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Marilurdes Cruz Borges Luana Ferraz Cláudia de Fátima Oliveira (Organizadoras) DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO DIFERENTES LINGUAGENS SOB O OLHAR © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. A RIBEIRÃO GRÁFICA EDITORA detém direito autoral sobre o projeto gráfico e editorial desta obra. Os autores detêm os direitos autorais de publicação. DIFERENTES LINGUAGUENS SOB O OLHAR DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO está licenciado com uma Licença de Atribuição Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional, permitindo seu compartilhamento integral ou em partes, sem alterações e de forma gratuita, desde que seja citada a fonte. DECLARAÇÃO DOS AUTORES: Os autores desta obra atestam não possuir qualquer interesse comercial que constitua um conflito de interesses em relação ao texto científico publicado; declaram que participaram ativamente da construção dos respectivos manuscritos, preferencialmente na: 1) concepção do estudo, e/ou aquisição de dados, e/ou análise e interpretação de dados; 2) elaboração do artigo ou revisão com vistas a tornar o material intelectualmente relevante; 3) certificam que os artigos científicos publicados estão completamente isentos de dados e/ou resultados fraudulentos. Todos os manuscritos foram previamente submetidos à avaliação cega por pares, membros da comunidade acadêmica da área de História, Educação e Linguística, tendo sido aprovados para a publicação. A Ribeirão Gráfica Editora preza pela conduta ética e garante a integridade editorial em todas as etapas do processo de publicação. Suspeitas de má conduta científica serão investigadas sob o mais alto padrão de rigor acadêmico. © 2021 byMarilurdes Cruz Borges, Luana Ferraz, Cláudia de Fátima Oliveira(org) Todos os direitos reservados. Editora: Marilurdes Cruz Borges Projeto gráfico: Fernanda Oliveira Ribeiro Andrade | Ribeirão Gráfica e Editora Revisão Gramatical: Cláudia de Fátima Oliveira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) BORGES, Marilurdes Cruz; FERRAZ, Luana; OLIVEIRA, Cláudia de Fátima. DIFERENTES LINGUAGENS SOB O OLHAR DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO. Franca/SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2021. 201p Vários autores. ISBN: 978-65-89271-38-3 DOI: 10.47791/RGE/89271-38-00 1. Linguística. 2. Educação. 3. Ciências humanas. 4. Pesquisa. CDD 001.3072 CDD 370 www.ribeiraograficaeditora.com.br contato@ribeiraograficaeditora.com.br CONSELHO EDITORIAL Ana Cristina Carmelino (Universidade de Federal de São Paulo – UNIFESP/SP) Ana Maria Paulino Comparini (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – FFCL, Ituverava/SP) Argus Romero Abreu de Morais (Universidade Federal de São João del Rei - Promel/UFSJ, São João del Rei/MG) Assunção Cristovão (Universidade de Franca – UNIFRAN, Franca/SP) Glenda Cristina Valin de Melo (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro/RJ) Luiz Antonio Ferreira (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo/SP) Maria Flávia Figueiredo (Universidade de Franca – UNIFRAN, Franca/SP) Regina Maria Rovigati Simões (Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba/MG) Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira (Centro Universitário Municipal de Franca, Uni-FACEF, Franca/SP) Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico [...]; um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso [...]; um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam [...]; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso [...] Michel Foucault; SUMÁRIO PREFÁCIO .................................................................................................................................................................................................................................................................. 8 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................................................................................................ 10 CAPÍTULO 1 O TESTEMUNHO NO ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA ........................................... 14 Aline Fernandes de Azevedo BOCCHI DOI: 10.47791/RGE/89271-38-01 CAPÍTULO 2 A QUESTÃO SOBRE GÊNEROS DO DISCURSO E CRONOTOPIA NO DOCUMENTÁRIO DE CACO CIOCLER - “ESSE VIVER NINGUÉM ME TIRA ...................................................................................................................................................................... 26 Nícolas Vladimir de Souza JANUÁRIO Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE DOI: 10.47791/RGE/89271-38-02 CAPÍTULO 3 SURDEZ: DEFICIÊNCIA OU DIFERENÇA? ......................................................................................................................................... 39 Marcelo Henrique BASTOS Ana Júlia Vieira FARIA DOI: 10.47791/RGE/89271-38-03 CAPÍTULO 4 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA ÉTNICO-RACIAL: A TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA PARA UMA EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA E SUSTENTÁVEL ...................................................................................................... 52 Danielle Cristina Teodoro de SOUZA Marilurdes Cruz BORGES DOI: 10.47791/RGE/89271-38-04 CAPÍTULO 5 O ALUNADO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO NA ERA DA INFORMAÇÃO E DA PANDEMIA ...................................................................................................................................................................... 67 Marcus Vinicius Verissimo GONÇALVES Emerson Benedito FERREIRA DOI: 10.47791/RGE/89271-38-05 CAPÍTULO 6 A METAFÍSICA DOS COSTUMES, A ÉTICA E OS SEUS CONCEITOS BÁSICOS: UM OLHAR KANTIANO NA PRODUÇÃO DE TEXTOS REDACIONAIS ............................................................................................................................................................................................................ 84 Simone Tavares de ANDRADE Cláudia de Fátima OLIVEIRA DOI: 10.47791/RGE/89271-38-06 CAPÍTULO 7 AFETIVIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR: CONSTRUÇÃO DISCURSIVA PARA A PRÁTICA DISCIPLINAR E PEDAGÓGICA ............................................................................................................................................ 97 Fernanda dos Santos NASCIMENTO Maria Eduarda Ferreira LEMOS Marilurdes Cruz BORGES DOI: 10.47791/RGE/89271-38-07 CAPÍTULO 8 ESPAÇOS VERDES COMO AGENTES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL: ENSINAMENTOS E EXPERIÊNCIAS ........................................................................................................................................................... 116 Lucineia Pereira DE PAULA Cláudia de Fátima OLIVEIRA DOI: 10.47791/RGE/89271-38-08 CAPÍTULO 9 A IMPORTÂNCIA DA ESTIMULAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NEURO-PSICOMOTOR PARA A ALFABETIZAÇÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA ................................................................................................................................................................................................. 131 Lorrayne Jasmim FERREIRA José Alexandre BACHUR Marilurdes Cruz BORGES DOI: 10.47791/RGE/89271-38-09 CAPÍTULO 10 O MATERIAL DIDÁTICO DISPONÍVEL NO MERCADO: REVISÃO E CRÍTICA ............................................................................................................ 145 Juliana Ferreira e SILVA Pâmella ALVES William Fernando FERRETO DOI: 10.47791/RGE/89271-38-10 CAPÍTULO 11 ORALIDADE NO LIVRO DIDÁTICO: UMA ANÁLISE DA ABORDAGEM DA RETEXTUALIZAÇÃO .................................................................................................... 163 Mercedes Fátima de Canha CRESCITELLI Silvia Maria RIBEIRO DOI: 10.47791/RGE/89271-38-11 DADOS SOBRE ORGANIZADORES ...................................................................................................................................................192 DADOS SOBRE AUTORES ....................................................................................................................................................................................... 193 ÍNDICE REMISSIVO................................................................................................................................................................................................................. 