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Gertrud von le Fort_A Última ao Cadafalso_Ref

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Gertrud von le Fort 
A úLTIMA 
AO CADAFALSO 
NOVELA 
Tradução d 
Roberto Furquim 
+ 
VOZES 
Petrópolis 
1988 
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CID 1988, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100 
25689 Petrópolis, RJ 
Brasil 
Diagramação 
Valderes Barbosa 
Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas 
da Editora Vozes Ltda. em maio de 1988. 
P-refácio 
QuANDO pensamos dominar o mist6río humano
em sua graça e beleza, c-iosos da justeza de nossas
bem elaboradas análises, ele 1 'JS surpreende dei­
xando-nos boquiabertos diante de suas revelias. E, 
aí, concluímos: pobres somos n6s, presunçosos ro­
tuladores apressados de nossas indevassávcis paisa­
gens interiores. Nosso mistério é insondável. Sobrf:
ele não se pode dizer uma última palavra. Ele será
sempre maior que nossas mãos que o pretendem 
aprisionar e nossa cabeça que pensa defini-lo. O úni­
co que pode tratá-lo bem é o coração que não se
afadiga em acariciá-lo. 
Tudo isso se torna luminoso no livro A úl ti­
ma ao Cadafalso, da escritora alemã Gertrud von 
le Fort . Torna-se difícil policiar o encantamen/() e 
o entusiasmo diante desta obra. O mínimo cJIIL' .1·e 
pode dizer dela é que é maravilhosa, uma leitura 
para a alegria do espírito. Não se trata apenas de 
literatura, que ela é, em seu estilo apurado, de 
beleza irretocável e graça arredondada e pura; tra­
ta-se também de deixar-se surpreender pela delira-
5 
deza e sensibilidade, fina e re/inad�� de u,.ra e;cri­
tora que é mulher, consistente em suas flnálius do 
mistério humano, rica em suas ab':Jrdagens e 5em­
pr� fascinante em suas medidas. Gertrud von te 
Fcrt é uma grande escritora, só comp(Áráve:, sob 
alguns aspectos, à recém-falecida autora francesa 
Marguerite Yourcenar. Mas e!a é t�Jmbém tema mes­
tra dos nossos segredos mais escondidos. Ao lê-la, 
tem-se a certeza de que ela não está ma!tratando 
o nosso mistério, sempre bonito e fecunJo, embora 
perpassado de temores e tremores. 
A novela A última ao Cadafalso foi escrita 
em 1931 e na"a a história do martírio de 16 mon­
jas Carmelitas, vítimas da Revolução Francesa, no 
mto de 1794. Esta Revolução escrevera em sua 
bandeira os ideais de Liberdade, Fraternidade e 
Igualdade. Mas ninguém é tão fiel a seus ideais a 
ponto de suportar, democraticamente, o falseamento 
apatente, por terceiros, de suas intuições salvado­
ras. E foi isto o que se passou, também, com os 
propugnadores de tão altos valores revolucionários. 
A imaturidade ainda dissoluta dos que proclamavam 
a liberdade atropelou e levou à guilhotina os que 
não cantavam a ((Carmagnole" e não davam, em 
praça pública, vivas à Nação. O condutor da trama 
do livro sentencia com justiça, sem nenhuma amar­
gura: ((O trágico não foi que nossos ideais tenham 
sido falsos, mas apenas insuficientes'' 
A novela A última ao Cadafalso é mais do 
que a história trágica de 16 monjas, inofensivas e 
frágeis, que sobem para o sacrifício final de suas 
vidas, cantando e testemunhando sua fé. Nela se 
retrata, cruamente, o permanente problema huma­
no, até hoie irresolvído: O que fazer com o poder? 
Como usar a força? Ou, em outras palavras, quem 
é forte? Quem é fraco? Quem é qne vence a luta
pela sobrevivência? Ou quem é que permanecerá 
vivo na memória das gerações futuras: os tiranos
que usam e abusam do poder ou o povo que, com 
dignidade, sobe ao patíhulo, testemunhando Stws 
crenças e cantando seus hi-nos? 
Gertrud von le Fort concentra suas análises 
em duas personagerzs dentro de ;mz moJteiro car­
melita: a primeira, Irmã Maria da Encarnação, é
.forte, goza de raro discernimento áas situações, é 
intremível nas decisões, mostra grandez(l e majes­
tade, mesmo quando reduzida ao silêncio e à obe­
diência. S a Superiora da comunidade. 11 se.�zmcla,
a noviça Blanche de la Force, que as coirmãs tei­
mam em cognominar ude ltl Faiblcsse", L� tímida e 
amedrontada, frágil e de"otada, trânsfuga do mo�·­
teiro e marcada pelo medo desde o útero 1/Wlerno. 
Vive angustiada, embora creia em si mesma, ou 
melhor, numa força que parece mbjazcr à c:af>(/
frágil de sua personalidade. Quem delas está nt(JÍJ
preparada para o grande desafio do f!J(lrtírirJ'? Q"c'lll 
cantará mais forte diante da guilhotina?
A pessoa é, na verdade, muito mais elo que
suas aparências. O seu mistério profundo a suplan­
ta, decisivamente, para o espanto de si mesma e 
para a admiração dos outros. Sobre cada vida, quem
poderá dizer a última palavra, lavrar um juízo de­
finitivo? Tentamos fazê-lo, superfiâalme11te, quase
todos os dias. Mas o mistério do ser humano de­
veria recolher-nos a um respeitoso silêncio, pois, 
para surpresa nossa, a última ao cadafalso pode 
vir a ser uma monja .fraca e amedrontada. Delt� 
pode ser o canto mais forte diante da lâmina relu­
zente da p,uilhotina e dos apup-os bizarros de uma 
tnultidão imbecilizada por ideais nul-digeridos. MaiJ 
7 
do que nossas coragens) valem as forças esiranhas
que se escondem palpitantes no fundo do nosso ser, 
que, p4ra os cristãos, se chamam tie graça e, para 
todos os homens, de mistério: O insondâvel mis­
tério humano, que Gertrud von te Fort tão bem 
tratou neste livro genial. 
Frei Neylor J. Tonin, O.F.M.
8 
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Paris) outubro de 17 94 
QUERIDA AMIGA: 
Em tua carta exaltaste, com razão, a energia 
extraordinária que o chamado "sexo frágil" demons­
trou possuir em face da morte, durante as semanas 
do Terror. Aludiste, com admiração, ao comporta­
mento da "nobre" Madame Roland, da "real" Mal"i<l 
Antonieta, da "admirável" Carlota Corday e da 
"heróica" Mlle. Sombreul ( reproduzo as tuns pró­
prias expressões) . Concluíste citando o "pungcn te" 
sacrifício das dezesseis carmelitas de Compicgne que 
subiram à guilhotina cantando o "Vcni Crentor" 
Não esqueceste também, na tua carta, a voz como­
vente da jovem Blanche de la Force que retomou 
e entoou , até o fim , o hino que o machado do car­
rasco interrompera. 
9 
"Com uma puJança que :orça a admiração 
assim termina a tua carta - afirma-se, em 
todas, quer sejam mártires da redeza, quer da Gi­
ronda ou da Igreja perseguída, a dignidade da na� 
tureza humana diante da veemência de um caos de 
atrocidades". 
Querida discípula de Rousseau ! Admiro mais 
uma vez a clarividente nobreza de teu espírito que, 
:nesmo no seio das mais terríveis derrocadas do 
gênero humano, acredita ainda na indestrutível dig­
nidade da nossa natureza. Contudo, minha amiga, 
o caos encontra�se também na natureza e tanto o 
carrasco de tuas heroínas como a besta habitam o 
íntimo do homem, onde também lançam suas raízes 
o terror e o espanto! 
Querida emigrante, muito mais que tu, estou 
eu possuído pelo espanto, com referência a esses 
acontecimentos de Paris, pois me acho mais perto 
deles. Permite-me, portanto, confessar-te francamente 
que me inclino a ver na admirável firmeza de 
nossas vítimas quotidianas não somente a dignidade 
da natureza humana, como também o último gesto 
de uma civilização em ruínas - dessa civilização, 
tão profundamente desprezada por ti. Ah, minha 
querida, devemos de novo aprender a respeitá-la ! 
A sua inflexível etiqueta se impõe, mesmo diante 
do pavor. 
Nesse nobre desfile mencionaste em último 
lugar a jovem Blanche de la Force. No entanto, 
não foi ela uma heroína no sentido que emprestas 
a esse termo. Essa delicada criatura não foi o 
exemplo da dignidade da natureza humana. Foi, 
a!ltes, o signo da fragiHdade infinita de toda a nossa 
força e soberania. Isto, aliás, confirmou-o a irmã 
10 
Maria da Encarnação, a ún:ca sobrevivente das reli­
glosas do Carmelo de Corr.piegne. 
Talvez ignores que Blanche de la Porc.:e foi 
uma religiosa fugida do Carmelo de Compiegne , ao 
qual pertencera durante certo tempo, como noviça. 
Deixa-me , então, falar uru instante desse curto, mas 
tão importante episódio, pois é nele - parece-me, 
ao menos - que se inicia o hino cantado ao pé 
do cadafalso. 
Conheceso marquês de la Force, pai da jo­
vem Blanche. Não preciso falar, pois, da admiração 
que este votava às obras céticas de Voltaire e 
Diderot. É também do teu conhecimento a sua sim­
patia por certos patriotas liberais do Palais Royal. 
Mas não havia, por parte do marquês, uma inten­
ção revolucionária que pudesse induzir a outras con­
seqüências. Esse fino aristocrata jamais pensou que 
os saborosos co:Idirnentos de snas conversações pu­
dessem chegar até a cozinha grosseira do povo. Mas 
não disputemos sobre os erros fatais de nosso po­
bre amigo. Como tantos dentre os seus semelhantes, 
ele próprio os expiou. (Ah, minha amiga, todos nós 
temos , em suma, andado a margear de muito perto 
essas idéias!). Mas, para o que se segue, interessn­
nos apenas saber o que pôde levar o marquês de 
la Force a confiar sua filha ao convento. 
No tempo em que Blanche residia em Com­
pi�gne, tive ocasião de avistar-me com o marquês. 
Discutia, então, com os amigos, sobre a liberdade 
e a igualdade, nos cafés do Palais RoyaL Cada vez 
que era interrogado sobre a filha, respondia, com 
um ar aflito, que para ele as " prisões da religião 
não eram menos terríveis que as do Estado,. Con­
fessava, porém, que sua pequena filha se sentia 
11 
feliz na sua e, sobretudo, - ao menos o acreditava 
- muito bem guardada. 
- Pobre criança medrosa - era com essas 
palavras que costumava concluir. - As tristes cir­
cunstâncias de seu nascimento determinaram toda 
a sua atitude em face da vida. 
E, de fato, era bem isto e todos o sabiam. 
Mas creio, querida amiga, que esta última 
alusão do marquês de la Force nada significa para 
ti, pois, na época da qual ele fala, tu eras uma 
criança. Trata-se da famosa catástrofe do fogo de 
artifício no casamento do DeJfim - mais tarde Luís 
XVI - com a filha do imperador da Austria. 
Pretendeu-se ver, então, nessa catástrofe, uma 
espécie de sinal: o sombrio presságio do destino 
reservado ao casal de príncipes. Ora, não era ape­
nas um presságio; era também um símbolo . (Que­
rida, as revoluções nunca são provocadas unicamente 
pela má administração e os erros de um regime . 
