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Gertrud von le Fort A úLTIMA AO CADAFALSO NOVELA Tradução d Roberto Furquim + VOZES Petrópolis 1988 http://alexandriacatolica.blogspot.com.br http://alexandriacatolica.blogspot.com.br CID 1988, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689 Petrópolis, RJ Brasil Diagramação Valderes Barbosa Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda. em maio de 1988. P-refácio QuANDO pensamos dominar o mist6río humano em sua graça e beleza, c-iosos da justeza de nossas bem elaboradas análises, ele 1 'JS surpreende dei xando-nos boquiabertos diante de suas revelias. E, aí, concluímos: pobres somos n6s, presunçosos ro tuladores apressados de nossas indevassávcis paisa gens interiores. Nosso mistério é insondável. Sobrf: ele não se pode dizer uma última palavra. Ele será sempre maior que nossas mãos que o pretendem aprisionar e nossa cabeça que pensa defini-lo. O úni co que pode tratá-lo bem é o coração que não se afadiga em acariciá-lo. Tudo isso se torna luminoso no livro A úl ti ma ao Cadafalso, da escritora alemã Gertrud von le Fort . Torna-se difícil policiar o encantamen/() e o entusiasmo diante desta obra. O mínimo cJIIL' .1·e pode dizer dela é que é maravilhosa, uma leitura para a alegria do espírito. Não se trata apenas de literatura, que ela é, em seu estilo apurado, de beleza irretocável e graça arredondada e pura; tra ta-se também de deixar-se surpreender pela delira- 5 deza e sensibilidade, fina e re/inad�� de u,.ra e;cri tora que é mulher, consistente em suas flnálius do mistério humano, rica em suas ab':Jrdagens e 5em pr� fascinante em suas medidas. Gertrud von te Fcrt é uma grande escritora, só comp(Áráve:, sob alguns aspectos, à recém-falecida autora francesa Marguerite Yourcenar. Mas e!a é t�Jmbém tema mes tra dos nossos segredos mais escondidos. Ao lê-la, tem-se a certeza de que ela não está ma!tratando o nosso mistério, sempre bonito e fecunJo, embora perpassado de temores e tremores. A novela A última ao Cadafalso foi escrita em 1931 e na"a a história do martírio de 16 mon jas Carmelitas, vítimas da Revolução Francesa, no mto de 1794. Esta Revolução escrevera em sua bandeira os ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Mas ninguém é tão fiel a seus ideais a ponto de suportar, democraticamente, o falseamento apatente, por terceiros, de suas intuições salvado ras. E foi isto o que se passou, também, com os propugnadores de tão altos valores revolucionários. A imaturidade ainda dissoluta dos que proclamavam a liberdade atropelou e levou à guilhotina os que não cantavam a ((Carmagnole" e não davam, em praça pública, vivas à Nação. O condutor da trama do livro sentencia com justiça, sem nenhuma amar gura: ((O trágico não foi que nossos ideais tenham sido falsos, mas apenas insuficientes'' A novela A última ao Cadafalso é mais do que a história trágica de 16 monjas, inofensivas e frágeis, que sobem para o sacrifício final de suas vidas, cantando e testemunhando sua fé. Nela se retrata, cruamente, o permanente problema huma no, até hoie irresolvído: O que fazer com o poder? Como usar a força? Ou, em outras palavras, quem é forte? Quem é fraco? Quem é qne vence a luta pela sobrevivência? Ou quem é que permanecerá vivo na memória das gerações futuras: os tiranos que usam e abusam do poder ou o povo que, com dignidade, sobe ao patíhulo, testemunhando Stws crenças e cantando seus hi-nos? Gertrud von le Fort concentra suas análises em duas personagerzs dentro de ;mz moJteiro car melita: a primeira, Irmã Maria da Encarnação, é .forte, goza de raro discernimento áas situações, é intremível nas decisões, mostra grandez(l e majes tade, mesmo quando reduzida ao silêncio e à obe diência. S a Superiora da comunidade. 11 se.�zmcla, a noviça Blanche de la Force, que as coirmãs tei mam em cognominar ude ltl Faiblcsse", L� tímida e amedrontada, frágil e de"otada, trânsfuga do mo�· teiro e marcada pelo medo desde o útero 1/Wlerno. Vive angustiada, embora creia em si mesma, ou melhor, numa força que parece mbjazcr à c:af>(/ frágil de sua personalidade. Quem delas está nt(JÍJ preparada para o grande desafio do f!J(lrtírirJ'? Q"c'lll cantará mais forte diante da guilhotina? A pessoa é, na verdade, muito mais elo que suas aparências. O seu mistério profundo a suplan ta, decisivamente, para o espanto de si mesma e para a admiração dos outros. Sobre cada vida, quem poderá dizer a última palavra, lavrar um juízo de finitivo? Tentamos fazê-lo, superfiâalme11te, quase todos os dias. Mas o mistério do ser humano de veria recolher-nos a um respeitoso silêncio, pois, para surpresa nossa, a última ao cadafalso pode vir a ser uma monja .fraca e amedrontada. Delt� pode ser o canto mais forte diante da lâmina relu zente da p,uilhotina e dos apup-os bizarros de uma tnultidão imbecilizada por ideais nul-digeridos. MaiJ 7 do que nossas coragens) valem as forças esiranhas que se escondem palpitantes no fundo do nosso ser, que, p4ra os cristãos, se chamam tie graça e, para todos os homens, de mistério: O insondâvel mis tério humano, que Gertrud von te Fort tão bem tratou neste livro genial. Frei Neylor J. Tonin, O.F.M. 8 http://alexandriacatolica.blogspot.com.br http://alexandriacatolica.blogspot.com.br Paris) outubro de 17 94 QUERIDA AMIGA: Em tua carta exaltaste, com razão, a energia extraordinária que o chamado "sexo frágil" demons trou possuir em face da morte, durante as semanas do Terror. Aludiste, com admiração, ao comporta mento da "nobre" Madame Roland, da "real" Mal"i<l Antonieta, da "admirável" Carlota Corday e da "heróica" Mlle. Sombreul ( reproduzo as tuns pró prias expressões) . Concluíste citando o "pungcn te" sacrifício das dezesseis carmelitas de Compicgne que subiram à guilhotina cantando o "Vcni Crentor" Não esqueceste também, na tua carta, a voz como vente da jovem Blanche de la Force que retomou e entoou , até o fim , o hino que o machado do car rasco interrompera. 9 "Com uma puJança que :orça a admiração assim termina a tua carta - afirma-se, em todas, quer sejam mártires da redeza, quer da Gi ronda ou da Igreja perseguída, a dignidade da na� tureza humana diante da veemência de um caos de atrocidades". Querida discípula de Rousseau ! Admiro mais uma vez a clarividente nobreza de teu espírito que, :nesmo no seio das mais terríveis derrocadas do gênero humano, acredita ainda na indestrutível dig nidade da nossa natureza. Contudo, minha amiga, o caos encontra�se também na natureza e tanto o carrasco de tuas heroínas como a besta habitam o íntimo do homem, onde também lançam suas raízes o terror e o espanto! Querida emigrante, muito mais que tu, estou eu possuído pelo espanto, com referência a esses acontecimentos de Paris, pois me acho mais perto deles. Permite-me, portanto, confessar-te francamente que me inclino a ver na admirável firmeza de nossas vítimas quotidianas não somente a dignidade da natureza humana, como também o último gesto de uma civilização em ruínas - dessa civilização, tão profundamente desprezada por ti. Ah, minha querida, devemos de novo aprender a respeitá-la ! A sua inflexível etiqueta se impõe, mesmo diante do pavor. Nesse nobre desfile mencionaste em último lugar a jovem Blanche de la Force. No entanto, não foi ela uma heroína no sentido que emprestas a esse termo. Essa delicada criatura não foi o exemplo da dignidade da natureza humana. Foi, a!ltes, o signo da fragiHdade infinita de toda a nossa força e soberania. Isto, aliás, confirmou-o a irmã 10 Maria da Encarnação, a ún:ca sobrevivente das reli glosas do Carmelo de Corr.piegne. Talvez ignores que Blanche de la Porc.:e foi uma religiosa fugida do Carmelo de Compiegne , ao qual pertencera durante certo tempo, como noviça. Deixa-me , então, falar uru instante desse curto, mas tão importante episódio, pois é nele - parece-me, ao menos - que se inicia o hino cantado ao pé do cadafalso. Conheceso marquês de la Force, pai da jo vem Blanche. Não preciso falar, pois, da admiração que este votava às obras céticas de Voltaire e Diderot. É também do teu conhecimento a sua sim patia por certos patriotas liberais do Palais Royal. Mas não havia, por parte do marquês, uma inten ção revolucionária que pudesse induzir a outras con seqüências. Esse fino aristocrata jamais pensou que os saborosos co:Idirnentos de snas conversações pu dessem chegar até a cozinha grosseira do povo. Mas não disputemos sobre os erros fatais de nosso po bre amigo. Como tantos dentre os seus semelhantes, ele próprio os expiou. (Ah, minha amiga, todos nós temos , em suma, andado a margear de muito perto essas idéias!). Mas, para o que se segue, interessn nos apenas saber o que pôde levar o marquês de la Force a confiar sua filha ao convento. No tempo em que Blanche residia em Com pi�gne, tive ocasião de avistar-me com o marquês. Discutia, então, com os amigos, sobre a liberdade e a igualdade, nos cafés do Palais RoyaL Cada vez que era interrogado sobre a filha, respondia, com um ar aflito, que para ele as " prisões da religião não eram menos terríveis que as do Estado,. Con fessava, porém, que sua pequena filha se sentia 11 feliz na sua e, sobretudo, - ao menos o acreditava - muito bem guardada. - Pobre criança medrosa - era com essas palavras que costumava concluir. - As tristes cir cunstâncias de seu nascimento determinaram toda a sua atitude em face da vida. E, de fato, era bem isto e todos o sabiam. Mas creio, querida amiga, que esta última alusão do marquês de la Force nada significa para ti, pois, na época da qual ele fala, tu eras uma criança. Trata-se da famosa catástrofe do fogo de artifício no casamento do DeJfim - mais tarde Luís XVI - com a filha do imperador da Austria. Pretendeu-se ver, então, nessa catástrofe, uma espécie de sinal: o sombrio presságio do destino reservado ao casal de príncipes. Ora, não era ape nas um presságio; era também um símbolo . (Que rida, as revoluções nunca são provocadas unicamente pela má administração e os erros de um regime . Estes são apenas as causas imediatas de sua defla gração; mas a essência das revoluções reside no de sencadeamento do terror-pânico de uma época que atingiu o seu termo. E é bem nisto que reside o elemento simbólico de que falo). De resto, é seguir um caminho completa mente errado considerar o deplorável incidente da praça Luís XV como efeito de uma negligência nas medidas tomadas para a manutenção da ordem. Esta opinião era propagada, na época, com o fito único de dissimular o que havia de enigmático na brusca explosão de terror desencadeada na multidão. (Nada é mais intolerável do que o mistério, para os nossos tempos esclarecidos ... ) . 