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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO WAGNER DOS SANTOS A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO EPISTEMOLÓGICO DO CURRÍCULO: ESTRATÉGIAS, APROPRIAÇÕES E CIRCULARIDADES CULTURAIS OPERADAS NA ANPED VITÓRIA 2011 WAGNER DOS SANTOS A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO EPISTEMOLÓGICO DO CURRÍCULO: ESTRATÉGIAS, APROPRIAÇÕES E CIRCULARIDADES CULTURAIS OPERADAS NA ANPED Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação, na linha de pesquisa Currículo, Cultura e Formação de Educadores. Orientadora: Profª Drª Regina Helena Silva Simões. VITÓRIA 2011 Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) ___________________________________________________________________ Santos, Wagner dos, 1978- S237c A constituição do campo epistemológico do currículo: estratégias, apropriações e circularidades culturais operadas na ANPEd / Wagner dos Santos. – 2011. 426 f. : il. Orientadora: Regina Helena Silva Simões. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 1. Currículo. 2. ANPEd. 3. Campo epistemológico. 4. História. 5. Produção científica. I. Simões, Regina Helena Silva. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título. CDU: 37 ___________________________________________________________________ WAGNER DOS SANTOS A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO EPISTEMOLÓGICO DO CURRÍCULO: ESTRATÉGIAS, APROPRIAÇÕES E CIRCULARIDADES CULTURAIS OPERADAS NA ANPED Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação na linha de pesquisa Currículo, Cultura e Formação de Educadores. Aprovada em 05 de janeiro de 2010. COMISSÃO EXAMINADORA Para minha filha Maria Clara e esposa Claudia AGRADECIMENTOS Minha gratidão a todos que colaboraram com este trabalho. Em especial: À professora Regina Helena Silva Simões que sempre esteve ao meu lado, me oferecendo condições para que o sonho do doutorado se tornasse realidade. Suas leituras criteriosas, sugestões e diálogos possibilitaram a qualificação deste trabalho. Aos professores Carlos Eduardo Ferraço e Janete Magalhães Carvalho intensos colaboradores, ou melhor, co-orientadores deste trabalho. Professores que sempre arrumavam um tempo para me atender, mesmo não o tendo. Ao professor Antonio Flávio Moreira pela disponibilidade de tempo e pelo criterioso/cuidadoso diálogo e contribuições. À professora Carmen Lúcia Perez que mesmo se encontrando em situação adversa aceitou participar desta banca. Ao professor Amarílio Ferreira Neto, amigo de todas as horas, que acompanha minha caminhada desde a Iniciação Científica e que sempre acreditou no meu trabalho. Suas leituras e sugestões foram extremamente significativas para o rumo desta pesquisa. À professora Silvana Ventorim, amiga atenciosa de todas as horas que sempre esteve à disposição para as longas conversas. A minha adorada companheira Claudia a quem sem dúvida devo muito. Sempre paciente para entender o quanto é difícil realizar um trabalho dessa natureza, abrindo mão, muitas vezes, dos momentos de lazer para ficar ao meu lado. Obrigado por compartilhar esse sonho comigo e por ter participado intensamente da sua materialização. À minha filha Maria Clara, meu refúgio nos momentos mais difíceis e, ao mesmo tempo, minha fonte inspiradora. À minha família, em especial, a minha mãe Glória que sempre me ofereceu tranqüilidade e uma palavra de ternura. E, ao meu sobrinho Paulo Vitor que me acompanhou e ajudou na formatação da tese. Ao PROTEORIA, lugar da segurança, do aconchego, do movimento constante de pessoas e idéias. Aos meus amigos do PROTEORIA: Amarílio, Omar, Andrea, Ana Claudia, André, Roziani, Felipes, que acompanharam de perto todas as angústias e inquietações dessa longa jornada. Ao Omar Schneider, amigo de todas as horas e de todos os momentos. Nossas conversas contribuíram ricamente para minha formação. Aos professores da UVV, em especial Marcelo Nunes, Marcio, Marcela, Miguel, Juca e Mônika que sempre tiveram uma palavra amiga. Aos estagiários do NATA, em especial, Juliana e Karla, que contribuíram também para a possibilidade desse acontecimento. À Universidade Federal do Espírito Santo, em especial, ao corpo docente e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação. No infinito Do vão do espaço Se espaça o tempo, Não há cansaço! No infindo imenso De um tempo aço Se espessa o vão Que liberta o traço, Forte num abraço! Há muito mais Do que esperamos ser, Tem mais além De onde podemos ver... Mais muito há Do que pensamos ter, Além do mais Do que queremos crer! Há bem mais sóis Crestando entre as estrelas! Vamos andando Por aí ... Brilhar É o espaço siderar! Há bem mais sóis ... Há bem mais sóis, Crestando entre as estrelas : Confusos, tentamos vê-las! Confusos, tentamos tê-las! Confusos, tentamos ser As estrelas !!! “SÓIS” Sérgio Cassiano RESUMO Este trabalho evidencia as relações de força estabelecidas em contextos de produção e consumo do campo epistemológico, focalizando o olhar para o modo como atores, autores, orientadores e grupos de pesquisa vão estrategicamente/taticamente delineando o campo do currículo. Assume a via da pesquisa histórica como ferramenta e tem como fonte as Reuniões Anuais da ANPEd, as produções vinculadas no GT Currículo, a Revista Brasileira de Educação e o livro originado da sessão Trabalhos Encomendados no período de 1995 à 2008. O estudo é organizado em quatro eixos de análise que se imbricam: 1) história da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa, pontos de encontros e distanciamentos existentes entre as Reuniões Anuais, Revista Brasileira de Educação e GT Currículo; 2) papel exercido pela diretoria da ANPED, Presidência do GT Currículo, Editores da Revista Brasileira de Educação na constituição do campo do currículo; 3) relações de força entre autores, atores e grupos de pesquisa que configuram o campo do currículo no Brasil; 4) o debate sobre currículo veiculado na ANPEd, diferentes apropriações dos autores de referência e circularidade cultural entre os estudos. Observa-se nos 284 trabalhos analisados que a constituição epistemológica do campo do currículo expressa na circularidade cultural as invenções teórico-práticas, possibilidades de problematizações do campo pela polifonia das apropriações de autores de referência, assim como pelos processos hegemônicos que marcam as trajetórias dos espaços-tempos de produção/circulação analisados. Palavras-chave: Currículo. ANPEd. Campo epistemológico. História. Produção Científica. ABSTRACT This work highlights the power relations established in the context of