Estes são apenas as causas imediatas de sua defla­
gração; mas a essência das revoluções reside no de­
sencadeamento do terror-pânico de uma época que 
atingiu o seu termo. E é bem nisto que reside o 
elemento simbólico de que falo). 
De resto, é seguir um caminho completa­
mente errado considerar o deplorável incidente da 
praça Luís XV como efeito de uma negligência nas 
medidas tomadas para a manutenção da ordem. Esta 
opinião era propagada, na época, com o fito único 
de dissimular o que havia de enigmático na brusca 
explosão de terror desencadeada na multidão. (Nada 
é mais intolerável do que o mistério, para os nossos 
tempos esclarecidos ... ) . 
12 
Com efeito, todas as rn�didas possíveis ha­
viam sido providenciadas. Todas as precauções haviam 
sido tornadas para tais circunsrâncias, de modo que 
nada mais deixava a desejar. Aclamadas pela mul­
tidão reverente, as carruagens da nobreza - entre 
elas a da marquesa de la F<Jrce, então preste a dar 
à luz - conservavam-se fora da massa compacta 
dos pedestres e dos pesados caros preparados com 
esmero. As esquinas das ruas que iam desembocar 
na praça Luís XV estavam guardadas por funcio­
nários da polícia civil, que também dirigia o povo . 
Este era ainda bem comportado, bem nutri­
do, a despeito da já proverbial "miséria Ja época" 
Cada indivíduo parecia ser um burguês abastado e 
se sentia feliz com a sua condição. Na alegre expec­
tativa da festa, e na delicadeza que manifestava 
diante das injunções dos agentes da ordem, essa 
gente se mostrava bem longe do caos da anarquia 
em que seria laçada meia hora mais tarde. A explo­
são da catástrofe foi realmente tão brusca quanto 
inconcebível, pois era justamente um presságio. 
Um pequeno incêndio na reserva dos fogos 
de artifício, nenhum incidente pessoal, e o pânico 
surgiu como um relâmpago, alastrando-se por toda 
parte . Os policiais não puderam mais, de repente, 
erguer os braços, pois haviam sido tragados pe]a 
massa; os alegres e leais cidadãos haviam desapa­
recido com seus companheiros. Havia apenas um 
único, selvagem e monstruoso amontoado humano, 
esmagado pelo próprio terror da morte. O caos, que 
brame eternamente no mais profundo dos elementos, 
rompeu a crosta aparentemente firme dos hábitos. 
Pelas vidraças do seu coche real, que fora 
arrastado na onda terrível, a marquesa de la Force 
contemplava o horrendo espetáculo. Ouvia gritar 
por socorro os que tinham sido arremessados ao 
solo, gemer os que eram esmagados sob os pés, 
enquanto em sua espaçosa carruagem ela se sentia 
protegida como num barco. 
Com um gesto involuntário, apoiou sua mão 
delicada sobre a tranqueta da portinhola. Estava 
um pouco enferrujada, pois o coche era ainda dos 
tempos atormentados da Fronda. Nesta época, pu­
nham-se esses ferrolhos nas portinholas das carrua­
gens, pois nunca se podia saber com certeza se não 
se teria de fugir um dia na carruagem. Mas, depois, 
essas fechaduras perderam a utilidade. 
Se bem que certa de estar em absoluta se­
gurança, a marquesa sentia-se um pouco nervosa -
o que não era de admirar, pois a vista de uma 
multidão é sempre para o indivíduo qualquer coisa 
de doloroso. Mas neste momento, ou porque os 
cavalos houvessem disparado, perturbados pela de­
sordem geral e pelos gritos, ou porque o cocheiro, 
perdendo ·a cabeça, quis libertar a carruagem do 
tumulto - o fato é que os animais arremeteram, 
de repente, e lançaram-se com violência contra a 
multidão que uivava de cólera e desespero. Cerca­
dos por todos os lados, os cavalos foram detidos. 
A portinhola da carruagem saltou - era o começo 
da anarquia. Por um momento ela se mostrou como 
o espectro anundador da revolução . 
- Madame - gritou com voz selvagem um 
homem que tinha em seus braços um menino co­
berto de sangue - a senhora goza agora do con­
forto de sua carruagem enquanto o povo é massa­
crado pelas patas de seus cavalos! Mas não passará 
muito tempo sem que morra a gente da sua espécie 
e sem que sejamos instalados em seus lugares ! 
14 
Ao mesmo temlJO, :t marquesa viu refletida 
em cem fisionomias a máscara do monstro do terror , 
semeando o pânico por toda parte. Um minuto de­
pois, era arrebatada do coche e no seu próprio rosto 
refletiu-se, então, o pavor da nultidão. 
Dizia-se que Blanche nascera na carruagem 
um tanto avariada que condu:t:ia sua mãe da praça 
Luís XV a casa. Este pormenor é um pouco fan­
tasiado pela crônica. Porque a verdade é que viram 
:J marquesa, com os vestidos em trapos c uma fjsio­
nomia de medusa, regressar a pé ao palácio. E tam­
bém que deu à luz a criança, prematuramente, pelo 
choque que sentira, morrendo pouco depois. 
Ora, não hesito - concordo, a este respeito, 
com o marquês de la Force - em relacionar as 
disposições que determinaram o comportamento da 
pobre menina com as circunstâncias de sua vinda 
ao mundo. Não somente a crença popular, mas a 
própria experiência dos médicos, consideram tais fe­
nômenos perfeitamente plausíveis. 
A jovem Blanche, cujo pavor experimentado 
por sua mãe fizera nascer antes do tempo, viveu 
sempre sob a influência da impressão que lhe cau­
sara esse primeiro sentimento de medo. Bem cedo 
demonstrou um temor que excedia muito ao que 
se observa geralmente nas crianças. Comumente, a 
criança se atemoriza a propósito de tudo e por um 
nada, o que é atribuído quase sempre à ignorância. 
O brusco ulular do seu próprio cão deixava-a 
toda trêmula. A fisionomia estranha de um servo 
novo fazia-a recuar como diante de um fantasma. 
Era impossível libertá-la do medo causado por certo 
nicho sombrio do corredor, diante do qual passava 
todo dia, conduzida pela governanta que lhe segu-
15 
rava a mio. Viam-na agitar-se toda q_uando percebia 
no jardim um pássaro agonizando ou um caracol 
morto. 
Dir-se-ia, ao vê-la, que aquela pequena cria­
tura, digna de dó, se consumia na expectativa per­
pétua de algum terrívelacontecimento, do qual 
somente podia defender-se por uma espécie de vi­
gilância sem descanso , tal como os pe::.�ueninos ani­
mais doentes que dormem com os olhos abertos. 
Ou, então, como se os seus grandes olhos de crian­
ça aterrorizada penetrassem além da trama cerrada 
do presente até profundezas de uma fragilidade es­
pantosa. 
A escada não cairá? - perguntava Blan­
che, ao ser conduzida até o alto da torre fortifi­
cada do Castelo de la Force, berço de sua família, 
onde o marquês costumava veranear . Essa torre en­
frentara sete séculos e poderia resistir ainda outro 
tanto. 
- A muralha não ruirá? Não nos farão mal 
os homens? 
Eram interrogações que a pequena B1anche 
trazia constantemente aos lábios. Costumavam expli­
car-lhe que não havia motivo de medo e que nada 
lhe aconteceria. Ela ouvia com um rosto apreensivo, 
tudo examinava, pois não vivia integrada neste mun­
do e persistia no seu terror. 
Nem a doçura, nem a severidade , nem mes­
mo a indubitável boa vontade da pobre criança 
conseguiram melhorar sua disposição de espírito. Até 
mesmo concorria essa boa vontade , por assim dizer, 
para agravar-lhe a situação, pois Blanche se encon­
trava a tal ponto deprimida pela inutilidade de 
16 
seus esforços que, e111bora incessantemente encora­
jada, reputava a rneaor falta como pecado. Era-se 
tentado a afirmar que ternia o )eu próprio temor. 
Com o ternp(), 1Hanche inventou pequenos 
incidentes para disfarçar a sua atimde - pois era 
criança bem-dotada e não lhe faltava bom senso. 
I\ão a ouviam mais dizer: •< A escada não vai cair?" 
Mas o esforço a fatigava e a fazia sofrer, a ponto 
de ela esquecer-se, bruscamente, de estudar as suas 
atitudes. Achava, então, urn motivo qualquer para 
deixar de subir as escadas. 
Os servos sorriam e apelidavam-na "peque­
na lebre". Mas isso não parecia aborrecê-la. Até 
pelo contrário. Provavelmente ela sofria ainda mais 
com a sua fraqueza por ter de se esforçar para 
dissimulá-Ia. Podia-se mesmo perceber que esse es­
forço levava-a até a tortura. Jamais uma criança tão 
nobre e culta mostrou-se tão tímida e ruborizou-se 
com tanta confusão. O título elevado de sua linha­
gem parecia-lhe ter-lhe sido infligido por injustiça, 
como pura etiqueta, e o nome de la Fmce por der­
risão. Blanche era o único nome cabível, mais ainda 
se se pensava na palidez de seu semblante. Mas 
o nome que melhor lhe convinha era : jjpequcna 
lebre" 
Assim se apresentavam os fatos , quando o 
marquês de la Force contratou Mme. de Chalais 
para governanta. Essa admirável educadora conse­
guiu, por fim, vencer até um certo ponto a timidez 
da menina, cuidando, com tanto carinho, quanto 
firmeza, de sua instrução religiosa, até então deplo� 
ravelmente negligenciada. Isto, aliás, não admira, 
dadas as idéias liberais do marquês. Mas, para 
Blanche, essa lacuna era particularmente lamentável, 
17 
pois neste po:lto ela era muito diferente co pai: 
demonstrava possuir uma natureza �minentemente 
religiosa. 
Psicóloga, Mme. de Chalais mostrou grande 
clarividência, procurando concentrar a Henção da 
criança precisamente para o Menino Jesus. Blanche 
teve, então, seu !)rimeiro encomro com o "pequen::> 
Rei da Glória''. (Conheces, querida, aquela original 
figurinha de cera do Carmelo de Compiegne que 
- para o gosto das crianças - é exposta na ca­
pela, em dezembro) . 
O pequeno Rei tinha uma coroa e um cetro 
de ouro, oferecidos pelo rei da França: para de­
monstrar, assim,, que o pequeno Rei possuía o reino 
do cé.u e o da terra. Em reconhecimento desse 
presente, o pequeno Rei protegia a ele e aos seus 
súditos: podia-se , pois, viver com toda a confiança 
em França, sem pensar em escadas que se desman­
cham ou em muralhas que vão a baixo . Bastava 
testemunhar um pouco de confiança, como faziam 
Suas Majestades ao pequeno Rei. Para isto, não 
era preciso possuir coroa ou cetro. Era necessário, 
isto sim, a Ol'ação e toda espécie de pequenos atos 
de amor, de homenagem e de obediência oferecidos 
em sua honra . E, se assim se procedia consciente­
mente, poder-se-ia contar com a proteção do peque­
no Rei, com mais certeza do que com a do próprio 
rei da França. 
Ora, como já dissemos, Blanche era natu­
ralmente inclinada para a religião> mas, ainda assim, 
Mme. de Chalais deveria, no começo, enfrentar 
grandes dificuldades. Mesmo depois de tudo passa­
do, embora sentisse prazer em relembrar os seus 
sucessos pedagógicos, não gostava de falar deles. 