12 Com efeito, todas as rn�didas possíveis ha viam sido providenciadas. Todas as precauções haviam sido tornadas para tais circunsrâncias, de modo que nada mais deixava a desejar. Aclamadas pela mul tidão reverente, as carruagens da nobreza - entre elas a da marquesa de la F<Jrce, então preste a dar à luz - conservavam-se fora da massa compacta dos pedestres e dos pesados caros preparados com esmero. As esquinas das ruas que iam desembocar na praça Luís XV estavam guardadas por funcio nários da polícia civil, que também dirigia o povo . Este era ainda bem comportado, bem nutri do, a despeito da já proverbial "miséria Ja época" Cada indivíduo parecia ser um burguês abastado e se sentia feliz com a sua condição. Na alegre expec tativa da festa, e na delicadeza que manifestava diante das injunções dos agentes da ordem, essa gente se mostrava bem longe do caos da anarquia em que seria laçada meia hora mais tarde. A explo são da catástrofe foi realmente tão brusca quanto inconcebível, pois era justamente um presságio. Um pequeno incêndio na reserva dos fogos de artifício, nenhum incidente pessoal, e o pânico surgiu como um relâmpago, alastrando-se por toda parte . Os policiais não puderam mais, de repente, erguer os braços, pois haviam sido tragados pe]a massa; os alegres e leais cidadãos haviam desapa recido com seus companheiros. Havia apenas um único, selvagem e monstruoso amontoado humano, esmagado pelo próprio terror da morte. O caos, que brame eternamente no mais profundo dos elementos, rompeu a crosta aparentemente firme dos hábitos. Pelas vidraças do seu coche real, que fora arrastado na onda terrível, a marquesa de la Force contemplava o horrendo espetáculo. Ouvia gritar por socorro os que tinham sido arremessados ao solo, gemer os que eram esmagados sob os pés, enquanto em sua espaçosa carruagem ela se sentia protegida como num barco. Com um gesto involuntário, apoiou sua mão delicada sobre a tranqueta da portinhola. Estava um pouco enferrujada, pois o coche era ainda dos tempos atormentados da Fronda. Nesta época, pu nham-se esses ferrolhos nas portinholas das carrua gens, pois nunca se podia saber com certeza se não se teria de fugir um dia na carruagem. Mas, depois, essas fechaduras perderam a utilidade. Se bem que certa de estar em absoluta se gurança, a marquesa sentia-se um pouco nervosa - o que não era de admirar, pois a vista de uma multidão é sempre para o indivíduo qualquer coisa de doloroso. Mas neste momento, ou porque os cavalos houvessem disparado, perturbados pela de sordem geral e pelos gritos, ou porque o cocheiro, perdendo ·a cabeça, quis libertar a carruagem do tumulto - o fato é que os animais arremeteram, de repente, e lançaram-se com violência contra a multidão que uivava de cólera e desespero. Cerca dos por todos os lados, os cavalos foram detidos. A portinhola da carruagem saltou - era o começo da anarquia. Por um momento ela se mostrou como o espectro anundador da revolução . - Madame - gritou com voz selvagem um homem que tinha em seus braços um menino co berto de sangue - a senhora goza agora do con forto de sua carruagem enquanto o povo é massa crado pelas patas de seus cavalos! Mas não passará muito tempo sem que morra a gente da sua espécie e sem que sejamos instalados em seus lugares ! 14 Ao mesmo temlJO, :t marquesa viu refletida em cem fisionomias a máscara do monstro do terror , semeando o pânico por toda parte. Um minuto de pois, era arrebatada do coche e no seu próprio rosto refletiu-se, então, o pavor da nultidão. Dizia-se que Blanche nascera na carruagem um tanto avariada que condu:t:ia sua mãe da praça Luís XV a casa. Este pormenor é um pouco fan tasiado pela crônica. Porque a verdade é que viram :J marquesa, com os vestidos em trapos c uma fjsio nomia de medusa, regressar a pé ao palácio. E tam bém que deu à luz a criança, prematuramente, pelo choque que sentira, morrendo pouco depois. Ora, não hesito - concordo, a este respeito, com o marquês de la Force - em relacionar as disposições que determinaram o comportamento da pobre menina com as circunstâncias de sua vinda ao mundo. Não somente a crença popular, mas a própria experiência dos médicos, consideram tais fe nômenos perfeitamente plausíveis. A jovem Blanche, cujo pavor experimentado por sua mãe fizera nascer antes do tempo, viveu sempre sob a influência da impressão que lhe cau sara esse primeiro sentimento de medo. Bem cedo demonstrou um temor que excedia muito ao que se observa geralmente nas crianças. Comumente, a criança se atemoriza a propósito de tudo e por um nada, o que é atribuído quase sempre à ignorância. O brusco ulular do seu próprio cão deixava-a toda trêmula. A fisionomia estranha de um servo novo fazia-a recuar como diante de um fantasma. Era impossível libertá-la do medo causado por certo nicho sombrio do corredor, diante do qual passava todo dia, conduzida pela governanta que lhe segu- 15 rava a mio. Viam-na agitar-se toda q_uando percebia no jardim um pássaro agonizando ou um caracol morto. Dir-se-ia, ao vê-la, que aquela pequena cria tura, digna de dó, se consumia na expectativa per pétua de algum terrívelacontecimento, do qual somente podia defender-se por uma espécie de vi gilância sem descanso , tal como os pe::.�ueninos ani mais doentes que dormem com os olhos abertos. Ou, então, como se os seus grandes olhos de crian ça aterrorizada penetrassem além da trama cerrada do presente até profundezas de uma fragilidade es pantosa. A escada não cairá? - perguntava Blan che, ao ser conduzida até o alto da torre fortifi cada do Castelo de la Force, berço de sua família, onde o marquês costumava veranear . Essa torre en frentara sete séculos e poderia resistir ainda outro tanto. - A muralha não ruirá? Não nos farão mal os homens? Eram interrogações que a pequena B1anche trazia constantemente aos lábios. Costumavam expli car-lhe que não havia motivo de medo e que nada lhe aconteceria. Ela ouvia com um rosto apreensivo, tudo examinava, pois não vivia integrada neste mun do e persistia no seu terror. Nem a doçura, nem a severidade , nem mes mo a indubitável boa vontade da pobre criança conseguiram melhorar sua disposição de espírito. Até mesmo concorria essa boa vontade , por assim dizer, para agravar-lhe a situação, pois Blanche se encon trava a tal ponto deprimida pela inutilidade de 16 seus esforços que, e111bora incessantemente encora jada, reputava a rneaor falta como pecado. Era-se tentado a afirmar que ternia o )eu próprio temor. Com o ternp(), 1Hanche inventou pequenos incidentes para disfarçar a sua atimde - pois era criança bem-dotada e não lhe faltava bom senso. I\ão a ouviam mais dizer: •< A escada não vai cair?" Mas o esforço a fatigava e a fazia sofrer, a ponto de ela esquecer-se, bruscamente, de estudar as suas atitudes. Achava, então, urn motivo qualquer para deixar de subir as escadas. Os servos sorriam e apelidavam-na "peque na lebre". Mas isso não parecia aborrecê-la. Até pelo contrário. Provavelmente ela sofria ainda mais com a sua fraqueza por ter de se esforçar para dissimulá-Ia. Podia-se mesmo perceber que esse es forço levava-a até a tortura. Jamais uma criança tão nobre e culta mostrou-se tão tímida e ruborizou-se com tanta confusão. O título elevado de sua linha gem parecia-lhe ter-lhe sido infligido por injustiça, como pura etiqueta, e o nome de la Fmce por der risão. Blanche era o único nome cabível, mais ainda se se pensava na palidez de seu semblante. Mas o nome que melhor lhe convinha era : jjpequcna lebre" Assim se apresentavam os fatos , quando o marquês de la Force contratou Mme. de Chalais para governanta. Essa admirável educadora conse guiu, por fim, vencer até um certo ponto a timidez da menina, cuidando, com tanto carinho, quanto firmeza, de sua instrução religiosa, até então deplo� ravelmente negligenciada. Isto, aliás, não admira, dadas as idéias liberais do marquês. Mas, para Blanche, essa lacuna era particularmente lamentável, 17 pois neste po:lto ela era muito diferente co pai: demonstrava possuir uma natureza �minentemente religiosa. Psicóloga, Mme. de Chalais mostrou grande clarividência, procurando concentrar a Henção da criança precisamente para o Menino Jesus. Blanche teve, então, seu !)rimeiro encomro com o "pequen::> Rei da Glória''. (Conheces, querida, aquela original figurinha de cera do Carmelo de Compiegne que - para o gosto das crianças - é exposta na ca pela, em dezembro) . O pequeno Rei tinha uma coroa e um cetro de ouro, oferecidos pelo rei da França: para de monstrar, assim,, que o pequeno Rei possuía o reino do cé.u e o da terra. Em reconhecimento desse presente, o pequeno Rei protegia a ele e aos seus súditos: podia-se , pois, viver com toda a confiança em França, sem pensar em escadas que se desman cham ou em muralhas que vão a baixo . Bastava testemunhar um pouco de confiança, como faziam Suas Majestades ao pequeno Rei. Para isto, não era preciso possuir coroa ou cetro. Era necessário, isto sim, a Ol'ação e toda espécie de pequenos atos de amor, de homenagem e de obediência oferecidos em sua honra . E, se assim se procedia consciente mente, poder-se-ia contar com a proteção do peque no Rei, com mais certeza do que com a do próprio rei da França. Ora, como já dissemos, Blanche era natu ralmente inclinada para a religião> mas, ainda assim, Mme. de Chalais deveria, no começo, enfrentar grandes dificuldades. Mesmo depois de tudo passa do, embora sentisse prazer em relembrar os seus sucessos pedagógicos, não gostava de falar deles. 