199 8 PREFÁCIO O contexto social complexo em que estamos imersos incita- nos à descompartimentalização dos saberes. Em busca de construirmos um conhecimento integrado, condizente com a curiosidade aguçada, a capacidade reflexiva e o pensamento crítico, que consideramos imprescindíveis para a construção do bem-estar social, reunimos, neste livro, textos produzidos por pesquisadores das áreas de Linguística e Educação. Por meio dessa reunião, tencionamos, além de explorar conteúdos próprios de cada área e de revelar eventuais discordâncias e embates, encorajar a união de saberes e estimular arranjos inter e transdisciplinares que possam nos conduzir a um pensamento aberto e livre. Trata-se não apenas de transmitir saberes, mas de incentivar a transmissão de “[...] uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver [...]”, tal como preconiza Morin (2005, p. 11). À divulgação de um saber fragmentado e hiperespecializado, preferimos considerar o encontro entre áreas que podem contribuir para o desenvolvimento de vivências significativas nos aspectos cognitivo, afetivo, relacional, social, político e cultural, dadas as trocas e relações que estabelecem entre os diferentes sujeitos, que interagem a partir de lugares sociais os mais variados. Ainda segundo Morin (2005, p. 95), “os indivíduos humanos produzem a sociedade nas interações e pelas interações, mas a sociedade, à medida que emerge, produz a humanidade desses indivíduos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura”. A compreensão do que sentimos e de como concebemos a nós e aos outros sujeitos só nos chega (ou chegará), portanto, pela linguagem e por uma educação que nos permitirá reconhecer a poeticidade do fazer cotidiano e nos tornará sensíveis às dores e alegrias individuais e coletivas. 9 Ao ressaltarmos mais uma vez a união entre a Educação e os Estudos da Linguagem, nesta obra, desejamos mais do que (re)valorizar uma relação já considerada intrínseca. Procuramos, também, fortalecer a busca pelo olhar científico mais abrangente e provocar discussões que tragam algum contributo à luta constante contra o ódio e a exclusão. Esperamos ter atingido, ao menos em parte, este objetivo. Luana Ferraz 10 APRESENTAÇÃO A linguagem é o mecanismo que os seres humanos utilizam para se comunicarem e manifestarem seus sentimentos, suas sensações e seus pensamentos. A Linguística e a Educação são áreas científicas que tem a linguagem como centro de seus estudos: a primeira observa a linguagem verbal e não verbal para investigar a produção de sentidos, a segunda parte dela para promover a compreensão e a aprendizagem do mundo. Qualquer que seja o contexto, a linguagem é o elemento condutor que possibilidade o ser humano viver em sociedade. Cada indivíduo tem sua singularidade, mas é preciso compreender o mundo que o rodeia para que dele participe ativamente. Adquirimos linguagem ao nascer e a desenvolvemos nas práxis sociais, aprimorando-a nos ambientes educacionais quando somos desafiados a novas formas de comunicação e a novas relações humanas. Reunimos em DIFERENTES LINGUAGENS SOB O OLHAR DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO onze capítulos que discutem a linguagem. Os textos resultam de pesquisas científicas nas áreas da Linguística e da Educação, alguns ainda com diálogo entre elas. Abre o livro o texto intitulado: O TESTEMUNHO NO ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA. Nele, a pesquisadora Aline Fernandes de Azevedo Bocchi levanta profundas reflexões acerca do testemunho, da biografia e da poesia, sob a égide da obra “Quinquilharias e recordações” - Biografia de Wislawa Szymborska, cuja biografada foi Nobel de Literatura no ano de 1996. Aqui serão apresentadas as questões relacionadas ao lugar da poesia enquanto transmissão, nos dizeres da pesquisadora, de “uma verdade não-toda e do “bordejamento de um indizível”. No segundo capítulo, Nicolas Vladimir de Souza Januário e Camila de Araújo Beraldo Ludovice discutem em: A QUESTÃO SOBRE GÊNEROS DO DISCURSO E CRONOTOPIA NO DOCUMENTÁRIO DE CACO CIOCLER - “esse viver ninguém me tira!” A reflexão parte do fato de o gênero documentário, justamente por apresentar em si diferentes linguagens, é instrumento plurissignificativo de informações. Logo, por 11 meio da análise do documentário de Caco Ciocler, faz-se uma busca da compreensão acerca dos gêneros discursivos, bem como do cronotopo, os quais levam a obra a uma dinâmica tanto histórica, como social, voltada para um enviesamento de memória e identidade cultural. O terceiro capítulo, elaborado por Marcelo Henrique Bastos e Ana Júlia Vieira Faria, tem como título SURDEZ: deficiência ou diferença? e traz em seu bojo questões que permeiam o processo de inclusão do aluno surdo, em meio à vertente relacionada à identidade. Os autores discutem a abordagem socioantropológica, nova ainda, e as leis voltadas para o grupo estudado como elementos visualizadores da diferença, tão sentida e precisa no novo contexto educacional. Em A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA ÉTNICO-RACIAL: a temática africana e afro- brasileira para uma educação igualitária e sustentável, quarto capítulo, Danielle Cristina Teodoro de Souza e Marilurdes Cruz Borges permeiam o papel da educação antirracista, que tem como palco principal o ambiente educacional, em especial a sala de aula. Por meio do estudo da literatura de temática africana e afro-brasileira, a partir do livro de Bell Hooks: “Meu crespo é de rainha”, as autoras trazem à tona contributos para o estudo sobre a diversidade e identidade racial. Legislações e documentos relacionados à educação serão aqui trazidos e relacionar-se-ão ao conteúdo discutido. O novo cenário educacional brasileiro continua sendo pano de fundo em O ALUNADO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO NA ERA DA INFORMAÇÃO E DA PANDEMIA. Para os pesquisadores, o tema é discussão que se faz relevante nesse cenário. No capítulo cinco, Marcus Vinicius Verissimo Gonçalves e Emerson Benedito Ferreira tecem relevantes considerações sobre o novo perfil do aluno do ensino superior, frente às novas características da EaD. O meio técnico-científico-informacional proporcionou a esse alunado inovações relacionadas ao fluxo de informações, bem como trouxe novas possibilidades relacionadas ao mercado de trabalho, em especial, em tempos pandêmicos. No sexto capítulo, A METAFÍSICA DOS COSTUMES, A ÉTICA E OS SEUS CONCEITOS BÁSICOS: um olhar kantiano na produção de 12 textos redacionais, produzido pelas pesquisadoras Simone Tavares de Andrade e Cláudia de Fátima Oliveira, tem como fito a análise da obra kantiana “Metafísica dos Costumes”, que trata de forma direta da relação entre a moral e o direito e sua relação com a ética. Será proposto, neste estudo, que os conceitos kantianos no texto apresentados sirvam como cenário repertorial para estudantes do Ensino Médio, quando na elaboração de textos redacionais, de caráter dissertativo-argumentativo, voltados para os exames vestibulares. O capítulo sete discute a responsabilidade da instituição educacional enquanto agente de formação integral do aluno. Nele, as autoras Fernanda dos Santos Nascimento, Maria Eduarda Ferreira Lemos e Marilurdes Cruz Borges buscam demonstrar o quão importante é o equilíbrio entre afeto e disciplina, posto que ambos tratam do desenvolvimento integral do aluno. O texto, intitulado AFETIVIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR: construção discursiva para a prática disciplinar e pedagógica, sob a perspectiva piagetiana e walloniana, com o contributo de outros filósofos da educação, deixa o leitor ciente do quanto os conceitos ali discutidos se fazemnecessários para que se desfaçam as generalizações relacionadas ao campo educacional. No capítulo oito, o meio ambiente é espaço de discussão no artigo ESPAÇOS VERDES COMO AGENTES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL: ensinamentos e experiências, de Lucineia Pereira de Paula e Cláudia de Fátima Oliveira. Nele, as autoras discorrem sobre o projeto de educação ambiental no município de Franca, interior de São Paulo, em que escola, comunidade e iniciativa privada se integram, em busca da sensibilização voltada para a importância do plantio de árvores, o que reverbera na cidadania responsável e na harmonização entre o ser humano e o meio ambiente. O capítulo nove oferece ao leitor um passeio pela interdisciplinaridade no ambiente escolar. Por meio do texto A IMPORTÂNCIA DA ESTIMULAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NEUROPISCOMOTOR PARA A ALFABETIZAÇÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA, Lorrayne Jasmim Ferreira, José Alexandre Bachur e Marilurdes Cruz Borges abordam as questões inerentes à importância do desenvolvimento neuropsicomotor como elemento no processo cognitivo. Serão apresentadas, neste trabalho, 13 colocações acerca das conexões neurais enquanto elementos facilitadores no processo de aprendizagem da primeira infância. Logo, os contributos aqui presentes se mostram de grande importância para o processo educacional, em especial para a mais tenra idade. No décimo capítulo, Juliana Ferreira e Silva, Pâmella Alves e William Fernando Ferreto trazem um estudo sobre O MATERIAL DIDÁTICO DISPONÍVEL NO MERCADO: Revisão e crítica. Nesse texto, os pesquisadores promovem profunda discussão acerca do ensino literário dentro dos livros didáticos no ensino fundamental. Isso, porque o ensino aqui discutido requer algumas indagações, em especial, no que diz respeito à formação de leitores efetivamente literários. Para tornar o Brasil um país de leitores, essa reflexão se faz de extrema eficiência, uma vez que por ela perpassam questões de cunho social, político e ético. ORALIDADE NO LIVRO DIDÁTICA: uma análise da abordagem da retextualização fecha este livro digital. Neste estudo, Mercedes Fátima de Canha Crescitelli e Silvia Maria Ribeiro analisam e discutem a abordagem da oralidade em livros didáticos voltados