18 
- Deves convencec-te por t; mesma de que 
é facílimo , para o Rei do Céu, proteger-te - dizia­
lhe, com voz suave, mas incisiva, n:)s dias em que 
Blanche se punha a tremer ao subir a escada. -
Pensa bem, se nosso rei terestre é poderoso, quanto 
não o será o do Céu! 
Blanche ergueu para a governanta seu peque­
no rosto cUl"ioso . Por um instante seus olhos pa-
. ; . . rec1am pequenos passaras 1nqme tos. 
- Mas, se e1e perder a cotO<l? 
guntou, pensativa . 
- per-
Mme. de Chabis, por um momento, ficou 
surpresa. De fato, essa objeção não lhe havia jamais 
passado pelo espírito. Mas logo se rckz, pois pos­
suía, em grau elevado, a arte de repelir questões 
que lhe pudessem embaraçar. Às vezes Blnnchc tinhn 
a impressão de que elas iam e vinham, rebatidas 
nas baleias de seu espartilho, um pouco ajustado. 
- Ora, Blanche, não pensaste seriamente 
nisso - dizia ela -. Não se perdem coroas como 
lenços de bolso. Trata-se, apenas , de se mostrar 
digno delas. Tu me prometeste jamais te esquecer 
de tua oração e podes estar certa de que, por seu 
lado, o Rei do Céu não negligenciará coisa alguma 
para te proteger. Acredita-me, nenhum motivo tens 
para atemorizar-te ao subires escadas. 
Blanche estremeceu - tratava-se da escada, 
a respeito da qual sempre indagava se não "caí ria" 
A contragosto, abandonou, então, a mão da gover­
nanta e tentava agarrar-se ao corrimão, quando, por 
acaso, a barra da balaustrada se quebrou. 
Mme. de Chalais percebeu, estampado no 
semblante de Blanche, todo o seu receio de pássaro 
19 
amedrontado. Por um insta�1te, o medo e a .:oo­
fiança trccaran olha1cs f:isando bem a anim osidade . 
Logo a seguir, porém� já não era mais a escada 
que caía, mas Mme. de Chalais. Dir-se-ia que tro­
cara de papel com a medros a criança . 
- Como ?O:les causar-me ta::tto medo? -
grito'...l. E assim Ealar:do, lançou ligeiramente o busto 
para trás, provocando um ruído seco com as baleias 
do espartilho . 
Esse contágio, é claro, dissipou-se rapidame n­
te. Mme. de Chalais não era mulher que se per­
mitisse abandonar-se a tais sentimentos de temor. 
Os obstáculos que a governanta encontrava 
da parte de Blanche foram cedendo cada vez mais, 
à medida em que na sua inteligência jovem os pen­
samentos e as imagens da piedade cristã fizeram 
desaparecer os temores confusos. Isso não me custa 
compreender : ah, querida, que consolação decorre 
do mundo da fé! Recordo-me bem nitidamente, 
quando me volto para os dias da infância, da estra­
nha repercussão da prece, por todas as profundi­
dades do ser , até um ponto onde o pecado não 
atinge. 
Blanche deveria ter experimentado, então, 
fenômeno semelhante. Essa pobre criança repelia, 
com obstinação, todas as garantias terrenas com que 
se procurasse tranqüilizá-la. Mas chegou a abrigar 
confiantemente o seu pobre coração temeroso sob 
as asas da infinita Onipotência. A "pequena lebre" 
adquiria coragem. Mme. de Chalais teve a satisfação 
de ver Blanche chegar a sorrir de seus temores 
passados, zombar deles com pequenas brincadeiras 
de desprezo, que demonstravam a fanfarronice de 
sua idade, mas que deixava a todos tranqüilos. 
20 
Era, agora, uma delicacb nt(lcir.ha de dezes­
seis anosJ com uma boca pequena num rosto tam­
bém pequeno e um pouco fino. Mrne. de Chalais 
fê-la usar um espartilho tão apertado quanto o seu , 
o que lhe dava aos movimentos urr:� graça quase 
geométrica. Contudo, ninguén mais a achava medro­
sa. Enfim, as coisas tomaram outro rumo. Pm sua 
vez, o marquês de la Force não tardo:J em procurar 
casamentoadequado para a filha. Mas grande foi a 
sua surpresa, quando Mme. de Chalais lhe fez saber, 
em termos categóricos, que Blanche não se sentia 
chamada para o matrimônial mas, suu, para a vida 
religiosa. 
Não é preciso dizer que o marquês de la 
Force, homem perfeitamente integrado no espírito 
francês, que considerava a Igreja como coisa do 
passado, foi contrário a semelhante projeto. Foi 
visto, então, comentando, irritadamente, o fato de 
Mme. de Chalais, na qual depositara tão grandes 
esperanças, não ter encontrado algo de melhor, que 
ajudar a construção de uma ponte pela qual Blanche 
fugiria ao mundo. Essa criança seria ainda tão me­
drosa como dantes. 
Ora, para certas naturezas - argumentava 
o pobre marquês - é precisamente no claustro que 
desaparece essa terrível incerteza da vida. Nele, bem 
sólidas fronteiras delimitam o deserto das possibi­
lidades. As intrusões e as exigências inesperadas 
do destino não serão ali para temer, mas se pro­
gride entre regras, pensamentos e muralhas cons­
truídas de uma vez para sempre. Essas muralhas, 
mesmo, segundo a expressão do marquês, não se 
abriam mais para a ''realidade,., e não davam pas­
sagem senão aos amáveis fantasmas do céu e aos 
das religiosas. 
21 
Por mús abusiva que pudesse pare;:er tal 
interpretação: havia, certamente, em tudo isso, algo 
de justo no que diz respeito à decisãc de Blanche. 
Mas seria um grande erro considerá-lo em primeiro 
lugar. É preciso ter-se sempre em conta que Blan­
che era verdadeiramente religiosa. 
No Carmelo de Compiegne, onde Mme. de 
Chalais tinha relações, Blanche provocou a mais 
favorável impressão. A pdoresa Croissy, já doente, 
vivia ainda nessa época. A ela foi Blanche apre· 
sentada . PergWltando-lhe a madre se a severidade 
da regra a não atemorizava, respondeu com um 
ligeiro acento de bravata que lhe era peculiar nas 
questões de coragem: 
- Oh, minha madre, há outras coisas muito 
mais temíveis que pequenos sacrifícios! 
Mme. de Cha1ais informara a prioresa acer­
ca das dificuldades que Blanche experimentara. No 
Carmelo, a madre encontrou ocasião de indagar-lhe 
quais seriam , por exemplo, os motivos de seu temor. 
Blanche refletiu um momento e depois res­
pondeu, num tom que denotava certa hesitação: 
- Minha reverenda madre, não saberia dizê­
lo. Mas, se ordena, refletirei sobre isso e respon­
derei mais tarde . 
- Não, não o ordeno - apressou-se a dizer 
a madre Croissy. 
Nesta época, a superiora era ainda uma mu­
lher jovem, mas já afetada pelo mal doloroso que 
deveria bem cedo fazê-Ia sucumbir. Dizia-se que 
Deus lhe permitira sentir, durante certo tempo, um 
profundo pavor da morte. No tempo dessa crise, 
22 
viam-na sempre em oração diante da gruta do Monte 
das Oliveiras , no jardim do claustro. A simpatia 
particular que sempre dedicou a B:anche era com­
pletamente estranha a essa circunstância. (Com efei­
to, não era costume, nun:a ordem de regras tão 
rigorosas, aceitar uma jovem tão delicada). 
Por fim, o convento aquiesceu. Claro, não 
foi tarefa difícil para lVI.me. de Chalais, em face 
dessa decisão, vencer a resistência do marquês, ha­
bituada como estava a envolver o céu nos seus 
negócios, e, ademais, o matquês de la Force não 
gostava muito de chegar às últimas conseqüências 
de suas opiniões. 
Assim, Blanche atravessou o limiar da clau­
sura . E fê-lo, como se pôde testemunhar, com umn 
alegria tão íntima impressa no seu pequeno rosto 
um pouco abatido, que se ficou convencido, no 
Carmelo de Compiegne, de sua verdadeira vocação 
e lhe foi dada, logo, a esperança de tornar-se uma 
filha digna de santa Teresa. 
Passaram-se os primeiros tempos de postu­
lado de maneira igualmente satisfatória. É preciso 
confessar que Blanche não se conformou tão facil­
mente com as exigências severas da regra . Aos 
poucos, porém, ia-se adaptando. Era amável, solícita 
e submissa. Sobretudo, era muito feliz e reconhe­
cida. Teve-se a prova disto quando certos rumores 
inquietantes, que não se podiam evitar nesses tem­
pos, penetraram no seio da clausura. Estava-se, 
então, nas vésperas da convocação dos Estados 
Gerais. Afirmava-se que, em tais circunstâncias, o 
semblante de Blanche demonstrava um contentamen­
to indescritível. Viam-na bater as mãos como uma 
criança e exclamar com a petulância que lhe era 
peculiar : 
23 
- Mas isso não nos diz respeito . 
0:..1 en:ão: 
- )Jada disso nc s interessa; aqu1 estamos 
:Jreservadas ! 
Mesmo no que se referk ao estilo peculiar 
da piedade carmelita , certas fórmulas heróic2.s tais 
como "Meu Deus , eu me ofereço totalmente a vós " 
ou '' 6 sofrimento, suave repouso dos que amam. a 
Deus, possas tu nunca faltar-me ! " - Blanche delas 
se apropriava com. rapidez surpreendente , assim 
como, outrora, aconteceu com as fórmulas igualmeme 
amáveis de Mme. de Chalais. Mas dir-se-ia que, 
insensivelmente, essas fórmulas adotadas com tão 
pouco esforço se apresentavam em toda a sua rea­
lidade . Houve, em conseqüência, um certo choque . 
Manifestou-se precisamente ao morrer a prio­
resa Croissy. Sua agonia foi bem dura. Ouviam-se 
os gemidos da moribunda, durante horas, em todo 
o claustro. Desconcertada, indagava Blanche , então, 
como era possível Deus ter reservado tais sofrimen­
tos a uma mulher tão santa . E demonstrava um 
espanto tão grande que as irmãs se escandalizavam . 
Adiou-se a sua vestidura , pois a mestra de 
noviças, irmã Maria da Encarnação, mantinha reser­
vas acerca dessa resolução. Entretanto, acabou por 
realizar-se a cerimônia, muito inesperadamen te. 
Estava-se no ano de 1 78 9 . Sob a pressão 
da crise financeira , a Assembléia Nacional , reunida 
em Versalhes, empreendia os primeiros ataques con­
tra os bens da Igreja (Lembras-te, sem dúvida , 
querida amiga, das medidas tomadas a esse res­
peito) . 
24 
No deco:re:r do verão, monsenhor Rigaud , 
provincial da Ordem do Carmelo, já fizera saber 
aos conventos sob sua jurisdição que seria promul­
gada uma lei pretihi•do às ordens de receberem 
novas candidatas . 1vlonsenhcr não omitiu a opinião 
que circulava na. Assembléia Nac:onal, favorável à 
suspensão completa: das comunidades religiosas. Mas 
ainda se podia esperar alguma moderação da lei, 
no sentido de permitir às candidatas até então 
recebidas permanecerem nas suas famílias conven­
tuais, o que, aliás , não evitaria o despovoamento 
insensível dos conven tos . 
