porqw' do contrário se incorrerá num absurdo. Assim, há muitos entes os quais podemos conceber - e de fato se tem concebido - como capazes de vontades e de realizá-Ias por si mesmos, como Deus, os anjos, os homens, os espíritos de além vida e mesmo os animais, e outros que são capazes do primeiro, mas não do segundo, como são certas entidades metafísicas, a Natureza ou a História Univer- sal, segundo a entenderam e a entendem algumas doutrinas filosóficas. Mas o que não se pode conceber são os entes inanima- dos, como as figuras geométricas, os números ou os objetivos materiais, um triângulo, uma mesa, o solou o mar, por exemplo, Se o fazemos, ou é metaforicamente, como quando se diz qu mar não quis que a Espanha invadisse a Inglaterra, ou então cstarnos cxtrupolando. Fica claro que, no limite, a interpretação de um ato pode ser plausível mesmo quando o agente que o realiza seja incapaz de ter intenções, desde que o propósito que dá sentido ao ato proceda de um ente capaz de tê-Ias: mas será absurda em caso contrário, mesmo quando o agente que o realiza tenha essa capacidade. Examinemos agora, à luz destas considerações, o processo da história da idéia de descobrimento da América-urna vez que se tra- Ia de três maneirasdiferentes de interpretar um mesmo ato: a viagem de Colornbo de 1492. Primeira etapa do processo: a interpretação consiste em afirmar lUC Colombo demonstrou que as terras que encontrou em 1492 eram um continente desconhecido, porque com essa intenção realizou a viagem. (Item IV) Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 58 EDMUNDO O'GORMAN Neste caso, trata-se de unia interpretação admissível, porque a intenção que dá ao ato interpretado o sentido de ser uma empresa descobridora, baseia-se numa pessoa, ou seja, num ente capaz de tê-Ia e de realizá-Ia. Mas já sabemos que esta tese teve de ser abandonada porque seu (uudarnento crnpírico mostrou-se doeu- mentalmente insustcntüvcl. Segunda etapa cio processo: a interpretação consiste em afirmar que Colornbo demonstrou que as terras por ele achadas em 1492 eram um (,()lllil1\'I\I(\desconhecido, porque se é correto que nem essa era a illll'IH;:10com a qual realizou a viagem, nem teve idéia do qlH' havia (eilo, ao executar o seu ato, cumpriu a intenção da II isióriu, que era a de que o homem haveria de ter conhecimento ela existência do referido continente. (Item VIl) Neste segundo caso, a interpretação ainda é admissível, porque a intenção que dá sentido ao ato interpretado de ser uma empresa descobridora fundarncnra-sc no próprio ato, isto é, concebe-se como imanente à História, entidade que se pode conceber como capaz de ter intenções, embora não de as realizar por si mesma, de maneira que se utiliza de Colombo como de um instrumento para esse Iim. Mas sabemos que esta tese também teve de ser abandonada, não por deficiência de Iundamcnto empírico, como no caso anterior, mas gorque sua premissa teórica mostrou-se insustcnuivcl, Terceira etapa do processo: a interpretação consiste em afirmar que Colombo demonstrou que as terras encontradas em 1492 eram um continente desconhecido, encontrado puramente por casualidade, isto é, sem que haja mediação de qualquer intenção a respeito. (Item VIII) Neste caso é óbvio que, do ponto de vista dos requisitos de uma interpretação, a tese oferece uma séria dificuldade, porque não obstante negar-se a intenção, continua a se dar ao ato o mesmo sentido das teses anteriores. Como isto é impossível, porque sem aquele requisito o ato não poderia ter o sentido que se lhe da, torna-se forçoso supor que a intenção existe apesar de negada; o problema assim apresenta um duplo aspecto: primeiro, como conciliar essa contradição e, segundo, averiguar onde existe essa A INVENCÃO DA AM t':I1.ICA intenção, que foi necessário supor para </\1(' O alo IHI<I(\$1'I'ter o sentido que se lhe atribui. Pode-se evitar a contradição, se tivermos pn'IWIII(' 1l!1(),~('I' necessário que o agente seja aquele que tem a inlclHii10qUt' dl\ N('\I sentido, porque já sabemos que pode agir como mero in1'II'UIIH'lIto de um desígnio que não seja o seu pessoal. Desse modo, Colomho teria revelado, sem a intenção de o fazer, a existência das terras q\l(' encontrou, cumprindo um propósito alheio, de maneira que, de ponto de vista de Colombo, seria lícito afirmar, como faz a tese, que o ato não foi intencional, embora, em realidade tenha que o ser. Em outras palavras, apenas supondo que Colombo agiu como instrumento de uma intenção diversa da sua, evita-se a contradição que indicamos e a tese fica a salvo por este motivo. Mas