ao Ensino Fundamental II. O intuito das autoras é verificar se a oralidade passou a ser tratada de forma diferente após os estudos da mesma pela Linguística. Nosso objetivo, como organizadoras deste e-book, é divulgar pesquisas e estudos que possam contribuir para o aprofundamento da reflexão daqueles que, direta ou indiretamente, envolvidos com a Linguística e com a Educação, busquem repostas às questões da linguagem em suas múltiplas manifestações. Os textos reunidos aqui promovem reflexões críticas sobre materialidades diversas que desaguam na esfera educacional. Os autores que aderiram a essa empreitada esperam, como nós, que seus estudos contribuam à formação de sujeitos críticos, participativos e curiosos, dispostos à apreensão, cada vez mais, da linguagem. Marilurdes Cruz Borges Luana Ferraz Cláudia de Fátima Oliveira 14 CAPÍTULO 1 O TESTEMUNHO NO ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA WITNESS IN THE MIDDLE OF BIOGRAPHY AND POETRY Aline Fernandes de Azevedo BOCCHI RESUMO Este texto apresenta reflexões sobre o testemunho, a biografia e a poesia, a partir de considerações sobre a obra Quinquilharias e recordações - Biografia de Wislawa Szymborska, publicada no Brasil em 2020, na qual as jornalistas Anna Bikont e Joanna Skczesna narram a vida da poeta que foi laureada com o Nobel de Literatura em 1996. Amparadas na análise de discurso de matiz materialista e na psicanálise, recortamos alguns trechos da biografia em que a poesia de Wislawa comparece, o que nos permite trabalhar a poesia como lugar de transmissão de uma verdade não-toda e de bordejamento de um indizível. Palavras-chave: Testemunho. Poesia. Biografia. ABSTRACT This text presents reflections on the witness, the biography and the poetry, from considerations on the work Quinquilharias and memories - Biography of Wislawa Szymborska, published in Brazil in 2020, in which journalists Anna Bikont and Joanna Skczesna recount the life of the poet who was awarded the Nobel Prize for Literature in 1996. Supported in the discourse analysis and psychoanalysis, we cut out some passages of the biography in which Wislawa’s poetry appears, which allows us to work poetry as a place of transmission of a truth other than all and borders of an unspeakable. Keywords: Witness. Poetry. Biography. PRIMEIRAS PALAVRAS Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as palavras, nada é usual ou normal. Nem uma única pedra e nem uma única nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem uma única existência, a existência de nenhuma pessoa neste mundo. (Wislawa Szymborska. O poeta e o mundo. Discurso proferido ao receber o Nobel, em 19961) 1 Traduzido por Rubens Figueiredo e publicado na Revista Piauí. Disponível em: https:// piaui.folha.uol.com.br/materia/ o-poeta-e-o-mundo/ Acesso em: 23. nov. 2020. 15 O percurso trilhado neste texto deriva de estudos que tenho desenvolvido nos últimos anos como docente pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade de Franca. São reflexões que envolvem o funcionamento do testemunho em materiais diversos (BOCCHI, 2017a; 2017b; 2020), e que objetivam interrogar, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso em suas articulações com a Psicanálise, os limites de acepções historiográficas e jurídicas do testemunho que o compreendem como uma forma suposta de descrever o real. Desconfiada dessa ilusão de certitude que coloca o sujeito em uma posição consciente, autônoma e voluntária, considero que a (língua)gem não pode tudo abarcar; todo dizer deixa um resíduo indizível, um resto inapreensível. Ao teorizar a materialidade da língua como inexoravelmente equívoca, Pêcheux e Gadet (2004) produzem uma ruptura com a tradição filosófica e linguística que dispõe da centralidade do eu, daquele que enuncia, interrogando a certeza da consciência do sujeito que toma a palavra. Nessa mesma direção, Lacan definiu a poesia como subversão, na língua, da ordem cristalizada. Há aí uma diferença fundamental com relação às manifestações ordinárias da linguagem em sua função comunicativa, o que equivale a dizer, com Lacan, que a poesia é efeito de sentido, mas também de furo (LACAN, 1976-1977, lição de 15/05/1977). Compreendo o efeito de furo na relação com a equivocidade, considerada fundamento da ordem da língua. Na perspectiva discursiva, a equivocidade da língua é um traço estruturante inescapável; o poético não é compreendido como “[...] o ‘domingo do pensamento’, mas [o humor e o traço poético] pertencem aos meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica [...]” (PÊCHEUX, [1983] 2006, p. 53). O poético é apresentado como isso que é próprio da língua: “nada da poesia é estranho à língua”; “nenhuma língua pode ser pensada completamente, se aí não se integra a possibilidade de sua poesia” (ibid., p. 55). A pergunta que inaugura um começo é: há testemunho na poesia? Minha aposta permite considerar, justamente, a poesia como 16 um lugar privilegiado de transmissão da experiência pensada a partir do campo da Psicanálise; não se trata, pois, da experiência determinada pelo vivido ou pelo acúmulo de vivências, mas da experiência articulada com a verdade do sujeito, uma verdade, portanto, não-toda. Na tentativa de privilegiar a poesia como capaz de bordejar o real, convoco Quinquilharias e recordações – Biografia de Wislawa Szymborska (BIKONT; SZCZESNA, 2020) como material que me permite mostrá-la como lugar de transmissão e de bordejamento de um indizível. Ao situar o discursivo no entremeio do linguístico e do histórico, Pêcheux (2012, p. 45) estabelece que nele há um real e um “saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos”. Minha aposta é a de que o poético possibilita demarcar esse saber que só se sustentana singularidade, saber não-apreensível, e que contudo a experiência analítica possibilita entrever2. Assim, a poesia interessa justamente por consistir em um dito que desafia o impossível de dizer. 1. QUINQUILHARIAS E RECORDAÇÕES – Biografia de Wislawa Szymborska Escrito pelas jornalistas Anna Bikont e Joanna Skczesna e publicado no Brasil em 2020, Quinquilharias e recordações – Biografia de Wislawa Szymborska narra a vida da poeta que foi laureada com o Nobel de Literatura em 1996. Nascida em 1923, no vilarejo polonês de Bninie, morou na Cracóvia desde os 8 anos. Durante a Segunda Guerra, foi funcionária do departamento de estradas e ferro para escapar da deportação. Mais tarde, tornou-se editora de uma revista cultural. Teve seu primeiro livro censurado pelo Regime Comunista, que o considerou obscuro demais. Depois disso, sua poesia passa a se marcar por uma desafetação, tom coloquial e certas doses de ironia; trata-se de uma poesia feita do assombro e da delicadeza, capaz de se surpreender tanto com as miudezas do cotidiano quanto com os horrores da História. 2 Refiro-me à análise cujo processo tem no psicanalista uma testemunha do que se produziu. 17 Nas 557 páginas que compõem o livro, as autoras enfrentam um rigoroso trabalho de pesquisa com fontes primárias - documentos pessoais e de arquivos - e entrevistas com amigos e conhecidos de Wislawa, outros poetas etc., para compor uma narrativa para a vida da poeta, que sempre se esquivou de situações que pudessem expor sua vida pessoal. “Fujo dos jornalistas”, “porque, na maioria das vezes, propõem conversas que, por princípio, não me interessam”. “Em nossa época”, diz Wislawa, “fala-se demais; isso é estimulado pelos meios de comunicação de massa” (BIKONT; SZCZESNA, 2020, p. 375). Ao incansavelmente perseguirem material documental para sua biografia, as jornalistas encontram nos escritos de Wislawa “detalhes biográficos”, “informações inesperadas sobre a autora, seus gostos, convicções e hábitos” (p. 14), vestígios de uma singularidade que irão compor um arquivo de quinquilharias incompleto. As autoras reconhecem o fracasso constitutivo do gesto de biografar, o qual se fundamenta na ilusão de “comunicar uma história de vida”: “Não nos contava ‘toda a sua vida’. Da biografia interior mostrava somente o tanto que queria. Às vezes repetia: ‘minha memória logo joga fora essas coisas’ ou ‘isso é assunto para depois da minha morte’” (p. 22 – grifo meu). Arrisco, assim, uma escuta dessa obra atenta aos desfaleci- mentos de lembranças e memórias, às lacunas na autobiografia – e a aspiração do gesto biográfico que convoca a poesia para justamente povoar os lugares de incertezas. Enquanto gesto de interpretação (ORLANDI, 2007)3, a escrita biográfica que ora se apresenta recolhe (e edita) trechos da poesia de Wislawa para preencher rachaduras na coerência de sua história. Contudo, ela esbarra repetidamente no impossível, no “nada para ser contado” (BIKONT; SZCZESNA, 2020, p. 12 – grifo meu). Da perspectiva discursiva à qual me filio, toda descrição está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua; o testemunho não 3 Vale lembrar que Pêcheux (1969) define o gesto como um ato simbólico que intervém no real. A partir dele, Orlandi desenvolve a noção de gesto de interpretação como uma intervenção no real do sentido. 