Em tais circunstâncias, monsenhor Riguud 
aconselhou a vestidura sem demora para as postu­
lantes que se encontravam nos conventos , na me­
dida em que a conduta destas o permitisse . Assim 
se expressava o prelado tão darividen te: " Reco­
mendamos estas jovens, a menos que motivos pe­
remptórios não se venham opor expressamente, à 
vontade divina que nos dá forças ; nós próprios não 
sejamos mesquinhos a esse respeito, mas magnâni­
mos . O próprio Deus, nos dias que se seguirão , 
escolherá entre elas e decidirá. Cristo , sempre vivo, 
- assim concluía a sua carta - encontra-se pre­
sentemente no jardim de Getsêmani. Eis por que 
recomendo à reverenda madre prioresa o nome de 
'Jesus no Jardim da Agonia' pam as noviças que 
receberem o véu de religiosa . Não se encontraria 
um nome mais apropriado nos tempos em que vi­
vemos " . (Sabes, minha amiga, que nos conventos do 
Carmelo há a idéia de que o nome dado à religiosa 
dá acesso, de um modo p�trticular, ao mistério a 
que se refere) . 
Nestas circunstâncias , a priore sa recentemente 
deita, Mme. Lidoine, em religião irmã Teresa de 
25 
Santo Agosti:lho, achc u melhor vo_tar w caso de 
Bhnche, com a mes tra da� noviças , irmi Maria da 
Encarnação. 
Sobre essas conversações, e�cutemos a pró­
pria irmã Maria da Encamaçã:::J ou, co:no a cha­
mavam os filhos da adm:ráveJ �antora Rose Ducor, 
irmã Maria do Menino Jesus - pois era desse 
modo que Rose Ducor lhes havia interpretado o 
nome incompreensível de Encarnação . 
Sabes, minha amiga, como a peq�1ena deusa 
da cena, Rose Ducor, foi , por seus frívolos admi­
radores, acusada de coqueteria religiosa,espantando­
nos a todos , dando asilo no seu apartamento, sob 
a égide de sua popularidade, a religiosos e padres 
de todas as categorias . (Ah, minha querida amiga , 
muitas surpresas advêm, a propósito de heroísmo 
humanu , quando os tempos de martírios se aproxi­
mam . Jamais arriscaria a menor previsão nessa 
ma téria ! ) . 
A irmã Maria da Encarnação foi também 
das que encontraram asilo temporário em casa da 
cantora Ducor. E, se escapou ao tribunal da revo­
lução, foi certamente devido ao sangue frio e à 
presença de espírito dessa pequena artista . 
Foi então que tive a honra de aproximar­
me, mais de uma vez, dessa mulher notável. Ela 
trabalhava, nesse tempo , numa biografia de suas 
irmãs mártires . Encontrei-a instalada diante da ele­
gante secretária de Rose Ducor, classificando toda 
espécie de papéis . Naturalmente não trazia nem há­
bito nem véu, mas um traje civil. Usava uma toca 
e um chale que dissimulava, no pescoço, o lugar 
em que, segt1ndo se propalava, se via sobre a pele 
um estreito círculo vermelho, que não a teria dei-
26 
xado desde o dia da. execução de suas irmãs. A 
vigilante R()se Ducor gostava igualmente de contar 
essa comovente lenda, pois tinha na conta de san ta 
a irmã Maria da Encarnação. 
Quando percebeu que o meu olhar era diri­
gido para o seu chale, ajeitou-o ligeiramente. Seu 
gesto possuía qualquer coisa de doloroso e de brus­
co, mas sem a menor rispidez . 
Pude veriflcar, então - e certamente ela o 
desejava - ser falsa a fama que a cercava, mas 
não faltaria muito para justificá-la . Pois, na verdade, 
essa mulher era impressionante : atribuíam-lhe, nem 
mais, nem menos, que a fama de mílagrosà . ( Nada 
surpreendia tanto, ao conhecê-la , quanto o signi fi­
cativo nome de " irmã Maria do Menino Jesu s " ) . 
Poderia ter pousado para a estátua de uma 
rainha santa, e até mesmo de um rei santo. Ao 
menos, se acreditava poder ser assim. E não creio 
que essa impressão houvesse nascido exclusivamente 
da lembrança de sua origem . (Sabes, querida amiga, 
que essa irmã passava por ser filha natural de um 
príncipe real da França . Até a data da revolução , 
ela recebia uma renda do Estado. Sabia-se ainda que 
entrara no Carmelo com a dispensa episcopal dos 
filhos nascidos fora do matrimônio. Diz-se também 
que, sendo muito moça e vivendo numa das situa­
ções mais invejáveis, fora possuída bruscamente, no 
túmulo da célebre carmelita Acarie, do desejo arden­
te de expiar os pecados da Corte aos qua is devia 
o seu nascimento, como fizera Luísa de França, a 
madre prioresa do Carmelo de Saint-Denis . Tais 
antecedentes explicam muita coisa da vida dessa 
alma, de uma nobreza fora do comum) . 
Fiz-lhe a minha pergunta a respei to de Blan­
che de la Force. 
27 
Deu-!De 1Jma resposta das maiS c:ur1osas : 
- Serão - interrogou-me, por sua vez 
o medo e o terror apenas desfrezáveis? Não serãu, 
ao menos no começo, algo de muito mais profundo 
do gue a coragem, algo que corresponda muitc mais 
pro:undamente à realidade dos fatos , isto é, aos 
hor:ores do mundo, e bem mais, também à nossa 
pró,?ria fraqueza? 
Não vulgar surpresa causaram-me estas pa­
lavras. Pois, como sabes, foi a irmã Maria da En­
carnação que determinou o Carmelo de Compiegne 
a oferecer este ato heróico de consagração pelo qual, 
de um certo modo, o convento prejudicava sua 
sorte futura ( Voltarei logo a tratar deste assunto) . 
- O medo, algo de mais profundo que a 
coragem! E é precisamente a senhora, irmã Maria 
da Encarnação, que o diz ! - exclamei. 
Desprezou com facilidade esta alusão ao seu 
heroísmo, para retornar à questão primitiva. 
- Com efeito - retrucou - houve, entre 
nós , quem preconizasse a volta de Blanche ao sé­
culo. Entretanto, a nossa reverenda madre, a prio­
resa Lidoine, decidiu o contrário. Oh, a madre 
Lidoine era grande conhecedora e condutora das 
almas. 
- E no entanto - repliquei eu - a se­
qüência dos acontecimentos não deu razão à madre 
Lido in e? ( Pensava na fuga de Blanche para longe 
de Compiegne) . 
- Não à madre Lidoine - disse - mas 
a uma outra religiosa do convento. Todas nós não 
havíamos compreendido exatamente a direção que 
a reverenda madre dava às a]mas. 
28 
Tive, bruscamente, a impressão tão imperiosa 
quanto inexplicável de que falava dela mesma . No 
mesmo instante, olhou-me e estremeci sob esse olhar . 
Permaneceu , no entan to, absolutamente impassível . 
Fez-se um silêncio breve, mas cheio de vida. 
Com urn acento singular - diria mesmo, quase 
que de superior ingenuidade, contrastando com o 
perfil altivo de sua fisionomia - ela falou de modo 
que, decididamente , me desconcertou : 
- E porque quereis ignorá-lo, senhor de 
Villeroi? Não viestes aqui para ouvir toda a ver­
dade acerca dessas coisas ? Asseguro-vos que esta 
verdade, bem mais do que qualquer outra , é de 
natureza a glorificar " Sua Majestade " ( Sabes, que­
rida amiga, que nos claustros do Canudo se trata 
a Deus por " Sua Majestade " ) 
Deu�me, então, diversos documentos. Eram 
notas da prioresa Lidoine, espécie de diário de suas 
atividades e também recordações escritas pelo seu 
próprio punho, pois, como já disse acima, ela t ra­
balhava numa biografia de suas irmãs mártires . 
Aproveitei, dos documentos, o que interessa 
à minha narrativa . 
Soube, por eles, que a irmã Maria da Encar­
nação persuadira a madre prioresa a não dar o véu 
a Blanche, por enquanto, alegando que aquela timi ­
dez medrosa era a sua fraqueza particular . 
- O, minha madre - assim se expressa 
dirigindo seu belo olhar de fogo para a prioresa , 
que só podia encará-la levantando a cabeça , por 
ser notavelmente mais baixa - esta pobre criança 
me enternece, pois, na verdade , veio abrigar-se entre 
os muros do Carrnelo como um pássaro no ninho. 
29 
Não a estLno menàs, por � er fra:a ! M(l s, precisa­
mente, por am:í-la, é que so.1 de sta opinião. ó, mi­
nha madre, há milh�res dessas ?equenas de que 
nos apiedamos , dessas criaturas que nos cativa:n . 
Diante dos altares de Par�s , muitas dela� são quei­
madas cada dia ; outras , são ca:regadas pelas te:n­
pestades da vida. Mas essas pequenas cnamas não 
se transportam para um Carmelo. O Carmelo é a 
força, em toda a sua expressão ! 
Permite-me, querida amiga , interromper mi­
nha narrativa nessa altura . Apresentei-te a irmã 
Maria da Encarnação, segundo a impressão que me 
deixou de sua personalidade . Mas será oportuno, 
talvez, dizer ainda uma palavra a propósito de sua 
situação no convento e sobretudo com relação à 
nova pnoresa . 
Sem dúvida, esta última tinha-a na mais 
alta estima, pois chama-a freqüentemente , no seu 
diário, de " braço direito " , de " irmã conselheira" 
Às vezes, também, de sua ' ' fiJha mais velha " , e 
mesmo, uma ve.z, meio divertidamente, de " sua filha 
maternal ,. . Menciona ter esperado, após a morte da 
prioresa Croissy, a irmã Maria da Encarnação subs­
tituí-la nesse lugar, acrescentando guc a autoridade 
eclesiástica superior orientara a escolha para uma 
" bem mais modesta " ( a própria prioresa se designa 
com esses termos) ,. 
É exato qLle a madre Lidoine não se impu­
nha, absolutamente, nem pelo seu físico, nem peJo 
seu comportamento religioso, que nada tinha de 
especial . Isto se revelou , sobretudo , nos primeiros 
tempos que se seguiram à sua nomeação . Parecia, 
dizia-me a irmã Maria da Encarnação , só poder, 
muito dificilmente, habituar-se a dar qualquer ordem 
30 
a quem quer que lhe parecesse superior. Razão pela 
qual> às vezes , dava a impressão de :altar-lhe segu­
rança, o que na verda.de nio ocorria . 
- Ah, foi essa, precisamcn[e , � minha ver­
dadeira tentação . (A própria irmã Marta da Encar­
nação aludia, aqui, à ferida que rn�rcou as suas 
relações com a prioresa Lidoine , pois é certo que 
agiria melhor que esta) . 
Mesmo nesta circuns tância, a priorcsa, pro· 
priamente, não a contradisse . Apenas lhe estendeu 
a carta de monsenhor Rigaud. 
Leu-a a irmã Maria da Encarnação , enquan­
to seu expressivo semblantese rubodzava e empa­
lidecia, conforme o efeito produzido pela notícia 
das restrições que iriam sofrer as Orucns Religiosas . 
Quando conduiu, disse com ênfase : 
- Que dilema, minha madre! 
