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Sob o olhar da Linguística e da Educação

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Prévia do material em texto

Marilurdes Cruz Borges
Luana Ferraz
Cláudia de Fátima Oliveira
(Organizadoras)
DA LINGUÍSTICA
E
DA EDUCAÇÃO
DIFERENTES
LINGUAGENS
SOB O OLHAR
© TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. A RIBEIRÃO GRÁFICA EDITORA detém direito autoral sobre
o projeto gráfico e editorial desta obra. Os autores detêm os direitos autorais de publicação. DIFERENTES
LINGUAGUENS SOB O OLHAR DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO está licenciado com uma
Licença de Atribuição Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional, permitindo seu compartilhamento
integral ou em partes, sem alterações e de forma gratuita, desde que seja citada a fonte.
DECLARAÇÃO DOS AUTORES: Os autores desta obra atestam não possuir qualquer interesse comercial
que constitua um conflito de interesses em relação ao texto científico publicado; declaram que participaram
ativamente da construção dos respectivos manuscritos, preferencialmente na: 1) concepção do estudo, e/ou
aquisição de dados, e/ou análise e interpretação de dados; 2) elaboração do artigo ou revisão com vistas a
tornar o material intelectualmente relevante; 3) certificam que os artigos científicos publicados estão
completamente isentos de dados e/ou resultados fraudulentos.
Todos os manuscritos foram previamente submetidos à avaliação cega por pares, membros da comunidade
acadêmica da área de História, Educação e Linguística, tendo sido aprovados para a publicação.
A Ribeirão Gráfica Editora preza pela conduta ética e garante a integridade editorial em todas as etapas do
processo de publicação. Suspeitas de má conduta científica serão investigadas sob o mais alto padrão de
rigor acadêmico.
© 2021 byMarilurdes Cruz Borges, Luana Ferraz, Cláudia de Fátima Oliveira(org)
Todos os direitos reservados.
Editora: Marilurdes Cruz Borges
Projeto gráfico: Fernanda Oliveira Ribeiro Andrade | Ribeirão Gráfica e Editora
Revisão Gramatical: Cláudia de Fátima Oliveira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
BORGES, Marilurdes Cruz; FERRAZ, Luana; OLIVEIRA, Cláudia de Fátima.
DIFERENTES LINGUAGENS SOB O OLHAR DA LINGUÍSTICA E DA
EDUCAÇÃO. Franca/SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2021.
201p
Vários autores.
ISBN: 978-65-89271-38-3
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-00
1. Linguística.
2. Educação.
3. Ciências humanas.
4. Pesquisa.
CDD 001.3072
CDD 370
www.ribeiraograficaeditora.com.br
contato@ribeiraograficaeditora.com.br
CONSELHO EDITORIAL
Ana Cristina Carmelino
(Universidade de Federal de São Paulo – UNIFESP/SP)
Ana Maria Paulino Comparini
(Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – FFCL, Ituverava/SP)
Argus Romero Abreu de Morais
(Universidade Federal de São João del Rei - Promel/UFSJ, São João del Rei/MG)
Assunção Cristovão
(Universidade de Franca – UNIFRAN, Franca/SP)
Glenda Cristina Valin de Melo
(Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro/RJ)
Luiz Antonio Ferreira
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo/SP)
Maria Flávia Figueiredo
(Universidade de Franca – UNIFRAN, Franca/SP)
Regina Maria Rovigati Simões
(Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba/MG)
Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira
(Centro Universitário Municipal de Franca, Uni-FACEF, Franca/SP)
Um saber é aquilo de que podemos falar em uma
prática discursiva que se encontra assim especificada:
o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão
adquirir ou não um status científico [...]; um saber é,
também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição
para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso
[...]; um saber é também o campo de coordenação e de
subordinação dos enunciados em que os conceitos
aparecem, se definem, se aplicam e se transformam [...];
finalmente, um saber se define por possibilidades de
utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso [...]
Michel Foucault;
SUMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................................................................................................................................................................................................. 8
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1
O TESTEMUNHO NO ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA ........................................... 14
Aline Fernandes de Azevedo BOCCHI
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-01
CAPÍTULO 2
A QUESTÃO SOBRE GÊNEROS DO DISCURSO E CRONOTOPIA NO
DOCUMENTÁRIO DE CACO CIOCLER -
“ESSE VIVER NINGUÉM ME TIRA ...................................................................................................................................................................... 26
Nícolas Vladimir de Souza JANUÁRIO
Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-02
CAPÍTULO 3
SURDEZ: DEFICIÊNCIA OU DIFERENÇA? ......................................................................................................................................... 39
Marcelo Henrique BASTOS
Ana Júlia Vieira FARIA
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-03
CAPÍTULO 4
A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
ÉTNICO-RACIAL: A TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA PARA
UMA EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA E SUSTENTÁVEL ...................................................................................................... 52
Danielle Cristina Teodoro de SOUZA
Marilurdes Cruz BORGES
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-04
CAPÍTULO 5
O ALUNADO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO NA ERA DA
INFORMAÇÃO E DA PANDEMIA ...................................................................................................................................................................... 67
Marcus Vinicius Verissimo GONÇALVES
Emerson Benedito FERREIRA
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-05
CAPÍTULO 6
A METAFÍSICA DOS COSTUMES, A ÉTICA E OS SEUS CONCEITOS
BÁSICOS: UM OLHAR KANTIANO NA PRODUÇÃO DE
TEXTOS REDACIONAIS ............................................................................................................................................................................................................ 84
Simone Tavares de ANDRADE
Cláudia de Fátima OLIVEIRA
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-06
CAPÍTULO 7
AFETIVIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR: CONSTRUÇÃO DISCURSIVA PARA A
PRÁTICA DISCIPLINAR E PEDAGÓGICA ............................................................................................................................................ 97
Fernanda dos Santos NASCIMENTO
Maria Eduarda Ferreira LEMOS
Marilurdes Cruz BORGES
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-07
CAPÍTULO 8
ESPAÇOS VERDES COMO AGENTES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
ENSINAMENTOS E EXPERIÊNCIAS ........................................................................................................................................................... 116
Lucineia Pereira DE PAULA
Cláudia de Fátima OLIVEIRA
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-08
CAPÍTULO 9
A IMPORTÂNCIA DA ESTIMULAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
NEURO-PSICOMOTOR PARA A ALFABETIZAÇÃO
NA PRIMEIRA INFÂNCIA ................................................................................................................................................................................................. 131
Lorrayne Jasmim FERREIRA
José Alexandre BACHUR
Marilurdes Cruz BORGES
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-09
CAPÍTULO 10
O MATERIAL DIDÁTICO DISPONÍVEL NO MERCADO:
REVISÃO E CRÍTICA ............................................................................................................ 145
Juliana Ferreira e SILVA
Pâmella ALVES
William Fernando FERRETO
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-10
CAPÍTULO 11
ORALIDADE NO LIVRO DIDÁTICO: UMA ANÁLISE DA ABORDAGEM
DA RETEXTUALIZAÇÃO .................................................................................................... 163
Mercedes Fátima de Canha CRESCITELLI
Silvia Maria RIBEIRO
DOI: 10.47791/RGE/89271-38-11
DADOS SOBRE ORGANIZADORES ...................................................................................................................................................192
DADOS SOBRE AUTORES ....................................................................................................................................................................................... 193
ÍNDICE REMISSIVO................................................................................................................................................................................................................. 199
8
PREFÁCIO
O contexto social complexo em que estamos imersos incita-
nos à descompartimentalização dos saberes. Em busca de
construirmos um conhecimento integrado, condizente com a
curiosidade aguçada, a capacidade reflexiva e o pensamento crítico,
que consideramos imprescindíveis para a construção do bem-estar
social, reunimos, neste livro, textos produzidos por pesquisadores
das áreas de Linguística e Educação.
Por meio dessa reunião, tencionamos, além de explorar
conteúdos próprios de cada área e de revelar eventuais
discordâncias e embates, encorajar a união de saberes e estimular
arranjos inter e transdisciplinares que possam nos conduzir a um
pensamento aberto e livre. Trata-se não apenas de transmitir
saberes, mas de incentivar a transmissão de “[...] uma cultura que
permita compreender nossa condição e nos ajude a viver [...]”, tal
como preconiza Morin (2005, p. 11).
À divulgação de um saber fragmentado e hiperespecializado,
preferimos considerar o encontro entre áreas que podem contribuir
para o desenvolvimento de vivências significativas nos aspectos
cognitivo, afetivo, relacional, social, político e cultural, dadas as trocas
e relações que estabelecem entre os diferentes sujeitos, que interagem
a partir de lugares sociais os mais variados.
Ainda segundo Morin (2005, p. 95), “os indivíduos humanos
produzem a sociedade nas interações e pelas interações, mas a
sociedade, à medida que emerge, produz a humanidade desses
indivíduos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura”. A
compreensão do que sentimos e de como concebemos a nós e aos
outros sujeitos só nos chega (ou chegará), portanto, pela linguagem
e por uma educação que nos permitirá reconhecer a poeticidade
do fazer cotidiano e nos tornará sensíveis às dores e alegrias
individuais e coletivas.
9
Ao ressaltarmos mais uma vez a união entre a Educação e os
Estudos da Linguagem, nesta obra, desejamos mais do que
(re)valorizar uma relação já considerada intrínseca. Procuramos,
também, fortalecer a busca pelo olhar científico mais abrangente e
provocar discussões que tragam algum contributo à luta constante
contra o ódio e a exclusão. Esperamos ter atingido, ao menos em
parte, este objetivo.