18 tem como escapar à opacidade, haja visto a não transparência da língua e do sujeito teorizadas pela Análise de Discurso. Ainda, considera-se que “há real, isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser assim” (PÊCHEUX, [1983] 2012, p. 53). O impossível, o inapreensível ronda os processos de significação; situar o testemunho inscrito na poesia, face a uma teoria que o expõe ao real da língua, ao real do inconsciente e ao real da história, é cavar para a literatura um lugar abissal que mostra a impossibilidade de atingir a palavra em sua suposta inteireza de sentidos. Todavia, essa inteireza se exibe como obsessão no gesto biográfico que, contraditoriamente, mobiliza a poesia para paradoxalmente corrompê-la, mostrando que uma história de vida sempre resta não-toda; ela resiste à interpretação totalizadora. A linguagem é resultante da faculdade simbólica do homem. O símbolo representa alguma coisa ausente. Diferente dos outros animais, que não possuem uma linguagem articulada e são determinados pelo instinto, o homem é um ser de linguagem e “a verdade de nossa linguagem é inacabada e inominável – intangível” (LONGO, 2006, p. 16). Deste modo, a palavra releva na mesma medida em que oculta. Entre o eu e o outro, há a linguagem. “Entre o sujeito que fala e seu ouvinte existe um anteparo, uma proteção, uma espécie de muralha que se ergue, mesmo quando há silêncio.”. A linguagem humana comporta “falhas”; ela é ambígua, marcada por constantes flutuações nos sentidos das palavras — equívocos, deslizes de sentido, lapsos de língua, chistes, atos falhos, jogos de palavras, ficções, repetições, lapsos de memória, rasuras, lacunas, erros, tropeços. 2. DESPOJOS DE GUERRA Trago agora uma questão específica, que consiste em articular a poesia de Wislawa Szymborska à historicidade da Segunda Guerra, procurando tomá-la como um “despojo de guerra”, o que me possibilita destacar os traços do acontecimento histórico na poesia. Szymborska raramente falava sobre a experiência da guerra. Embora escrevesse sobre a ocupação, encontramos em sua biografia 19 dizeres nos quais afirma ter descartado a maioria dos poemas que escreveu sobre ela. Indagada pelas jornalistas sobre como seria possível que ela raramente utilizasse dessa experiência na sua escrita, respondeu que é difícil haver proporções justas na poesia: “Eu nunca me igualaria aqui a Ròzewics ou Herbert. [...] Lendo seus poemas, compreendi que expressaram suas experiências de uma maneira inigualável e eu não conseguiria acrescentar nada àquilo.” (BIKONT; SZCZESNA, 2020, p. 87) Nas páginas de Quinquilharias e recordações, reconheço a inscrição do luto em poemas como “Sonho”, de 1962, o qual Wislawa escreveu ao namorado que, enviado a uma missão, nunca mais regressou. “Era 1943, talvez 1944. Depois não chegou mais nenhuma carta. Eu me informava, procurava, mas nunca consegui descobrir nenhuma pista” (p. 86). Meu tombado, meu voltado ao pó, meu terra, depois de assumir a figura que está na fotografia: com a sombra de uma folha no rosto, com uma concha do mar na mão, parte para o meu sonho. [...] Surge no lado de dentro de minhas pálpebras, naquele absolutamente único mundo acessível a ele. Bate-lhe o coração transpassado. Desprende-se dos cabelos o primeiro vento. [...] Nós nos aproximamos. Não sei se chorando e não sei se sorrindo. Apenas mais um passo e escutaremos juntos tua concha do mar, e nela, que chiado de incontáveis orquestras, e nela, que marcha nupcial a nossa. Sonho, Sal, 1962 (BIKONT; SZCZESNA, 2020, p. 86) O corpo tombado, tornado pô. Com a sombra de uma folha no rosto, a sombra da morte, o desaparecido retorna no sonho, único mundo acessível a ele. Sem corpo ou funeral, o morto se torna um desaparecido. A escrita do sonho supõe uma implicação subjetiva e testemunha a morte 20 a assombrar durante a guerra. Outro notável escrito, “Ainda” - Chamando por Yeti, de 1957, foi escrito por ela no pós-guerra: Vão pelo país em vagões selados os nomes transportados, mas para onde vão assim, será que a viagem terá fim, não sei, não direi, não perguntem. O nome Natan esmurra a parede, o nome Isaque canta louco de fome o nome Sara pede agua para o nome Aarão, que morre de sede. […] Sim, é assim, segue pelos trilhos o trem. Sim, é assim. O transporte dos gritos de ninguém. Sim, é assim. Desperta na noite escuto Sim, é assim, o surdo martelar do silêncio. Assim, apesar de ter vivenciado a deportação a partir de uma outra posição, daquela que sobrevive à morte do outro sem ter experimentado o aniquilamento dos campos de concentração como experimentou Paul Celan4 , Szymborska inscreve em seu poema uma espécie de reivindicação da lembrança de nomes e gritosde ninguém, a componente coletiva tão cara aos estudos da literatura de testemunho, em que há um compromisso com um trabalho da memória construído pela sociedade. Em “o nome...”, a anáfora dá a ver a insistência da palavra que necessita ser repetida para que ressoe na/a história; embora se inscreva como estrangeira ao acontecimento, o poema enfatiza o valor do nome próprio e, em certo sentido, parece buscar uma conciliação 4 Celan dramatiza em sua poesia a quebra do verso como quebra do mundo, conforme Felman (2000). A poesia encena a sobrevivência do próprio poeta, sua experiência estilhaçada de sobrevivente do Holocausto. O testemunho de Celan é o de um expulso, coagido pela deportação, “nas agonias da expulsão de seu país de origem” (p. 38), sobreviveu ao extermínio e trabalhou em um campo de trabalho forçado por 18 meses. Paul Ancel trocou seu nome depois da guerra, usando um anagrama, Celan – filhos de judeus-alemães, suicidou-se em 1970, com 49 anos, afogando-se no Sena. Embora tenha escolhido viver em Paris depois da guerra, não conseguia deixar de escrever em alemão: “somente na língua materna se pode expressar a própria verdade. O poeta mente em uma língua estrangeira”, segundo o que explicou ao seu biografo Israel Chalfen. 21 com a impressão de estranhamento, Unheimlich. Confrontada com um real que não permite esquecimento e que a mantém desperta, Wislawa “Ainda” escreve. Em um texto recente ainda não publicado5, examinamos o funcionamento linguístico-discursivo das anáforas e da negação presentes no testemunho do Sr. Aloisio Silva acerca dos acontecimentos de sua infância, recortado do documentário Menino 23: infâncias perdidas no Brasil. Na fala desse sobrevivente de um processo de escravização que marcou a sua infância com a força da violência e do desamparo, encontramos a ausência do nome próprio (os meninos eram nomeados por números), como na lógica da segregação e da concentração, na qual não mais se descrimina a diferença “ [...] junta-se, uniformiza-se, confunde-se, reduz-se à formas do humano disforme, aniquila-se as diferenças.” (BOUSSEYROUX, 2013). Desse modo, segundo Bousseyroux (2013) “os campos têm por princípio a produção industrializada de um puro concentrado de indiferença”. As lembranças entrecortadas por esquecimentos, as rupturas no encadeamento das frases e o comparecimento da negação abundavam nas formulações e possibilitava indagar sobre como a língua, em perpétua transformação e mobilizada para dizer o inenarrável, era convocada naquele testemunho. As análises mostraram que, por mais multiplicados que sejam os ditos, permanece sempre algo que não se diz, pois nenhum significante é capaz de apreendê-lo. “Do Real nada se escreve” (MILNER, 2006, p. 20). Entretanto, em se tratando de uma situação de “dessubje- tivação”, conforme Mariani (2016, p. 51), não devemos considerar essa insuficiência ou impossibilidade do testemunho, seja da impotência das palavras seja do indizível na apreensão da experiência e dos objetos, apenas como uma “ausência de significação para si ou 5 Nesse trabalho realizado em coautoria com um orientando, problematizamos o testemunho em um material audiovisual documental cuja proposta consistia em narrar a história de meninos “transferidos” de um orfanato no Rio de Janeiro para uma fazenda no interior de São Paulo, meninos sem nomes ou infâncias, submetidos a uma forma de escravização pela política higienista vigente nos anos 1930. Estruturado a partir dos testemunhos dos sobreviventes, o documentário mobilizava essas falas para narrar uma versão da história tida como mal-dita, posto que relacionada a posições historicamente silenciadas e a corpos abnegados pela “memória oficial” gerida pelos Aparelhos de Poder de nossa sociedade (PÊCHEUX,[1982] 2010). 22 sobre si mesmo”, mas também como uma “insistência em uma única significação (interpretação) mortífera que advém do Outro” (MARIANI, 2016, p. 51). Também no poema de Wislawa comparecem o nome próprio e a negação (“não sei, não direi, não perguntem”). O “Ainda”, marca uma temporalidade outra, de algo que retorna, que insiste em não se inscrever. Com Chaves (2020), considero que a produção poética pode se constituir em meio a problemática ética e política do testemunho. Embora eu não possa, neste momento, percorrer mais detidamente as elaborações do testemunho em Agamben ([1998] 2008), é entretanto possível vislumbrar a língua do testemunho nesse lugar entre, onde o vazio se coloca, articulado a um sujeito que se mostra dividido. 