production and consumption of the epistemological field, focusing on the watch on the way that actors, authors, advisors and research groups will strategically / tactically design the curriculum field. Assume the path of historical research as a tool and has as data sources the Reunião Annual da ANPEd, the productions linked to GT Curriculo, Revista Brasileira de Educação and the book originated from the session Trabalhos Encomendados from 1995 to 2008. The study is organized into four axis of analysis that imbricate:1) history of the Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa, meeting points and distances between the Reuniões Anuais, Revista Brasileira de Educação and GT Currículo; 2) the role played by ANPED board, chair of GT Currículo, editors of Revista Brasileira de Educação in establishing the field of curriculum, 3) strength relationships between authors, actors and research groups that make up the curriculum field in Brazil and 4) the debate on curriculum broadcast in ANPEd, different appropriations of the reference authors and the cultural circularity among studies. It is observed in the 284 studies analyzed that the epistemological constitution of the curriculum field expresses in the cultural circularity the theoretical and practical inventions, possibilities of field problematization by polyphony of appropriations of reference authors, as well as the hegemonic processes that mark the trajectories of space-time of the analyzed production/circulation. Key-words: Curricullum. ANPEd. Epistemologic field. History. Scientific production. LISTA DE FIGURAS Fig. 1 – Fig. 2 – Fig. 3 – Fig. 4 – Fig. 5 – Fig. 6 – Fig. 7 – Fig. 8 – Fig. 9 – Fig. 10 – Fig. 11 – Fig. 12 – Fig. 13 – Fig. 14 – Fig. 15 – Fig. 16 – Fig. 17 – Fig. 18 – Fig. 19 – Fig. 20 – Fig. 21 – Fig. 22 – Fig. 23 – Fig. 24 – Fig. 25 – Fig. 26 – Fig. 27 – Fig. 28 – Fig. 29 – Fig. 30 – Fig. 31 – Fig. 32 – Fig. 33 – Fig. 34 – Identificação do ano e do local das Reuniões Anuais da ANPEd............................................................................................. Capa Boletim 12.............................................................................. Capa Boletim n. 15.......................................................................... Capa Boletim n. 17.......................................................................... Programação................................................................................... Apresentação 23 RA....................................................................... Apresentação 26ª RA...................................................................... Formando teia................................................................................. Apresentação 26ª RA...................................................................... Capa n. 0......................................................................................... Capa n. 5/6...................................................................................... Capa n. 16....................................................................................... Capa n. 21....................................................................................... Capa n. 22....................................................................................... Capa n. 32....................................................................................... Capa n. 25....................................................................................... Capa n. 29....................................................................................... Capa n. 31....................................................................................... Capa n. 33....................................................................................... Capa n. 34....................................................................................... Capa n. 17....................................................................................... Capa n. 35....................................................................................... Capa n. 24....................................................................................... Capa n. 19....................................................................................... Capa n. 38....................................................................................... Capa n. 14....................................................................................... Capa n. 15....................................................................................... Capa n. 30....................................................................................... Capa n. 36....................................................................................... Sumário do Boletim (1995).............................................................. Organização da Reunião Anual...................................................... Sumário (1995)................................................................................ Distribuição de trabalhos por instituição e estado........................... Distribuição de autores de referência............................................. 60 83 84 84 85 85 86 86 87 89 89 90 90 90 91 91 91 91 91 91 93 93 93 93 93 94 94 95 95 100 101 103 159 182 LISTA DE GRÁFICO Gráfico 1 – Gráfico 2 – Gráfico 3 – Gráfico 4 – Gráfico 5 – Gráfico 6 – Gráfico 7 – Gráfico 8 – Gráfico 9 – Gráfico 10 – Gráfico 11 – Distribuição de artigos publicados no GT Currículo Ritmo de publicação.......................................................................... Ritmo de produção da revista e quantidade de página.................... Distribuição de artigos por temáticas levando-se em consideração as RAs.............................................................................................. Distribuição de artigos sobre currículo nos números da RBE.................................................................................................. Relação entre a distribuição de trabalhos publicados na ANPEd e RBE.................................................................................................. Trabalhos apresentados no GT Currículo e tipo de instituição.......................................................................................... Percentual de Trabalhos Apresentados segundo sistema de ensino superior................................................................................. Número de trabalhos apresentados no GT Currículo e sua relação com o sistema de ensino superior.................................................... Distribuição dos artigos por região, país e quantitativo de instituições....................................................................................... Distribuição de trabalhos por Programas de Pós e linhas de pesquisa........................................................................................... 