18 - Deves convencec-te por t; mesma de que é facílimo , para o Rei do Céu, proteger-te - dizia lhe, com voz suave, mas incisiva, n:)s dias em que Blanche se punha a tremer ao subir a escada. - Pensa bem, se nosso rei terestre é poderoso, quanto não o será o do Céu! Blanche ergueu para a governanta seu peque no rosto cUl"ioso . Por um instante seus olhos pa- . ; . . rec1am pequenos passaras 1nqme tos. - Mas, se e1e perder a cotO<l? guntou, pensativa . - per- Mme. de Chabis, por um momento, ficou surpresa. De fato, essa objeção não lhe havia jamais passado pelo espírito. Mas logo se rckz, pois pos suía, em grau elevado, a arte de repelir questões que lhe pudessem embaraçar. Às vezes Blnnchc tinhn a impressão de que elas iam e vinham, rebatidas nas baleias de seu espartilho, um pouco ajustado. - Ora, Blanche, não pensaste seriamente nisso - dizia ela -. Não se perdem coroas como lenços de bolso. Trata-se, apenas , de se mostrar digno delas. Tu me prometeste jamais te esquecer de tua oração e podes estar certa de que, por seu lado, o Rei do Céu não negligenciará coisa alguma para te proteger. Acredita-me, nenhum motivo tens para atemorizar-te ao subires escadas. Blanche estremeceu - tratava-se da escada, a respeito da qual sempre indagava se não "caí ria" A contragosto, abandonou, então, a mão da gover nanta e tentava agarrar-se ao corrimão, quando, por acaso, a barra da balaustrada se quebrou. Mme. de Chalais percebeu, estampado no semblante de Blanche, todo o seu receio de pássaro 19 amedrontado. Por um insta�1te, o medo e a .:oo fiança trccaran olha1cs f:isando bem a anim osidade . Logo a seguir, porém� já não era mais a escada que caía, mas Mme. de Chalais. Dir-se-ia que tro cara de papel com a medros a criança . - Como ?O:les causar-me ta::tto medo? - grito'...l. E assim Ealar:do, lançou ligeiramente o busto para trás, provocando um ruído seco com as baleias do espartilho . Esse contágio, é claro, dissipou-se rapidame n te. Mme. de Chalais não era mulher que se per mitisse abandonar-se a tais sentimentos de temor. Os obstáculos que a governanta encontrava da parte de Blanche foram cedendo cada vez mais, à medida em que na sua inteligência jovem os pen samentos e as imagens da piedade cristã fizeram desaparecer os temores confusos. Isso não me custa compreender : ah, querida, que consolação decorre do mundo da fé! Recordo-me bem nitidamente, quando me volto para os dias da infância, da estra nha repercussão da prece, por todas as profundi dades do ser , até um ponto onde o pecado não atinge. Blanche deveria ter experimentado, então, fenômeno semelhante. Essa pobre criança repelia, com obstinação, todas as garantias terrenas com que se procurasse tranqüilizá-la. Mas chegou a abrigar confiantemente o seu pobre coração temeroso sob as asas da infinita Onipotência. A "pequena lebre" adquiria coragem. Mme. de Chalais teve a satisfação de ver Blanche chegar a sorrir de seus temores passados, zombar deles com pequenas brincadeiras de desprezo, que demonstravam a fanfarronice de sua idade, mas que deixava a todos tranqüilos. 20 Era, agora, uma delicacb nt(lcir.ha de dezes seis anosJ com uma boca pequena num rosto tam bém pequeno e um pouco fino. Mrne. de Chalais fê-la usar um espartilho tão apertado quanto o seu , o que lhe dava aos movimentos urr:� graça quase geométrica. Contudo, ninguén mais a achava medro sa. Enfim, as coisas tomaram outro rumo. Pm sua vez, o marquês de la Force não tardo:J em procurar casamentoadequado para a filha. Mas grande foi a sua surpresa, quando Mme. de Chalais lhe fez saber, em termos categóricos, que Blanche não se sentia chamada para o matrimônial mas, suu, para a vida religiosa. Não é preciso dizer que o marquês de la Force, homem perfeitamente integrado no espírito francês, que considerava a Igreja como coisa do passado, foi contrário a semelhante projeto. Foi visto, então, comentando, irritadamente, o fato de Mme. de Chalais, na qual depositara tão grandes esperanças, não ter encontrado algo de melhor, que ajudar a construção de uma ponte pela qual Blanche fugiria ao mundo. Essa criança seria ainda tão me drosa como dantes. Ora, para certas naturezas - argumentava o pobre marquês - é precisamente no claustro que desaparece essa terrível incerteza da vida. Nele, bem sólidas fronteiras delimitam o deserto das possibi lidades. As intrusões e as exigências inesperadas do destino não serão ali para temer, mas se pro gride entre regras, pensamentos e muralhas cons truídas de uma vez para sempre. Essas muralhas, mesmo, segundo a expressão do marquês, não se abriam mais para a ''realidade,., e não davam pas sagem senão aos amáveis fantasmas do céu e aos das religiosas. 21 Por mús abusiva que pudesse pare;:er tal interpretação: havia, certamente, em tudo isso, algo de justo no que diz respeito à decisãc de Blanche. Mas seria um grande erro considerá-lo em primeiro lugar. É preciso ter-se sempre em conta que Blan che era verdadeiramente religiosa. No Carmelo de Compiegne, onde Mme. de Chalais tinha relações, Blanche provocou a mais favorável impressão. A pdoresa Croissy, já doente, vivia ainda nessa época. A ela foi Blanche apre· sentada . PergWltando-lhe a madre se a severidade da regra a não atemorizava, respondeu com um ligeiro acento de bravata que lhe era peculiar nas questões de coragem: - Oh, minha madre, há outras coisas muito mais temíveis que pequenos sacrifícios! Mme. de Cha1ais informara a prioresa acer ca das dificuldades que Blanche experimentara. No Carmelo, a madre encontrou ocasião de indagar-lhe quais seriam , por exemplo, os motivos de seu temor. Blanche refletiu um momento e depois res pondeu, num tom que denotava certa hesitação: - Minha reverenda madre, não saberia dizê lo. Mas, se ordena, refletirei sobre isso e respon derei mais tarde . - Não, não o ordeno - apressou-se a dizer a madre Croissy. Nesta época, a superiora era ainda uma mu lher jovem, mas já afetada pelo mal doloroso que deveria bem cedo fazê-Ia sucumbir. Dizia-se que Deus lhe permitira sentir, durante certo tempo, um profundo pavor da morte. No tempo dessa crise, 22 viam-na sempre em oração diante da gruta do Monte das Oliveiras , no jardim do claustro. A simpatia particular que sempre dedicou a B:anche era com pletamente estranha a essa circunstância. (Com efei to, não era costume, nun:a ordem de regras tão rigorosas, aceitar uma jovem tão delicada). Por fim, o convento aquiesceu. Claro, não foi tarefa difícil para lVI.me. de Chalais, em face dessa decisão, vencer a resistência do marquês, ha bituada como estava a envolver o céu nos seus negócios, e, ademais, o matquês de la Force não gostava muito de chegar às últimas conseqüências de suas opiniões. Assim, Blanche atravessou o limiar da clau sura . E fê-lo, como se pôde testemunhar, com umn alegria tão íntima impressa no seu pequeno rosto um pouco abatido, que se ficou convencido, no Carmelo de Compiegne, de sua verdadeira vocação e lhe foi dada, logo, a esperança de tornar-se uma filha digna de santa Teresa. Passaram-se os primeiros tempos de postu lado de maneira igualmente satisfatória. É preciso confessar que Blanche não se conformou tão facil mente com as exigências severas da regra . Aos poucos, porém, ia-se adaptando. Era amável, solícita e submissa. Sobretudo, era muito feliz e reconhe cida. Teve-se a prova disto quando certos rumores inquietantes, que não se podiam evitar nesses tem pos, penetraram no seio da clausura. Estava-se, então, nas vésperas da convocação dos Estados Gerais. Afirmava-se que, em tais circunstâncias, o semblante de Blanche demonstrava um contentamen to indescritível. Viam-na bater as mãos como uma criança e exclamar com a petulância que lhe era peculiar : 23 - Mas isso não nos diz respeito . 0:..1 en:ão: - )Jada disso nc s interessa; aqu1 estamos :Jreservadas ! Mesmo no que se referk ao estilo peculiar da piedade carmelita , certas fórmulas heróic2.s tais como "Meu Deus , eu me ofereço totalmente a vós " ou '' 6 sofrimento, suave repouso dos que amam. a Deus, possas tu nunca faltar-me ! " - Blanche delas se apropriava com. rapidez surpreendente , assim como, outrora, aconteceu com as fórmulas igualmeme amáveis de Mme. de Chalais. Mas dir-se-ia que, insensivelmente, essas fórmulas adotadas com tão pouco esforço se apresentavam em toda a sua rea lidade . Houve, em conseqüência, um certo choque . Manifestou-se precisamente ao morrer a prio resa Croissy. Sua agonia foi bem dura. Ouviam-se os gemidos da moribunda, durante horas, em todo o claustro. Desconcertada, indagava Blanche , então, como era possível Deus ter reservado tais sofrimen tos a uma mulher tão santa . E demonstrava um espanto tão grande que as irmãs se escandalizavam . Adiou-se a sua vestidura , pois a mestra de noviças, irmã Maria da Encarnação, mantinha reser vas acerca dessa resolução. Entretanto, acabou por realizar-se a cerimônia, muito inesperadamen te. Estava-se no ano de 1 78 9 . Sob a pressão da crise financeira , a Assembléia Nacional , reunida em Versalhes, empreendia os primeiros ataques con tra os bens da Igreja (Lembras-te, sem dúvida , querida amiga, das medidas tomadas a esse res peito) . 24 No deco:re:r do verão, monsenhor Rigaud , provincial da Ordem do Carmelo, já fizera saber aos conventos sob sua jurisdição que seria promul gada uma lei pretihi•do às ordens de receberem novas candidatas . 