3. ENTRE O CORPO E O SUSSURRO INTERROMPIDO: o abismo Para finalizar, convoco o poema “Autotomia”, publicado em Todo o caso, de 1972, que foi escrito em memória da poeta polonesa Halina Poswiatowska. Ao consentir que a poesia se presta admiravelmente a um vislumbre do sujeito como aquele que se furta a apreensão e a totalização, admito também que a língua(gem), em vez de cerzir brechas as escancara. Cito Wislawa: Autotonia Em perigo, a holotúria se divide em duas: com uma metade se entrega à voracidade do mundo, com a outra foge. Desintegra-se violentamente em ruína e salvação, em multa e prêmio, no que foi e no que será. No meio do corpo da holotúria se abre um abismo com duas margens subitamente estranhas. Em uma margem a morte, na outra a vida. Aqui o desespero, lá o alento. Se existe uma balança, os pratos não oscilam. Se existe justiça, é esta. 23 Morrer só o necessário, sem exceder a medida. Regenerar quanto for preciso da parte que restou. Também nós, é verdade, sabemos nos dividir. Mas somente em corpo e sussurro interrompido. Em corpo e poesia. De um lado a garganta, do outro o riso, leve, logo sufocado. Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar, três palavrinhas apenas como três penas em voo. O abismo não nos divide. O abismo nos circunda. In memoriam Halina Poœwiatowska (Trad. Regina Przybycien) Nas primeiras estrofes, a holotúria é apresentada como aquela que vive um dilaceramento, dividida entre duas metades inconciliáveis. O corpo da holotúria é como o nosso, simbólico, rasgado pela pulsão que nele sulca um abismo com duas margens estranhas. A questão da existência é aqui colocada a partir da divisão do sujeito entre corpo e poesia, ambos expostos à linguagem, pois não há corpo fora dela, pelo menos não no sentido dado pela psicanálise. Segundo Miralpeix (2020), “o sujeito requer sustentar- se em um corpo”, que no entanto “só o é na medida em que é representado por um significante para outro significante, quer dizer, o interior do discurso”. O sussurro interrompido, o grito sufocado: sintomas; ecos, no corpo, do fato de que há um dizer, conforme Lacan. Deixo em aberto a questão de saber se o testemunho presente na poesia corresponderia a uma lógica feminina, não-toda orientada pelo falo, na qual o testemunho não pode atestar nenhum universal, mas que paradoxalmente se mostra admirável para inscrever uma marca diante do real, um saber-fazer com lalangue. Sigo nessa direção, tentando pensar como a poesia testemunharia a invenção de novas possibilidades para o significante e para a história, advindas da experiência intransferível da poeta, experiência que nenhuma biografia seria capaz de abarcar. 24 REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. [1998] O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). SaÞo Paulo: Boitempo, 2008. BIKONT, A.; SZCZESNA, J. Quinquilharias e recordações. Biografia de Wislawa Szymborska. Tradução de Eneida Favre. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020. BOCCHI, A. F. A. O funcionamento discursivo de testemunhos de violência o parto: movimentos de sentido entre o jurídico e o equívoco. In: Mulheres em discurso: gênero, linguagem e ideologia. (Orgs.) Mónica G. Zoppi Fontana e Ana Josefina Ferrari. Vol. 1. Pontes Editores: Campinas, SP, 2017a. BOCCHI, A. F. A. Posições subjetivas em face da violência: traços constitutivos de memória em testemunhos de mulheres. 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É sabido que os documentários produzidos são instrumentos plurissignificativos de informações e os mesmos permitem ao receptor-espectador-leitor a depreensão de sentidos, além do entendimento sobre a transformação humana, o qual é tomado como índice de historicidade. Nesse contexto, em percurso metodológico, temos o documentário mencionado como nosso objeto de pesquisa e a partir dele, buscamos de maneira efetiva a compreensão sobre gêneros discursivos e do cronotopo que contribuem para verificar como a obra, além de se enquadrar no gênero discursivo documentário, apresenta uma dinâmica literária e histórica, bem como o entendimento do espaço e tempo representados na ratificação de memória e identidade cultural. Palavras-chave: Gêneros do discurso. Documentário. Cronotopia. Memória. Identidade cultural. ABSTRACT Taking into account the Documentary genre in the perspective of the representation of reality, it is known that this genre presents a combination of audio and visual language, both aided by verbal language, promoting an interactive, motivating approach that promotes critical development. Based on this concept, we selected the documentary – “This life, nobody takes me away!”, produced and directed in 2014 by Caco Ciocler (global actor). It is known that the documentaries produced 27 are plurisignificant instruments of information and they allow the receiver-viewer- reader to understand meanings, in addition to understanding human transformation, which is taken as an index of historicity. In this context, in a methodological path, we have the documentary mentioned as our research object and from it, we effectively seek the understanding of discursive genres and the chronotope that contribute to verifying how the work, in addition to fitting into the documentary discursive genre, presents a literary and historical dynamic, as well as the understanding of space and time represented in the ratification of memory and cultural identity. Keywords: Discourse genres. Documentary. Chronotopy. Memory. Cultural identity. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O documentário – “Esse viver ninguém me tira!” marca a estreia de Caco Ciocler como diretor de um longa-metragem que entrou em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília no dia 11 de dezembro de 2014. A produção da Cine Group reconstrói a trajetória de Aracy Guimarães Rosa, mulher do escritor João Guimarães Rosa, mostrando as ações e a coragem dessa heroína, que até então, era anônima. Caco Ciocler e a equipe da Cine Group passaram aproximadamente três envolvidos com o projeto, que traz o período vivido por Aracy em Hamburgo (Alemanha), onde trabalhava como chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro e por uma questão de “justiça”, como ela mesma afirmava, decidiu ajudar judeus a emigrarem para o Brasil, contrariando o regime nazista e as circulares secretas emitidas pelo governo de Getúlio Vargas. Mais tarde, ela seria homenageada, no Jardim dos Justos entre as Nações do Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Israel, no dia 8 de julho de 1982. O filme foi exibido nos festivais de cinema nas principais capitais e teve uma sessão especial para convidados sediada no MIS (Museu da Imagem e do Som). O documentário. De certa forma, é destinado à comunidade judaica e contou com a participação dos herdeiros de dona Aracy, filho, netos e bisnetos. O documentário apresenta uma sequência de fatos em que as lembranças do passado são ativadas por uma questão presente, conhecido como metáforas da memória. Inclui-se, além dos testemunhos, o silêncio e a lacuna temporal sobre fatos marcantes e 28 experimentados pelos sujeitos-partícipes como elementos potencialmente constituidores de memória, além dos arquivos materiais pessoais da protagonista. Segundo Teruchkin (2021), mesmo com sua importância, teve maior visibilidade apenas depois de sua morte. Atualmente, Aracy também é conhecida como “O Anjo de Hamburgo”, esse título, devido à ajuda prestada aos judeus para fugirem do holocausto. Ela foi contemporânea de outras mulheres importantíssimas na luta feminina, que fizeram história e, logo, teorias, como se pode verificar na citação a seguir. De alguma forma, se uniu a elas para fazer, também, a prática. Enquanto Beauvoir, na França, se opunha às designações domésticas impostas à mulher, Aracy escolheu o divórcio e o trabalho. Enquanto Beauvoir explicava que a existência da mulher é determinada pelo olhar masculino, Aracy burlava as leis criadas por esses mesmos homens. Não é possível dizer que escapou à opressão, porque isto não é possível, já que a mesma é imposta. Mas, sustentada por alguns privilégios, fez uso deles para o bem coletivo, mesmo que isso significasse sacrificar-se. (TERUCHKIN, 2021) Consoante a isso, nossas análises se dão pelo plano geral da obra selecionada, a partir das seguintes verificações: (i) a questão sobre gênero do discurso, (ii) a relação entre o espaço e tempo e (iii) a importância da memória e identidade cultural em um movimento de ressignificação. Sobre a questão do gênero documentário, segundo Bakhtin (2011), toda comunicação humana pressupõe a existência de gêneros relativamente estáveis e o gênero em questão, no entanto, apresentacaracterísticas particulares, e são essas que nos fazem apreendê-lo como tal. Independente da temática apresentada na obra de Caco Ciocler, alguns índices valorativos permitem que o gênero tenha determinado prestígio na esfera comunicacional, como a identidade da protagonista biografada, o universo social que a mesma pertenceu e as relações entre tempo e espaço sobre os fatos. Assim fica claro, inicialmente, que o documentário em questão é uma produção diferente das demais que utilizam os recursos audiovisuais. Salientamos que nosso objeto, em específico, no momento de fruição, 29 o espectador pode equivocar-se, interpretativamente, por não ter em mãos elementos do “plano de conteúdo” da obra, mas ainda sim, é capaz de fazer suas análises. Já a cronotopia permite ao receptor- espectador-leitor entender a importância do tempo e do espaço presentes no documentário como elementos verossímeis1. Nesse sentido, este trabalho pretende perscrutar os pontos de verificações supracitados a partir das concepções de Bakhtin (2011) e para ratificar a importância do documentário no que concerne a preservação e a representação das relações sociais como herança simbólica institucionalizada, nossa pesquisa se pauta nos postulados de Nichols (2005), Derrida (2001) e Le Goff (2003), buscando entender a perspectiva de memória e identidade cultural. Vejamos a seguir a imagem publicitária da obra que constitui nosso corpus, a título de apresentação. Figura 1: Imagem publicitária de lançamento do documentário Esse viver ninguém me tira! Fonte: Ciocler (2014) 1 A verossimilhança é o possível ou provável por não contrariar a verdade; aquilo que é plausível. Neste caso, os fatos apresentados na obra de Caco Ciocler evidenciam elementos que estruturam para o gênero em questão. 