65 72 78 141 146 150 154 155 156 158 200 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Quadro 2 – Quadro 3 – Quadro 4 – Quadro 5 – Quadro 6 – Quadro 7 – Quadro 8 – Quadro 9 – Quadro 10 – Quadro 11 – Quadro 12 – Quadro 13 – Quadro 14 – Quadro 15 – Quadro 16 – Quadro 17 – Número de textos aceitos para avaliação e número de aprovados para apresentação nas Reuniões Anuais 1995 a 2007........................................................................................... Número de textos apresentados no GT Currículo no período de 1995 a 2007.......................................................................... Distribuição dos artigos segundo ano, número da revista, quantidade de artigos e autores................................................ Distribuição de trabalhos por instituição e Reunião Anual........ Distribuição das publicações da Região Sul por instituição e Reuniões Anuais........................................................................ Distribuição de textos da região Centro-Oeste por instituição e Reuniões Anuais........................................................................ Publicação por instituição nas Reuniões Anuais da Região Nordeste..................................................................................... Distribuição de trabalhospor instituição da Região Norte......... Situação dos Programas quanto à existência de atividade institucional em Currículo........................................................... Situação dos Programas quanto à existência de atividade institucional em Currículo........................................................... Formação e instituição formadoras dos pesquisadores que publicaram na sessão Trabalhos Apresentados........................ Distribuição de artigos estrangeiros por instituição e Reuniões Anuais........................................................................................ Mapeamento referente ao livros do GT originário dos trabalhos encomendados e grupos de pesquisa....................... Indicativos de citações e obras de referência............................ Apresentação dos principais autores de referência................... Distribuição quantitativa dos principais autores de referência... Distribuição de autores de referência........................................ 62 63 147 160 165 167 169 169 171 172 423 180 198 203 235 258 277 SUMÁRIO CAPÍTULO I 1 O OBJETO DE PESQUISA E SUA CONSTITUIÇÃO: AS TESSITURAS DE UM CAMPO INVESTIGATIVO............................ 14 1.1 1.2 OBJETIVOS...................................................................................... QUESTÕES DE ESTUDO................................................................. 18 19 1.3 A ARQUITETURA DO PROJETO..................................................... 20 1.4 ENTRE A HISTÓRIA DO CURRÍCULO E O CURRÍCULO NA HISTÓRIA: PERCURSOS INVESTIGATIVOS.................................. 29 1.5 TRILHANDO ALGUNS CAMINHOS: EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA................................................................................ 38 CAPÍTULO II 2. CENÁRIO DE INVESTIGAÇÃO: PONTOS DE ENCONTRO ANPED E RBE.................................................................................. 43 2.1 A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO................................................................................... 45 2.2 REUNIÕES ANUAIS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO.................................................... 54 2.2.1 Reuniões anuais.............................................................................. 56 2.2.2 Da manutenção da periodicidade anual das reuniões................. 59 2.3 REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO COM A ANPEd............................................................................................... 69 2.3.1 Da periodicidade da revista............................................................ 71 CAPÍTULO III 3. OS DIRETORES, OS EDITORES E SEUS DISPOSITIVOS: UMA ANÁLISE DAS REUNIÕES ANUAIS E DA REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO......................................................... 80 3.1 DAS CAPAS E APRESENTAÇÕES NAS REUNIÕES ANUAIS ANPED.............................................................................................. 83 3.2 DAS CAPAS DA REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO.............. 88 3.3 DOS SUMÁRIOS............................................................................... 96 3.3.1 Organização das Reuniões Anuais................................................ 98 3.3.2 Sumários da Revista Brasileira de Educação............................... 102 3.4 DOS EDITORIAIS............................................................................. 106 3.4.1 Das apresentações nas Reuniões Anuais.................................... 107 3.4.2 Dos editoriais da Revista Brasileira de Educação....................... 117 3.5 TEMÁTICAS REVELADAS NAS REUNIÕES ANUAIS DA ANPED. 133 3.6 TEMÁTICAS PROJETADAS NA REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO...................................................................................... 139 CAPÍTULO IV 4 AUTORES, ATORES E GRUPOS DE PESQUISA: A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO...................................... 152 4.1 4.2 4.3 Procedência Institucional.................................................................... Procedência Territorial, Institucionalização e Autores de Referência A internacionalização e a constituição do campo do currículo........... 153 157 179 CAPÍTULO V 5 5.1 5.2 5.2.1 5.2.2 5.2.3 5.3 5.3.1 5.3.2 5.3.3 5.4 5.4.1 5.4.2 5.5 5.5.1 5.5.2 5.5.3 5.5.4 ENTRE APROPRIAÇÕES E CIRCULARIDADE CULTURAL: O DEBATE SOBRE CURRÍCULO NA ANPEd.................................... ATORES, AUTORES E GRUPOS DE PESQUISA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES............................................................................... CURRÍCULO, HISTÓRIA, POLÍTICA E MULTICULTURALISMO...... História das disciplinas escolares, transposição didática e cultura escolar................................................................................... Política curriculares.......................................................................... Multiculturalismo, identidade e diferença....................................... CURRÍCULO, POLÍTICA E TEORIA CRÍTICA.................................... Formação de professores................................................................. Prática docente.................................................................................. Currículo e conhecimento................................................................ CURRÍCULO E AS PESQUISAS NOS/DOS/COM OS COTIDIANOS Concepção de conhecimento, cotidiano, sujeitos, pesquisa e currículo............................................................................................. Narrativas e imagens: um diálogo com o currículo e a formação de professores................................................................................... CURRÍCULO, PÓS-ESTRUTURALISMO E ESTUDOS CULTURAIS Currículo e conhecimento................................................................ Artefatos culturais............................................................................. Currículo e cultura............................................................................. Currículo, formação docente e prática pedagógica....................... 191 196 202 204 214 224 233 236 245 249 257 259 271 276 279 286 292 298 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 304 REFERÊNCIAS................................................................................. APÊNDICES........................................................................................ Apêndice A — Mapa sobre o ano de fundação de todos os Grupos de Trabalho no período de 1982 a 2008............................................. Apêndice B — Mapeamento dos grupos de pesquisa, instituição e formação dos autores que publicaram na sessão Trabalhos Apresentados...................................................................................... Apêndice C — Mapeamento dos grupos de pesquisa, instituição e formação dos autores que publicaram na sessão Trabalhos Encomendados.................................................................................... Apêndice D — Mapeamento dos grupos de pesquisa, instituição e formação dos autores que publicaram na Sessões Especiais............ Apêndice E — Mapeamento dos grupos de pesquisa, instituição e formação dos autores que publicaram na sessão Mini-curso............. Apêndice F — Distribuição da produção nas Reuniões Anuais conforme grupos de pesquisas........................................................... Apêndice G — Formação e instituição formadoras dos pesquisadores que publicaram na sessão Trabalhos Apresentados.. 312 369 370 372 390 409 417 420 423 14 CAPÍTULO I 1 O OBJETO DE PESQUISA E SUA CONSTITUIÇÃO: AS TESSITURAS DE UM CAMPO INVESTIGATIVO Autorescomo Lopes e Macedo (2005), Macedo e Fundão (1996), Moreira (1998, 2000), Paraíso (2003, 2004) e Silva (2005) demonstram como as produções acadêmicas sobre currículo vêm assumindo, ao longo de sua história, diferentes correntes epistemológicas, sendo possível perceber a existência de leituras que circulam pelas teorizações críticas e pós-críticas.1 Sob forte influência das produções americanas, inglesas e espanholas, o campo de estudos do currículo tem se debruçado em investigações que ora se aproximam, ora se afastam das práticas escolares. Nesse contexto, os estudos no campo do currículo nos possibilitam compreender a ampliação dos programas de pós-graduação, dos grupos de pesquisa, bem como a diversificação de temas, teorias e métodos de investigação. Macedo (2006), por exemplo, ao mapear a produção acadêmica veiculada nos Programas de Pós- Graduação em Educação no período entre 1996 e 2002, apresenta um universo de 453 teses e dissertações defendidas em 27 Programas de Pós-Graduação sobre currículo. Dentre as temáticas abordas pelas pesquisas, chama a atenção o elevado número de estudos cujo principal interesse é a prática curricular ou o currículo vivido, praticado, perfazendo um total 43,5% trabalhos analisados. As propostas curriculares, ou o currículo formal, foram o segundo foco de maior interesse, constituindo 22,3% das teses e dissertações. Segundo a autora, apenas 12,6% das pesquisas procuram estabelecer uma análise que busque identificar as múltiplas relações existentes entre as propostas curriculares e o currículo materializado no cotidiano escolar pelos professores. As teorizações de cunho globalizante, tanto das vertentes funcionalistas como da crítica marxista, marcam a produção teórica da década de 1980 e 1990. A partir da 1 Moreira (1998) distingue duas linhas de pesquisa na teoria crítica: a primeira (dominante até os anos de 1980, fiel às abordagens estruturais e aos referenciais teóricos dos primeiros estudos) tendo como referência o neo-marxismo e a teoria crítica; a segunda (anos 1990), incorporando contribuições dos estudos feministas, de raça, estudos culturais e do pensamento pós-moderno e pós-estrutural, caracterizando o presente embate como entre os neo-marxistas e os pós-modernos. 15 matriz teórica crítica, os estudiosos no campo do currículo procuraram elaborar críticas sobre os currículos disciplinares; a hegemonia da cultura acadêmica nos conteúdos curriculares; a hierarquização de disciplinas no interior das propostas curriculares e as discriminações de classe, gênero e etnia presentes tanto nos currículos oficiais como nos materiais didáticos e nas práticas escolares. Multiplicam- se trabalhos que defendem os currículos integrados; a necessidade de conhecimento das culturas dos alunos; o respeito às diferenças; a aproximação do currículo da vida cotidiana e da cultura da comunidade em que a escola se insere; a necessidade de a escola trabalhar não apenas conteúdos cognitivos, mas também valorizar e trabalhar o corpo, as emoções, as habilidades e os valores sociais; a reorganização da sala de aula no sentido do estabelecimento de práticas mais democráticas de ensino. Além disso, é discutida a influência do currículo na formação das subjetividades dos alunos em função não apenas dos conteúdos ministrados, mas das formas de ensino utilizadas (LOPES; MACEDO, 2002). Observamos, em meados da década de 1990, um movimento que se caracteriza pela multiplicidade de pesquisas e trabalhos que pensam a educação, a pedagogia, o currículo e outras práticas educativas de modo diferente do que vinha sendo produzido, assumindo como perspectiva epistemológica as teorias pós-críticas. As pesquisas realizadas no campo do currículo passam a privilegiar, como salienta Paraíso (2004), as