1vlonsenhcr não omitiu a opinião que circulava na. Assembléia Nac:onal, favorável à suspensão completa: das comunidades religiosas. Mas ainda se podia esperar alguma moderação da lei, no sentido de permitir às candidatas até então recebidas permanecerem nas suas famílias conven tuais, o que, aliás , não evitaria o despovoamento insensível dos conven tos . Em tais circunstâncias, monsenhor Riguud aconselhou a vestidura sem demora para as postu lantes que se encontravam nos conventos , na me dida em que a conduta destas o permitisse . Assim se expressava o prelado tão darividen te: " Reco mendamos estas jovens, a menos que motivos pe remptórios não se venham opor expressamente, à vontade divina que nos dá forças ; nós próprios não sejamos mesquinhos a esse respeito, mas magnâni mos . O próprio Deus, nos dias que se seguirão , escolherá entre elas e decidirá. Cristo , sempre vivo, - assim concluía a sua carta - encontra-se pre sentemente no jardim de Getsêmani. Eis por que recomendo à reverenda madre prioresa o nome de 'Jesus no Jardim da Agonia' pam as noviças que receberem o véu de religiosa . Não se encontraria um nome mais apropriado nos tempos em que vi vemos " . (Sabes, minha amiga, que nos conventos do Carmelo há a idéia de que o nome dado à religiosa dá acesso, de um modo p�trticular, ao mistério a que se refere) . Nestas circunstâncias , a priore sa recentemente deita, Mme. Lidoine, em religião irmã Teresa de 25 Santo Agosti:lho, achc u melhor vo_tar w caso de Bhnche, com a mes tra da� noviças , irmi Maria da Encarnação. Sobre essas conversações, e�cutemos a pró pria irmã Maria da Encamaçã:::J ou, co:no a cha mavam os filhos da adm:ráveJ �antora Rose Ducor, irmã Maria do Menino Jesus - pois era desse modo que Rose Ducor lhes havia interpretado o nome incompreensível de Encarnação . Sabes, minha amiga, como a peq�1ena deusa da cena, Rose Ducor, foi , por seus frívolos admi radores, acusada de coqueteria religiosa,espantando nos a todos , dando asilo no seu apartamento, sob a égide de sua popularidade, a religiosos e padres de todas as categorias . (Ah, minha querida amiga , muitas surpresas advêm, a propósito de heroísmo humanu , quando os tempos de martírios se aproxi mam . Jamais arriscaria a menor previsão nessa ma téria ! ) . A irmã Maria da Encarnação foi também das que encontraram asilo temporário em casa da cantora Ducor. E, se escapou ao tribunal da revo lução, foi certamente devido ao sangue frio e à presença de espírito dessa pequena artista . Foi então que tive a honra de aproximar me, mais de uma vez, dessa mulher notável. Ela trabalhava, nesse tempo , numa biografia de suas irmãs mártires . Encontrei-a instalada diante da ele gante secretária de Rose Ducor, classificando toda espécie de papéis . Naturalmente não trazia nem há bito nem véu, mas um traje civil. Usava uma toca e um chale que dissimulava, no pescoço, o lugar em que, segt1ndo se propalava, se via sobre a pele um estreito círculo vermelho, que não a teria dei- 26 xado desde o dia da. execução de suas irmãs. A vigilante R()se Ducor gostava igualmente de contar essa comovente lenda, pois tinha na conta de san ta a irmã Maria da Encarnação. Quando percebeu que o meu olhar era diri gido para o seu chale, ajeitou-o ligeiramente. Seu gesto possuía qualquer coisa de doloroso e de brus co, mas sem a menor rispidez . Pude veriflcar, então - e certamente ela o desejava - ser falsa a fama que a cercava, mas não faltaria muito para justificá-la . Pois, na verdade, essa mulher era impressionante : atribuíam-lhe, nem mais, nem menos, que a fama de mílagrosà . ( Nada surpreendia tanto, ao conhecê-la , quanto o signi fi cativo nome de " irmã Maria do Menino Jesu s " ) . Poderia ter pousado para a estátua de uma rainha santa, e até mesmo de um rei santo. Ao menos, se acreditava poder ser assim. E não creio que essa impressão houvesse nascido exclusivamente da lembrança de sua origem . (Sabes, querida amiga, que essa irmã passava por ser filha natural de um príncipe real da França . Até a data da revolução , ela recebia uma renda do Estado. Sabia-se ainda que entrara no Carmelo com a dispensa episcopal dos filhos nascidos fora do matrimônio. Diz-se também que, sendo muito moça e vivendo numa das situa ções mais invejáveis, fora possuída bruscamente, no túmulo da célebre carmelita Acarie, do desejo arden te de expiar os pecados da Corte aos qua is devia o seu nascimento, como fizera Luísa de França, a madre prioresa do Carmelo de Saint-Denis . Tais antecedentes explicam muita coisa da vida dessa alma, de uma nobreza fora do comum) . Fiz-lhe a minha pergunta a respei to de Blan che de la Force. 27 Deu-!De 1Jma resposta das maiS c:ur1osas : - Serão - interrogou-me, por sua vez o medo e o terror apenas desfrezáveis? Não serãu, ao menos no começo, algo de muito mais profundo do gue a coragem, algo que corresponda muitc mais pro:undamente à realidade dos fatos , isto é, aos hor:ores do mundo, e bem mais, também à nossa pró,?ria fraqueza? Não vulgar surpresa causaram-me estas pa lavras. Pois, como sabes, foi a irmã Maria da En carnação que determinou o Carmelo de Compiegne a oferecer este ato heróico de consagração pelo qual, de um certo modo, o convento prejudicava sua sorte futura ( Voltarei logo a tratar deste assunto) . - O medo, algo de mais profundo que a coragem! E é precisamente a senhora, irmã Maria da Encarnação, que o diz ! - exclamei. Desprezou com facilidade esta alusão ao seu heroísmo, para retornar à questão primitiva. - Com efeito - retrucou - houve, entre nós , quem preconizasse a volta de Blanche ao sé culo. Entretanto, a nossa reverenda madre, a prio resa Lidoine, decidiu o contrário. Oh, a madre Lidoine era grande conhecedora e condutora das almas. - E no entanto - repliquei eu - a se qüência dos acontecimentos não deu razão à madre Lido in e? ( Pensava na fuga de Blanche para longe de Compiegne) . - Não à madre Lidoine - disse - mas a uma outra religiosa do convento. Todas nós não havíamos compreendido exatamente a direção que a reverenda madre dava às a]mas. 28 Tive, bruscamente, a impressão tão imperiosa quanto inexplicável de que falava dela mesma . No mesmo instante, olhou-me e estremeci sob esse olhar . Permaneceu , no entan to, absolutamente impassível . Fez-se um silêncio breve, mas cheio de vida. Com urn acento singular - diria mesmo, quase que de superior ingenuidade, contrastando com o perfil altivo de sua fisionomia - ela falou de modo que, decididamente , me desconcertou : - E porque quereis ignorá-lo, senhor de Villeroi? Não viestes aqui para ouvir toda a ver dade acerca dessas coisas ? Asseguro-vos que esta verdade, bem mais do que qualquer outra , é de natureza a glorificar " Sua Majestade " ( Sabes, que rida amiga, que nos claustros do Canudo se trata a Deus por " Sua Majestade " ) Deu�me, então, diversos documentos. Eram notas da prioresa Lidoine, espécie de diário de suas atividades e também recordações escritas pelo seu próprio punho, pois, como já disse acima, ela t ra balhava numa biografia de suas irmãs mártires . Aproveitei, dos documentos, o que interessa à minha narrativa . Soube, por eles, que a irmã Maria da Encar nação persuadira a madre prioresa a não dar o véu a Blanche, por enquanto, alegando que aquela timi dez medrosa era a sua fraqueza particular . - O, minha madre - assim se expressa dirigindo seu belo olhar de fogo para a prioresa , que só podia encará-la levantando a cabeça , por ser notavelmente mais baixa - esta pobre criança me enternece, pois, na verdade , veio abrigar-se entre os muros do Carrnelo como um pássaro no ninho. 29 Não a estLno menàs, por � er fra:a ! M(l s, precisa mente, por am:í-la, é que so.1 de sta opinião. ó, mi nha madre, há milh�res dessas ?equenas de que nos apiedamos , dessas criaturas que nos cativa:n . Diante dos altares de Par�s , muitas dela� são quei madas cada dia ; outras , são ca:regadas pelas te:n pestades da vida. Mas essas pequenas cnamas não se transportam para um Carmelo. O Carmelo é a força, em toda a sua expressão ! Permite-me, querida amiga , interromper mi nha narrativa nessa altura . Apresentei-te a irmã Maria da Encarnação, segundo a impressão que me deixou de sua personalidade . Mas será oportuno, talvez, dizer ainda uma palavra a propósito de sua situação no convento e sobretudo com relação à nova pnoresa . Sem dúvida, esta última tinha-a na mais alta estima, pois chama-a freqüentemente , no seu diário, de " braço direito " , de " irmã conselheira" Às vezes, também, de sua ' ' fiJha mais velha " , e mesmo, uma ve.z, meio divertidamente, de " sua filha maternal ,. . Menciona ter esperado, após a morte da prioresa Croissy, a irmã Maria da Encarnação subs tituí-la nesse lugar, acrescentando guc a autoridade eclesiástica superior orientara a escolha para uma " bem mais modesta " ( a própria prioresa se designa com esses termos) ,. É exato qLle a madre Lidoine não se impu nha, absolutamente, nem pelo seu físico, nem peJo seu comportamento religioso, que nada tinha de especial . Isto se revelou , sobretudo , nos primeiros tempos que se seguiram à sua nomeação . Parecia, dizia-me a irmã Maria da Encarnação , só poder, muito dificilmente, habituar-se a dar qualquer ordem 30 a quem quer que lhe parecesse superior. Razão pela qual> às vezes , dava a impressão de :altar-lhe segu rança, o que na verda.de nio ocorria . - Ah, foi essa, precisamcn[e , � minha ver dadeira tentação . (A própria irmã Marta da Encar nação aludia, aqui, à ferida que rn�rcou as suas relações com a prioresa Lidoine , pois é certo que agiria melhor que esta) . Mesmo nesta circuns tância, a priorcsa, pro· priamente, não a contradisse . Apenas lhe estendeu a carta de monsenhor Rigaud. Leu-a a irmã Maria da Encarnação , enquan to seu expressivo semblantese rubodzava e empa lidecia, conforme o efeito produzido pela notícia das restrições que iriam sofrer as Orucns Religiosas . Quando conduiu, disse com ênfase : - Que dilema, minha madre! Mme. Lidoine esperava, evidentemente, outra resposta . Certo embaraço se manifestou no seu sem blante, como sempre acontecia ao tomar, como superiora, uma posição contrária à irmã Maria da Encarnação. - A irmã quer dizer que subsis te um di le ma? - perguntou com voz profunda (Essa voz era, nela, a única coisa que impressionava) A irmã Maria da Enc�rnação apressou-se a responder - oh , nada igualava a fineza e a sensi bilidade de suas observações: - A senhora deseja a vest idura, minha madre? -· - Monsenhor a deseja - responcleu a pno rcsa, num tóm de quase escusa . 