Mme. Lidoine esperava, evidentemente, outra 
resposta . Certo embaraço se manifestou no seu sem­
blante, como sempre acontecia ao tomar, como 
superiora, uma posição contrária à irmã Maria da 
Encarnação. 
- A irmã quer dizer que subsis te um di le­
ma? - perguntou com voz profunda (Essa voz 
era, nela, a única coisa que impressionava) 
A irmã Maria da Enc�rnação apressou-se a 
responder - oh , nada igualava a fineza e a sensi­
bilidade de suas observações: 
- A senhora deseja a vest idura, minha 
madre? 
-· - Monsenhor a deseja - responcleu a pno­
rcsa, num tóm de quase escusa . 
3 1 
Num .insu.n:e submeteu-se a irmã Maria da 
Enca:r.ação. f. QuerHa , é impressionante a::ompãnhar 
os esfc.rços de:;sas gra::1des almas para a perfeição 
da humüd�de) . 
- N�ssas condições - acresce:ltou - não 
:etiro o meu ;ulgamento sobre a nossa postuiante, 
mas por ela me ofereço a Deus em sacrifício . Pe:· 
mita-me, reverenda madre, ajudar essa alma qu� nos 
é confiada, por atos particulares de amor e de pe­
nitência, a fim de que a sua ad:nissão em nossa 
comunidade não co�porte nenhum risco . 
(Como sabes, tais substituições, inspiradas 
por um ato de amor heróico, são perfeitamente 
conformes à piedade do Carmelo, e a madre Lidoi­
ne devia, sem nenhuma dúvida, aprová-las) . 
Foi, assim, decidida a ves tidura de Blanche. 
Sabia-se, naturalmente, que seria, essa , por um certo 
tempo, a última solenidade no gênero , no Carmelo, 
o que conferia à cerimônia um caráter comovente. 
Mas não devemos crer que isso provocasse tristeza 
para a maior parte das carmelitas . Em virtude da 
severidade de suas penitências, os membros dessa 
Ordem, tão freqüentemente tachados de " sombrios " , 
demonstram quase sempre uma alegria e u m desa­
pego de crianças. E em Compíegne as religiosas 
estavam ainda mais radiantes , por terem podido, 
em tempos tão difíceis, salvar afortunadamente uma 
jovem irmã a mais, no seio da comunidade . De 
resto , a pequena noviça Cons tança de Saint-Denis, 
na sua maneira ingênua , expressou deliberadamente 
um sentimento que bem pode ter ditado a reco­
rner.d1ção de monsenhor Rigaud . 
- Querida irmãzinha Blanche - dizia -
vamos nos assoc1ar para escarnecer da Assembléia 
32 
Nacional! Somos jovens e, por mais dobroso que 
seja chegar tarde ao céu, queremos espera1· ainda 
a té aos cem anos, pois, daqui até lá, se1·á por certo 
permitido, novamente, receber nov1ça5 . 
A nova postulante , se bc.n �ue um pouco 
frágil, apresentava um aspecto tão tocante, no seu 
hábito escuro, com o véu branco das nov�ças, quan­
co no dia, ainda recente, em que se lh: franqueara 
a clausura . No gesto de uma das mãos, trêmula de 
alegria, tocando fortuita e su avemente a lã rude de 
seu h�íbito, percebia-se uma linguagem tão clara , que 
toJo o convento concordou imedia tamente com u 
decisão tomada. 
"Era indiscutível o reconhecimento dessa )o­
vem criança ,, , escrevia a madre Li do in e, na tarde 
desse dia . " Com efeito, a pobre pequena S<lhin m u i to 
bem que as suas forças haviam cedído c que não 
estava de modo nenhum preparada p:1r:t a vesti­
dura " . 
Oh, como Sua Majes tade é boa ! Como 
é boa a reverenda madre, como é indulgente a irmã 
Maria da Encarnação ! - constantemente ouviam-na 
repetir essas palavras'. 
Quando pronunciou o nome que devia levar 
para sempre, estremeceu um pouco . Mas tamanha 
era a sua alegria que, em breve, pôJe domi nar·st . 
Durante o recreio no jardim, prostrou-st: esponta­
neamente diante da gruta do Monte das Olive]rns , 
em que tantas vezes s e havia ajoelhado a prwresa 
Croissy. 
Depois, elevando a voz num comovente fer­
vor, fez a profissão de seu novo nome, orando 
Jiante de todas com essas palavras : 
JJ 
- Oh ! Meu JesLS do Jardim de Getsêrnmi. 
eu n:e ofereço toda a vós! 
" Espero tt: do " , assim dizi:1 a madre Lidoine 
ao terminar, " dessa l: umílde gn. ti dão, e do sa::lto 
nome com o qual o c�u cham:::m precisamente a 
esta criança . Oh, rnct.: Jesus do Jardim de Gecsê­
mani, fortalecei a aloa d:: vossa jovem noiva: enviai­
lhe o anjo da cor:solaçãc que Vos socorreu na hora 
da a:1gústia! " 
De fato, parecia g:.1e desta vez as esperan­
ças do cor..vento iam ser, enfim, alcançadas . Não 
mais se supunha, agora, que Blanche se contentasse 
em repetir as fórmulas comuns da piedade car:ne­
lita . Muito menos, ainda , parecia Blanche oprimida 
sob o peso desta. A jovem noviça persistia no ínti­
mo fervor que lhe marcara a vestidura . Seus pro­
gressos eram tão evidentes , que a própria irmã Maria 
da Encarnação estava satisfeita . 
Mas a consternação foi ta:nbém muito maior, 
quando se produziu o segundo choque, a seguir . 
Narremos, r<!rém , os acontecimentos. 
Ignoro s e nesse momento outros conventos 
foram objeto de semelhantes medidas e se estas 
medidas tinham qualquer relação com as últimas 
vestiduras. Como quer que tenha sido, logo após 
a admissão de B1anche ao noviciado, apresentou-se 
uma comissão ao Carmelo de Compiegne com a 
ordem de recolher certos dados sobre o número, 
a idade e o estado de espírito das religiosas . Já 
se tencionava, então, reconduzir as religiosas ao 
mundo, ou, em outras palavras , anular os votos . 
E já se alimentava , ingenuamente, a idéia de que 
a maior pll.rte se lançaria , alegremente , nos braços 
da revolução triunfante . 
.3 4 
Ar.tes de realizar uma entrevista i .n1d:iv�d uaB 
com as caroelitas, � comissão quis petcan:r ;to'b 
a casa . Ao ler os documentos que me es.üJ di a11te 
dos olhas, tenho a im_:J::-essão de que da :s�punh<�t 
se quisesse ocu�tar alguma coisa. Desde o oct!klJt·e 
romance de Diderot , circula no munc o dos lü.be r· 
tinos toda espécie de fa ntasias sobre [Cligí40sas se� 
qüestradas . 
Foran, então, de cela em cel3: . Para is. to. 
a irmã Maria da Encarnação recebeu, da superôora. 
ordem de acompanhar a comissão. Mas os. hon.1ens 
não andavam ruidosamente. Talvez se semísse1n, 
mesmo, embaraçados , como acontece habí cua lmcnte 
com os mandatários de um regime novo, di ante de 
uma antiga civilização . Contudo , caminhav�lm com o 
homens. ( Pensa, querida, nesses corredores acos tu­
mados somente às sandáJias silenciosas das irmãs ! ) . 
Provavelmente, tiveram o topete de não manifestar 
nenhum respeito. (É preciso notar que se havia 
obrigado as irmãs a levantar um ponco o véu) . 
Lia-se essa irreverência nas fisionomias dos comis· 
sários , embora não se mostrassem muito ameaça­
dores, porque ainda eram obrigados a manterem 
boas relações com as Ordens . Dizia-me a. irmã Maria 
da Encarnação que mesmo o mais suspeito� dentre 
eles , um sujeito pequeno e insolente, provavelmente 
um escrivão subalterno, se havía mostrado mui to 
mais digno de riso que de pavor, enquanto corria 
na frente dos comissários, abrindo-lhes obsequiosa­
mente as portas, com um barrete vermelho sobre 
os cabelos gordurosos. Estou certo de que ele expe­
rimentava uma alegría impudica ao penetrar nos 
claustros de mulheres. Mas, como se disse , tudo 
isso não o tornava absolutamente temíve1, e, s 1 m , 
desprezível e irrisório. Contudo , foi ele quem pro-
35 
vocou na pc br::: Bian:h� uo vudaceiro pavor . No 
mon::ento em qu= o p�qJena �ndidduo, digno C.e 
mofa, abriu a porta de má ce] a, e seL ros to ridí­
cu!o p::!netrou no espaço entreabetto, ela soltou um 
grito pungente (a irmã Maria da Er_car_açãc con­
tou-me não ter ouvido nada semell:ante , senão du­
:ante os dias mais sangrentos da revolução� . No 
mesmo instante, c:Jm as mãos estendidas Faro a 
frente e crispadas , �la r�cJou atrE a _?ard.e do fu ndo 
da cela, e permaneceu lá, ce pé, ccmo se esperasse 
a morte. 
Os membros d3. comissão ficaram imóve: s . 
O primeiro instante foi de es tupefação. Logo a 
seguir, tomaram um ar de interessados , pensando 
ter descoberto, enfim , a seqüestrada cuja presença 
haviamsuposto. O primeiro comissário começou 
por dirigir-lhe a palavra com uma amabilidacle toda 
especial : poderia ela, sem o menor receio, confiar 
nele. 
Blanche, de tão apavorada, não lhe pôde 
responder. Mas quando, ao aprovei tar-se do seu 
mutismo, ele sugeriu que talvez ela desejasse aban­
donar o claustro, teve um movimento de pavor 
que excedeu ao primeiro, ficando banbada em lá­
gnmas . 
Contente de poder salvar uma vítima da 
religião, e cheio de zelo pela sua m1ssao, o comis­
sário afirmou que ela podia considerar-se, em qual­
quer ocasião, dispensada dos votos, porquanto as 
novas leis não m:ais au torizaw1m a vestidura . Dito 
isto, quis, frate:rn alment·e, tomar-lhe as m ãos, mas 
nesse instante interveio a irmã Maria da Encarna­
ção. Com incomparável super1oridade, fixou sobre 
o primeiro cornis:sário os seus belos olhos plenos 
de firmeza e de briHho, e diss·e : 
36 
- O senhor ultrapassa os seus podel'es 
Pelo que se1, a lei de que fala não cst � a in da em 
vigor. 
Ignoro a resposta que encontraria o comis­
sário para replicar, :se Blanche, que sempre se man­
tivera muda , não se tivesse refugiado nos braços. 
da mestra de noviças. Dava-lhe, assim, a res,pos ta 
mais eloqüente que poderia esperar. 
O comissário viu o erro em que cdr<l I! 
corou, como um pretenden te desiludido. 
Nesse entretcmpo, as irmãs professas h�vi;lliJ­
se reunido na sala capitular, em torno da priorcsa. 
Se a madre Lidoine quase não desaparecesse no meio 
de suas filhas, poder-se-ia dizer que era m como os 
pintinhos ao redor da galinha . 
As irmãs foram chamadas individualmente à 
sala do capítulo, cuja entrada estava militarmente 
guardada, a fim de dar maior importância ao ato. 
Cada religiosa, antes de entrar, era recebida peJa 
madre prioresa que as exortava a que fossem rão 
breves quando possível e respondessem com doçura. 