explicações e narrativas parciais, locais e particulares (SILVA, 1993); a invenção, a criação, o artefato, a produção em lugar das ―revelações‖ ou ―descobertas‖ (CORAZZA, 2001); e a entender o sujeito como uma produção da linguagem, dos textos, do discurso, da história, dos processos de subjetivação (SILVA, 1999). Assim, como consequência de seus interesses, as pesquisas pós- críticas em educação no Brasil têm questionado o conhecimento (e seus efeitos de verdade e de poder), o sujeito (e os diferentes modos e processos de subjetivação), os textos educacionais (e as diferentes práticas que estes produzem e instituem). Tais pesquisas têm problematizado as promessas modernas de liberdade, conscientização, justiça, cidadania e democracia, abdicado da exclusividade da categoria classe social e discutido questões de gênero, etnia, raça, sexualidade, idade (LOURO, 1995). Têm discutido ainda sobre tempos e espaços educacionais, 16 mostrando os processos de invenção da escola moderna, bem como pensado, de diferentes formas, a diferença, a identidade e a luta por representação. Apesar da tentativa em demarcar um lugar de diferenciação nas teorizações curriculares, no qual encontramos as teorias críticas e pós-críticas, parece-nos que o hibridismo tem se constituído como uma marca dessa produção. Estudos como os de Dussel (2002), Lopes e Macedo (2006), Lopes (2005, 2006), Matos e Paiva (2007), Paraíso (2003, 2004), Veiga-Neto (2007), Veiga-Neto e Macedo (2007) evidenciam a hibridização cultural existente entre os discursos pós-modernos e as teorizações críticas que fundamentam os estudos realizados sobre currículo. Para os autores, tal articulação tem trazido profícuas questões, com a emergência de novas problemáticas, redefinindo o campo. Esse processo ocorre tanto pela quebra como pela mistura de coleções organizadas por sistemas culturais diversos, com a desterritorialização de produções discursivas constituindo e expandindo gêneros impuros, configurando um campo contestado. Isso demonstra que o campo do currículo encontra-se frente a uma redefinição, exigindo do pesquisador em currículo apropriar-se daquilo que lhe é útil em outros campos, guiando-se por uma ideia de confrontação criativa de modo que consiga revalorizar as discussões sobre currículo, aproveitando os elementos disponíveis em seu campo de origem. Diante do contexto apresentado o importante, nesse momento, foi reconhecer que a mobilização do conceito de currículo [...] não é inocente e que ele tende a legitimar certos grupos e tendências em desfavor de outros. Nesse sentido, ele deve ser visto como parte dos jogos de interesse que definem o trabalho acadêmico e os processos de legitimação das diversas correntes científicas (NÓVOA, 1997, p. 14). O termo currículo, como salienta Pacheco (2005), não tem um sentido unívoco, pois se situa na diversidade de práticas e de conceitos em função das perspectivas que se adaptam, o que vem a traduzir-se, por vezes, em alguma imprecisão acerca da sua natureza. Insistir numa definição abrangente de currículo poder-se-á tornar extemporâneo e negativo, dado que não existe um acordo totalmente generalizado sobre o que significa. 17 Estudos sobre a constituição do campo epistemológico do currículo, quando pensados de forma linear, apontam para mudanças nas quais concepções curriculares derivadas de diferentes matrizes filosóficas acabam percebidas como tendências antagônicas ou mutuamente excludentes, na medida em que são lidas como possíveis avanços ou conservadorismo nas teorizações e práticas curriculares. Entretanto, para compreendermos além de um evolucionismo linear e simplificador, a complexidade dos movimentos no campo epistemológico do currículo no Brasil nas três últimas décadas, propomos aproximações com a temática curricular pela via da pesquisa histórica, com o objetivo de capturar percursos que se entrecruzam em espaços/tempos de produção acadêmico-científica. Por meio dessa operação histórica (CERTEAU,1990), buscamos compreender de que forma nas relações de força (GINZBURG, 2002) estabelecidas em contextos de produção e consumo do campo epistemológico, atores, autores e grupos de pesquisa vão estrategicamente (CERTEAU, 1994) delineando, no jogo convencional do universo científico (BOURDIEU, 1989), a constituição do campo do currículo, práticas de apropriação (CERTEAU, 1994) e circularidade cultural (GINZBURG, 1987). Para tanto, destacamos, dentre os espaços/tempos de produção/circulação teórico- prática historicamente constituídos no Brasil, a ANPEd no período de 1995 e a 2008. Como analisamos a materialidade, o projeto editorial das fontes, os grupos de pesquisa e os saberes postos em circulação sobre currículo, resolvemos delimitar um período que contemplasse o primeiro número da Revista Brasileira de Educação. Um outro fator preponderante para a escolha do recorte temporal está no fato de as Reuniões Anuais só publicarem trabalhos completos a partir do ano de 1995. Anteriormente as publicações eram efetuadas no formato resumos o que, na nossa leitura, dificultaria a leitura e a análise dos dados. Privilegiamos, portanto, como fontes, Boletim ANPEd, Caderno de Programação e Resumo, trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho Currículo, os livros originários da sessão Trabalhos Encomendados e a Revista Brasileira de Educação. 18 Defendemos a tese de que, estudada pela via da pesquisa histórica, a constituição do campo epistemológico do currículo expressa na circularidade cultural (GINZBURG, 1987) as invenções teórico-práticas, possibilidades de problematização do campo pela polifonia das apropriações (CERTEAU, 1994), assim como pelos processos hegemônicos que marcam as trajetórias dos espaços-tempos de produção/circulação analisados. 1.1 OBJETIVOS As questões orientadoras desta pesquisa foram construídas levando-se em consideração o objeto de estudo e as fontes analisadas. Nesse caso, assumimos como referência quatro eixos norteadoras: 1) apresentar uma análise histórica da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa apontando os pontos de encontro e distanciamento existente entre as Reuniões Anuais e a Revista Brasileira de Educação, bem como a contribuição dessa Associação para a construção do campo científico e do currículo especificamente; 2) analisar os dispositivos (capa, sumário, editoriais e temáticas) elaborados pela diretoria da ANPEd, editores da Revista Brasileira de Educação e suas implicações para o campo de currículo; 3) colocar em evidência os autores, atores e grupos de pesquisa que constituem o campo do currículo no Brasil, apontando as relações de força presentes nesse contexto; 4) analisar o debate sobre currículo veiculado nas fontes chanceladas pela ANPEd, apontando as diferentes apropriações realizada pelos autores de referência e a circularidade cultural presente nos estudos. Ao tomar as fontes de acordo com suas aproximações e circularidade, foi preciso compreendê-las como diferentes dispositivos por meio dos quais se propunha a leitura de indivíduos e de grupos, institucionalizados ou não, uma série de proposições em torno da educação brasileira e internacional, sendo meio de divulgação do pensamento acadêmico-pedagógico e, sobretudo político acerca da Educação e dos fazeres e saberes que os circunscrevem. 