30 1. OS GÊNEROS DO DISCURSO: perspectiva bakhtiniana Para Bakhtin (2018, p. 261-262), os gêneros do discurso são diversos e inesgotáveis diante das inúmeras possibilidades comunicacionais que se materializam pelas atividades humanas, pois estão ligados ao uso da linguagem. Para Bakhtin, o gênero discursivo é definido da seguinte forma: “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. De acordo com o filósofo russo, os gêneros discursivos são construídos a partir de valores históricos e sociais e, características específicas como – forma, conteúdo e estilo. Tais características podem ser depreendidas, sendo: (a) forma = composição/discurso, (b) conteúdo = tema, (c) estilo = relação dialógica enunciativa. Esses elementos são indissociáveis, pois são responsáveis pelo todo do enunciado que efetivam o valor integral de um gênero discursivo. Ao entendermos a heterogeneidade dos gêneros do discurso, Bakhtin (2018, p. 262-263) salienta a importância que os gêneros possuem, uma vez que os mesmos fazem parte do repertório dinâmico das relações humanas. O conceito de gênero do discurso em nosso país é abordado em variada escala, ou seja, amplamente discutido em diversos veículos de informação e, sobretudo, no âmbito acadêmico. Sobre esta premissa, entendemos que a questão conceitual não é simples, pois apresenta complexidade, como podemos verificar na seguinte citação. A riqueza e a diversidade de gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) (BAKHTIN, 2018, p. 262). A complexidade sobre a questão se deve ao fato de Bakhtin (2018, p. 263-264) ter apresentado diversas reflexões sobre gêneros 31 sem apresentar classificações específicas, pois para o filólogo, o que interessa é entender como enunciados são produzidos pela dinâmica da linguagem nas diversas esferas sociais com finalidades discursivas específicas. A heterogeneidade levou Bakhtin a refletir uma possível “divisão”, sendo os gêneros classificados em primários e secundários. Os primários se referem a toda comunicação espontânea, informal, imediata. Como exemplos de gêneros primários temos a carta, o bilhete, a conversação. Os gêneros secundários são aqueles conhecidos como formais, elaborados, que são mediados pela escrita, pois aparecem em situações comunicativas mais complexas. São exemplos, o congresso acadêmico, um artigo científico, um documentário, uma biografia, dentre outros. A partir disso, atentemos à citação a seguir. Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos e a dificuldade daí advinda de definir a natureza geral do enunciado. Aqui é de especial importância atentar para a diferença essencial entre os gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos) – não se trata de uma diferença funcional. Os gêneros secundários (complexos) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito). No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2018, p. 263). É importante ressaltar que os gêneros classificados em primários e secundários apresentam a mesma essencialidade – os enunciados verbais, mas o que os diferencia está relacionado diretamente à forma, conteúdo e estilo. Ademais, o enunciado é visto por Bakhtin como a unidade da comunicação discursiva. Cada enunciado constitui um novo acontecimento, um evento irrepetível da comunicação discursiva, sendo apenas citado e não repetido e, ao citar, um novo acontecimento é evidenciado. 32 2. “ESSE VIVER NINGUÉM ME TIRA!”: um documentário arqueológico O documentário “Esse viver ninguém me tira!” veio para retirar do anonimato a protagonista Aracy e impetrar os valores identitários dos sobreviventes do holocausto que migraram para o Brasil na década de 1942. Caco Ciocler, diretor e produtor do documentário, assume o papel de investigador e busca, segundo Derrida (2001, p. 136) os “restos”2 deixados por Aracy, protagonista da obra. O documentário em questão é um gênero discursivo arqueológico, pois o documentarista apresenta o percurso da memória, ou seja, investigando os vestígios materiais, traz à tona informações necessárias para que o público conheça a vida que Aracy teve e sua importância no cenário historiográfico. Ademais, o percurso usado no documentário evidencia o engajamento sobre a temática proposta na divulgação de fatos e reitera os valores nocionais de estética, de subjetividade e investigação, a fim de revelar-se como instrumento intelectual sobre a nova noção de passado. Pensando no documentário de Caco Ciocler como um gênero arqueológico, pautamo-nos na citação a seguir. Cada esfera conhece seus Gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico (BAKHTIN, 2018, p. 284). Para Bakhtin cada gênero apresenta sua especificidade de acordo com as necessidades das atividades humanas no processo de comunicação e, a partir disso, entende-se que o documentário em questão é arqueológico, por atender à proposta de produção e à interlocução (público-alvo). 2 O termo “restos”, segundo a teoria de memória e arquivo, defendidos por Derrida especifica os elementos materiais que agrupados montam uma narrativa sobre a vida de alguém ou lugar, perfazendo-se como “lugar de memória”. 33 Vale salientar também sobre a tríade – conteúdo, forma e estilo do documentário em contextualização à arqueologia. ParaLe Goff (2003, p.421), o campo científico que estuda a memória, em específico, a arqueologia, pode contribuir efetivamente para a compreensão das características sociais, da identidade e da cultura. Vejamos a figura 2 que elucida o documentário como arqueológico. Figura 2: Investigação arqueológica para o documentário Esse viver ninguém me tira! Fonte: Ciocler, 2014 – MIS (Museu da Imagem e do Som) Sobre a tríade anterior, defendida por Bakhtin (2018), podemos verificar no documentário em questão (i) uma temática sobre a sobrevivência de judeus que vieram salvos para o Brasil, com a ajuda de Arcy e as memórias desta protagonista. Isso em uma perspectiva valorativa dada pelo documentarista, Caco Ciocler, sendo o documentário, um enunciado irrepetível em dada circunstância discursiva e ideológica; (ii) a forma de composição e o estilo do enunciado ratificam a proposição temática do todo, do documentário; (iii) já o estilo são as escolhas linguísticas feitas pelo documentarista com o objetivo de gerar o sentido desejado, atingindo seus espectadores na utilização de uma “estrutura” enunciativa, coerente e coesa. Com base na disposição anterior e pelos postulados de Derrida (2001, p. 136-137), podemos afirmar que o documentário é 34 arqueológico, pois evidencia as memórias de Aracy e, por extensão, de arquivo, retorna à origem do passado e remete ao desejo de completude e totalidade daquilo que conhecemos como lembranças. Só é possível tal entendimento, a partir do resgate das “inscrições materiais” deixadas – guardadas em vida pela protagonista do documentário. Tais artefatos soltos, não organizados em uma linha temporal, são complexos, mas não se apagam, pois assumem o caráter de imortalização de uma discursividade social, ideológica e cultural. 