Luana Ferraz
10
APRESENTAÇÃO
A linguagem é o mecanismo que os seres humanos utilizam
para se comunicarem e manifestarem seus sentimentos, suas
sensações e seus pensamentos. A Linguística e a Educação são áreas
científicas que tem a linguagem como centro de seus estudos: a
primeira observa a linguagem verbal e não verbal para investigar a
produção de sentidos, a segunda parte dela para promover a
compreensão e a aprendizagem do mundo.
Qualquer que seja o contexto, a linguagem é o elemento
condutor que possibilidade o ser humano viver em sociedade. Cada
indivíduo tem sua singularidade, mas é preciso compreender o mundo
que o rodeia para que dele participe ativamente. Adquirimos
linguagem ao nascer e a desenvolvemos nas práxis sociais,
aprimorando-a nos ambientes educacionais quando somos desafiados
a novas formas de comunicação e a novas relações humanas.
Reunimos em DIFERENTES LINGUAGENS SOB O OLHAR
DA LINGUÍSTICA E DA EDUCAÇÃO onze capítulos que discutem
a linguagem. Os textos resultam de pesquisas científicas nas áreas da
Linguística e da Educação, alguns ainda com diálogo entre elas.
Abre o livro o texto intitulado: O TESTEMUNHO NO
ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA. Nele, a pesquisadora
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi levanta profundas reflexões
acerca do testemunho, da biografia e da poesia, sob a égide da obra
“Quinquilharias e recordações” - Biografia de Wislawa Szymborska,
cuja biografada foi Nobel de Literatura no ano de 1996. Aqui serão
apresentadas as questões relacionadas ao lugar da poesia enquanto
transmissão, nos dizeres da pesquisadora, de “uma verdade não-toda
e do “bordejamento de um indizível”.
No segundo capítulo, Nicolas Vladimir de Souza Januário e
Camila de Araújo Beraldo Ludovice discutem em: A QUESTÃO SOBRE
GÊNEROS DO DISCURSO E CRONOTOPIA NO DOCUMENTÁRIO
DE CACO CIOCLER - “esse viver ninguém me tira!” A reflexão parte do
fato de o gênero documentário, justamente por apresentar em si diferentes
linguagens, é instrumento plurissignificativo de informações. Logo, por
11
meio da análise do documentário de Caco Ciocler, faz-se uma busca da
compreensão acerca dos gêneros discursivos, bem como do cronotopo,
os quais levam a obra a uma dinâmica tanto histórica, como social,
voltada para um enviesamento de memória e identidade cultural.
O terceiro capítulo, elaborado por Marcelo Henrique Bastos e
Ana Júlia Vieira Faria, tem como título SURDEZ: deficiência ou
diferença? e traz em seu bojo questões que permeiam o processo de
inclusão do aluno surdo, em meio à vertente relacionada à identidade.
Os autores discutem a abordagem socioantropológica, nova ainda, e
as leis voltadas para o grupo estudado como elementos visualizadores
da diferença, tão sentida e precisa no novo contexto educacional.
Em A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A FORMAÇÃO
DA CONSCIÊNCIA ÉTNICO-RACIAL: a temática africana e afro-
brasileira para uma educação igualitária e sustentável, quarto capítulo,
Danielle Cristina Teodoro de Souza e Marilurdes Cruz Borges
permeiam o papel da educação antirracista, que tem como palco
principal o ambiente educacional, em especial a sala de aula. Por
meio do estudo da literatura de temática africana e afro-brasileira, a
partir do livro de Bell Hooks: “Meu crespo é de rainha”, as autoras
trazem à tona contributos para o estudo sobre a diversidade e
identidade racial. Legislações e documentos relacionados à educação
serão aqui trazidos e relacionar-se-ão ao conteúdo discutido.
O novo cenário educacional brasileiro continua sendo pano de
fundo em O ALUNADO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO NA
ERA DA INFORMAÇÃO E DA PANDEMIA. Para os pesquisadores,
o tema é discussão que se faz relevante nesse cenário. No capítulo
cinco, Marcus Vinicius Verissimo Gonçalves e Emerson Benedito
Ferreira tecem relevantes considerações sobre o novo perfil do aluno
do ensino superior, frente às novas características da EaD. O meio
técnico-científico-informacional proporcionou a esse alunado
inovações relacionadas ao fluxo de informações, bem como trouxe
novas possibilidades relacionadas ao mercado de trabalho, em
especial, em tempos pandêmicos.
No sexto capítulo, A METAFÍSICA DOS COSTUMES, A ÉTICA
E OS SEUS CONCEITOS BÁSICOS: um olhar kantiano na produção de
12
textos redacionais, produzido pelas pesquisadoras Simone Tavares de
Andrade e Cláudia de Fátima Oliveira, tem como fito a análise da
obra kantiana “Metafísica dos Costumes”, que trata de forma direta
da relação entre a moral e o direito e sua relação com a ética. Será
proposto, neste estudo, que os conceitos kantianos no texto
apresentados sirvam como cenário repertorial para estudantes do
Ensino Médio, quando na elaboração de textos redacionais, de caráter
dissertativo-argumentativo, voltados para os exames vestibulares.
O capítulo sete discute a responsabilidade da instituição
educacional enquanto agente de formação integral do aluno. Nele, as
autoras Fernanda dos Santos Nascimento, Maria Eduarda Ferreira
Lemos e Marilurdes Cruz Borges buscam demonstrar o quão importante
é o equilíbrio entre afeto e disciplina, posto que ambos tratam do
desenvolvimento integral do aluno. O texto, intitulado AFETIVIDADE
NO AMBIENTE ESCOLAR: construção discursiva para a prática disciplinar
e pedagógica, sob a perspectiva piagetiana e walloniana, com o contributo
de outros filósofos da educação, deixa o leitor ciente do quanto os
conceitos ali discutidos se fazemnecessários para que se desfaçam as
generalizações relacionadas ao campo educacional.
No capítulo oito, o meio ambiente é espaço de discussão no
artigo ESPAÇOS VERDES COMO AGENTES DE EDUCAÇÃO
AMBIENTAL: ensinamentos e experiências, de Lucineia Pereira de Paula
e Cláudia de Fátima Oliveira. Nele, as autoras discorrem sobre o
projeto de educação ambiental no município de Franca, interior de
São Paulo, em que escola, comunidade e iniciativa privada se
integram, em busca da sensibilização voltada para a importância do
plantio de árvores, o que reverbera na cidadania responsável e na
harmonização entre o ser humano e o meio ambiente.
O capítulo nove oferece ao leitor um passeio pela interdisciplinaridade
no ambiente escolar. Por meio do texto A IMPORTÂNCIA DA
ESTIMULAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NEUROPISCOMOTOR
PARA A ALFABETIZAÇÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA, Lorrayne Jasmim
Ferreira, José Alexandre Bachur e Marilurdes Cruz Borges abordam as
questões inerentes à importância do desenvolvimento neuropsicomotor
como elemento no processo cognitivo. Serão apresentadas, neste trabalho,
13
colocações acerca das conexões neurais enquanto elementos facilitadores
no processo de aprendizagem da primeira infância. Logo, os contributos
aqui presentes se mostram de grande importância para o processo
educacional, em especial para a mais tenra idade.
No décimo capítulo, Juliana Ferreira e Silva, Pâmella Alves e
William Fernando Ferreto trazem um estudo sobre O MATERIAL
DIDÁTICO DISPONÍVEL NO MERCADO: Revisão e crítica. Nesse
texto, os pesquisadores promovem profunda discussão acerca do
ensino literário dentro dos livros didáticos no ensino fundamental.
Isso, porque o ensino aqui discutido requer algumas indagações, em
especial, no que diz respeito à formação de leitores efetivamente
literários. Para tornar o Brasil um país de leitores, essa reflexão se
faz de extrema eficiência, uma vez que por ela perpassam questões
de cunho social, político e ético.
ORALIDADE NO LIVRO DIDÁTICA: uma análise da abordagem
da retextualização fecha este livro digital. Neste estudo, Mercedes
Fátima de Canha Crescitelli e Silvia Maria Ribeiro analisam e
discutem a abordagem da oralidade em livros didáticos voltados ao
Ensino Fundamental II. O intuito das autoras é verificar se a oralidade
passou a ser tratada de forma diferente após os estudos da mesma
pela Linguística.
Nosso objetivo, como organizadoras deste e-book, é divulgar
pesquisas e estudos que possam contribuir para o aprofundamento
da reflexão daqueles que, direta ou indiretamente, envolvidos com a
Linguística e com a Educação, busquem repostas às questões da
linguagem em suas múltiplas manifestações. Os textos reunidos aqui
promovem reflexões críticas sobre materialidades diversas que
desaguam na esfera educacional. Os autores que aderiram a essa
empreitada esperam, como nós, que seus estudos contribuam à
formação de sujeitos críticos, participativos e curiosos, dispostos à
apreensão, cada vez mais, da linguagem.
Marilurdes Cruz Borges
Luana Ferraz
Cláudia de Fátima Oliveira
14
CAPÍTULO 1
O TESTEMUNHO NO ENTREMEIO DA BIOGRAFIA E DA POESIA
WITNESS IN THE MIDDLE OF BIOGRAPHY AND POETRY
Aline Fernandes de Azevedo BOCCHI
RESUMO
Este texto apresenta reflexões sobre o testemunho, a biografia e a poesia, a partir
de considerações sobre a obra Quinquilharias e recordações - Biografia de Wislawa
Szymborska, publicada no Brasil em 2020, na qual as jornalistas Anna Bikont e
Joanna Skczesna narram a vida da poeta que foi laureada com o Nobel de
Literatura em 1996. Amparadas na análise de discurso de matiz materialista e na
psicanálise, recortamos alguns trechos da biografia em que a poesia de Wislawa
comparece, o que nos permite trabalhar a poesia como lugar de transmissão de
uma verdade não-toda e de bordejamento de um indizível.