Fora ·essa a atitude que monsenhor Rigaud a acon­
selhara a manter diante de suas filhas. É bem fácil 
de imaginar como essas respostas foram dadas . Tudo 
se passou sem dificuldades, exceto na entrevista da 
irmã Maria da Encarnação, em que houve um pe­
queno incidente. 
Por mim, sou levado a crer que ck� se ter i tt 
produzido , mesmo sem a ocorrência da cena nntt:­
rior, na ce1a da pobre Blanche . Basta imaginar, por 
um só instante, essa grande dama de sangue rcaJ , 
em presença de tais plebeus ! Imaginar essa reJigjosa , 
perfeitamente compenetrada de sua miss.ãu mística 
37 
de exp1aça:J, di.arte de notári� fdvolos e raciona­
listas . E a colisão se expEca por si mesma, por 
mais que pLdesse :er sido de:erminada pelo acon­
:ecimento anterio:. De certo modo, o foi: psicologi­
camente, é perfeitamente concebbel que o primeiro 
comissário �mrdas�e rancm cor_tra essa religiosa, 
pela v�rgonha per que o havia feito passar . O seu 
desejo de hunilhá-la bi logo traído às pdmeiras 
palavras , w perguntar-lhe oom ironia se , tanto ela 
como a jovem la Force , es tavam curadas ao temor 
que lhes havia manifestado. Ora, a irmã Maria da 
Encarnação sabia-se ao abrigo de qualquer temor. 
Nesse instante experimentou �penas o dever, tanto 
maternal como fraternal, de defender a fraqueza da 
pobre e pequena noviça, em face daqueles estran­
geiros. Não havia dúvída de qu e se votava plena­
mente à missão de salvaguardar a honra da casa 
ameaçada, pois só assim se explica a audácia ines ­
perada do seu com.portamento diante da comissão . 
- Que entende o senhor por essa palavra 
" temor " ? Que motivo de temor poderíamos ter, 
fora da idéia de desagradar a Cristo, que os senho­
res nos dão a honra de poder professar aqui sole­
nemente? 
Essa respos ta, é claro, era a que mais pode­
ria ter irritado o comissário . (A gente medíocre só 
dificilmente suporta profissões de fé que lhe sej am 
estranhas ) Uma v�z mais ele ultrapassou os seus 
poderes : 
- Erraste, cidadã - retrucou. Não estamos 
aqui para concede r-te a honra de acolher uma pro­
fissão fanática, mas a fim de perguntar, em nome 
do Estado, se queres, ou não , abandonar este recinto 
de superstiçãO} . Fica , pois , avisada : os representantes 
38 
da Nação têm plenos poderes . Eles poderão muito 
bem justificar um certo 1emor, que em vão procuras 
esconder. 
Cego , ele nãc seiltia qnc '' sua animosidade 
tão manifesta inflamava ain.:la mais as catmelitas, 
em vez de intimidá-l�s . !Querida , o ideal cristão, 
como nenhum outro, é inflamado peLl perseguição . 
O refinamento natural de tcda brutalidade dirigida 
contra ele é então metamorfoseado numa estupidez 
quase sobrenatural) . 
A irmã Maria cla Encarnação pressentiu a 
ameaça que, no minuto segu inte , ia acolher com 
tanta elegância . Respondeu, sem medo : 
- Minha profissão de fé contém, igualmen­
te, mínha resposta a essa questão. Mas , no que diz 
respeito aos plenos poderes de represen tantes do 
Estado, são, ao meu ver, apenas aqueles que Deus 
lhes concede. Nem um átomo a mais ! E o senhor 
bem o sabe! 
Compreende-se que essas palavras fizeram 
transbordar a taça. 
, - Bem - replicou o comissário - guardo 
a resposta . Não chegou ainda a seu fim o nosso 
movimento. Mas espero que virá o dia em que 
assaltaremos os claustros e as igrejas como já se fez 
com a Bastilha. Quanto aos seus ocupantes . . sabe 
a cidadã o que acon teceu com o govern:1dor da 
Bastilha ? 
(Aludia à cabeça ensangüen tada de Launay 
que o povo conduzira, através da cidade, na ponta 
de uma lança) . 
Por longo tempo ela permaneceu imóvel, 
completamente imóvel, sem proferir uma só palavra. 
39 
- Sem dúvida o com1ssarw Ja se ia feJici ta: por 
-cê-la amedrontado com a perspectiva da morte. -
\1as , aos poucc s, o rubor inundou-lhe o rosto, tor­
nanda.a alegre. 
- Bem o sei - respondeu ela , com voz 
baixa - bem o sei . Oh, sei-o muito bem ! - e 
era como se a sua voz se houvesse transfigurado, 
vencida por uma estranha felicidade. Cruzou os 
braços . 
Querida, devemos por um instante deter o 
nosso pensamento em face dessa disposição de alma , 
particular ao Carmelo, mas que nos é, sem dúvida, 
bem pouco familiar . O espírito de sacrifício nele 
se integra a tal ponto , que a crença na salvação 
cristã pela cruz tem, por cume , o amor espiritual 
ao sofrimento e à perseguição. Bem sei que tal 
conceito é di fícil de ser compreendido por um 
mundo não-cristão ( digamos, pelo " mundo " , sim­
plesmente) , e dele se desconfia, como de uma coisa 
mórbida . Entretanto , querida amiga , suplico-te, faze 
abstração, por um instante, dos teus próprios sen­
timentos e vê nisso um elemento fundi:lrnental à 
nossa narrativa. (Ah, isso é bem fundamental , na 
verdade, ao próprio cristianismo ) . 
- Quando deixei a sala capitular - disse­
me a irmã Maria da Encarnação - foi como se, 
no mais íntimo de mim mesma, se tivesse acen­
dido um círio fúnebre, imenso e solene , que consu­
misse, de algum modo, todas as minhas células, ou 
como se, de instante a instante , me tornasse trans­
parente . 
Também a madre prioresa, ass1m que a viu , 
exclamou : 
Resplandeces como um querubim , minha 
filha. Que te aconteceu ? 
40 
Com a voz sufocada pela emoção, cujo doce 
júbilo não podia reprimir, ela respondeu : 
- Ú, minha madre, felicite-me e felicite· 
se. Felicite este país e este trono . Sua majestade 
quis destinar-nos a uma obra de expiação, pela qual 
não poderíamos esperar : ameaça ram-me com o mar­
tírio! 
Para seu espanto, a superiora não lhe par­
tilhou o entusiasmo, limitando-se a indagar, com 
certa frieza, como fora possível ocorrer tão Jamen­
tável incidente. 
A irmã Maria da Encarnação compreendeu-a . 
e ajoelhou·se diante dela, acusando-se por ter infri n­
gido as suas recomendações, segundo as quais devia 
expressat·se com brcvidaJc c doçur<l . Eis o que eb 
própria me disse: 
- Não que me tivesse faltado ardor para 
quebrar a minha presunção . Por nada deste mundo. 
Mas não havia passado ainda pelo verdadeiro com· 
bate . 
(As faltas dessa nobre alma estavam bem 
longe de uma imperfeição habitual ) . 
De resto, a prioresa logo retrucou -e não 
creio que fosse unicamente em virtude da presença 
dos guardas : 
Não se tratava de uma ordem, minha 
filha, mas de um conselho apenas . 
Contudo, persistia o estado da pobre Blan­
che. E não devemos enganar-nos reduzindo-o a um 
choque nervoso característico . Durante todo esse 
tempo, a irmã Maria da Encarnação foi para a 
41 
; ovem noviça uma guarda tutelar e uma consolado­
ra infatigável. Reconheça , de resto, nessa a ti tudc 
da grande carmelita um elemento eminentemente 
s ignificativo, e compreendo q:.1e esperasse atingir o 
seu fim tanto mais despreocupadamente quanto 
erguia Blanche os olhas para a mestra , com toda 
a ardente admiração dos fracos. 
Ao fim de alguns dias , reapareceu no círculo 
das irmãs. Esforçou-se visivdrnente por desfazer a 
má impressão que podia ter cau sado o incidente 
com o comissário. Como é costume nos conven tos , 
acusou-se, n o refeitório, de sua fraqueza , testemu­
nhando o seu arrependiment o e recomendando-se às 
orações de suas irmãs noviças. Na verdade , era para 
surpreender que tanta humildade e tanta boa von­
tade não devessem, depois, produzir frutos. 
O testemunho profano acharia talvez natu­
ral , nos dias que passavam, a manifestação de per­
plexidade por parte duma jovem religiosa um pouco 
delicada . Por mim , ainda me recordo muito bem 
que haviam ocorrido pilhagens de conventos , por 
essa época, nas mais diversas regiões do país, como 
resposta da populaça incentivada pelos decretos da 
Assembléia Nacional contra as igrejas . 
Bem que devia ter Blanche algum motivo 
para inquietude . E, de fato, estava preocupada. Não 
deixava que se percebesse a princípio, mas já se 
ia notando à medida que procurava defender-se. 
E considerando o acontecimento em seu conjunto , 
seria mesmo tentado a asseverar , pensando na ex­
celente educação de Mme. de Chalais, que era como 
se um novelo cuidadosamente enrolado começasse a 
desfazer-se . Ou como se voltasse a pequena lebre 
fugitiva e começasse a comportar-se exatamente como 
42 
outrora. Tal como antigamente, quando criança, era 
ouvida indagando sempre se as escadas não iam 
•c ruir " e se os homens não eram maus, assim tam· 
bém agora, durante os recreios, acontecia-lhe inda­
ga r de improviso, com a voz estranhamente ator­
mentada, se não haviam ocorrido novas pilhagens, 
se na verdade permitir-se-ia às t·el igiosas permane­
cerem em seus claustros etc . 
- Não tenho medo - dizia ela com u m 
aspecto comovente p e 1 a inverossimilhança (nin· 
guém acreditava mais em suas fanfarronadas ) 
Não, não tenho medo ! Pois se o rei de França é 
tão poderoso , quanto mais . 
Ia repetir involuntariamente uma expressão 
de Mme. de Chalais, mas se deteve, subitamente , 
à lembrança do modo como o rei fora maltrn tado, 
quando a populaça o levara prisioneiro de Versalhcs 
a Paris . Causavam-lhe um grande mal-estar os can­
tos revolucionários da Carmagnole e do Ça ira que 
se ouviam, vindos das ruas e cada vez mais fre­
qüentes . Então, pedia permissão parH ir buscar um 
livro que esquecera (exatamente como criança , como 
se, de novo, fosse criança ) . E tinha-se a impressão 
de que pretendia ocultar-se, não importava onde , 
para não ouvir mais os cantos Ja populaça. 
- E éramos nós que desejávamos desafiar 
a Assembléia Nacional e envelhecer até aos cem 
anos , querida irmãzinha Blanche! - dizia a jovem 
e ingênua Constança de Saint-Denis à sm irmã 
noviça - . Éramos nós que desejávamos sobreviver 
a essas más leis referentes aos claustros ! Como 
podes desdizer tudo isso com teu pavor? 
E, noutra vez: 
- Não somos nós as noivas de Cristo? 
43 
A quase centenária Joana do \1erüno Jesus 
dizia também : 
- Não somos as servas do pequeno Rei da 
Glória e não cuidará Ele de fortificar-nos, quais­
quer que sejam as circunstâncias ? 
(As carmelitas não diziam como Mme. de 
Chalais : "O pequeno Rei da Glória proteger-nos-á, 
mas : fortificar-nos-á) . 