3 1 Num .insu.n:e submeteu-se a irmã Maria da Enca:r.ação. f. QuerHa , é impressionante a::ompãnhar os esfc.rços de:;sas gra::1des almas para a perfeição da humüd�de) . - N�ssas condições - acresce:ltou - não :etiro o meu ;ulgamento sobre a nossa postuiante, mas por ela me ofereço a Deus em sacrifício . Pe:· mita-me, reverenda madre, ajudar essa alma qu� nos é confiada, por atos particulares de amor e de pe nitência, a fim de que a sua ad:nissão em nossa comunidade não co�porte nenhum risco . (Como sabes, tais substituições, inspiradas por um ato de amor heróico, são perfeitamente conformes à piedade do Carmelo, e a madre Lidoi ne devia, sem nenhuma dúvida, aprová-las) . Foi, assim, decidida a ves tidura de Blanche. Sabia-se, naturalmente, que seria, essa , por um certo tempo, a última solenidade no gênero , no Carmelo, o que conferia à cerimônia um caráter comovente. Mas não devemos crer que isso provocasse tristeza para a maior parte das carmelitas . Em virtude da severidade de suas penitências, os membros dessa Ordem, tão freqüentemente tachados de " sombrios " , demonstram quase sempre uma alegria e u m desa pego de crianças. E em Compíegne as religiosas estavam ainda mais radiantes , por terem podido, em tempos tão difíceis, salvar afortunadamente uma jovem irmã a mais, no seio da comunidade . De resto , a pequena noviça Cons tança de Saint-Denis, na sua maneira ingênua , expressou deliberadamente um sentimento que bem pode ter ditado a reco rner.d1ção de monsenhor Rigaud . - Querida irmãzinha Blanche - dizia - vamos nos assoc1ar para escarnecer da Assembléia 32 Nacional! Somos jovens e, por mais dobroso que seja chegar tarde ao céu, queremos espera1· ainda a té aos cem anos, pois, daqui até lá, se1·á por certo permitido, novamente, receber nov1ça5 . A nova postulante , se bc.n �ue um pouco frágil, apresentava um aspecto tão tocante, no seu hábito escuro, com o véu branco das nov�ças, quan co no dia, ainda recente, em que se lh: franqueara a clausura . No gesto de uma das mãos, trêmula de alegria, tocando fortuita e su avemente a lã rude de seu h�íbito, percebia-se uma linguagem tão clara , que toJo o convento concordou imedia tamente com u decisão tomada. "Era indiscutível o reconhecimento dessa )o vem criança ,, , escrevia a madre Li do in e, na tarde desse dia . " Com efeito, a pobre pequena S<lhin m u i to bem que as suas forças haviam cedído c que não estava de modo nenhum preparada p:1r:t a vesti dura " . Oh, como Sua Majes tade é boa ! Como é boa a reverenda madre, como é indulgente a irmã Maria da Encarnação ! - constantemente ouviam-na repetir essas palavras'. Quando pronunciou o nome que devia levar para sempre, estremeceu um pouco . Mas tamanha era a sua alegria que, em breve, pôJe domi nar·st . Durante o recreio no jardim, prostrou-st: esponta neamente diante da gruta do Monte das Olive]rns , em que tantas vezes s e havia ajoelhado a prwresa Croissy. Depois, elevando a voz num comovente fer vor, fez a profissão de seu novo nome, orando Jiante de todas com essas palavras : JJ - Oh ! Meu JesLS do Jardim de Getsêrnmi. eu n:e ofereço toda a vós! " Espero tt: do " , assim dizi:1 a madre Lidoine ao terminar, " dessa l: umílde gn. ti dão, e do sa::lto nome com o qual o c�u cham:::m precisamente a esta criança . Oh, rnct.: Jesus do Jardim de Gecsê mani, fortalecei a aloa d:: vossa jovem noiva: enviai lhe o anjo da cor:solaçãc que Vos socorreu na hora da a:1gústia! " De fato, parecia g:.1e desta vez as esperan ças do cor..vento iam ser, enfim, alcançadas . Não mais se supunha, agora, que Blanche se contentasse em repetir as fórmulas comuns da piedade car:ne lita . Muito menos, ainda , parecia Blanche oprimida sob o peso desta. A jovem noviça persistia no ínti mo fervor que lhe marcara a vestidura . Seus pro gressos eram tão evidentes , que a própria irmã Maria da Encarnação estava satisfeita . Mas a consternação foi ta:nbém muito maior, quando se produziu o segundo choque, a seguir . Narremos, r<!rém , os acontecimentos. Ignoro s e nesse momento outros conventos foram objeto de semelhantes medidas e se estas medidas tinham qualquer relação com as últimas vestiduras. Como quer que tenha sido, logo após a admissão de B1anche ao noviciado, apresentou-se uma comissão ao Carmelo de Compiegne com a ordem de recolher certos dados sobre o número, a idade e o estado de espírito das religiosas . Já se tencionava, então, reconduzir as religiosas ao mundo, ou, em outras palavras , anular os votos . E já se alimentava , ingenuamente, a idéia de que a maior pll.rte se lançaria , alegremente , nos braços da revolução triunfante . .3 4 Ar.tes de realizar uma entrevista i .n1d:iv�d uaB com as caroelitas, � comissão quis petcan:r ;to'b a casa . Ao ler os documentos que me es.üJ di a11te dos olhas, tenho a im_:J::-essão de que da :s�punh<�t se quisesse ocu�tar alguma coisa. Desde o oct!klJt·e romance de Diderot , circula no munc o dos lü.be r· tinos toda espécie de fa ntasias sobre [Cligí40sas se� qüestradas . Foran, então, de cela em cel3: . Para is. to. a irmã Maria da Encarnação recebeu, da superôora. ordem de acompanhar a comissão. Mas os. hon.1ens não andavam ruidosamente. Talvez se semísse1n, mesmo, embaraçados , como acontece habí cua lmcnte com os mandatários de um regime novo, di ante de uma antiga civilização . Contudo , caminhav�lm com o homens. ( Pensa, querida, nesses corredores acos tu mados somente às sandáJias silenciosas das irmãs ! ) . Provavelmente, tiveram o topete de não manifestar nenhum respeito. (É preciso notar que se havia obrigado as irmãs a levantar um ponco o véu) . Lia-se essa irreverência nas fisionomias dos comis· sários , embora não se mostrassem muito ameaça dores, porque ainda eram obrigados a manterem boas relações com as Ordens . Dizia-me a. irmã Maria da Encarnação que mesmo o mais suspeito� dentre eles , um sujeito pequeno e insolente, provavelmente um escrivão subalterno, se havía mostrado mui to mais digno de riso que de pavor, enquanto corria na frente dos comissários, abrindo-lhes obsequiosa mente as portas, com um barrete vermelho sobre os cabelos gordurosos. Estou certo de que ele expe rimentava uma alegría impudica ao penetrar nos claustros de mulheres. Mas, como se disse , tudo isso não o tornava absolutamente temíve1, e, s 1 m , desprezível e irrisório. Contudo , foi ele quem pro- 35 vocou na pc br::: Bian:h� uo vudaceiro pavor . No mon::ento em qu= o p�qJena �ndidduo, digno C.e mofa, abriu a porta de má ce] a, e seL ros to ridí cu!o p::!netrou no espaço entreabetto, ela soltou um grito pungente (a irmã Maria da Er_car_açãc con tou-me não ter ouvido nada semell:ante , senão du :ante os dias mais sangrentos da revolução� . No mesmo instante, c:Jm as mãos estendidas Faro a frente e crispadas , �la r�cJou atrE a _?ard.e do fu ndo da cela, e permaneceu lá, ce pé, ccmo se esperasse a morte. Os membros d3. comissão ficaram imóve: s . O primeiro instante foi de es tupefação. Logo a seguir, tomaram um ar de interessados , pensando ter descoberto, enfim , a seqüestrada cuja presença haviamsuposto. O primeiro comissário começou por dirigir-lhe a palavra com uma amabilidacle toda especial : poderia ela, sem o menor receio, confiar nele. Blanche, de tão apavorada, não lhe pôde responder. Mas quando, ao aprovei tar-se do seu mutismo, ele sugeriu que talvez ela desejasse aban donar o claustro, teve um movimento de pavor que excedeu ao primeiro, ficando banbada em lá gnmas . Contente de poder salvar uma vítima da religião, e cheio de zelo pela sua m1ssao, o comis sário afirmou que ela podia considerar-se, em qual quer ocasião, dispensada dos votos, porquanto as novas leis não m:ais au torizaw1m a vestidura . Dito isto, quis, frate:rn alment·e, tomar-lhe as m ãos, mas nesse instante interveio a irmã Maria da Encarna ção. Com incomparável super1oridade, fixou sobre o primeiro cornis:sário os seus belos olhos plenos de firmeza e de briHho, e diss·e : 36 - O senhor ultrapassa os seus podel'es Pelo que se1, a lei de que fala não cst � a in da em vigor. Ignoro a resposta que encontraria o comis sário para replicar, :se Blanche, que sempre se man tivera muda , não se tivesse refugiado nos braços. da mestra de noviças. Dava-lhe, assim, a res,pos ta mais eloqüente que poderia esperar. O comissário viu o erro em que cdr<l I! corou, como um pretenden te desiludido. Nesse entretcmpo, as irmãs professas h�vi;lliJ se reunido na sala capitular, em torno da priorcsa. Se a madre Lidoine quase não desaparecesse no meio de suas filhas, poder-se-ia dizer que era m como os pintinhos ao redor da galinha . As irmãs foram chamadas individualmente à sala do capítulo, cuja entrada estava militarmente guardada, a fim de dar maior importância ao ato. Cada religiosa, antes de entrar, era recebida peJa madre prioresa que as exortava a que fossem rão breves quando possível e respondessem com doçura. Fora ·essa a atitude que monsenhor Rigaud a acon selhara a manter diante de suas filhas. É bem fácil de imaginar como essas respostas foram dadas . Tudo se passou sem dificuldades, exceto na entrevista da irmã Maria da Encarnação, em que houve um pe queno incidente. Por mim, sou levado a crer que ck� se ter i tt produzido , mesmo sem a ocorrência da cena nntt: rior, na ce1a da pobre Blanche . Basta imaginar, por um só instante, essa grande dama de sangue rcaJ , em presença de tais plebeus ! Imaginar essa reJigjosa , perfeitamente compenetrada de sua miss.