Palavras-chave: Testemunho. Poesia. Biografia.
ABSTRACT
This text presents reflections on the witness, the biography and the poetry, from
considerations on the work Quinquilharias and memories - Biography of Wislawa Szymborska,
published in Brazil in 2020, in which journalists Anna Bikont and Joanna Skczesna
recount the life of the poet who was awarded the Nobel Prize for Literature in 1996.
Supported in the discourse analysis and psychoanalysis, we cut out some passages of
the biography in which Wislawa’s poetry appears, which allows us to work poetry as a
place of transmission of a truth other than all and borders of an unspeakable.
Keywords: Witness. Poetry. Biography.
PRIMEIRAS PALAVRAS
Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as
palavras, nada é usual ou normal. Nem uma única pedra
e nem uma única nuvem acima dela. Nem um único dia e
nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem uma
única existência, a existência de nenhuma pessoa neste
mundo. (Wislawa Szymborska. O poeta e o mundo.
Discurso proferido ao receber o Nobel, em 19961)
1 Traduzido por Rubens Figueiredo e publicado na Revista Piauí. Disponível em: https://
piaui.folha.uol.com.br/materia/ o-poeta-e-o-mundo/ Acesso em: 23. nov. 2020.
15
O percurso trilhado neste texto deriva de estudos que tenho
desenvolvido nos últimos anos como docente pesquisadora do
Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade de
Franca. São reflexões que envolvem o funcionamento do testemunho
em materiais diversos (BOCCHI, 2017a; 2017b; 2020), e que
objetivam interrogar, a partir da perspectiva teórica da Análise de
Discurso em suas articulações com a Psicanálise, os limites de
acepções historiográficas e jurídicas do testemunho que o
compreendem como uma forma suposta de descrever o real.
Desconfiada dessa ilusão de certitude que coloca o sujeito em
uma posição consciente, autônoma e voluntária, considero que a
(língua)gem não pode tudo abarcar; todo dizer deixa um resíduo
indizível, um resto inapreensível. Ao teorizar a materialidade da
língua como inexoravelmente equívoca, Pêcheux e Gadet (2004)
produzem uma ruptura com a tradição filosófica e linguística que
dispõe da centralidade do eu, daquele que enuncia, interrogando a
certeza da consciência do sujeito que toma a palavra. Nessa mesma
direção, Lacan definiu a poesia como subversão, na língua, da ordem
cristalizada. Há aí uma diferença fundamental com relação às
manifestações ordinárias da linguagem em sua função comunicativa,
o que equivale a dizer, com Lacan, que a poesia é efeito de sentido,
mas também de furo (LACAN, 1976-1977, lição de 15/05/1977).
Compreendo o efeito de furo na relação com a equivocidade,
considerada fundamento da ordem da língua. Na perspectiva
discursiva, a equivocidade da língua é um traço estruturante
inescapável; o poético não é compreendido como “[...] o ‘domingo
do pensamento’, mas [o humor e o traço poético] pertencem aos
meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica
[...]” (PÊCHEUX, [1983] 2006, p. 53). O poético é apresentado como
isso que é próprio da língua: “nada da poesia é estranho à língua”;
“nenhuma língua pode ser pensada completamente, se aí não se
integra a possibilidade de sua poesia” (ibid., p. 55).
A pergunta que inaugura um começo é: há testemunho na
poesia? Minha aposta permite considerar, justamente, a poesia como
16
um lugar privilegiado de transmissão da experiência pensada a partir
do campo da Psicanálise; não se trata, pois, da experiência
determinada pelo vivido ou pelo acúmulo de vivências, mas da
experiência articulada com a verdade do sujeito, uma verdade,
portanto, não-toda. Na tentativa de privilegiar a poesia como capaz
de bordejar o real, convoco Quinquilharias e recordações – Biografia de
Wislawa Szymborska (BIKONT; SZCZESNA, 2020) como material
que me permite mostrá-la como lugar de transmissão e de
bordejamento de um indizível.
Ao situar o discursivo no entremeio do linguístico e do histórico,
Pêcheux (2012, p. 45) estabelece que nele há um real e um “saber
que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto,
existe produzindo efeitos”. Minha aposta é a de que o poético
possibilita demarcar esse saber que só se sustentana singularidade,
saber não-apreensível, e que contudo a experiência analítica possibilita
entrever2. Assim, a poesia interessa justamente por consistir em um
dito que desafia o impossível de dizer.
1. QUINQUILHARIAS E RECORDAÇÕES – Biografia de Wislawa Szymborska
Escrito pelas jornalistas Anna Bikont e Joanna Skczesna e
publicado no Brasil em 2020, Quinquilharias e recordações – Biografia
de Wislawa Szymborska narra a vida da poeta que foi laureada com o
Nobel de Literatura em 1996. Nascida em 1923, no vilarejo polonês
de Bninie, morou na Cracóvia desde os 8 anos. Durante a Segunda
Guerra, foi funcionária do departamento de estradas e ferro para
escapar da deportação. Mais tarde, tornou-se editora de uma revista
cultural. Teve seu primeiro livro censurado pelo Regime Comunista,
que o considerou obscuro demais. Depois disso, sua poesia passa a
se marcar por uma desafetação, tom coloquial e certas doses de ironia;
trata-se de uma poesia feita do assombro e da delicadeza, capaz de
se surpreender tanto com as miudezas do cotidiano quanto com os
horrores da História.
2 Refiro-me à análise cujo processo tem no psicanalista uma testemunha do que se produziu.
17
Nas 557 páginas que compõem o livro, as autoras enfrentam
um rigoroso trabalho de pesquisa com fontes primárias - documentos
pessoais e de arquivos - e entrevistas com amigos e conhecidos de
Wislawa, outros poetas etc., para compor uma narrativa para a vida
da poeta, que sempre se esquivou de situações que pudessem expor
sua vida pessoal. “Fujo dos jornalistas”, “porque, na maioria das
vezes, propõem conversas que, por princípio, não me interessam”.
“Em nossa época”, diz Wislawa, “fala-se demais; isso é estimulado
pelos meios de comunicação de massa” (BIKONT; SZCZESNA,
2020, p. 375).
Ao incansavelmente perseguirem material documental para sua
biografia, as jornalistas encontram nos escritos de Wislawa “detalhes
biográficos”, “informações inesperadas sobre a autora, seus gostos,
convicções e hábitos” (p. 14), vestígios de uma singularidade que
irão compor um arquivo de quinquilharias incompleto. As autoras
reconhecem o fracasso constitutivo do gesto de biografar, o qual se
fundamenta na ilusão de “comunicar uma história de vida”: “Não
nos contava ‘toda a sua vida’. Da biografia interior mostrava somente
o tanto que queria. Às vezes repetia: ‘minha memória logo joga fora
essas coisas’ ou ‘isso é assunto para depois da minha morte’” (p. 22 –
grifo meu).
Arrisco, assim, uma escuta dessa obra atenta aos desfaleci-
mentos de lembranças e memórias, às lacunas na autobiografia – e a
aspiração do gesto biográfico que convoca a poesia para justamente
povoar os lugares de incertezas. Enquanto gesto de interpretação
(ORLANDI, 2007)3, a escrita biográfica que ora se apresenta recolhe
(e edita) trechos da poesia de Wislawa para preencher rachaduras na
coerência de sua história. Contudo, ela esbarra repetidamente no
impossível, no “nada para ser contado” (BIKONT; SZCZESNA,
2020, p. 12 – grifo meu).
Da perspectiva discursiva à qual me filio, toda descrição está
intrinsecamente exposta ao equívoco da língua; o testemunho não
3 Vale lembrar que Pêcheux (1969) define o gesto como um ato simbólico que intervém no real. A partir
dele, Orlandi desenvolve a noção de gesto de interpretação como uma intervenção no real do sentido.
18
tem como escapar à opacidade, haja visto a não transparência da
língua e do sujeito teorizadas pela Análise de Discurso. Ainda,
considera-se que “há real, isto é, pontos de impossível, determinando
aquilo que não pode não ser assim” (PÊCHEUX, [1983] 2012, p.
53). O impossível, o inapreensível ronda os processos de significação;
situar o testemunho inscrito na poesia, face a uma teoria que o expõe
ao real da língua, ao real do inconsciente e ao real da história, é
cavar para a literatura um lugar abissal que mostra a impossibilidade
de atingir a palavra em sua suposta inteireza de sentidos.
Todavia, essa inteireza se exibe como obsessão no gesto
biográfico que, contraditoriamente, mobiliza a poesia para
paradoxalmente corrompê-la, mostrando que uma história de vida
sempre resta não-toda; ela resiste à interpretação totalizadora. A
linguagem é resultante da faculdade simbólica do homem. O símbolo
representa alguma coisa ausente. Diferente dos outros animais, que
não possuem uma linguagem articulada e são determinados pelo
instinto, o homem é um ser de linguagem e “a verdade de nossa
linguagem é inacabada e inominável – intangível” (LONGO, 2006,
p. 16). Deste modo, a palavra releva na mesma medida em que oculta.
Entre o eu e o outro, há a linguagem. “Entre o sujeito que fala
e seu ouvinte existe um anteparo, uma proteção, uma espécie de
muralha que se ergue, mesmo quando há silêncio.”. A linguagem
humana comporta “falhas”; ela é ambígua, marcada por constantes
flutuações nos sentidos das palavras — equívocos, deslizes de sentido,
lapsos de língua, chistes, atos falhos, jogos de palavras, ficções,
repetições, lapsos de memória, rasuras, lacunas, erros, tropeços.