A maior parte delas vivia, então, na mesma 
expectativa entusiástica do sacrifício, em que vimos 
a irmã Maria da Encarnação . Esta última parece 
haver duplicado, por essa época, sua ascese e ora­
ções por Blanche . ( Recordas-te ainda , minha amiga, 
que antes da vestidura ela se havia comprometido 
a fazê-lo - um pouco precipitadamente - para 
o futuro da jovem noviça? ) Não mencionei mais 
esses ofertórios a fim de não diminuí-los em sua 
singular beleza, que é o seu grande segredo . E a 
não ser a prioresa Lidoine, ninguém em Compiegne 
o sabia . Mas era de Blanche que a irmã Maria da 
Encarnação desejava ocultá-lo estritamente . ( Queri­
da, abordaremos incessantemente novas profundezas 
religiosas nesta mulher admirável . Nunca procurou 
exercer uma infLuência psicológica sobre a noviça que 
lhe fora confiada . Pelo contrário, queria pr0Ceder 
como fazia com relação ao mundo, sobre o qual agia 
espiritualmente , isto é, pelo sacrifício e pela oração, 
por intermédio do próprio Deus, a quem os con­
fiava . E conforme essa ordem das coisas, tudo era 
considerado no seu tlltimo grau de elevação) . 
Nesses últimos acontecimentos, a sua influên­
cia no seio da comunidade poderia ter sido extra­
ordinária . Na verdade , não creio ter-lhe sido possí­
vel impedir que, àqueles que lhe viviam em torno, 
44 
se comunicasse o ardor de sua expectativa do mar­
tírio, ainda se admitirmos que houvesse tentado 
impedi-lo. Mas era impossível que procurasse fazê­
lo . Pensa , minha amiga , na particular missão de 
sua Ordem. Não te lembras de que, antes da revolu­
ção, se estabeleceram, por vezes , algumas discussões 
sobre a possibilidade de o cristianismo ainda suscitar 
mártires ? E na verdade os acontecimentos iam mos­
trar como nessa Ordem se preparavam mártires . 
" A França não poderá ser salva pelo zelo 
de seus políticos , mas , sim , pelas orações c os sa ­
crifícios das almas consagradas . Hoje é o grande 
dia do Carmelo " Ta1 era o diapasão a que todas 
aquelas mulheres pacíficas de C mpíegne se haviam 
acostumado. Com plena e perfeita con sciência, pre­
paravam-se para o martírio . 
- Será que precisaremos , ainda, de tantas 
provisões? - indagava, com certa ingenuidade , a 
pequena Constança de Saint-Denís , num dia em que 
a madre prioresa perguntou se a horta forneceria 
as reservas de legumes necessárias para o inverno . 
Por que não precisaremos wais dessas 
provisões, minha filha? - retrucou a superiora. 
Estava-se acostu mando a ouvir expressões como 
essas. 
Não era segredo para as religiosas o frito 
de a superiora se manter numa impenetrável frieza 
diante dos preparativos heróicos de suas filhns . 
" O convento coleciona brilhantes pérolas de 
louça " , escrevia ironicamente no seu diário, aludindo 
a esses preparativos . ''Minhas filhas brincam nova­
mente com o martírio " . 
45 
Certamente, cara amiga, estou bem longe de 
pre[ender diminui r , no que quer que seja, a heróica 
força de espírito dessas religiosas . Mas não posso 
deixar de observar que, a essa altura, nada em 
Compiegne justificaria a possibilidade imediata do 
martírio . As simples ameaças de um comissário, 
assim como o comportamento da populaça , não pas­
savam de afrontas . 
Estava-se, então, em face de certas res tnçoes 
e dificuldades . Talvez mesmo diante de uma disso­
lução momentânea das Ordens. Mas nada disso po­
deria fazer com que se previsse o pior . Pelo con­
trário , seria desprezar grosseiramente uma época qllc 
se apresentava, antes de tudo, como humanitária, 
acusá-la de intentos sanguinários . E seria decidida­
mente para rir apresentá-la sob a terrível grandeza 
de ser detestada por Deus , aquela época que só 
se preocupava com fórmulas filosóficas e com os 
problemas imediatos , causados pelo marasmo finan­
ceiro do Estado. Muito menos nós, querida amiga , 
poderíamos acreditar que as coisas chegassem a se­
melhantes conseqüências . E, vistos desse ângulo -
perdoa a minha liberdade - a coragem heróica , 
assim como o medo, eram simplesmente um luxo. 
Todavia, nos enganáramos se pretendêssemospôr 
tais considerações no mesmo plano em que se situa­
va a reserva com que a prtoresa se opunha às suas 
filhas . 
Sabes, minha amiga, que o decreto previsto 
por monsenhor Rigaud não se fez esperar . E não 
só se proibia , categoricamente, a admissão de novi­
ças, como se interditava a recepção dos votos per­
pétuos àqueles que já haviam feito a vestidura . 
(Podes imaginar o que significa , como sofrimento , 
para uma pobre novtça , essa última determinação? 
46 
Significa condená-la a um noviciado perpétuo) . No 
Carmelo de Compiegne o edital vinha a atingir em 
cheio, além de Blanche, a irmã Constança de Saint­
Denis, que estava nas vésperas de profissão per­
pétua. 
Deliberadamente a irmã Maria da Encarnação 
tomou o partido de propor que a fizessem pronun­
ciar , em segredo, os votos, como se havia proce­
dido na vestidura de Blanchc. 
Com a sua nobre energia, dizia à prioresa : 
- Que risco correremos , minha madre, mes­
mo se tudo vier a ser descoberto ? Tanto mais 
depressa o mundo fizer com que sin tamos o seu 
ódio, tanto maior será o benefício que prestaremos! 
(Percebes, minha amiga , a ligeira mudança 
de atitude na transição de uma simples Jisponibi­
Jidade para o voto declarado? E compreendes, que­
rida, o porquê da inércia com que a superiora se 
opunha ao entusiasmo de suas filhas? ) 
Surpreendeu a irmã Maria da Encarnação 
com uma das primeiras dctc.minações, da qual 
assumia a plena responsabilidade. Repe1 iu o projeto, 
e invocou, para justificar a sua a ti tude, um moüvo 
um pouco decepcionante : no caso da vestidura de 
Blanche estava-se, apenas , sob a ameaça de uma 
lei iminente, e não , como agora, diante de uma 
lei que já entrara em vigor , e não lhe parecia de­
sejável despertar , sem necessidade , a cólera dos 
adversários. 
Naturalmente, não era esse o motivo prin­
cipal. Não posso furtar-me, minha amiga , de des­
crever a cena , no decurso da qual a superior:1 assu­
miu a penosa tarefa de tornar conhecida essa lt::i 
47 
às duas noviças. Nela se entreabriu, efetivame!lte, 
o véu insignificante da alma dessa mulher exterior­
mente tão apagada. ("Foi a primeira vez '' , disse-me 
a irmã Maria da Encarnação, " que se comportou 
como superiora e" , acrescentou em voz baixa, "em 
franca oposição a mim ") . Antes de ler o decreto, 
recitou, com as suas filhas, reunidas em corno, o 
hino célebre da santa da Ordem, a grande Teresa 
D' Avila : 
((Sou vossa e vivo neste mundo por Vós. 
"Como quereis dispor de mim? 
"Dai-me riqueza ou indigência, 
"Daí-me consolação ou tristeza, 
((Dai-me alegria ou aflição, 
''Doce vida ou sol aberto : 
"Porque me abandonei toda a Vós, 
"Como quereis dispor de mim ? " 
A seguir, leu o decreto em voz alta. 
- Minhas filhas - disse às duas noviças 
em virtude dessa ordem cruel , oferecereis a Sua 
Majestade os votos perpétuos de fidelidade e o 
sacrifício de não poder pronunciá-los solenemente. 
Pois o que importa aqui - afirmou, percorrendo 
com os olhos claros as outras irmãs - não é que 
realizemos os nossos próprios desejos, por mais 
nobres que nos pareçam, mas, sim , que os de Deus 
sejam realizados . Nem vos revolteis contra essa lei , 
minhas caras noviças, mas reprimi igualmente qual­
quer dor. Recebei esse legítimo desespero num 
perfeito amor de Deus e desse modo saúfareis , 
plenamente, o espírito de nossa Ordem : sereis car­
melitas, no mais perfeito sentido, precisamente por­
que o mundo, ho mais perfeito sentido, não o 
permite. 
48 
Certamente, essas palavras, e a oração que 
as precedeu, dão a perceber muita coisa, e a bem 
dizer , sob os mais diversos olhares . Só resta saber 
se foram bem compreendidas . 
Admitindo que o tivessem sido , em relação 
a Blanche a inteligência dessas palavras não produ­
ziu o menor efeito. A superiora ficou surpreendida 
por vê-la escutá-las com um r�colhimento particular. 
E é preciso confessá-lo : foi por isso que os acon­
tecimentos futuros se tornaram escandalosos . 
Estava-se no período do Advento , e , na vés­
pera, a irmã Joana da Infância de Jesus cos t u rara 
uma nova camisa para o pequeno Rei da Glória . 
A cos tura estava um pouco envicsada , pois os olhos 
da irmã tinham perto de cem anos. Mas ela não 
permitiria que lhe tirassem o ofício . 
Cara irmãzinha Blanchc, brevemente 1rao 
levar-lhe o nosso pequenino Rei - disse ela à 
jovem noviça . Isso não lhe dá um pouco de 
coragem? 
(Sabes, minha amiga , que na noi te de Na tal 
é levado o pequeno Rei da Glória à cela de cada 
uma das carmelitas . Blanche , recentemente admiti­
da, ia assistir, pela primeira vez , a essa cerimônia ) . 
Mas aconteceu, infelizmente, que, alguns di:.:ts 
antes da festa, a Assembléia Nacional promulgou 
um decreto de confiscação dos bens eclesiás ticos . 
O pequeno Rei foi despojado de sua coroa e de 
seu cetro . Na noite de Natal a príoresa o 1evou 
de cela em cela , vestido apenas com a pobre ca­
misa mal ajustada . 
" Agora o nosso pequeno Rei é novamen tE' 
tão pobre como o foi em Belém " , diziam , alegre-
49 
mente, as carmelitas. Aquelas boas e dóceis mu]he· 
res não se cansavam de transfigurar em alegrias 
toda adversidade. 
Blanche ficou admirada . Lia-se claramente 
n:o seu semblante . As lágrimas caíram-lhe dos olhos, 
em duas grandes gotas, sobre a pequena estátua 
de cera que lhe puseram entre os braços . 
- Oh, tão pequeno e tão fraco ! - suspirou . 
- Não, tão pequeno e tão poderoso ! 
murmurou-lhe a irmã Maria da Encarnação . 
Blanche, certamente, não a ouviu . E, só ao 
curvar-se sobre a imagem, para beijá-la, foi que deu 
pela ausência da coroa. No mesmo instante, o canto 
selvagem da " Carrp.agnole " se fez ouvir na rua. 
Blanche teve um violento sobressalto . A imagem 
escapou-lhe das mãos e a pequena cabeça nua caiu 
sobre os ladrilhos da cela , destacando-se do corpo. 
Blanche soltou um grito . Seu semblante parecta , 
nesse momento, o d e uma estigmatizada . 
- Oh, morreu o pequeno Rei ! - gritou . 
- Só resta o Agnus Dei ! 