19 1.2 QUESTÕES DE ESTUDO Procuramos inicialmente discutir a materialidade das diferentes fontes a fim de indicar as aproximações e os distanciamentos existentes entre as Reuniões Anuais e a Revista Brasileira de Educação e suas implicações para a construção do campo científico do currículo. Questões referentes à natureza científica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação foram emergindo na medida em que começamos a analisar as fontes e sua materialidade. Nesse caso, nos interessou apresentar, a ANPEd, sua natureza científica, as aproximações e distanciamentos entre os diferentes suportes e dispositivos. Foi preciso compreender que, como estratégia de luta e produção cultural, as Reuniões Anuais, o Grupo de Trabalho Currículo e a Revista Brasileira de Educação atuam como instância privilegiada na circulação de um modelo, de um estatuto e de uma posição, capazes de significar simbolicamente a existência de autores, atores e grupos de pesquisa. Procuramos incluir nesta análise o importante papel da Diretoria da ANPEd, os Coordenadores do GT Currículo e os Editores da Revista Brasileira de Educação, na formulação do campo científico. As Diretorias da ANPEd e os Editores da Revista Brasileira de Educação foram apresentados como autores autorizados a falar como autoridade sobre uma determinada temática que se julga seja capaz de preencher as expectativas e necessidades dos estudos em educação. Diante desse contexto, nos interessou, neste momento, responder as seguintes questões: qual o projeto editorial das Reuniões Anuais e Revista Brasileira de Educação? Quais os entrecruzamentos e os distanciamentos encontrados entre o projeto editorial das Reuniões e da Revista? Que implicações trazem para o campo do currículo? Como os estudos sobre currículo se apresentam nesse processo? Se o nosso olhar inicialmente se debruçava sobre o papel da Diretoria da ANPEd e dos Editores da Revista Brasileira de Educação na constituição do campo e dos estudos sobre currículo, no próximo tópico do trabalho procuramos identificar os autores, atores e grupos de pesquisa, objetivando apresentar as relações de força existentes. Com esse intuito assumiremos as seguintes questões orientadoras: qual o lugar ocupado pelos grupos de pesquisa no cenário das Reuniões Anuais e da Revista Brasileira de Educação? Quais as relações de forças presentes nesse 20 campo? Precisamos ainda acrescentar a essas questões algumas problematizações levantadas por Moreira (2005, p. 87) ao analisar o funcionamento do Grupo de Trabalho Currículo, procurando situá-lo no contexto mais amplo da associação e das políticas de pós-graduação, bem como as pesquisas apresentadas nos encontros ocorridos no período de 1996 a 2000. São mesmo claras as distinções entre estratégias de conservação e estratégias de sucessão ou elas diferem apenas na ênfase maior ou menor dada à apresentação de trabalhos? Não estaria o GT carecendo de estratégias de subversão que de fato renovassem o debate no interior do campo e incrementassem a interlocução com outras áreas? Não estamos sendo um pouco passivos? (MOREIRA, 2005, p. 87). Por fim, fizemos uma leitura, dentre várias possíveis, do debate circunscrito às produções teóricas sobre currículo publicadas nas fontes estudadas. Para além das estratégias impostas pelos autores, atores e grupos de pesquisa, foi preciso identificar as artes de fazer dos estudos sobre currículo postos em circulação pela ANPEd, observando seus pressupostos teóricos e como esses referenciais são usados e apropriados. Apontamos, nesse caso, as principais marcas teóricas presentes e/ou ausentes nos estudos do campo do currículo, as diferentes apropriações realizada pelos autores de referência e a circularidade cultural presentes nesses estudos. Como nos outros momentos do trabalho resolvemos elencar algumas questões norteadoras: quais as concepções epistemológicas assumidas nos trabalhos? Quais as bases teóricas utilizadas nos estudos sobre currículo? Como, no seio do GT e da Revista, tem-se representado o que considerar como currículo? Estas são algumas das questões orientadoras do nosso trabalho. Contudo, é preciso destacar que a maioria delas foram emergindo do próprio processo de investigação com as fontes, ou seja, elas não se constituíram a priori, pelo contrário, foram tecidas na medida em que tomávamos contato com as fontes analisadas 1.3 A ARQUITETURA DO PROJETO Entre os vários tipos de publicações, o periódico impressoé um dos canais mais usados pela comunidade científica, pois, por meio dele, o pesquisador expõe ideias, garante a propriedade científica e se submete à avaliação dos pares. Essa atividade de disseminação produz um fluxo informacional que propicia a transformação da 21 informação em conhecimento, contribuindo para o avanço da Ciência (NASCIMENTO, 2002). Nesse caso, o impresso tem sido percebido como uma fonte frutífera para se compreender o campo educacional, mas esse interesse não é novo, como lembra Catani (1994), pois se podem perceber, desde o final do século XIX (na França), estudos questionando o papel que esse objeto desempenha na formação do professorado. De acordo com a autora, a compreensão sobre a necessidade de se sistematizarem os conhecimentos distribuídos por meio da imprensa periódica tem mobilizado pesquisadores de vários países, pois se tem atentado que a imprensa periódica constitui-se como ―[...] um testemunho vivo dos métodos e concepções de uma época e da ideologia moral, política e social de um grupo profissional‖ (CATANI, 1994, p. 5). Alguns estudos2 vêm buscando acompanhar o próprio processo de constituição da imprensa, centrando atenção nas representações veiculadas, nos personagens envolvidos e nos grupos que se formam em volta desse veículo. A palavra imprensa, seus suportes e prescrições passam a ser percebidas não apenas como registro do que aconteceu, mas como parte