2. DESPOJOS DE GUERRA
Trago agora uma questão específica, que consiste em articular
a poesia de Wislawa Szymborska à historicidade da Segunda Guerra,
procurando tomá-la como um “despojo de guerra”, o que me
possibilita destacar os traços do acontecimento histórico na poesia.
Szymborska raramente falava sobre a experiência da guerra.
Embora escrevesse sobre a ocupação, encontramos em sua biografia
19
dizeres nos quais afirma ter descartado a maioria dos poemas que
escreveu sobre ela. Indagada pelas jornalistas sobre como seria
possível que ela raramente utilizasse dessa experiência na sua escrita,
respondeu que é difícil haver proporções justas na poesia: “Eu nunca
me igualaria aqui a Ròzewics ou Herbert. [...] Lendo seus poemas,
compreendi que expressaram suas experiências de uma maneira
inigualável e eu não conseguiria acrescentar nada àquilo.” (BIKONT;
SZCZESNA, 2020, p. 87)
Nas páginas de Quinquilharias e recordações, reconheço a
inscrição do luto em poemas como “Sonho”, de 1962, o qual
Wislawa escreveu ao namorado que, enviado a uma missão, nunca
mais regressou. “Era 1943, talvez 1944. Depois não chegou mais
nenhuma carta. Eu me informava, procurava, mas nunca consegui
descobrir nenhuma pista” (p. 86).
Meu tombado, meu voltado ao pó, meu terra,
depois de assumir a figura que está na fotografia:
com a sombra de uma folha no rosto, com uma concha
do mar na mão,
parte para o meu sonho.
[...]
Surge no lado de dentro de minhas pálpebras,
naquele absolutamente único mundo acessível a ele.
Bate-lhe o coração transpassado.
Desprende-se dos cabelos o primeiro vento.
[...]
Nós nos aproximamos. Não sei se chorando
e não sei se sorrindo. Apenas mais um passo
e escutaremos juntos tua concha do mar,
e nela, que chiado de incontáveis orquestras,
e nela, que marcha nupcial a nossa.
Sonho, Sal, 1962 (BIKONT; SZCZESNA, 2020, p. 86)
O corpo tombado, tornado pô. Com a sombra de uma folha no
rosto, a sombra da morte, o desaparecido retorna no sonho, único mundo
acessível a ele. Sem corpo ou funeral, o morto se torna um desaparecido.
A escrita do sonho supõe uma implicação subjetiva e testemunha a morte
20
a assombrar durante a guerra. Outro notável escrito, “Ainda” - Chamando
por Yeti, de 1957, foi escrito por ela no pós-guerra:
Vão pelo país em vagões selados
os nomes transportados,
mas para onde vão assim,
será que a viagem terá fim,
não sei, não direi, não perguntem.
O nome Natan esmurra a parede,
o nome Isaque canta louco de fome
o nome Sara pede agua para o nome
Aarão, que morre de sede.
[…]
Sim, é assim, segue pelos trilhos o trem.
Sim, é assim. O transporte dos gritos de ninguém.
Sim, é assim. Desperta na noite escuto
Sim, é assim, o surdo martelar do silêncio.
Assim, apesar de ter vivenciado a deportação a partir de uma
outra posição, daquela que sobrevive à morte do outro sem ter
experimentado o aniquilamento dos campos de concentração como
experimentou Paul Celan4 , Szymborska inscreve em seu poema uma
espécie de reivindicação da lembrança de nomes e gritosde ninguém,
a componente coletiva tão cara aos estudos da literatura de
testemunho, em que há um compromisso com um trabalho da
memória construído pela sociedade.
Em “o nome...”, a anáfora dá a ver a insistência da palavra que
necessita ser repetida para que ressoe na/a história; embora se inscreva
como estrangeira ao acontecimento, o poema enfatiza o valor do
nome próprio e, em certo sentido, parece buscar uma conciliação
4 Celan dramatiza em sua poesia a quebra do verso como quebra do mundo, conforme Felman (2000).
A poesia encena a sobrevivência do próprio poeta, sua experiência estilhaçada de sobrevivente do
Holocausto. O testemunho de Celan é o de um expulso, coagido pela deportação, “nas agonias da
expulsão de seu país de origem” (p. 38), sobreviveu ao extermínio e trabalhou em um campo de
trabalho forçado por 18 meses. Paul Ancel trocou seu nome depois da guerra, usando um anagrama,
Celan – filhos de judeus-alemães, suicidou-se em 1970, com 49 anos, afogando-se no Sena. Embora
tenha escolhido viver em Paris depois da guerra, não conseguia deixar de escrever em alemão: “somente
na língua materna se pode expressar a própria verdade. O poeta mente em uma língua estrangeira”,
segundo o que explicou ao seu biografo Israel Chalfen.
21
com a impressão de estranhamento, Unheimlich. Confrontada com
um real que não permite esquecimento e que a mantém desperta,
Wislawa “Ainda” escreve.
Em um texto recente ainda não publicado5, examinamos o
funcionamento linguístico-discursivo das anáforas e da negação
presentes no testemunho do Sr. Aloisio Silva acerca dos acontecimentos
de sua infância, recortado do documentário Menino 23: infâncias perdidas
no Brasil. Na fala desse sobrevivente de um processo de escravização
que marcou a sua infância com a força da violência e do desamparo,
encontramos a ausência do nome próprio (os meninos eram nomeados
por números), como na lógica da segregação e da concentração, na
qual não mais se descrimina a diferença “ [...] junta-se, uniformiza-se,
confunde-se, reduz-se à formas do humano disforme, aniquila-se as
diferenças.” (BOUSSEYROUX, 2013). Desse modo, segundo
Bousseyroux (2013) “os campos têm por princípio a produção
industrializada de um puro concentrado de indiferença”.
As lembranças entrecortadas por esquecimentos, as rupturas
no encadeamento das frases e o comparecimento da negação
abundavam nas formulações e possibilitava indagar sobre como a
língua, em perpétua transformação e mobilizada para dizer o
inenarrável, era convocada naquele testemunho. As análises
mostraram que, por mais multiplicados que sejam os ditos, permanece
sempre algo que não se diz, pois nenhum significante é capaz de
apreendê-lo. “Do Real nada se escreve” (MILNER, 2006, p. 20).
Entretanto, em se tratando de uma situação de “dessubje-
tivação”, conforme Mariani (2016, p. 51), não devemos considerar
essa insuficiência ou impossibilidade do testemunho, seja da
impotência das palavras seja do indizível na apreensão da experiência
e dos objetos, apenas como uma “ausência de significação para si ou
5 Nesse trabalho realizado em coautoria com um orientando, problematizamos o testemunho em um
material audiovisual documental cuja proposta consistia em narrar a história de meninos “transferidos”
de um orfanato no Rio de Janeiro para uma fazenda no interior de São Paulo, meninos sem nomes ou
infâncias, submetidos a uma forma de escravização pela política higienista vigente nos anos 1930.
Estruturado a partir dos testemunhos dos sobreviventes, o documentário mobilizava essas falas para
narrar uma versão da história tida como mal-dita, posto que relacionada a posições historicamente
silenciadas e a corpos abnegados pela “memória oficial” gerida pelos Aparelhos de Poder de nossa
sociedade (PÊCHEUX,[1982] 2010).
22
sobre si mesmo”, mas também como uma “insistência em uma única
significação (interpretação) mortífera que advém do Outro”
(MARIANI, 2016, p. 51).
Também no poema de Wislawa comparecem o nome próprio
e a negação (“não sei, não direi, não perguntem”). O “Ainda”, marca
uma temporalidade outra, de algo que retorna, que insiste em não se
inscrever. Com Chaves (2020), considero que a produção poética pode
se constituir em meio a problemática ética e política do testemunho.
Embora eu não possa, neste momento, percorrer mais detidamente
as elaborações do testemunho em Agamben ([1998] 2008), é
entretanto possível vislumbrar a língua do testemunho nesse lugar entre,
onde o vazio se coloca, articulado a um sujeito que se mostra dividido.
3. ENTRE O CORPO E O SUSSURRO INTERROMPIDO: o abismo
Para finalizar, convoco o poema “Autotomia”, publicado em
Todo o caso, de 1972, que foi escrito em memória da poeta polonesa
Halina Poswiatowska. Ao consentir que a poesia se presta
admiravelmente a um vislumbre do sujeito como aquele que se furta
a apreensão e a totalização, admito também que a língua(gem), em
vez de cerzir brechas as escancara. Cito Wislawa:
Autotonia
Em perigo, a holotúria se divide em duas:
com uma metade se entrega à voracidade do mundo,
com a outra foge.
Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,
em multa e prêmio, no que foi e no que será.
No meio do corpo da holotúria se abre um abismo
com duas margens subitamente estranhas.
Em uma margem a morte, na outra a vida.
Aqui o desespero, lá o alento.
Se existe uma balança, os pratos não oscilam.
Se existe justiça, é esta.
23
Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou.
Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.
De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, logo sufocado.
Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,
três palavrinhas apenas como três penas em voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos circunda.
