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Para ilustrar o conceito de transferência, utilizamos o caso Dora como base de estudo. Tal paciente transferiu para Freud os sentimentos negativos que nutria pelo seu pai. Dora não confiava em Freud assim como não confiava em seu pai, e se vingou dele o abandonando após três meses de terapia. Os padrões da transferência se acham nos padrões das relações amorosas. Tal padrão é fruto da disposição inata e as primeiras experiências de vida. No início do tratamento, via de regra, observa-se a emergência de um vínculo muito agradável na situação analítica. O paciente mostra-se entusiasmado com a pessoa do analista, supervaloriza suas qualidades, é amável e reage de modo favorável às interpretações, esforçando-se por compreendê-las e se deixando absorver pela tarefa. A livre associação, assim como o material mnêmico, aparecem em profusão. Além da relação cordial que prevalece durante o trabalho, ocorre uma melhora objetiva em vários aspectos da doença. Estamos em plena vigência de uma transferência positiva. A transferência positiva é um fenômeno que facilita o processo analítico. Torna o paciente mais suscetível à influência do analista por nutrir por ele um sentimento de empatia, respeito, admiração etc, que o faz baixar as resistências e se esforçar por associar livremente. Esta relação amistosa, entretanto, não pendura indefinitivamente. Logo surgem dificuldades no tratamento, que se revelam de diversas maneiras, refletindo-se na impossibilidade de o paciente continuar seguindo a regra fundamental. Como reconhecer esta resistência ao tratamento? A resposta é: toda vez que aparecem dificuldades de comunicar os pensamentos (isto é, torná-los públicos), interrompendo o processo associativo. Muitas vezes isto surge com a constatação do paciente de nada mais lhe ocorrer à mente, ou de não mais estar interessado no trabalho. Os termos "positivo" e "negativo" se referem a natureza dos afetos que são transmitidos ao analista; e não a consequência deles. A causa básica dessas dificuldades, refere Freud, é o paciente ter transferido para o analista seus componentes pulsionais: sentimentos intensos, afetos, enfim, por ter colocado em ato suas disposições internas junto à figura do analista. Esse processo acaba se tornando um empecilho para o trabalho do analista, isso ocorre na transferência erótica e na transferência negativa. No que diz respeito à transferência erótica, Freud a define como uma "inclinação amorosa" que, diferentemente da transferência positiva, torna-se intensa, revelando sua origem localizada em uma necessidade sexual direta, que inevitavelmente produz uma oposição interna a si própria. O analista deve reconhecer que a paixão depende mais da situação do tratamento do que de si próprio, e além disso, o analista nunca deve corresponder ao amor do paciente, nem pedir para o sujeito sufoca-lo. Ao apaixonar-se, o paciente perde interesse pela analise em si. Assim, tal paixão seria como um mecanismo de resistência, impedindo que o tratamento continue, desviando o interesse do paciente para o analista. A resistência faz uso do amor transferencial, e o intensifica. Já a transferência negativa reflete o deslocamento de impulsos agressivos em vez de libidinais. Os sentimentos hostis costumam se ocultar por detrás dos afetuosos, e tendem a se revelar mais tarde, embora também se possa encontrar a coexistência de ambos, marcando a ambivalência emocional. Tanto quanto os sentimentos afetuosos, os hostis indicam a presença de um vínculo afetivo, ainda que com um sinal de menos. Eles devem ser considerados transferenciais porque, tanto quanto os impulsos amorosos voltados para o analista, não podem ser creditados à situação analítica. Ou seja, o tratamento não proporciona qualquer fundamento para sua origem. A transferência, no entanto, não está apenas presente nas sessões psicanalíticas e nos divãs. De um modo geral, ela é um aspecto inerente à personalidade humana. Ela perpassa os mais diversos nichos de relacionamentos que se estabelece entre as pessoas. Quando projetamos em alguém expectativas irreais que gostaríamos que essa pessoa assumisse. A contratransferência é definida como um fenômeno relacional da clínica analítica, pois surge "como resultado da influência do paciente" e, portanto, está intimamente vinculada à transferência, aspecto central do método analítico. Sua definição, nesse momento inicial, engloba as reações emocionais inconscientes do analista frente às investidas afetivas do paciente. Entretanto, tais reações emocionais são consideradas por Freud como obstáculos ao tratamento analítico e como tal devem ser reconhecidas, ou seja, diferenciadas das emoções do paciente e por fim dominadas. Mesmo ressaltando a necessidade de controlar as reações contratransferenciais frente ao paciente, a receptividade do analista à transferência e aos elementos inconscientes do paciente, para Freud essas reações não são, entretanto, algo a ser evitado. Freud pontua ao escrever o artigo "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise" que o inconsciente do analista é uma das principais ferramentas para a investigação do psiquismo do paciente. A metáfora do inconsciente como receptor telefônico tem a finalidade de esclarecer essa ideia. Ele [o analista] deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor. Assim como o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações elétricas na linha telefônica, que foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente (Freud, 1912). Portanto, o manejo da contratransferência – dentro e fora da análise – tem importância crucial para a continuidade do tratamento. Nas palavras de Freud (1910/2006b, p. 150), "nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas". A neutralidade frente aos conflitos emocionais do paciente funciona como defesa contra a carga emocional advinda da transferência e permite a liberdade de atenção na escuta. Além disso, possibilita ao analista utilizar seu inconsciente como instrumento de captação e contenção e, a partir dessa recepção, deixar os elementos inconscientes do paciente tomarem espaço dentro do próprio psiquismo para, por fim, poder reconstruir esse inconsciente.
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