3. A CRONOTOPIA EM GÊNERO AUDIOVISUAL: contextualização discursiva contemporânea Segundo Januário e Ludovice (2020, p. 582), “entende-se como cronotopo a categoria conteudística-formal, que revela a relação entre o tempo e o espaço, sendo essa relação fundamental para que as representações humanas possam ser entendidas nos textos, principalmente, os literários”. A partir disso, no documentário – “Esse viver ninguém me tira!”, podemos verificar a relação espacial e temporal que se revela ao receptor-espectador-leitor como um processo de sequencialidade, como categoria inacabada que permitindo ao interlocutor a possibilidade para depreender sentidos. Ao descrever o cronotopo como “tempo” e “espaço”, Bakhtin aponta que é um processo de “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (BAKHTIN, 2018, p. 211). Assim, o termo foi criado para estudar como as categorias, de tempo e espaço estão representados nos textos literários. Levando essa assertiva em consideração, o documentário de Caco Ciocler, nosso objeto de estudo, é um discurso literário, pois é pertence à arte cinematográfica e tem como objetivo a apresentação ressignificada e verossímil da realidade. Para tanto, esse gênero utiliza- se de arquivos históricos, imagens, entrevistas com pessoas envolvidas e outros recursos que permitem ao receptor-espectador-leitor entender o processo criativo do discurso e seu valor fidedigno com a realidade. De acordo com ideias supracitadas, podemos ainda destacar que o documentário em questão, apresenta uma estrutura 35 concatenada aos princípios narratológicos, sendo: (1) personagem – protagonista (Aracy); (2) espaço – lugar das memórias de Aracy, espaço psicohistórico, ou seja, psicológico por apresentar as lembranças da protagonista (fotos, escritos, documentos, etc) e estes artefatos descrevem dois períodos historicamente constituídos – o nazismo e a ditadura militar no Brasil; (3) tempo – a partir dos artefatos memorialísticos deixados por Aracy, foi possível traçar uma linha do tempo e entender tais materialidades como elementos que evidenciam a característica do “flashback”; (4) o enredo é construído a partir das investigações arqueológicas feitas pelo documentarista; (5) a antagonia é representada no documentário por dois atos de heroísmo da protagonista, sendo respectivamente resistente ao Holocausto e na ditadura brasileira. Em 1968, durante o AI-5, escondeu em sua casa Geraldo Vandré, autor da histórica música “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, mesmo que, em seu prédio, morassem alguns oficiais da polícia. Com base nos dispositivos anteriores, fica claro que no documentário de Caco Ciocler, os elementos narratológicos possuem a função de sequencialidade discursiva subjetiva, ratificando os valores sociais, ideológicos e filosóficos da linguagem. Tal perceptividade tem o objetivo de apresentar uma maneira de se entender os eventos, em uma concepção específica e contextual. Contudo, segundo Januário e Ludovice (2020, p. 582-583) os valores de cronotopia no documentário podem ser entendidos como índices impregnados em diversos graus e dimensões, pois são responsáveis pela determinação de um determinado tempo, sem repetição, como ratifica a citação a seguir. No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 2018, p. 211) 36 De certo, os valores de cronotopia dentro do documentário colaboram efetivamente para entender a protagonista e a importância de suas memórias, pois evidenciam um percurso gerativo de enunciações em razão da natureza humana, caracterizando assim o documentário em arqueológico, psicológico, histórico, memorialístico e cultural. De modo geral, o documentário apresenta essa categoria, ressignificando o valor da verossimilhança e ratificando a intersubjetividade entre o sujeito documentado (Aracy) e suas memórias – artefatos investigados pelo documentarista. Além disso, a obra proporciona confiabilidade, pois aquele que “narra” os fatos, tendo em mãos as materialidades discursivas de Aracy proporciona ao receptor-espectador-leitor, de maneira descritiva, detalhes significativos e legítimos de suas investigações. Instrumentação discursiva esta que está presente em outros documentários de mesma natureza. Ainda, salientamos que os tipos de documentários, divididos teoricamente por Nichols (2005) se enquadram contextualmente nas concepções de Bakhtin (2018) sobre os valores de cronotopia. Segundo Nichols (2005), os tipos de documentários são, respectivamente, como pode ser apreciado no quadro a seguir. Quadro 1 – Tipos de documentários 1. Modo Observacional: o cineasta se limita a observar uma realidade dada, tentando registrá-la sem intervir. 2. Modo Expositivo: utiliza-se de uma determinada realidade para ilustrar algum conhecimento de mundo. 3. Modo Participativo: enfatiza a interação cineasta e tema. A filmagem acontece com entrevistas ou outras formas de envolvimento mais direto. 4. Modo Reflexivo: chamam atenção para as hipóteses e convenções que regem o cinema documentário. Aguça nossa consciência da construção da representação da realidade pelo filme. 5. Modo Performático: enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo do próprio engajamento do cineasta com seu tema e a receptividade do público com esse engajamento. Rejeita as ideias de objetividade em favor de evocações e afetos. Fonte: Elaborado pelos autores, 2021. 37 Atentando-nos bem ao quadro tipológico de documentários, podemos perceber que cada um deles contextualmente ratifica a importância da cronotopia defendida por Bakhtin, quase que propositando uma interdisciplinaridade. O documentário – “Esse viver ninguém me tira!”, é um documentário participativo, a princípio, pois Caco Ciocler deixa claro seu interesse pela temática uma vez que ele é judeu para extinguir o anonimatode Aracy, traça um percurso investigativo com entrevistas e descobrimento de artefatos memorialísticos da protagonista. De certa forma, podemos dizer que tal percurso elaborado pelo documentarista tem um viés de performático, uma vez que o documentarista se engaja com a temática e apela às paixões que paulatinamente vão sendo evidenciadas na obra. Por conseguinte, podemos afirmar que o cronotopo no documentário evidencia uma produção linearmente discursiva, designando um “lugar de memórias”, advindo de Aracy que ratifica a especificidade de proposição estética, imagética, social, histórica e cultural. CONSIDERAÇÕES FINAIS O caminho que percorremos foi apoiado em leituras bakhtinianas sobre os gêneros do discurso e do cronotopo, marcado pela perspectiva filosófica do tempo e do espaço, que se tornam abertos e coletivos, vividos pelas descrições dos fatos históricos sob a protagonia de Aracy Guimarães Rosa, no documentário selecionado – “Esse viver ninguém me tira!”. Tentamos contextualizar as concepções de Bakhtin a outras relacionadas à memória e identidade cultural que efetivamente nos permitiram entender a potencialidade do gênero documentário arqueológico. Embora, em nosso trabalho não demos enfoque ao dialogismo, ficou claro que o documentário analisado de maneira geral exprime tal importância. Ainda, com as contextualizações teóricas feitas, percebemos que o espaço/tempo é indissociável e tal perspectiva permite ao receptor-espectador-leitor depreender que as situações referentes à natureza humana são elementos na constituição de sentidos, ressignificando a ideia de enunciado e ratificando os valores do processo de comunicação entre os indivíduos socialmente constituídos. 38 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poética histórica. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec, 2018, p.211-362. ______. Introdução ao Documentário. São Paulo: Ed. Papirus. 2005. ______. O romance de educação e sua importância para a história do realismo. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2018, p.205-225. ______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 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Para que tal fato possa ser compreendido, buscamos fazer um levantamento bibliográfico onde construímos algumas abordagens a respeito do conceito de surdez e sua compreensão histórica, passando pela cultura surda e sua identidade. Diante desse contexto cultural e identitário, foi possível chegar à educação de surdos no Brasil que seguia o padrão mundial, ou seja, sistematizar o processo de ensino – aprendizagem por meio do oralismo. A partir de uma nova abordagem (socioantropológica), que visualiza a diferença, foi também descrito um conjunto de leis pertinentes a esse grupo (surdos). Palavras-chave: Surdez. Inclusão. Legislação. ABSTRACT In this article, we present an analysis and reflection on the process of inclusion of deaf students in the regular classroom. So that this fact can be understood, we seek to carry out a bibliographical survey where we build some approaches regarding the concept of deafness and its historical understanding through deaf culture and its identity Given this cultural and identity context, it was possible to reach deaf education in Brazil that followed the world standard, that is, to systematize the teaching-learning process through oralism. From a new approach (socio-anthropological), which visualizes the difference, a set of laws pertaining to this group (deaf) was also described. Keywords: Deafness. Inclusion. Legislation. CONCEPÇÃO DE SURDEZ Pode-se perceber que, ao longo dos séculos, a concepção da surdez está caracterizada dentro de um contexto de poder, ou seja, o “normal” é ser ouvinte e, consequentemente, interagir com a sociedade e o mundo por meio da língua oral. 40 Ao se focar a sociedade dentro de um contexto oralizado, a surdez se torna uma anomalia, isto é, sai do padrão normalizante, caracterizando-se como uma patologia (doença) a ser curada. Dessa forma, é necessário resgatar a audição para que o surdo seja curado e possa obter sua condição humana e o restabelecimento de seu potencial (SÁ, 2002, SKLIAR, 2001, MOURA, 2000, HOFFMEISTER, 1999, JOKINEN, 1999). Ao se observar essa condição sub-humana, deficitária, ao qual o surdo é envolvido, o discurso clínico, ou seja, aquele em que a surdez deve ser curada a qualquer custo, cristaliza-se na sociedade como um todo e, principalmente, nas instituições escolares. Como se percebe, a visão clínica da surdez (deficiência, déficit) é muito forte na vida do surdo, entretanto, Jokinen (1999, p.107) afirma que: “Apesar dessa visão da maioria, é muito interessante que os surdos não veem a surdez como uma doença, como um fenômeno negativo, algo que deveria ser removido de uma forma ou de outra”. Ao se perceberem como um grupo minoritário e diferente, e não deficiente, começam a valorizar sua língua, sua história, sua cultura, e sua identidade. (BASTOS, 2009). A concepção de surdez que reconhece a língua, a história, a cultura e a identidade de um grupo minoritário se estabelece dentro de uma visão das diferenças, ou seja, socioantropológica. Para Skliar e Lunardi (2000, p. 20), “a surdez como diferença nega uma atribuição puramente externa do ser surdo a alguma característica marcante, como por exemplo, não ouvir. A diferença não deve ser entendida como uma oposição (surdo como contrário e negativo de ouvinte)”. Ao se compreender a diferença e não a deficiência, entende-se o surdo como um indivíduo apto a participação social (trabalho, escola, arte,) entre outros. Mas para que a concepção da surdez se desvincule do ato externo, isto é, o não ouvir, é preciso, que este grupo busque seus direitos e estes só se darão por meio de movimentos políticos e de lutas contra a interpretação clínica da surdez. 