In memoriam Halina Poœwiatowska
(Trad. Regina Przybycien)
Nas primeiras estrofes, a holotúria é apresentada como aquela
que vive um dilaceramento, dividida entre duas metades
inconciliáveis. O corpo da holotúria é como o nosso, simbólico,
rasgado pela pulsão que nele sulca um abismo com duas margens
estranhas. A questão da existência é aqui colocada a partir da divisão
do sujeito entre corpo e poesia, ambos expostos à linguagem, pois
não há corpo fora dela, pelo menos não no sentido dado pela
psicanálise. Segundo Miralpeix (2020), “o sujeito requer sustentar-
se em um corpo”, que no entanto “só o é na medida em que é
representado por um significante para outro significante, quer dizer,
o interior do discurso”. O sussurro interrompido, o grito sufocado:
sintomas; ecos, no corpo, do fato de que há um dizer, conforme Lacan.
Deixo em aberto a questão de saber se o testemunho presente
na poesia corresponderia a uma lógica feminina, não-toda orientada
pelo falo, na qual o testemunho não pode atestar nenhum universal,
mas que paradoxalmente se mostra admirável para inscrever uma
marca diante do real, um saber-fazer com lalangue. Sigo nessa direção,
tentando pensar como a poesia testemunharia a invenção de novas
possibilidades para o significante e para a história, advindas da
experiência intransferível da poeta, experiência que nenhuma
biografia seria capaz de abarcar.
24
REFERÊNCIAS
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(Homo Sacer III). SaÞo Paulo: Boitempo, 2008.
BIKONT, A.; SZCZESNA, J. Quinquilharias e recordações. Biografia de
Wislawa Szymborska. Tradução de Eneida Favre. Belo Horizonte: Editora
Âyiné, 2020.
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parto: movimentos de sentido entre o jurídico e o equívoco. In: Mulheres em
discurso: gênero, linguagem e ideologia. (Orgs.) Mónica G. Zoppi Fontana e
Ana Josefina Ferrari. Vol. 1. Pontes Editores: Campinas, SP, 2017a.
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de memória em testemunhos de mulheres. Fórum linguístico, Florianópolis, v.
14, n.1, p. 1808-1822, 2017b.
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entrememorias e esquecimentos. In: FARIA, J. P.; SANTANA, J. C.;
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BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e a teoria dos discursos. A peste,
4(1), 101-112, 2013.
CHAVES, T. V. Entre a escrita e o olhar: uma poética da violência. Tese
(doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, ao Instituto de Estudos da
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NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.) Catástrofe e
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GADET, F.; PECHEUX, M. [1981]. A liìngua inatingível: o discurso na história
da linguística. Campinas: Pontes, 2004.
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MARIANI, B. S. C. Testemunho: um acontecimento na estrutura. Revista do
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 12,
n.1, p. 48-63 – jan./jul. 2016.
MIRALPEIX, R. Para que haja corpo... XI Encontro Internacional dos Fóruns.
VII Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
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ORLANDI, E. P. Interpretac’aÞo: autoria, leitura e efeitos do trabalho
simbólico. Petrópolis: Vozes, 2007.
25
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J.-J.; GADET, F.; MARANDIN, J.-M.; PECHEUX, M. (orgs) Materialidades
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______. [1982] Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni (Org.) Gestos de leitura:
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de
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2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
S0103-56652008000100005&lng=en& nrm=iso>. Acesso em: 10 out. 2020.
26
CAPÍTULO 2
A QUESTÃO SOBRE GÊNEROS DO DISCURSO E CRONOTOPIA
NO DOCUMENTÁRIO DE CACO CIOCLER -
“ESSE VIVER NINGUÉM ME TIRA!”
THE QUESTION ABOUT SPEECH GENRES AND CHRONOTOPY
IN CACO CIOCLER’S DOCUMENTARY -
“THIS LIVES NO ONE TAKES ME OFF!”
Nícolas Vladimir de Souza JANUÁRIO
 Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE
RESUMO
Levando em consideração o gênero Documentário em perspectiva da representação
da realidade, sabe-se que tal gênero apresenta uma combinação da linguagem áudio
e visual, ambas, auxiliadas pela linguagem verbal, promovendo uma abordagem
interativa, motivadora e que promove o desenvolvimento crítico. Com base nesse
conceito, selecionamos o documentário – “Esse viver ninguém me tira!”, produzido
e dirigido em 2014, por Caco Ciocler (ator global). É sabido que os documentários
produzidos são instrumentos plurissignificativos de informações e os mesmos
permitem ao receptor-espectador-leitor a depreensão de sentidos, além do
entendimento sobre a transformação humana, o qual é tomado como índice de
historicidade. Nesse contexto, em percurso metodológico, temos o documentário
mencionado como nosso objeto de pesquisa e a partir dele, buscamos de maneira
efetiva a compreensão sobre gêneros discursivos e do cronotopo que contribuem
para verificar como a obra, além de se enquadrar no gênero discursivo documentário,
apresenta uma dinâmica literária e histórica, bem como o entendimento do espaço
e tempo representados na ratificação de memória e identidade cultural.
Palavras-chave: Gêneros do discurso. Documentário. Cronotopia. Memória.
Identidade cultural.
ABSTRACT
Taking into account the Documentary genre in the perspective of the representation
of reality, it is known that this genre presents a combination of audio and visual
language, both aided by verbal language, promoting an interactive, motivating
approach that promotes critical development. Based on this concept, we selected
the documentary – “This life, nobody takes me away!”, produced and directed in
2014 by Caco Ciocler (global actor). It is known that the documentaries produced
27
are plurisignificant instruments of information and they allow the receiver-viewer-
reader to understand meanings, in addition to understanding human transformation,
which is taken as an index of historicity. In this context, in a methodological path,
we have the documentary mentioned as our research object and from it, we effectively
seek the understanding of discursive genres and the chronotope that contribute to
verifying how the work, in addition to fitting into the documentary discursive genre,
presents a literary and historical dynamic, as well as the understanding of space
and time represented in the ratification of memory and cultural identity.
Keywords: Discourse genres. Documentary. Chronotopy. Memory. Cultural identity.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O documentário – “Esse viver ninguém me tira!” marca a estreia
de Caco Ciocler como diretor de um longa-metragem que entrou em
cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília no dia 11 de dezembro
de 2014. A produção da Cine Group reconstrói a trajetória de Aracy
Guimarães Rosa, mulher do escritor João Guimarães Rosa, mostrando
as ações e a coragem dessa heroína, que até então, era anônima.
Caco Ciocler e a equipe da Cine Group passaram
aproximadamente três envolvidos com o projeto, que traz o período
vivido por Aracy em Hamburgo (Alemanha), onde trabalhava como
chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro e por uma questão
de “justiça”, como ela mesma afirmava, decidiu ajudar judeus a
emigrarem para o Brasil, contrariando o regime nazista e as circulares
secretas emitidas pelo governo de Getúlio Vargas. Mais tarde, ela seria
homenageada, no Jardim dos Justos entre as Nações do Yad
Vashem (Museu do Holocausto), em Israel, no dia 8 de julho de 1982.
O filme foi exibido nos festivais de cinema nas principais capitais
e teve uma sessão especial para convidados sediada no MIS (Museu
da Imagem e do Som). O documentário. De certa forma, é destinado
à comunidade judaica e contou com a participação dos herdeiros de
dona Aracy, filho, netos e bisnetos.
O documentário apresenta uma sequência de fatos em que as
lembranças do passado são ativadas por uma questão presente,
conhecido como metáforas da memória. Inclui-se, além dos
testemunhos, o silêncio e a lacuna temporal sobre fatos marcantes e
28
experimentados pelos sujeitos-partícipes como elementos
potencialmente constituidores de memória, além dos arquivos
materiais pessoais da protagonista.
Segundo Teruchkin (2021), mesmo com sua importância, teve maior
visibilidade apenas depois de sua morte. Atualmente, Aracy também é
conhecida como “O Anjo de Hamburgo”, esse título, devido à ajuda
prestada aos judeus para fugirem do holocausto. Ela foi contemporânea
de outras mulheres importantíssimas na luta feminina, que fizeram história
e, logo, teorias, como se pode verificar na citação a seguir.
De alguma forma, se uniu a elas para fazer, também, a
prática. Enquanto Beauvoir, na França, se opunha às
designações domésticas impostas à mulher, Aracy
escolheu o divórcio e o trabalho. Enquanto Beauvoir
explicava que a existência da mulher é determinada pelo
olhar masculino, Aracy burlava as leis criadas por esses
mesmos homens. Não é possível dizer que escapou à
opressão, porque isto não é possível, já que a mesma é
imposta. Mas, sustentada por alguns privilégios, fez uso
deles para o bem coletivo, mesmo que isso significasse
sacrificar-se. (TERUCHKIN, 2021)
Consoante a isso, nossas análises se dão pelo plano geral da
obra selecionada, a partir das seguintes verificações: (i) a questão
sobre gênero do discurso, (ii) a relação entre o espaço e tempo e (iii)
a importância da memória e identidade cultural em um movimento
de ressignificação. Sobre a questão do gênero documentário, segundo
Bakhtin (2011), toda comunicação humana pressupõe a existência
de gêneros relativamente estáveis e o gênero em questão, no entanto,
apresentacaracterísticas particulares, e são essas que nos fazem
apreendê-lo como tal. Independente da temática apresentada na obra
de Caco Ciocler, alguns índices valorativos permitem que o gênero
tenha determinado prestígio na esfera comunicacional, como a
identidade da protagonista biografada, o universo social que a mesma
pertenceu e as relações entre tempo e espaço sobre os fatos. Assim
fica claro, inicialmente, que o documentário em questão é uma
produção diferente das demais que utilizam os recursos audiovisuais.