ãu mística 37 de exp1aça:J, di.arte de notári� fdvolos e raciona listas . E a colisão se expEca por si mesma, por mais que pLdesse :er sido de:erminada pelo acon :ecimento anterio:. De certo modo, o foi: psicologi camente, é perfeitamente concebbel que o primeiro comissário �mrdas�e rancm cor_tra essa religiosa, pela v�rgonha per que o havia feito passar . O seu desejo de hunilhá-la bi logo traído às pdmeiras palavras , w perguntar-lhe oom ironia se , tanto ela como a jovem la Force , es tavam curadas ao temor que lhes havia manifestado. Ora, a irmã Maria da Encarnação sabia-se ao abrigo de qualquer temor. Nesse instante experimentou �penas o dever, tanto maternal como fraternal, de defender a fraqueza da pobre e pequena noviça, em face daqueles estran geiros. Não havia dúvída de qu e se votava plena mente à missão de salvaguardar a honra da casa ameaçada, pois só assim se explica a audácia ines perada do seu com.portamento diante da comissão . - Que entende o senhor por essa palavra " temor " ? Que motivo de temor poderíamos ter, fora da idéia de desagradar a Cristo, que os senho res nos dão a honra de poder professar aqui sole nemente? Essa respos ta, é claro, era a que mais pode ria ter irritado o comissário . (A gente medíocre só dificilmente suporta profissões de fé que lhe sej am estranhas ) Uma v�z mais ele ultrapassou os seus poderes : - Erraste, cidadã - retrucou. Não estamos aqui para concede r-te a honra de acolher uma pro fissão fanática, mas a fim de perguntar, em nome do Estado, se queres, ou não , abandonar este recinto de superstiçãO} . Fica , pois , avisada : os representantes 38 da Nação têm plenos poderes . Eles poderão muito bem justificar um certo 1emor, que em vão procuras esconder. Cego , ele nãc seiltia qnc '' sua animosidade tão manifesta inflamava ain.:la mais as catmelitas, em vez de intimidá-l�s . !Querida , o ideal cristão, como nenhum outro, é inflamado peLl perseguição . O refinamento natural de tcda brutalidade dirigida contra ele é então metamorfoseado numa estupidez quase sobrenatural) . A irmã Maria cla Encarnação pressentiu a ameaça que, no minuto segu inte , ia acolher com tanta elegância . Respondeu, sem medo : - Minha profissão de fé contém, igualmen te, mínha resposta a essa questão. Mas , no que diz respeito aos plenos poderes de represen tantes do Estado, são, ao meu ver, apenas aqueles que Deus lhes concede. Nem um átomo a mais ! E o senhor bem o sabe! Compreende-se que essas palavras fizeram transbordar a taça. , - Bem - replicou o comissário - guardo a resposta . Não chegou ainda a seu fim o nosso movimento. Mas espero que virá o dia em que assaltaremos os claustros e as igrejas como já se fez com a Bastilha. Quanto aos seus ocupantes . . sabe a cidadã o que acon teceu com o govern:1dor da Bastilha ? (Aludia à cabeça ensangüen tada de Launay que o povo conduzira, através da cidade, na ponta de uma lança) . Por longo tempo ela permaneceu imóvel, completamente imóvel, sem proferir uma só palavra. 39 - Sem dúvida o com1ssarw Ja se ia feJici ta: por -cê-la amedrontado com a perspectiva da morte. - \1as , aos poucc s, o rubor inundou-lhe o rosto, tor nanda.a alegre. - Bem o sei - respondeu ela , com voz baixa - bem o sei . Oh, sei-o muito bem ! - e era como se a sua voz se houvesse transfigurado, vencida por uma estranha felicidade. Cruzou os braços . Querida, devemos por um instante deter o nosso pensamento em face dessa disposição de alma , particular ao Carmelo, mas que nos é, sem dúvida, bem pouco familiar . O espírito de sacrifício nele se integra a tal ponto , que a crença na salvação cristã pela cruz tem, por cume , o amor espiritual ao sofrimento e à perseguição. Bem sei que tal conceito é di fícil de ser compreendido por um mundo não-cristão ( digamos, pelo " mundo " , sim plesmente) , e dele se desconfia, como de uma coisa mórbida . Entretanto , querida amiga , suplico-te, faze abstração, por um instante, dos teus próprios sen timentos e vê nisso um elemento fundi:lrnental à nossa narrativa. (Ah, isso é bem fundamental , na verdade, ao próprio cristianismo ) . - Quando deixei a sala capitular - disse me a irmã Maria da Encarnação - foi como se, no mais íntimo de mim mesma, se tivesse acen dido um círio fúnebre, imenso e solene , que consu misse, de algum modo, todas as minhas células, ou como se, de instante a instante , me tornasse trans parente . Também a madre prioresa, ass1m que a viu , exclamou : Resplandeces como um querubim , minha filha. Que te aconteceu ? 40 Com a voz sufocada pela emoção, cujo doce júbilo não podia reprimir, ela respondeu : - Ú, minha madre, felicite-me e felicite· se. Felicite este país e este trono . Sua majestade quis destinar-nos a uma obra de expiação, pela qual não poderíamos esperar : ameaça ram-me com o mar tírio! Para seu espanto, a superiora não lhe par tilhou o entusiasmo, limitando-se a indagar, com certa frieza, como fora possível ocorrer tão Jamen tável incidente. A irmã Maria da Encarnação compreendeu-a . e ajoelhou·se diante dela, acusando-se por ter infri n gido as suas recomendações, segundo as quais devia expressat·se com brcvidaJc c doçur<l . Eis o que eb própria me disse: - Não que me tivesse faltado ardor para quebrar a minha presunção . Por nada deste mundo. Mas não havia passado ainda pelo verdadeiro com· bate . (As faltas dessa nobre alma estavam bem longe de uma imperfeição habitual ) . De resto, a prioresa logo retrucou -e não creio que fosse unicamente em virtude da presença dos guardas : Não se tratava de uma ordem, minha filha, mas de um conselho apenas . Contudo, persistia o estado da pobre Blan che. E não devemos enganar-nos reduzindo-o a um choque nervoso característico . Durante todo esse tempo, a irmã Maria da Encarnação foi para a 41 ; ovem noviça uma guarda tutelar e uma consolado ra infatigável. Reconheça , de resto, nessa a ti tudc da grande carmelita um elemento eminentemente s ignificativo, e compreendo q:.1e esperasse atingir o seu fim tanto mais despreocupadamente quanto erguia Blanche os olhas para a mestra , com toda a ardente admiração dos fracos. Ao fim de alguns dias , reapareceu no círculo das irmãs. Esforçou-se visivdrnente por desfazer a má impressão que podia ter cau sado o incidente com o comissário. Como é costume nos conven tos , acusou-se, n o refeitório, de sua fraqueza , testemu nhando o seu arrependiment o e recomendando-se às orações de suas irmãs noviças. Na verdade , era para surpreender que tanta humildade e tanta boa von tade não devessem, depois, produzir frutos. O testemunho profano acharia talvez natu ral , nos dias que passavam, a manifestação de per plexidade por parte duma jovem religiosa um pouco delicada . Por mim , ainda me recordo muito bem que haviam ocorrido pilhagens de conventos , por essa época, nas mais diversas regiões do país, como resposta da populaça incentivada pelos decretos da Assembléia Nacional contra as igrejas . Bem que devia ter Blanche algum motivo para inquietude . E, de fato, estava preocupada. Não deixava que se percebesse a princípio, mas já se ia notando à medida que procurava defender-se. E considerando o acontecimento em seu conjunto , seria mesmo tentado a asseverar , pensando na ex celente educação de Mme. de Chalais, que era como se um novelo cuidadosamente enrolado começasse a desfazer-se . Ou como se voltasse a pequena lebre fugitiva e começasse a comportar-se exatamente como 42 outrora. Tal como antigamente, quando criança, era ouvida indagando sempre se as escadas não iam •c ruir " e se os homens não eram maus, assim tam· bém agora, durante os recreios, acontecia-lhe inda ga r de improviso, com a voz estranhamente ator mentada, se não haviam ocorrido novas pilhagens, se na verdade permitir-se-ia às t·el igiosas permane cerem em seus claustros etc . - Não tenho medo - dizia ela com u m aspecto comovente p e 1 a inverossimilhança (nin· guém acreditava mais em suas fanfarronadas ) Não, não tenho medo ! Pois se o rei de França é tão poderoso , quanto mais . Ia repetir involuntariamente uma expressão de Mme. de Chalais, mas se deteve, subitamente , à lembrança do modo como o rei fora maltrn tado, quando a populaça o levara prisioneiro de Versalhcs a Paris . Causavam-lhe um grande mal-estar os can tos revolucionários da Carmagnole e do Ça ira que se ouviam, vindos das ruas e cada vez mais fre qüentes . Então, pedia permissão parH ir buscar um livro que esquecera (exatamente como criança , como se, de novo, fosse criança ) . E tinha-se a impressão de que pretendia ocultar-se, não importava onde , para não ouvir mais os cantos Ja populaça. - E éramos nós que desejávamos desafiar a Assembléia Nacional e envelhecer até aos cem anos , querida irmãzinha Blanche! - dizia a jovem e ingênua Constança de Saint-Denis à sm irmã noviça - . Éramos nós que desejávamos sobreviver a essas más leis referentes aos claustros ! Como podes desdizer tudo isso com teu pavor? E, noutra vez: - Não somos nós as noivas de Cristo? 