41 CULTURA SURDA É importante salientar que a cultura de um povo ou grupo está relacionadacom sua história e seu modo de vida. Cotrim (1993, p.15), define como: [...] o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de determinada sociedade. Nesse sentido, abrange conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades adquiridas socialmente pelos homens. Para Sá (2002, p. 88), [...] a cultura é definida como um campo de forças subjetivas que se expressa através da linguagem, dos juízos de valor, da arte, das motivações etc., gerando a ordem do grupo, com seus códigos próprios, suas formas de organização, de solidariedade etc. Diante das concepções definidas por Contrim (1993) e Sá (2002) fica evidenciado que a cultura surda possui seus códigos próprios, sua língua própria e, também, seus próprios interesses. Dessa forma, fica evidente que a cultura surda não é a mesma cultura dos ouvintes. Bastos (2009, p.19) destaca que: ao se falar da cultura surda, [...] suas relações não coincidem com os significados da cultura ouvinte, que historicamente procura impor regras sociais de convivência, ou seja, define como devem ser o comportamento dos surdos dentro da sociedade. Se este grupo não seguir o prescrito torna-se marginal e desviante. Ao estabelecer as diferenças dentro do contexto cultural fica evidente que uma única visão de cultura segrega os grupos minoritários e, dentre eles, a cultura surda, por isso, torna-se necessário romper o paradigma da ineficiência e improdutividade desse grupo. Para que haja o rompimento desse paradigma é necessário muita luta e envolvimento de grupos que defendam a necessidade e a importância das diferenças. 42 É preciso que a luta seja estabelecida dentro de um contexto político e histórico, permitindo, assim, uma perspectiva de transformação social. Mclarem (2000) aponta para a importância da recusa da padronização dos signos e significados de uma cultura. O mesmo assinala a necessidade do multiculturalismo, que reconheça as diferenças. Obviamente, todo esse processo gera conflitos, ou seja, não há uma relação harmoniosa e sem cicatrizes, conforme explana Mclarem (2000, p.123), [...] se recusa a ver a cultura como não conflitiva, harmoniosa e consensual. A democracia, a partir desta perspectiva, é compreendida como tensa – não como um estado de relações culturais e políticas sempre harmoniosa, suave e sem cicatrizes. O multiculturalismo de resistência não compreende a diversidade como uma meta, mas argumenta que a diversidade deve ser afirmada dentro de uma política de crítica e compromisso com a justiça social. Portanto, para se reconhecer a cultura surda, é preciso que haja compromisso ético e crítico que leve a sociedade e o poder público a reconhecer a cultura surda como multicultural, que apresenta sua especificidade linguística. Dentro desse contexto, Moura (2000, p. 65) afirma que: “dentro da sociedade ouvinte, eles construíram uma comunidade própria, com sua cultura, sua língua e tentaram se estabelecer como grupo minoritário que pudesse ser aceito numa visão multicultural”. Ao se estabelecer a visão das diferenças, sendo estas culturais e linguísticas, observa-se a construção e a reconstrução da identidade desse grupo minoritário que precisa desses movimentos surdos para superar a visão puramente clínica da surdez. IDENTIDADE SURDA É importante notar que o conceito de identidade tem sido muito discutido na sociedade atual. A esse respeito, Hall (2005) destaca uma crise de identidade, posto que a visão do sujeito, como: unificado, centralizado e estável, já não cabe na sociedade contemporânea. A 43 sociedade moderna trabalha outro conceito de identidade, este caracterizado como: dinâmico, instável e fragmentado, abrindo-se para um complexo processo de transformações na estrutura social (Hall, 2005). Ainda segundo Hall (2005), pode-se distinguir três concepções de identidades, ou seja, a do sujeito do iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. Sendo cada identidade identificada com suas características particulares. Para Perlin (2001, p. 52), o surdo é um sujeito com identidade pós-moderna, como fica evidenciado em seu pensamento: “Entendo o conceito de identidade pós-moderna [...] como sendo: identidades plurais, múltiplas; que se transformam, que não são fixas, imóveis, estáticas ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias que não são algo, pronto”. A partir desse pensamento, observa-se a necessidade de negociação, pois, a partir da pluralidade, ou seja, cada indivíduo traz sua realidade que irá constituir a identidade das diferenças. Esse contexto identitário só pode ser vislumbrado dentro de uma política de diferenças, onde os surdos possam se ver como surdos. Como retrata Skliar (1999, p.11), “as identidades surdas não se constroem no vazio, mas em locais determinados que podem ser denominados como locais de transição”. Também é importante salientar que a alteridade é um fator que constitui as diferentes identidades, posto que o conceito representa o outro. Dessa forma, para a identidade ouvinte, o outro é o surdo e o mesmo precisa ser respeitado em sua especificidade. A esse respeito, Perlim (1998, p.25), especifica que: “ao se encontrar com suas especificidades, encontra-se com suas significações, pois “ser surdo não é algo vazio”. Portanto, a significação e a especificidade da identidade surda estão na habilidade do surdo em se compreender surdo e no preparo político de sua identidade. 44 EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL Compreender o cenário educacional do surdo não é uma tarefa simples, pois as barreiras e limitações educacionais se tornam grandes empecilhos. Para compreender esse contexto educacional, é importante inferir os aspectos políticos, sociais e históricos, por qual passava e ainda passa o aluno surdo. A esse respeito, Ferreira e Guimarães (2003, p.89), denotam que: A cada período histórico, surgem variados obstáculos a serem vencidos pelo ser humano, ao lidar face a face com as dificuldades impostas por suas limitações físicas e /ou mentais. Tal reflexão leva à retomada da longa trajetória educacional, percorrida pelas pessoas [...], a fim de que possam ser compreendidas as diferentes formas do tratamento a elas dispensado, desde a antiguidade clássica até os dias de hoje. O contexto histórico da educação de surdos também via esses indivíduos como pessoas castigadas, enfeitiçadas, dignas de piedade e até abandonadas e sacrificadas. (GOLDFELD, 1997). Em seus estudos, Tartuci (2001) descreve que os religiosos também participavam dos estudos linguísticos, posto que, enquanto estudiosos da fé, acreditavam que era fundamental o ato de ouvir e falar para que se pudesse crer. Dessa forma, podemos perceber que há uma forte manifestação religiosa que caracteriza a surdez como doença e, portanto, precisa ser eliminada para que possa se ligar a Deus. Em relação a esse discurso, Ferreira e Guimarães (2003, p.59) retratam que: Verificando a força das “religiões” através dos séculos, e sabendo que o sentimento religioso é inerente à psique humana, pode-se constatar que esse é um fenômeno consideravelmente forte, que muito influenciou e continua determinando atitudes do ser humano face à vida e as explicações teológicas frente à existência da deficiência. Dentro desse contexto histórico, observa-se que, no final da idade média, começa-se a esboçar o processo educacional do surdo. 45 Entretanto, somente para os filhos dos nobres, por meio de preceptores, não apresentando ainda uma marca institucional (TARTUCI, 2001). A mesma autora evidencia que até o século XV houve pouco interesse no processo educacional do surdo, posto que este individuo estava a margem da sociedade. Foi só a partir do século XVI que começam a surgir os primeiros educadores surdos. (GOLDFELD, 1997). A efervescência na educação de surdos, ou seja, o período mais rico para esse processo foi o século XVIII. A partir desse momento, começa a ser visto a participação de surdos não considerados nobres no processo educacional. Nesse período,
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