Salientamos que nosso objeto, em específico, no momento de fruição,
29
o espectador pode equivocar-se, interpretativamente, por não ter em
mãos elementos do “plano de conteúdo” da obra, mas ainda sim, é
capaz de fazer suas análises. Já a cronotopia permite ao receptor-
espectador-leitor entender a importância do tempo e do espaço
presentes no documentário como elementos verossímeis1.
Nesse sentido, este trabalho pretende perscrutar os pontos de
verificações supracitados a partir das concepções de Bakhtin (2011)
e para ratificar a importância do documentário no que concerne a
preservação e a representação das relações sociais como herança
simbólica institucionalizada, nossa pesquisa se pauta nos postulados
de Nichols (2005), Derrida (2001) e Le Goff (2003), buscando
entender a perspectiva de memória e identidade cultural. Vejamos a
seguir a imagem publicitária da obra que constitui nosso corpus, a
título de apresentação.
Figura 1: Imagem publicitária de lançamento do documentário
Esse viver ninguém me tira!
Fonte: Ciocler (2014)
1 A verossimilhança é o possível ou provável por não contrariar a verdade; aquilo que é plausível.
Neste caso, os fatos apresentados na obra de Caco Ciocler evidenciam elementos que estruturam
para o gênero em questão.
30
1. OS GÊNEROS DO DISCURSO: perspectiva bakhtiniana
Para Bakhtin (2018, p. 261-262), os gêneros do discurso são
diversos e inesgotáveis diante das inúmeras possibilidades
comunicacionais que se materializam pelas atividades humanas, pois
estão ligados ao uso da linguagem. Para Bakhtin, o gênero discursivo
é definido da seguinte forma: “cada enunciado particular é individual,
mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros
do discurso”. De acordo com o filósofo russo, os gêneros discursivos
são construídos a partir de valores históricos e sociais e, características
específicas como – forma, conteúdo e estilo. Tais características
podem ser depreendidas, sendo: (a) forma = composição/discurso,
(b) conteúdo = tema, (c) estilo = relação dialógica enunciativa. Esses
elementos são indissociáveis, pois são responsáveis pelo todo do
enunciado que efetivam o valor integral de um gênero discursivo. Ao
entendermos a heterogeneidade dos gêneros do discurso, Bakhtin
(2018, p. 262-263) salienta a importância que os gêneros possuem,
uma vez que os mesmos fazem parte do repertório dinâmico das
relações humanas.
O conceito de gênero do discurso em nosso país é abordado
em variada escala, ou seja, amplamente discutido em diversos veículos
de informação e, sobretudo, no âmbito acadêmico. Sobre esta
premissa, entendemos que a questão conceitual não é simples, pois
apresenta complexidade, como podemos verificar na seguinte citação.
A riqueza e a diversidade de gêneros do discurso são
infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da
multiforme atividade humana e porque em cada campo
dessa atividade é integral o repertório de gêneros do
discurso, que cresce à medida que se desenvolve e se
complexifica um determinado campo. Cabe salientar em
especial a extrema heterogeneidade dos gêneros do
discurso (orais e escritos) (BAKHTIN, 2018, p. 262).
A complexidade sobre a questão se deve ao fato de Bakhtin
(2018, p. 263-264) ter apresentado diversas reflexões sobre gêneros
31
sem apresentar classificações específicas, pois para o filólogo, o que
interessa é entender como enunciados são produzidos pela dinâmica
da linguagem nas diversas esferas sociais com finalidades discursivas
específicas. A heterogeneidade levou Bakhtin a refletir uma possível
“divisão”, sendo os gêneros classificados em primários e secundários.
Os primários se referem a toda comunicação espontânea, informal,
imediata. Como exemplos de gêneros primários temos a carta, o
bilhete, a conversação. Os gêneros secundários são aqueles conhecidos
como formais, elaborados, que são mediados pela escrita, pois
aparecem em situações comunicativas mais complexas. São exemplos,
o congresso acadêmico, um artigo científico, um documentário, uma
biografia, dentre outros. A partir disso, atentemos à citação a seguir.
Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema
heterogeneidade dos gêneros discursivos e a dificuldade daí
advinda de definir a natureza geral do enunciado. Aqui é de
especial importância atentar para a diferença essencial entre
os gêneros discursivos primários (simples) e secundários
(complexos) – não se trata de uma diferença funcional. Os
gêneros secundários (complexos) surgem nas condições de
um convívio cultural mais complexo e relativamente muito
desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito).
No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram
diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas
condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN,
2018, p. 263).
É importante ressaltar que os gêneros classificados em primários
e secundários apresentam a mesma essencialidade – os enunciados
verbais, mas o que os diferencia está relacionado diretamente à forma,
conteúdo e estilo. Ademais, o enunciado é visto por Bakhtin como a
unidade da comunicação discursiva. Cada enunciado constitui um
novo acontecimento, um evento irrepetível da comunicação
discursiva, sendo apenas citado e não repetido e, ao citar, um novo
acontecimento é evidenciado.
32
2. “ESSE VIVER NINGUÉM ME TIRA!”: um documentário arqueológico
O documentário “Esse viver ninguém me tira!” veio para retirar
do anonimato a protagonista Aracy e impetrar os valores identitários
dos sobreviventes do holocausto que migraram para o Brasil na
década de 1942.
Caco Ciocler, diretor e produtor do documentário, assume o
papel de investigador e busca, segundo Derrida (2001, p. 136) os
“restos”2 deixados por Aracy, protagonista da obra.
O documentário em questão é um gênero discursivo
arqueológico, pois o documentarista apresenta o percurso da
memória, ou seja, investigando os vestígios materiais, traz à tona
informações necessárias para que o público conheça a vida que Aracy
teve e sua importância no cenário historiográfico. Ademais, o percurso
usado no documentário evidencia o engajamento sobre a temática
proposta na divulgação de fatos e reitera os valores nocionais de
estética, de subjetividade e investigação, a fim de revelar-se como
instrumento intelectual sobre a nova noção de passado.
Pensando no documentário de Caco Ciocler como um gênero
arqueológico, pautamo-nos na citação a seguir.
Cada esfera conhece seus Gêneros, apropriados à sua
especificidade, aos quais correspondem determinados
estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica,
oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada
uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado
gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente
estável do ponto de vista temático, composicional e
estilístico (BAKHTIN, 2018, p. 284).
Para Bakhtin cada gênero apresenta sua especificidade de
acordo com as necessidades das atividades humanas no processo de
comunicação e, a partir disso, entende-se que o documentário em
questão é arqueológico, por atender à proposta de produção e à
interlocução (público-alvo).
2 O termo “restos”, segundo a teoria de memória e arquivo, defendidos por Derrida especifica os
elementos materiais que agrupados montam uma narrativa sobre a vida de alguém ou lugar,
perfazendo-se como “lugar de memória”.
33
Vale salientar também sobre a tríade – conteúdo, forma e estilo
do documentário em contextualização à arqueologia. ParaLe Goff
 (2003, p.421), o campo científico que estuda a memória, em
específico, a arqueologia, pode contribuir efetivamente para a
compreensão das características sociais, da identidade e da cultura.
Vejamos a figura 2 que elucida o documentário como arqueológico.
Figura 2: Investigação arqueológica para o documentário
Esse viver ninguém me tira!
Fonte: Ciocler, 2014 – MIS (Museu da Imagem e do Som)
Sobre a tríade anterior, defendida por Bakhtin (2018), podemos
verificar no documentário em questão (i) uma temática sobre a
sobrevivência de judeus que vieram salvos para o Brasil, com a ajuda
de Arcy e as memórias desta protagonista. Isso em uma perspectiva
valorativa dada pelo documentarista, Caco Ciocler, sendo o
documentário, um enunciado irrepetível em dada circunstância
discursiva e ideológica; (ii) a forma de composição e o estilo do
enunciado ratificam a proposição temática do todo, do documentário;
(iii) já o estilo são as escolhas linguísticas feitas pelo documentarista
com o objetivo de gerar o sentido desejado, atingindo seus espectadores
na utilização de uma “estrutura” enunciativa, coerente e coesa.
Com base na disposição anterior e pelos postulados de Derrida
(2001, p. 136-137), podemos afirmar que o documentário é
34
arqueológico, pois evidencia as memórias de Aracy e, por extensão,
de arquivo, retorna à origem do passado e remete ao desejo de
completude e totalidade daquilo que conhecemos como lembranças.
Só é possível tal entendimento, a partir do resgate das “inscrições
materiais” deixadas – guardadas em vida pela protagonista do
documentário. Tais artefatos soltos, não organizados em uma linha
temporal, são complexos, mas não se apagam, pois assumem o caráter
de imortalização de uma discursividade social, ideológica e cultural.
3. A CRONOTOPIA EM GÊNERO AUDIOVISUAL: contextualização
discursiva contemporânea
Segundo Januário e Ludovice (2020, p. 582), “entende-se como
cronotopo a categoria conteudística-formal, que revela a relação entre
o tempo e o espaço, sendo essa relação fundamental para que as
representações humanas possam ser entendidas nos textos,
principalmente, os literários”. A partir disso, no documentário –
“Esse viver ninguém me tira!”, podemos verificar a relação espacial
e temporal que se revela ao receptor-espectador-leitor como um
processo de sequencialidade, como categoria inacabada que
permitindo ao interlocutor a possibilidade para depreender sentidos.