43 A quase centenária Joana do \1erüno Jesus dizia também : - Não somos as servas do pequeno Rei da Glória e não cuidará Ele de fortificar-nos, quais quer que sejam as circunstâncias ? (As carmelitas não diziam como Mme. de Chalais : "O pequeno Rei da Glória proteger-nos-á, mas : fortificar-nos-á) . A maior parte delas vivia, então, na mesma expectativa entusiástica do sacrifício, em que vimos a irmã Maria da Encarnação . Esta última parece haver duplicado, por essa época, sua ascese e ora ções por Blanche . ( Recordas-te ainda , minha amiga, que antes da vestidura ela se havia comprometido a fazê-lo - um pouco precipitadamente - para o futuro da jovem noviça? ) Não mencionei mais esses ofertórios a fim de não diminuí-los em sua singular beleza, que é o seu grande segredo . E a não ser a prioresa Lidoine, ninguém em Compiegne o sabia . Mas era de Blanche que a irmã Maria da Encarnação desejava ocultá-lo estritamente . ( Queri da, abordaremos incessantemente novas profundezas religiosas nesta mulher admirável . Nunca procurou exercer uma infLuência psicológica sobre a noviça que lhe fora confiada . Pelo contrário, queria pr0Ceder como fazia com relação ao mundo, sobre o qual agia espiritualmente , isto é, pelo sacrifício e pela oração, por intermédio do próprio Deus, a quem os con fiava . E conforme essa ordem das coisas, tudo era considerado no seu tlltimo grau de elevação) . Nesses últimos acontecimentos, a sua influên cia no seio da comunidade poderia ter sido extra ordinária . Na verdade , não creio ter-lhe sido possí vel impedir que, àqueles que lhe viviam em torno, 44 se comunicasse o ardor de sua expectativa do mar tírio, ainda se admitirmos que houvesse tentado impedi-lo. Mas era impossível que procurasse fazê lo . Pensa , minha amiga , na particular missão de sua Ordem. Não te lembras de que, antes da revolu ção, se estabeleceram, por vezes , algumas discussões sobre a possibilidade de o cristianismo ainda suscitar mártires ? E na verdade os acontecimentos iam mos trar como nessa Ordem se preparavam mártires . " A França não poderá ser salva pelo zelo de seus políticos , mas , sim , pelas orações c os sa crifícios das almas consagradas . Hoje é o grande dia do Carmelo " Ta1 era o diapasão a que todas aquelas mulheres pacíficas de C mpíegne se haviam acostumado. Com plena e perfeita con sciência, pre paravam-se para o martírio . - Será que precisaremos , ainda, de tantas provisões? - indagava, com certa ingenuidade , a pequena Constança de Saint-Denís , num dia em que a madre prioresa perguntou se a horta forneceria as reservas de legumes necessárias para o inverno . Por que não precisaremos wais dessas provisões, minha filha? - retrucou a superiora. Estava-se acostu mando a ouvir expressões como essas. Não era segredo para as religiosas o frito de a superiora se manter numa impenetrável frieza diante dos preparativos heróicos de suas filhns . " O convento coleciona brilhantes pérolas de louça " , escrevia ironicamente no seu diário, aludindo a esses preparativos . ''Minhas filhas brincam nova mente com o martírio " . 45 Certamente, cara amiga, estou bem longe de pre[ender diminui r , no que quer que seja, a heróica força de espírito dessas religiosas . Mas não posso deixar de observar que, a essa altura, nada em Compiegne justificaria a possibilidade imediata do martírio . As simples ameaças de um comissário, assim como o comportamento da populaça , não pas savam de afrontas . Estava-se, então, em face de certas res tnçoes e dificuldades . Talvez mesmo diante de uma disso lução momentânea das Ordens. Mas nada disso po deria fazer com que se previsse o pior . Pelo con trário , seria desprezar grosseiramente uma época qllc se apresentava, antes de tudo, como humanitária, acusá-la de intentos sanguinários . E seria decidida mente para rir apresentá-la sob a terrível grandeza de ser detestada por Deus , aquela época que só se preocupava com fórmulas filosóficas e com os problemas imediatos , causados pelo marasmo finan ceiro do Estado. Muito menos nós, querida amiga , poderíamos acreditar que as coisas chegassem a se melhantes conseqüências . E, vistos desse ângulo - perdoa a minha liberdade - a coragem heróica , assim como o medo, eram simplesmente um luxo. Todavia, nos enganáramos se pretendêssemospôr tais considerações no mesmo plano em que se situa va a reserva com que a prtoresa se opunha às suas filhas . Sabes, minha amiga, que o decreto previsto por monsenhor Rigaud não se fez esperar . E não só se proibia , categoricamente, a admissão de novi ças, como se interditava a recepção dos votos per pétuos àqueles que já haviam feito a vestidura . (Podes imaginar o que significa , como sofrimento , para uma pobre novtça , essa última determinação? 46 Significa condená-la a um noviciado perpétuo) . No Carmelo de Compiegne o edital vinha a atingir em cheio, além de Blanche, a irmã Constança de Saint Denis, que estava nas vésperas de profissão per pétua. Deliberadamente a irmã Maria da Encarnação tomou o partido de propor que a fizessem pronun ciar , em segredo, os votos, como se havia proce dido na vestidura de Blanchc. Com a sua nobre energia, dizia à prioresa : - Que risco correremos , minha madre, mes mo se tudo vier a ser descoberto ? Tanto mais depressa o mundo fizer com que sin tamos o seu ódio, tanto maior será o benefício que prestaremos! (Percebes, minha amiga , a ligeira mudança de atitude na transição de uma simples Jisponibi Jidade para o voto declarado? E compreendes, que rida, o porquê da inércia com que a superiora se opunha ao entusiasmo de suas filhas? ) Surpreendeu a irmã Maria da Encarnação com uma das primeiras dctc.minações, da qual assumia a plena responsabilidade. Repe1 iu o projeto, e invocou, para justificar a sua a ti tude, um moüvo um pouco decepcionante : no caso da vestidura de Blanche estava-se, apenas , sob a ameaça de uma lei iminente, e não , como agora, diante de uma lei que já entrara em vigor , e não lhe parecia de sejável despertar , sem necessidade , a cólera dos adversários. Naturalmente, não era esse o motivo prin cipal. Não posso furtar-me, minha amiga , de des crever a cena , no decurso da qual a superior:1 assu miu a penosa tarefa de tornar conhecida essa lt::i 47 às duas noviças. Nela se entreabriu, efetivame!lte, o véu insignificante da alma dessa mulher exterior mente tão apagada. ("Foi a primeira vez '' , disse-me a irmã Maria da Encarnação, " que se comportou como superiora e" , acrescentou em voz baixa, "em franca oposição a mim ") . Antes de ler o decreto, recitou, com as suas filhas, reunidas em corno, o hino célebre da santa da Ordem, a grande Teresa D' Avila : ((Sou vossa e vivo neste mundo por Vós. "Como quereis dispor de mim? "Dai-me riqueza ou indigência, "Daí-me consolação ou tristeza, ((Dai-me alegria ou aflição, ''Doce vida ou sol aberto : "Porque me abandonei toda a Vós, "Como quereis dispor de mim ? " A seguir, leu o decreto em voz alta. - Minhas filhas - disse às duas noviças em virtude dessa ordem cruel , oferecereis a Sua Majestade os votos perpétuos de fidelidade e o sacrifício de não poder pronunciá-los solenemente. Pois o que importa aqui - afirmou, percorrendo com os olhos claros as outras irmãs - não é que realizemos os nossos próprios desejos, por mais nobres que nos pareçam, mas, sim , que os de Deus sejam realizados . Nem vos revolteis contra essa lei , minhas caras noviças, mas reprimi igualmente qual quer dor. Recebei esse legítimo desespero num perfeito amor de Deus e desse modo saúfareis , plenamente, o espírito de nossa Ordem : sereis car melitas, no mais perfeito sentido, precisamente por que o mundo, ho mais perfeito sentido, não o permite. 48 Certamente, essas palavras, e a oração que as precedeu, dão a perceber muita coisa, e a bem dizer , sob os mais diversos olhares . Só resta saber se foram bem compreendidas . Admitindo que o tivessem sido , em relação a Blanche a inteligência dessas palavras não produ ziu o menor efeito. A superiora ficou surpreendida por vê-la escutá-las com um r�colhimento particular. E é preciso confessá-lo : foi por isso que os acon tecimentos futuros se tornaram escandalosos . Estava-se no período do Advento , e , na vés pera, a irmã Joana da Infância de Jesus cos t u rara uma nova camisa para o pequeno Rei da Glória . A cos tura estava um pouco envicsada , pois os olhos da irmã tinham perto de cem anos. Mas ela não permitiria que lhe tirassem o ofício . Cara irmãzinha Blanchc, brevemente 1rao levar-lhe o nosso pequenino Rei - disse ela à jovem noviça . Isso não lhe dá um pouco de coragem? (Sabes, minha amiga , que na noi te de Na tal é levado o pequeno Rei da Glória à cela de cada uma das carmelitas . Blanche , recentemente admiti da, ia assistir, pela primeira vez , a essa cerimônia ) . Mas aconteceu, infelizmente, que, alguns di:.:ts antes da festa, a Assembléia Nacional promulgou um decreto de confiscação dos bens eclesiás ticos . O pequeno Rei foi despojado de sua coroa e de seu cetro . Na noite de Natal a príoresa o 1evou de cela em cela , vestido apenas com a pobre ca misa mal ajustada . " Agora o nosso pequeno Rei é novamen tE' tão pobre como o foi em Belém " , diziam , alegre- 49 mente, as carmelitas. Aquelas boas e dóceis mu]he· res não se cansavam de transfigurar em alegrias toda adversidade. Blanche ficou admirada . Lia-se claramente n:o seu semblante . As lágrimas caíram-lhe dos olhos, em duas grandes gotas, sobre a pequena estátua de cera que lhe puseram entre os braços . - Oh, tão pequeno e tão fraco ! - suspirou . - Não, tão pequeno e tão poderoso ! murmurou-lhe a irmã Maria da Encarnação . Blanche, certamente, não a ouviu . E, só ao curvar-se sobre a imagem, para beijá-la, foi que deu pela ausência da coroa. No mesmo instante, o canto selvagem da " Carrp.agnole " se fez ouvir na rua. Blanche teve um violento sobressalto . A imagem escapou-lhe das mãos e a pequena cabeça nua caiu sobre os ladrilhos da cela , destacando-se do corpo. Blanche soltou um grito . Seu semblante parecta , nesse momento, o d e uma estigmatizada . - Oh, morreu o pequeno Rei ! - gritou . - Só resta o Agnus Dei ! Mais tarde, Blanche devia passar