constituinte do acontecimento, que tanto pode ser analisado em escala microscópica – como os usos que delas são feitos pelos professores para utilizar seus conhecimentos e preparar suas aulas –, assim como em escala macroscópica – quando se pode perceber a imprensa como estratégia de divulgação e convencimento do professorado sobre determinado projeto, proposta pedagógica ou lei sobre a educação (SCHNEIDER, 2003). Catani (1994) afirma que a revista especializada em educação, de modo geral, constitui uma instância privilegiada para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional, enquanto faz circular informações sobre o trabalho pedagógico e o aperfeiçoamento das práticas docentes, o ensino específico das disciplinas, a organização dos sistemas, as reivindicações da categoria do magistério e outros temas que emergem do espaço profissional. Por outro lado, acompanhar o aparecimento e o ciclo de vida dessas revistas permite conhecer as 2 Dentre as diferentes pesquisas realizadas no campo da educação brasileira, gostaríamos de destacar os trabalhos de Bermond (2007); Berto (2008); Catani (1989, 1994, 2002); Catani e Sousa (1999); Carvalho (1996, 1998, 2006); Ferreira Neto, Bermond e Maia (2003); Linhales (2006); Santos, Locatelli e Maia (2003); Schneider (2003, 2004, 2007); Schneider, Ferreira Neto e Santos (2005); Vilela (2001); pelo tratamento dado ao objeto de estudo, bem como pela proximidade com a base teórico-metodológica assumida nesta tese. 22 lutas por legitimidade, que se travam no campo educacional. É possível também analisar a participação dos agentes produtores dos periódicos na organização do sistema de ensino e na elaboração dos discursos que visam instaurar as práticas exemplares. O impresso, como destaca Davis (1990, p. 159) não deve ser compreendido apenas como uma fonte de informações, de ideias de imagens, mas acima de tudo como um mensageiro de relações, o qual possui como ―[...] característica mais marcante [...] [o] papel de formador de opinião‖. Essa forma de fazer pesquisa prioriza o exame dos objetos investigados, utilizando como referência a história e a cultura, o que remete ao pesquisador a necessidade da análise pela materialidade, entendendo-a como ―[...] dispositivos, através dos quais bens culturais são produzidos, postos a circular e apropriados‖ (NUNES; CARVALHO, 1993, p. 44). Ao procurar compreender a produção teórica sobre currículo impressas nas Reuniões Anuais da ANPEd, no GT Currículo e na Revista Brasileira de Educação, assumimos a história como ferramenta de pesquisa. Para Bloch (2001), o ofício do historiador é analisar a história dos humanos no tempo. Assim, Os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça (BLOCH, 2001, p. 54). É com base na reflexão apresentada por Bloch que Ginzburg (1989) elabora o que chama de paradigma indiciário. Dessa maneira, um trabalho histórico demanda uma leitura de sinais, pistas, deixadas pelos humanos no tempo. É preciso, para compreender essas pistas, retomar as raízes mais antigas, ao tempo em que o homem era caçador, para aprender [...] a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINZBURG, 1989, p. 151). 23 Nesse processo de caça ao objeto de estudo, tivemos como intuito revelar os vestígios deixados pelos autores, atores, grupos de pesquisa e suas produções acadêmicas a fim de entender como vêm se constituindo, no campo científico, os estudos sobre currículo no Brasil. O conceito de campo empregado neste trabalho tem como referencial os estudos produzidos por Bourdieu (1983, 1989). Para o autor, um campo científico se define, entre outras concepções, pelos objetos de disputas e dos interesses específicos referentes a esses objetos. [...] o campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira irreparável, como capacidade técnica e poder social; ou se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimadamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente autorizado a um agente determinado (BOURDIEU, 1983, p. 122-123). Analisar como vem se constituindo o conjunto de pesquisadores no campo do currículo significou identificar as vozes legítimas autorizadas e com autoridades que possuem capacidade técnica e poder social para intervir e falar em nome de um determinado grupo. Com esse intuito, decidimos analisar os dados levando em consideração os grupos de pesquisas, as instituições em que estão ligados e seus pesquisadores. Nesse caso, a autoridade específica que está em jogo se apresenta como um estado da relação de força (GINZBURG, 2002) entre os grupos, as instituições e os pesquisadores engajadas na luta de poder. Para Bourdieu (1989, p. 90) [...] as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da violência legítima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, isto é, em definitivo, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico [...]. O capital específico, fundamento do poder ou da autoridade específica característica de um campo, tende a estratégias de conservação – aquelas que nos campos da produção de bens culturais tendem à defesa da ortodoxia -, enquanto os que possuem menos capital (que frequentemente são também os recém-chegados e portanto, na maioria das vezes,os mais jovens) tendem a estratégias de subversão – as da heresia. Mediante os interesses que constituem o grupo de pesquisadores sobre currículo, procuramos evidenciar as estratégias e táticas efetuadas no campo científico para se legitimar os diferentes grupos de pesquisa. De acordo com Certeau (1994), as estratégias são as ações e relações de força que se tornam possíveis a partir do 24 momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de seu ―ambiente‖, de um ―próprio‖. Desse modo, a estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. Essa concepção de estratégia traz, como efeito principal, um corte entre o lugar apropriado e seu outro (sujeitos submetidos à propriedade de um próprio). O próprio é ―uma vitória do lugar sobre o tempo‖. Ele permite capitalizar vantagens conquistadas, preparar expansões futuras e obter, assim, para si, uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias. ―É um domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo‖ (CERTEAU, 1994, p. 99). É, também, um domínio dos lugares pela vista, na medida em que ―[...] a divisão do espaço permite uma prática panóptica a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar e incluir na sua visão‖ (CERTEAU, 1994, p. 99). Segundo o autor, seria legítimo definir o poder do saber por essa capacidade de transformar as incertezas da história em espaços legíveis. Porém, é mais exato