Ao descrever o cronotopo como “tempo” e “espaço”, Bakhtin
aponta que é um processo de “interligação fundamental das relações
temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura”
(BAKHTIN, 2018, p. 211). Assim, o termo foi criado para estudar
como as categorias, de tempo e espaço estão representados nos textos
literários. Levando essa assertiva em consideração, o documentário
de Caco Ciocler, nosso objeto de estudo, é um discurso literário, pois
é pertence à arte cinematográfica e tem como objetivo a apresentação
ressignificada e verossímil da realidade. Para tanto, esse gênero utiliza-
se de arquivos históricos, imagens, entrevistas com pessoas envolvidas
e outros recursos que permitem ao receptor-espectador-leitor entender
o processo criativo do discurso e seu valor fidedigno com a realidade.
De acordo com ideias supracitadas, podemos ainda destacar
que o documentário em questão, apresenta uma estrutura
35
concatenada aos princípios narratológicos, sendo: (1) personagem –
protagonista (Aracy); (2) espaço – lugar das memórias de Aracy,
espaço psicohistórico, ou seja, psicológico por apresentar as
lembranças da protagonista (fotos, escritos, documentos, etc) e estes
artefatos descrevem dois períodos historicamente constituídos – o
nazismo e a ditadura militar no Brasil; (3) tempo – a partir dos
artefatos memorialísticos deixados por Aracy, foi possível traçar uma
linha do tempo e entender tais materialidades como elementos que
evidenciam a característica do “flashback”; (4) o enredo é construído
a partir das investigações arqueológicas feitas pelo documentarista;
(5) a antagonia é representada no documentário por dois atos de
heroísmo da protagonista, sendo respectivamente resistente ao
Holocausto e na ditadura brasileira. Em 1968, durante o AI-5,
escondeu em sua casa Geraldo Vandré, autor da histórica música
“Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, mesmo que, em seu prédio,
morassem alguns oficiais da polícia.
Com base nos dispositivos anteriores, fica claro que no
documentário de Caco Ciocler, os elementos narratológicos possuem
a função de sequencialidade discursiva subjetiva, ratificando os valores
sociais, ideológicos e filosóficos da linguagem. Tal perceptividade
tem o objetivo de apresentar uma maneira de se entender os eventos,
em uma concepção específica e contextual.
Contudo, segundo Januário e Ludovice (2020, p. 582-583) os
valores de cronotopia no documentário podem ser entendidos como
índices impregnados em diversos graus e dimensões, pois são
responsáveis pela determinação de um determinado tempo, sem
repetição, como ratifica a citação a seguir.
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios
espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto.
Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história.
Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço
reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse
cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o
cronotopo artístico. (BAKHTIN, 2018, p. 211)
36
De certo, os valores de cronotopia dentro do documentário
colaboram efetivamente para entender a protagonista e a importância
de suas memórias, pois evidenciam um percurso gerativo de enunciações
em razão da natureza humana, caracterizando assim o documentário
em arqueológico, psicológico, histórico, memorialístico e cultural.
De modo geral, o documentário apresenta essa categoria,
ressignificando o valor da verossimilhança e ratificando a
intersubjetividade entre o sujeito documentado (Aracy) e suas
memórias – artefatos investigados pelo documentarista. Além disso, a
obra proporciona confiabilidade, pois aquele que “narra” os fatos, tendo
em mãos as materialidades discursivas de Aracy proporciona ao
receptor-espectador-leitor, de maneira descritiva, detalhes significativos
e legítimos de suas investigações. Instrumentação discursiva esta que
está presente em outros documentários de mesma natureza.
Ainda, salientamos que os tipos de documentários, divididos
teoricamente por Nichols (2005) se enquadram contextualmente nas
concepções de Bakhtin (2018) sobre os valores de cronotopia.
Segundo Nichols (2005), os tipos de documentários são,
respectivamente, como pode ser apreciado no quadro a seguir.
Quadro 1 – Tipos de documentários
1. Modo Observacional: o cineasta se limita a observar uma realidade
dada, tentando registrá-la sem intervir.
2. Modo Expositivo: utiliza-se de uma determinada realidade para
ilustrar algum conhecimento de mundo.
3. Modo Participativo: enfatiza a interação cineasta e tema. A filmagem
acontece com entrevistas ou outras formas de envolvimento mais direto.
4. Modo Reflexivo: chamam atenção para as hipóteses e convenções
que regem o cinema documentário. Aguça nossa consciência da
construção da representação da realidade pelo filme.
5. Modo Performático: enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo
do próprio engajamento do cineasta com seu tema e a receptividade
do público com esse engajamento. Rejeita as ideias de objetividade
em favor de evocações e afetos.
Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.
37
Atentando-nos bem ao quadro tipológico de documentários,
podemos perceber que cada um deles contextualmente ratifica a
importância da cronotopia defendida por Bakhtin, quase que
propositando uma interdisciplinaridade. O documentário – “Esse viver
ninguém me tira!”, é um documentário participativo, a princípio, pois
Caco Ciocler deixa claro seu interesse pela temática uma vez que ele é
judeu para extinguir o anonimatode Aracy, traça um percurso
investigativo com entrevistas e descobrimento de artefatos
memorialísticos da protagonista. De certa forma, podemos dizer que
tal percurso elaborado pelo documentarista tem um viés de
performático, uma vez que o documentarista se engaja com a temática
e apela às paixões que paulatinamente vão sendo evidenciadas na obra.
Por conseguinte, podemos afirmar que o cronotopo no documentário
evidencia uma produção linearmente discursiva, designando um “lugar
de memórias”, advindo de Aracy que ratifica a especificidade de proposição
estética, imagética, social, histórica e cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho que percorremos foi apoiado em leituras
bakhtinianas sobre os gêneros do discurso e do cronotopo, marcado
pela perspectiva filosófica do tempo e do espaço, que se tornam
abertos e coletivos, vividos pelas descrições dos fatos históricos sob a
protagonia de Aracy Guimarães Rosa, no documentário selecionado
– “Esse viver ninguém me tira!”.
Tentamos contextualizar as concepções de Bakhtin a outras
relacionadas à memória e identidade cultural que efetivamente nos
permitiram entender a potencialidade do gênero documentário
arqueológico. Embora, em nosso trabalho não demos enfoque ao
dialogismo, ficou claro que o documentário analisado de maneira geral
exprime tal importância. Ainda, com as contextualizações teóricas feitas,
percebemos que o espaço/tempo é indissociável e tal perspectiva permite
ao receptor-espectador-leitor depreender que as situações referentes à
natureza humana são elementos na constituição de sentidos,
ressignificando a ideia de enunciado e ratificando os valores do processo
de comunicação entre os indivíduos socialmente constituídos.
38
REFERÊNCIAS
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histórica. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec, 2018, p.211-362.
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In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo:
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______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da
criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2018, p.3-84.
______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo
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BRANDÃO, L. A. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva, 2013.
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JANUÁRIO, N.V.S.; LUDOVICE, C. A. B. Relações dialógicas e cronotopo no
romance espírita - O mundo que encontrei, ditada pelo espírito de Luiz Sérgio.
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LE GOFF, J. História. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª. Campinas,
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LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet, Ed. UFMG, Belo
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SCHVARZMAN, S. Humberto Mauro e o documentário. In: TEIXEIRA,
Francisco Elinaldo (Org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação.
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TERUCHKIN, R. C. Aracy: O Anjo de Hamburgo é uma mulher. Plural
Curitiba, Curitiba. 31 de março de 2021. Holocausto e atualidade. Disponível
em: < https://www.plural.jor.br/colunas/holocausto-e-atualidade/aracy-o-anjo-
de-hamburgo-e-uma-mulher/>. Acesso em: 20 jul. 2021.
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CAPÍTULO 3
SURDEZ: deficiência ou diferença?
DEAFNESS: disability or difference?
Marcelo Henrique BASTOS
Ana Júlia Vieira FARIA
RESUMO
Neste texto, apresentamos uma análise e reflexão a respeito do processo de inclusão
do aluno surdo na sala regular. Para que tal fato possa ser compreendido, buscamos
fazer um levantamento bibliográfico onde construímos algumas abordagens a
respeito do conceito de surdez e sua compreensão histórica, passando pela cultura
surda e sua identidade. Diante desse contexto cultural e identitário, foi possível
chegar à educação de surdos no Brasil que seguia o padrão mundial, ou seja,
sistematizar o processo de ensino – aprendizagem por meio do oralismo. A partir
de uma nova abordagem (socioantropológica), que visualiza a diferença, foi
também descrito um conjunto de leis pertinentes a esse grupo (surdos).
Palavras-chave: Surdez. Inclusão. Legislação.
ABSTRACT
In this article, we present an analysis and reflection on the process of inclusion of
deaf students in the regular classroom. So that this fact can be understood, we
seek to carry out a bibliographical survey where we build some approaches
regarding the concept of deafness and its historical understanding through deaf
culture and its identity Given this cultural and identity context, it was possible to
reach deaf education in Brazil that followed the world standard, that is, to
systematize the teaching-learning process through oralism. From a new approach
(socio-anthropological), which visualizes the difference, a set of laws pertaining
to this group (deaf) was also described.
Keywords: Deafness. Inclusion. Legislation.
CONCEPÇÃO DE SURDEZ
Pode-se perceber que, ao longo dos séculos, a concepção da
surdez está caracterizada dentro de um contexto de poder, ou seja, o
“normal” é ser ouvinte e, consequentemente, interagir com a
sociedade e o mundo por meio da língua oral.
40
Ao se focar a sociedade dentro de um contexto oralizado, a
surdez se torna uma anomalia, isto é, sai do padrão normalizante,
caracterizando-se como uma patologia (doença) a ser curada. Dessa
forma, é necessário resgatar a audição para que o surdo seja curado
e possa obter sua condição humana e o restabelecimento de seu
potencial (SÁ, 2002, SKLIAR, 2001, MOURA, 2000,
HOFFMEISTER, 1999, JOKINEN, 1999).