por uma nova crise, quando, alguns dias depois , era celebra· da a festa dos Santos Inocentes , dia em que, nos claustros , a mais jovem das noviças conduz diante de todas as outras o cetro da infâmia . Precisou fazer se substituir por Constança de Saint-Denis , dois anos mais velha. Mas o pior - e nisto estava propriamente o escândalo - foi que 5e teve a impressão de que Blanche , bruscamente, deixou de opor, com o outrora, resistência aos seus tormentos . Se até agora 50 dava sempre um nevo motivo de reconforto no atdor com que procurava adquirir maior fi rmeza, e1a indiscutível que a sua resistência enfraquecia , para não dizer que cedia, sim plesmente. A irmã Maria da Encarnação convenceu-se, mesmo, de que ela aceitava passivamente o seu estado . Tal foi a razão que determinou - ao que parece - o Carmelo de Compiegne a propor à jovem noviça a volta ao mundo , pois, afinal, o sen tido do noviciado se reduz a uma ques tão que poderia ser solucionada com uma sua negati va . " Minha filha mais velha " , escrev eu a su pe· riora, '' viu mais longe do que eu nesse caso. Será preciso reparar, o mais cedo possível , o erro co metido" . E acrescentou : " Pobre i rmã Maria do Encar nação! Fazia tanto sacrifício por esta crínnça , mas Sua Majestade não quis aceitar-lhe o sacrifício" Mandou chamar Blanche , para comunicar-lhe, pessoalmente, o que devia fazer. Blanche entrou na sala. A superiora teve a impressão de que o seu semblante estava bem mais abatido , desde ·a última crise, e de que havia, mes mo, envelhecido um pouco , se se pode falar em envelhecer numa idade tão tenra. O seu abatimento fazia-se notar muito mais, agora , nos ttaços de seu semblante . Blanche parecia pressen tir o motivo pelo qual a chamavam. Havia, nela, algo da criança que espera uma punição , e ao mesmo tempo algo de uma estranha consolação, um não sei que de última certeza e profunda boa vontade . A prioresa experimentou , ao vê-la, uma breveemoção. 51 - Minha quericla filha - disse com doçura r:enho uma comunicação dolorosa a fazer-te . Vamos, antes de tudo, procurar, ambas, a conso lação em Deus. Convidou Blanche a ajoelhar-se com ela. Recitou, depois, em voz alta, o hino de santa Te· resa , e pediu à noviça que o repetisse. Ocorreu, então , um fato estranho . Blanche seguiu docilmente a ordem da pno· rcsa Lidoine . Repetiu as palavras com a sua voz fraca, um pouco extenuada, até a altura em que se dizia : "Dai-me riqueza ou indigência, "Dai-me consolação ou tristeza " E aqui ela prosseguiu : "Dai-me refúgio ou angústia mortal, "Doce vida ou sol aberto . "Como quereis dispor de mim? " Falava depressa e quase mecanicamente, como alguém há muito familiarizado com essas palavras . Sem dúvida, não reparava ter modificado o texto. Não se deu o mesmo com a superiora . Ela, no primeiro instante, esteve prestes a repreender Blanche. Mas a mesma emoção singular, que expe rimentara ao recebê-la , a deteve . Sem nenhuma re ferência à oração, foi direta ao ao;sunto : - Minha filha, suponho que conheces o motivo por que te mandei chamar. Blanche silenciou . A prioresa não esperava por este silêncio. - Mantive semp1e - prosseguiu - a mais elevada opinião acerca de tua humildade, e conto con ela para tornar mais leve, para mim, o peso deste momento. Pois, em verdade, esta separação não é menos dolorosa para a mãe do gue para a filha. Tomou Blanche, sempre calada, nos seus bra ços . Sentia-se um tanto embaraçada . - Ou tens ainda o sentimento de que te faço mal ? - perguntou com um certo d<.:sac<.:no . Blanche se conservava calada. Bruscamente, a superiora disse, com u m<l precipitação fora do cos tume : Irmã Blanche, ordeno-te que fn1cs ! Far re-ei mal, sim ou não, enviando- te de volt:l ao mundo? Blanche ajoelhou-se diante dela , e cobriu o rosto com as mãos . Minha madre ordena que fale - disse com doçura - pois bem: sim, me faz mal ! - Está, então, enganada a tua mes tra de noviças, e tens a esperança de conseguir vencer ainda, malgraçlo toda tua fraqueza? - Não, minha madre. - Havia, ao mesmo tempo, qualquer coisa de desespero e de certeza em sua voz. Para a prioresa , foi como se houvessem tro cado todas as escalas de valores . - Olha-me - disse-lhe, brevemente . Blanche tirou as mãos do delicado rosto contraído. Toda sorte de expressões fisionômicas nele se estamparam, como que contidas num único ponto . E, coisa estranha, com uma intensidade es pantosa . A custo o reconheceu a prioresa . Passou lhe ante os olhos , repentinamente, um desfile de imagens, sem a menor ligação entre si : pequenos pássaros que morrem, soldados feridos no campo de batalha , criminosos na forca . Não era mais o pavor de Blanche que acre ditava ter diante dos lhos, mas todos os terrores do mundo. - Minha filha - disse, desconcertada não é possível que a angústia mortal de todo um mundo . - e interrompeu-se . Houve um silêncio. Depois, a superiora , quase com timidez, retomou a palavra : - Crês que o leu temor . é reJigioso? B1anche suspirou profundamente: - Oh, minha madre - disse num sopro pense no mistério do meu nome ! De preferência a qualquer descrição dessa conversa , das mais estranhas, deixei falar o diário da prioresa . Já uma vez viste essas notas passarem, de um tom quase sempre tão sóbrio, para o de uma extraordinária afirmação religiosa . Pois, a essa altura , elas se elevam ao sublime da mística . Desde o início esses trechos de suas notas se distinguem de tudo o que os precede. Em lugar da simples indicação da data se encontra a epígrafe : "Apelo da alma a Deus )} Tudo o que se segue é escrito em forma de oração . Lê-se : 54 " 0 meu Deus, ínfnita, incomensurável e insondável Sal>edoria ! Esclueceí vassa serva , na missão que Ll:e é confiadL Vós sabeis, ó meu Deus , que estou pronta a executai, hc ontinenti, todas a s vossas ordem, desde que me j;J]gueis digna de conhecê-las . O único perigo é não saber cu discerni las judiciosamente . Meu Deus, a6ro a vós minha razão, corno faria com em livro : riscai o que vos desagrada e sublinhai o qt.:e cotTesponde à vossa ellllinence vontade . O' meu Deus, será que vós, qnc elevais as virtudes naturais dos homens acima da natureza , também julgais digna dessa elevação uma de nossas enfermidades naturais ? V essa compaixão é tão grande, que diante de uma pobre alma inca paz de dominar a sua fraqueza, vós desceis até essa fraqueza, para unir , por da, essa alma ao vosso amor? '' Evidentemente, essas linhas dizem respeito a Blanche, pois, logo a seguir, lemos essa passagem mais explícita : q Estaría nos vossos planos , ó meu Jesus , escolher a natureza medrosa dessa criança, para que , no instante em que outras criaturas se preparam com alegtia para morrer por vossa morte, da per maneça, de certo modo, na vossa angústia mortal , ao vosso lado? Seria essa a devoção que vos faltava ainda e que quase eu impedia ? " As páginas seguintes tratam unicamente dessa última questão. Mas lemos depois : " Eu vos invoquei, ó meu Deus, num ato de total abandono da minha vontade, de minha razão, e de todas as minhas forças, para que me indicás sets de modo indubitável qual seria a vossa decisão: 5.5 de modo também que não pudesse admitir que me enganasse . Vós, ó meu Deus , silenciastes e é assim que me ordenais também o silêncio " Não creio errar procurando ver nessa última frase a determinação da superiora de confiar-se a Deus para decidir se o terror de Blanche era ou não religioso . Esta reserva de todo julgamento cor respondia , exatamente, ao uso da Igreja na maioria dos casos de misticismo. Assim, permaneceu Blanche no Carmelo de Compiegne e daí em diante sob a direção da prio resa que, bruscamente, afastou a irmã Maria da Encarnação de suas funções de mestra de noviças e as assumiu . A partir desse instante, começa a luta da irmã Maria da Encarnação contra a superiora . Não se tratava , no caso, é lógico, de uma rebelião consciente. A alma dessa religiosa tão avan çada no caminho da perfeição não tinha nenhuma possibilidade de opor-se abertamente à superiora . Manteve uma atitude exemplar , ao ser demitida. Não se tem, absolutamente, notícia de qualquer diferen ça nas suas relações com a jovem noviça, depois de seu insucesso pessoal . Escaparam-lhe, é verdade , expressões como estas : - Ah, essa coisinha medrosa ! Creio que ela fugiria diante de um ratinho ! Mas não as proferia com aspereza . Jamais deixou ela de rezar por Blanche. A luta a que nos referimos aqui não se revela sob a forma de um antagonismo em relação à prioresa, mas apenas diz respeito ao veto que esta última opôs à profís- 56 são dos votos perpétuos e se ma11ifesta, c cJllc um cuidado aparentemente bem jus tificdo , no l.:pe di�ia respeito à manutenção de Blanche :10 Carrn elo. com a aproximação de tempos verdadeiramente perigosos . Como sempre, a atitude da en:ão mes:ra de noviças foi a de todo o con.vento. Cara amiga, não é intenção minha descrever acontecimentos já do domínio público . Compreendes que se entrara , en tão , no períod<J das lu tas pelo que se chamava de " organização civil do clero " Lutas, ao curso das quais a revolução passo'-!, in sensivelmente, a uma perseguição declarada contra a Igreja . A atitude a respeito de Blanche não e ra de todo incompreensível. - Não podemos mais nos preocupar, pre sentemente, com quem quer que perturbe a nossa alegria - dizia até a doce Joana da Infância de Jesus. - Não nos esqueçamos de que talvez feste jemos o próximo Natal no céu , com o pequeno Rei . A pequena e ingênua Constança de Saint Denis acrescentou : - Se chegarmos , mesmo, a fazer face a essas perseguições , poderemos dizer , com perfeita conciên cia, que teremos, todas, forças bastante? - Não, minha menina , não poderemos estar certas de semelhante coisa - respondeu com voz
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