onde se fundamenta, então, essa oculta intenção que dá o sentido de descobrimento à viagem de 1492? A resposta, por stranho que pareça, não admite dúvida. Com efeito, todo ato oferece três possibilidades, a saber: o sujeito do ato, o ato em si e o objeto do ato. Como, no caso, já se ensaiaram e descartaram as duas primeiras, somos obrigados a concluir que, nesta terceira tapa, a intenção ficou vinculada como imanente à coisa que se diz que foi descoberta. Mas se assim é, a tese incorre num absurdo, porque rebaixou o limite admissivel a qualquer interpretação, pois o continente americano não é, obviamente, alguma coisa capaz de ler intenções. Estes são, conseqüentemente, o segredo e o absurdo desta tese; em verdade, conhecendo-os, esclare~e-se o que, desde o início, nos parecia tão suspeito, ou seja, que se pode responsabilizar um homem por algo que expressamente se admite que não fez. De r:\IO, por pouco que se pense, constatamos que quando se afirma que Colombo descobriu por casualidade o continente americano por haver deparado com umas terras que acreditou serem asiáticas, isto é, quando nos pedem que aceitemos que Colombo revelou o \CI' de urnas terras diferente do ser que ele lhcs atribuiu, o que em n-nlidadc nos estão pedindo é que aceitemos que essas terras revelaram seu secreto e escondido ser quando Colombo deparou 59 Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce Maria Julia Realce 60 EDMUNDO O'GORMAN com elas, pois de outra rnanerra não se entende como pôde acontecer a revelação que se diz ter acontecido. O absurdo desta tese torna-se patente no momento em que extraímos a necessária conseqüência, porque agora vemos que a idéia do descobrimento casual do continente americano não só anula, por serem inoperantes, os propósitos e as opiniões pessoais de Colornbo, como também o converte no dócil e cego instrumento, não de uns .supostos desígnios do progresso histórico, mas de umas supostas intenções iman'cntes a lima coisa meramente Iisica. Mas está claro que, ao admitir isso, atropelamos o processo histórico e privamos o homem da j<iaté problemática liberdade que lhe concedia o idealis- 1110. Agora, em lugar de conceber a história como o resultado das decisões circunstanciais tomadas pelos homens e por eles realizadas, é concebida como o resultado de propósitos imanentes às coisas, cega e f::ltalmente cumpridos pelos homens. Assim, o homem já não é o servo do devir histórico, concebido como um processo de ordem racional, segundo acontece com o idealismo - o que já é bastante grave - mas é o escravo de não se sabe que processo mecânico dos entes materiais inanimados.ê? x A análise histórica da idéia do descobrimento da América mostrou que cstarnos na presença de um processo interpretativo que, ao esgotar sucessivamente suas três únicas possibilidades lógicas, fatalmente desemboca no absurdo. Essa história constitui, 57. Esta é a contradição que sustenta, no lundo, o materialismo contemporâneo que é apenas a situação liruitc a que leva o idealismo rranscendcnral. Nossa análise demonstra que se podc adorar a seguinte seqüência, como esquema íundaruental do desenvolvimento histórico da filosofia da História: 1) Providencialismo: a intenção dos atos humanos esta em Deus. 2) Humanismo transcendental. a intenção CSI:.\ no indivíduo. 3) Idcalismo transccndonml, a intenção eSQ nos próprios atos, ali seja, na História. 4) Materialismo transccndenrah a intenção eSQ no objeto. 5) Humanisll10 histórico: a intenção eSQ no homem, mas sem pretensões de verdade absoluta. A INVENCÃO DA AMi':RICA pois, urna reductio ab absurdum, de tal sorte ((\1(' (·Ia llH'SIII:t(\ o melhor argumento para refutar, de maucirn dt,(111itiv:I, ;\(1\1('1\, modo de querer explicar o aparecimento da AIIH\rirll 110 nlllhlto dll Cultura do Ocidente. Agora é preciso extrair as COllSt'q(\(\llrlIIN, mas antes faz-se necessário examinar um último problcmn, tlll)ft) mais que assim se nos oferece a ocasião de penetrar até a rulz do mal que oprime todo o processo. Parece claro que nossas reflexões estarão incompletas, se nã nos dermos conta das três questões fundamentais que delas derivam. Primeira, a quê se deve a idéia de que a América foi descoberta, isto é, qual é a condição de possibilidade da própria interpretação. Segunda, como explicar a insistência em manter a referida interpretação contra a evidência empírica, isto é, por que não foi abandonada a partir do momento em que se tornaram patentes os verdadeiros propósitos e as opiniões de Colombo. Terceira, como
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