Ao se observar essa condição sub-humana, deficitária, ao qual
o surdo é envolvido, o discurso clínico, ou seja, aquele em que a
surdez deve ser curada a qualquer custo, cristaliza-se na sociedade
como um todo e, principalmente, nas instituições escolares.
Como se percebe, a visão clínica da surdez (deficiência, déficit)
é muito forte na vida do surdo, entretanto, Jokinen (1999, p.107)
afirma que: “Apesar dessa visão da maioria, é muito interessante
que os surdos não veem a surdez como uma doença, como um
fenômeno negativo, algo que deveria ser removido de uma forma ou
de outra”. Ao se perceberem como um grupo minoritário e diferente,
e não deficiente, começam a valorizar sua língua, sua história, sua
cultura, e sua identidade. (BASTOS, 2009).
A concepção de surdez que reconhece a língua, a história, a
cultura e a identidade de um grupo minoritário se estabelece dentro
de uma visão das diferenças, ou seja, socioantropológica. Para Skliar
e Lunardi (2000, p. 20), “a surdez como diferença nega uma atribuição
puramente externa do ser surdo a alguma característica marcante,
como por exemplo, não ouvir. A diferença não deve ser entendida
como uma oposição (surdo como contrário e negativo de ouvinte)”.
Ao se compreender a diferença e não a deficiência, entende-se
o surdo como um indivíduo apto a participação social (trabalho,
escola, arte,) entre outros. Mas para que a concepção da surdez se
desvincule do ato externo, isto é, o não ouvir, é preciso, que este
grupo busque seus direitos e estes só se darão por meio de movimentos
políticos e de lutas contra a interpretação clínica da surdez.
41
CULTURA SURDA
É importante salientar que a cultura de um povo ou grupo está
relacionadacom sua história e seu modo de vida. Cotrim (1993, p.15),
define como:
[...] o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos
de uma geração para outra, entre os membros de
determinada sociedade. Nesse sentido, abrange
conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e
quaisquer outras capacidades adquiridas socialmente
pelos homens.
Para Sá (2002, p. 88),
[...] a cultura é definida como um campo de forças
subjetivas que se expressa através da linguagem, dos
juízos de valor, da arte, das motivações etc., gerando a
ordem do grupo, com seus códigos próprios, suas formas
de organização, de solidariedade etc.
Diante das concepções definidas por Contrim (1993) e Sá (2002)
fica evidenciado que a cultura surda possui seus códigos próprios,
sua língua própria e, também, seus próprios interesses. Dessa forma,
fica evidente que a cultura surda não é a mesma cultura dos ouvintes.
Bastos (2009, p.19) destaca que:
ao se falar da cultura surda, [...] suas relações não
coincidem com os significados da cultura ouvinte, que
historicamente procura impor regras sociais de
convivência, ou seja, define como devem ser o
comportamento dos surdos dentro da sociedade. Se este
grupo não seguir o prescrito torna-se marginal e desviante.
Ao estabelecer as diferenças dentro do contexto cultural fica
evidente que uma única visão de cultura segrega os grupos
minoritários e, dentre eles, a cultura surda, por isso, torna-se
necessário romper o paradigma da ineficiência e improdutividade
desse grupo.
Para que haja o rompimento desse paradigma é necessário
muita luta e envolvimento de grupos que defendam a necessidade e
a importância das diferenças.
42
É preciso que a luta seja estabelecida dentro de um contexto
político e histórico, permitindo, assim, uma perspectiva de
transformação social. Mclarem (2000) aponta para a importância da
recusa da padronização dos signos e significados de uma cultura. O
mesmo assinala a necessidade do multiculturalismo, que reconheça
as diferenças. Obviamente, todo esse processo gera conflitos, ou seja,
não há uma relação harmoniosa e sem cicatrizes, conforme explana
Mclarem (2000, p.123),
[...] se recusa a ver a cultura como não conflitiva,
harmoniosa e consensual. A democracia, a partir desta
perspectiva, é compreendida como tensa – não como um
estado de relações culturais e políticas sempre
harmoniosa, suave e sem cicatrizes. O multiculturalismo
de resistência não compreende a diversidade como uma
meta, mas argumenta que a diversidade deve ser afirmada
dentro de uma política de crítica e compromisso com a
justiça social.
Portanto, para se reconhecer a cultura surda, é preciso que haja
compromisso ético e crítico que leve a sociedade e o poder público a
reconhecer a cultura surda como multicultural, que apresenta sua
especificidade linguística. Dentro desse contexto, Moura (2000, p.
65) afirma que: “dentro da sociedade ouvinte, eles construíram uma
comunidade própria, com sua cultura, sua língua e tentaram se
estabelecer como grupo minoritário que pudesse ser aceito numa visão
multicultural”.
Ao se estabelecer a visão das diferenças, sendo estas culturais e
linguísticas, observa-se a construção e a reconstrução da identidade
desse grupo minoritário que precisa desses movimentos surdos para
superar a visão puramente clínica da surdez.
IDENTIDADE SURDA
É importante notar que o conceito de identidade tem sido muito
discutido na sociedade atual. A esse respeito, Hall (2005) destaca
uma crise de identidade, posto que a visão do sujeito, como: unificado,
centralizado e estável, já não cabe na sociedade contemporânea. A
43
sociedade moderna trabalha outro conceito de identidade, este
caracterizado como: dinâmico, instável e fragmentado, abrindo-se
para um complexo processo de transformações na estrutura social
(Hall, 2005).
Ainda segundo Hall (2005), pode-se distinguir três concepções
de identidades, ou seja, a do sujeito do iluminismo, a do sujeito
sociológico e a do sujeito pós-moderno. Sendo cada identidade
identificada com suas características particulares.
Para Perlin (2001, p. 52), o surdo é um sujeito com identidade
pós-moderna, como fica evidenciado em seu pensamento: “Entendo
o conceito de identidade pós-moderna [...] como sendo: identidades
plurais, múltiplas; que se transformam, que não são fixas, imóveis,
estáticas ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias
que não são algo, pronto”.
A partir desse pensamento, observa-se a necessidade de
negociação, pois, a partir da pluralidade, ou seja, cada indivíduo traz
sua realidade que irá constituir a identidade das diferenças. Esse
contexto identitário só pode ser vislumbrado dentro de uma política
de diferenças, onde os surdos possam se ver como surdos. Como
retrata Skliar (1999, p.11), “as identidades surdas não se constroem
no vazio, mas em locais determinados que podem ser denominados
como locais de transição”. Também é importante salientar que a
alteridade é um fator que constitui as diferentes identidades, posto
que o conceito representa o outro. Dessa forma, para a identidade
ouvinte, o outro é o surdo e o mesmo precisa ser respeitado em sua
especificidade. A esse respeito, Perlim (1998, p.25), especifica que:
“ao se encontrar com suas especificidades, encontra-se com suas
significações, pois “ser surdo não é algo vazio”.
Portanto, a significação e a especificidade da identidade surda
estão na habilidade do surdo em se compreender surdo e no preparo
político de sua identidade.
44
EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL
Compreender o cenário educacional do surdo não é uma tarefa
simples, pois as barreiras e limitações educacionais se tornam grandes
empecilhos. Para compreender esse contexto educacional, é
importante inferir os aspectos políticos, sociais e históricos, por qual
passava e ainda passa o aluno surdo.
A esse respeito, Ferreira e Guimarães (2003, p.89), denotam que:
A cada período histórico, surgem variados obstáculos a
serem vencidos pelo ser humano, ao lidar face a face com
as dificuldades impostas por suas limitações físicas e /ou
mentais. Tal reflexão leva à retomada da longa trajetória
educacional, percorrida pelas pessoas [...], a fim de que
possam ser compreendidas as diferentes formas do
tratamento a elas dispensado, desde a antiguidade clássica
até os dias de hoje.
O contexto histórico da educação de surdos também via esses
indivíduos como pessoas castigadas, enfeitiçadas, dignas de piedade
e até abandonadas e sacrificadas. (GOLDFELD, 1997).
Em seus estudos, Tartuci (2001) descreve que os religiosos
também participavam dos estudos linguísticos, posto que, enquanto
estudiosos da fé, acreditavam que era fundamental o ato de ouvir e
falar para que se pudesse crer.
Dessa forma, podemos perceber que há uma forte manifestação
religiosa que caracteriza a surdez como doença e, portanto, precisa
ser eliminada para que possa se ligar a Deus. Em relação a esse
discurso, Ferreira e Guimarães (2003, p.59) retratam que:
Verificando a força das “religiões” através dos séculos, e
sabendo que o sentimento religioso é inerente à psique
humana, pode-se constatar que esse é um fenômeno
consideravelmente forte, que muito influenciou e continua
determinando atitudes do ser humano face à vida e as
explicações teológicas frente à existência da deficiência.
Dentro desse contexto histórico, observa-se que, no final da
idade média, começa-se a esboçar o processo educacional do surdo.
45
Entretanto, somente para os filhos dos nobres, por meio de
preceptores, não apresentando ainda uma marca institucional
(TARTUCI, 2001). A mesma autora evidencia que até o século XV
houve pouco interesse no processo educacional do surdo, posto que
este individuo estava a margem da sociedade. Foi só a partir do século
XVI que começam a surgir os primeiros educadores surdos.
(GOLDFELD, 1997).
A efervescência na educação de surdos, ou seja, o período mais
rico para esse processo foi o século XVIII. A partir desse momento,
começa a ser visto a participação de surdos não considerados nobres
no processo educacional. Nesse período,

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