Mais tarde, Blanche devia passar por uma 
nova crise, quando, alguns dias depois , era celebra· 
da a festa dos Santos Inocentes , dia em que, nos 
claustros , a mais jovem das noviças conduz diante 
de todas as outras o cetro da infâmia . Precisou fazer­
se substituir por Constança de Saint-Denis , dois 
anos mais velha. 
Mas o pior - e nisto estava propriamente 
o escândalo - foi que 5e teve a impressão de 
que Blanche , bruscamente, deixou de opor, com o 
outrora, resistência aos seus tormentos . Se até agora 
50 
dava sempre um nevo motivo de reconforto no 
atdor com que procurava adquirir maior fi rmeza, 
e1a indiscutível que a sua resistência enfraquecia , 
para não dizer que cedia, sim plesmente. A irmã 
Maria da Encarnação convenceu-se, mesmo, de que 
ela aceitava passivamente o seu estado . 
Tal foi a razão que determinou - ao que 
parece - o Carmelo de Compiegne a propor à 
jovem noviça a volta ao mundo , pois, afinal, o sen­
tido do noviciado se reduz a uma ques tão que 
poderia ser solucionada com uma sua negati va . 
" Minha filha mais velha " , escrev eu a su pe· 
riora, '' viu mais longe do que eu nesse caso. Será 
preciso reparar, o mais cedo possível , o erro co­
metido" . 
E acrescentou : " Pobre i rmã Maria do Encar­
nação! Fazia tanto sacrifício por esta crínnça , mas 
Sua Majestade não quis aceitar-lhe o sacrifício" 
Mandou chamar Blanche , para comunicar-lhe, 
pessoalmente, o que devia fazer. 
Blanche entrou na sala. A superiora teve a 
impressão de que o seu semblante estava bem mais 
abatido , desde ·a última crise, e de que havia, mes­
mo, envelhecido um pouco , se se pode falar em 
envelhecer numa idade tão tenra. O seu abatimento 
fazia-se notar muito mais, agora , nos ttaços de seu 
semblante . Blanche parecia pressen tir o motivo pelo 
qual a chamavam. Havia, nela, algo da criança que 
espera uma punição , e ao mesmo tempo algo de 
uma estranha consolação, um não sei que de última 
certeza e profunda boa vontade . 
A prioresa experimentou , ao vê-la, uma breveemoção. 
51 
- Minha quericla filha - disse com doçura 
r:enho uma comunicação dolorosa a fazer-te . 
Vamos, antes de tudo, procurar, ambas, a conso­
lação em Deus. 
Convidou Blanche a ajoelhar-se com ela. 
Recitou, depois, em voz alta, o hino de santa Te· 
resa , e pediu à noviça que o repetisse. 
Ocorreu, então , um fato estranho . 
Blanche seguiu docilmente a ordem da pno· 
rcsa Lidoine . Repetiu as palavras com a sua voz 
fraca, um pouco extenuada, até a altura em que se 
dizia : 
"Dai-me riqueza ou indigência, 
"Dai-me consolação ou tristeza " 
E aqui ela prosseguiu : 
"Dai-me refúgio ou angústia mortal, 
"Doce vida ou sol aberto . 
"Como quereis dispor de mim? " 
Falava depressa e quase mecanicamente, como 
alguém há muito familiarizado com essas palavras . 
Sem dúvida, não reparava ter modificado o texto. 
Não se deu o mesmo com a superiora . Ela, 
no primeiro instante, esteve prestes a repreender 
Blanche. Mas a mesma emoção singular, que expe­
rimentara ao recebê-la , a deteve . Sem nenhuma re­
ferência à oração, foi direta ao ao;sunto : 
- Minha filha, suponho que conheces o 
motivo por que te mandei chamar. 
Blanche silenciou . A prioresa não esperava 
por este silêncio. 
- Mantive semp1e - prosseguiu - a mais 
elevada opinião acerca de tua humildade, e conto 
con ela para tornar mais leve, para mim, o peso 
deste momento. Pois, em verdade, esta separação 
não é menos dolorosa para a mãe do gue para a 
filha. 
Tomou Blanche, sempre calada, nos seus bra­
ços . Sentia-se um tanto embaraçada . 
- Ou tens ainda o sentimento de que te 
faço mal ? - perguntou com um certo d<.:sac<.:no . 
Blanche se conservava calada. 
Bruscamente, a superiora disse, com u m<l 
precipitação fora do cos tume : 
Irmã Blanche, ordeno-te que fn1cs ! Far­
re-ei mal, sim ou não, enviando- te de volt:l ao 
mundo? 
Blanche ajoelhou-se diante dela , e cobriu o 
rosto com as mãos . 
Minha madre ordena que fale - disse 
com doçura - pois bem: sim, me faz mal ! 
- Está, então, enganada a tua mes tra de 
noviças, e tens a esperança de conseguir vencer 
ainda, malgraçlo toda tua fraqueza? 
- Não, minha madre. - Havia, ao mesmo 
tempo, qualquer coisa de desespero e de certeza 
em sua voz. 
Para a prioresa , foi como se houvessem tro­
cado todas as escalas de valores . 
- Olha-me - disse-lhe, brevemente . 
Blanche tirou as mãos do delicado rosto 
contraído. Toda sorte de expressões fisionômicas 
nele se estamparam, como que contidas num único 
ponto . E, coisa estranha, com uma intensidade es­
pantosa . A custo o reconheceu a prioresa . Passou­
lhe ante os olhos , repentinamente, um desfile de 
imagens, sem a menor ligação entre si : pequenos 
pássaros que morrem, soldados feridos no campo 
de batalha , criminosos na forca . 
Não era mais o pavor de Blanche que acre­
ditava ter diante dos lhos, mas todos os terrores 
do mundo. 
- Minha filha - disse, desconcertada 
não é possível que a angústia mortal de todo um 
mundo . - e interrompeu-se . 
Houve um silêncio. Depois, a superiora , 
quase com timidez, retomou a palavra : 
- Crês que o leu temor . é reJigioso? 
B1anche suspirou profundamente: 
- Oh, minha madre - disse num sopro 
pense no mistério do meu nome ! 
De preferência a qualquer descrição dessa 
conversa , das mais estranhas, deixei falar o diário 
da prioresa . Já uma vez viste essas notas passarem, 
de um tom quase sempre tão sóbrio, para o de 
uma extraordinária afirmação religiosa . Pois, a essa 
altura , elas se elevam ao sublime da mística . Desde 
o início esses trechos de suas notas se distinguem 
de tudo o que os precede. Em lugar da simples 
indicação da data se encontra a epígrafe : "Apelo 
da alma a Deus )} Tudo o que se segue é escrito 
em forma de oração . Lê-se : 
54 
" 0 meu Deus, ínfnita, incomensurável e 
insondável Sal>edoria ! Esclueceí vassa serva , na 
missão que Ll:e é confiadL Vós sabeis, ó meu Deus , 
que estou pronta a executai, hc ontinenti, todas a s 
vossas ordem, desde que me j;J]gueis digna de 
conhecê-las . O único perigo é não saber cu discerni­
las judiciosamente . Meu Deus, a6ro a vós minha 
razão, corno faria com em livro : riscai o que vos 
desagrada e sublinhai o qt.:e cotTesponde à vossa 
ellllinence vontade . O' meu Deus, será que vós, qnc 
elevais as virtudes naturais dos homens acima da 
natureza , também julgais digna dessa elevação uma 
de nossas enfermidades naturais ? V essa compaixão 
é tão grande, que diante de uma pobre alma inca­
paz de dominar a sua fraqueza, vós desceis até essa 
fraqueza, para unir , por da, essa alma ao vosso 
amor? '' 
Evidentemente, essas linhas dizem respeito a 
Blanche, pois, logo a seguir, lemos essa passagem 
mais explícita : 
q Estaría nos vossos planos , ó meu Jesus , 
escolher a natureza medrosa dessa criança, para que , 
no instante em que outras criaturas se preparam 
com alegtia para morrer por vossa morte, da per­
maneça, de certo modo, na vossa angústia mortal , 
ao vosso lado? Seria essa a devoção que vos faltava 
ainda e que quase eu impedia ? " 
As páginas seguintes tratam unicamente dessa 
última questão. Mas lemos depois : 
" Eu vos invoquei, ó meu Deus, num ato de 
total abandono da minha vontade, de minha razão, 
e de todas as minhas forças, para que me indicás­
sets de modo indubitável qual seria a vossa decisão: 
5.5 
de modo também que não pudesse admitir que me 
enganasse . Vós, ó meu Deus , silenciastes e é assim 
que me ordenais também o silêncio " 
Não creio errar procurando ver nessa última 
frase a determinação da superiora de confiar-se a 
Deus para decidir se o terror de Blanche era ou 
não religioso . Esta reserva de todo julgamento cor­
respondia , exatamente, ao uso da Igreja na maioria 
dos casos de misticismo. 
Assim, permaneceu Blanche no Carmelo de 
Compiegne e daí em diante sob a direção da prio­
resa que, bruscamente, afastou a irmã Maria da 
Encarnação de suas funções de mestra de noviças 
e as assumiu . 
A partir desse instante, começa a luta da 
irmã Maria da Encarnação contra a superiora . 
Não se tratava , no caso, é lógico, de uma 
rebelião consciente. A alma dessa religiosa tão avan­
çada no caminho da perfeição não tinha nenhuma 
possibilidade de opor-se abertamente à superiora . 
Manteve uma atitude exemplar , ao ser demitida. Não 
se tem, absolutamente, notícia de qualquer diferen­
ça nas suas relações com a jovem noviça, depois 
de seu insucesso pessoal . Escaparam-lhe, é verdade , 
expressões como estas : 
- Ah, essa coisinha medrosa ! Creio que ela 
fugiria diante de um ratinho ! 
Mas não as proferia com aspereza . Jamais 
deixou ela de rezar por Blanche. A luta a que 
nos referimos aqui não se revela sob a forma de 
um antagonismo em relação à prioresa, mas apenas 
diz respeito ao veto que esta última opôs à profís-
56 
são dos votos perpétuos e se ma11ifesta, c cJllc um 
cuidado aparentemente bem jus tificdo , no l.:pe di�ia 
respeito à manutenção de Blanche :10 Carrn elo. com 
a aproximação de tempos verdadeiramente perigosos . 
Como sempre, a atitude da en:ão mes:ra de 
noviças foi a de todo o con.vento. 
Cara amiga, não é intenção minha descrever 
acontecimentos já do domínio público . Compreendes 
que se entrara , en tão , no períod<J das lu tas pelo 
que se chamava de " organização civil do clero " 
Lutas, ao curso das quais a revolução passo'-!, in­
sensivelmente, a uma perseguição declarada contra 
a Igreja . A atitude a respeito de Blanche não e ra 
de todo incompreensível. 
- Não podemos mais nos preocupar, pre­
sentemente, com quem quer que perturbe a nossa 
alegria - dizia até a doce Joana da Infância de 
Jesus. - Não nos esqueçamos de que talvez feste­
jemos o próximo Natal no céu , com o pequeno 
Rei . 
A pequena e ingênua Constança de Saint­
Denis acrescentou : 
- Se chegarmos , mesmo, a fazer face a essas 
perseguições , poderemos dizer , com perfeita conciên­
cia, que teremos, todas, forças bastante? 
- Não, minha menina , não poderemos estar 
certas de semelhante coisa - respondeu com voz

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