reconhecer nessas estratégias um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio. ―Noutras palavras, um poder é preliminar desse saber, e não apenas o seu efeito ou o seu atributo. Permite e comanda as suas características. Ele se produz aí‖ (CERTEAU, 1994, p. 99-100). Ao lidarmos com as fontes, analisamos as estratégias de conservação e táticas de subversão que coexistem em um campo científico com interesses que se entrecruzam, ou seja, observamos o que está ligado à própria existência do grupo. Para Certeau (2001, p. 105), é necessária a relação entre estratégias e táticas, pois ―[...] o estudo das táticas cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o horizonte de onde vem, nem tampouco, o horizonte para onde deveriam ir‖. Nesse ponto Carvalho (2002, 2009) salienta a necessidade de se considerar a importância das táticas para possibilidade de implementar ou implodir a estratégia. Essa autora nos ajudou a entender que é nas operações táticas efetuadas dentro das estratégias que os praticantes, denominados neste trabalho de autores e editores, vão criando outros lugares próprios, ou seja, transformando as táticas em novas estratégias. 25 Diante desse contexto, buscamos, a partir das fontes estudadas, dar a ver as relações de força no campo, mas também a própria constituição desse campo, já que, para mantê-lo, [...] esquece-se a luta e pressupõe um acordo entre os antagonistas sobre o que merece ser disputado, fato escondido por detrás da aparência do óbvio, deixada em estado de doxa, ou seja, tudo aquilo que constitui o próprio campo, o jogo, os objetos de disputas, todos os pressupostos que são tacitamente aceitos, mesmo sem que se saiba, pelo simples fato de jogar, de entrar no jogo. Os que participam da luta contribuem para a reprodução do jogo, contribuindo (mais ou menos completamente dependendo do campo) para produzir a crença no valor do que está sendo disputado (BOURDIEU, 1989, p. 90-91). Apresentar, nesse caso, as fontes é compreendê-las como produtos de relações entre diferentes atores, autores e grupos de pesquisa e, assim, entender que são objetos culturais, por meio dos quais saberes, modelos e formas de pensar o Currículo são colocados à leitura. Chartier (2002, p. 61-62), ao estudar a história do livro e dos impressos, diz ser essencial considerar o [...] processo pelo qual os diferentes atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem e lêem. Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou visão, participam profundamente da construção de seus significados. O ‗mesmo‘ texto, fixado em letras, não é o ‗mesmo‘ caso mudem os dispositivos de sua escrita e de sua comunicação. Não se deve ―[...] ignorar os processos por meio dos quais um texto faz sentido para aqueles que o lêem‖. As operações pelas quais os editores organizam e dão a ler o impresso, apresentam-se como parte de sua arquitetura, dito de outro modo, as opções feitas pelos editores para tornar uma fonte legível, de acordo com o ponto de vista que desejam imprimir, é uma maneira de significar suas produções. Foi preciso compreender, conforme salienta Chartier (1994, p. 17), [...] contra a representação [...] segunda o qual existe em si mesmo, isolado de toda a materialidade – deve se lembrar que não há texto fora do suporte que o dá a ler (ouvir), e sublinhar o fato de que não existe a compreensão de um texto, qualquer que seja, que não dependa das formas através das quais ele atinge o leitor. Estudamos as operações, os modos de organizar o objeto a fim de problematizar a intencionalidade dos autores, atores, grupos de pesquisa e suas ações estratégias/táticas. Focalizamos não apenas, como salienta Toledo (2001), o estudo do conteúdo do objeto, mas também voltamos à atenção para os múltiplos 26 dispositivos editoriais que são produzidos estrategicamente pelos autores a fim de induzir a leitura do impresso. Ao tomar como dimensão o conceito de campo científico e estratégia/tática, observamos os debates presentes e ausentes nos estudos do campo do currículo e suas relações de força. Nesse ponto, foi preciso demonstrar o que está oculto, ―[...] fora do texto, que se encontra dentro do próprio texto, abrigado entre as suas dobras‖ (GINZBURG, 2002, p. 42), por isso a necessidade de descobri-lo e fazê-lo falar. Tratamos, nessa dimensão, de retornar a velhos objetos com perguntas que possibilitassem ler o que está presente ou ausente nas fontes. Nesses termos, ―[...] o passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa‖ (BLOCH, 2001, p. 75). Foi fundamental interrogar o passado, entendido como, ―[...] no infinito da duração, um ponto minúsculo e que foge incessantemente; um instante que mal nasce morre‖ (BLOCH, 2001, p. 60), a fim de ler também aquilo que não foi desejo expor. Mas, a partir do momento em que ―[...] não nos resignamos mais a registrar pura e simplesmente as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que tencionamos fazê-las falar (BLOCH, 2001, p. 78). Além disso, foi necessário apresentar as práticas de apropriação (CERTEAU, 1994) que constituem formas diferentes de interpretações que dialogam, todo o tempo, com as práticas produtoras de ordenamento. Para além das estratégias impostas pelas vozes autorizadas a falar em nome de um campo científico, foi preciso identificar as práticas de apropriação presentes nos estudos sobre currículo postos em circulação na ANPEd. Enredando nos espaços, ocasiões e possibilidades deixados pelas ―lacunas‖ das estratégias elaboradas por quem possui o ―monopólio da autoridade científica‖, os atores, autores e grupos de pesquisa vão se apropriando e alterando o ―próprio‖ no momento em que fazem usos dos saberes em circulação. Assim, foi primordial entender a cultura produzida por meio das estratégias, táticas e apropriações 27 elaboradas na articulação existente entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Essesmundos não se apresentam de maneira dicotômica, mas existem na cultura e a partir dela e de seus diferentes espaços de poder. Apesar da possibilidade apresentada tanto por Certeau (1994) como pelo Chartier (1990, 1991, 2002) de apropriação do leitor, não podemos desconsiderar as intencionalidades, ou melhor, as estratégias e táticas presentes na materialidade dos objetos escritos. Uma história das leituras e dos leitores (populares ou não) trata, portanto, da historicidade do processo de apropriação dos textos. Ela considera que o mundo dos textos é um mundo de objetos ou de formas cujas estruturas, dispositivos e convenções sustentam e constrangem a produção de sentido. Considera, igualmente, que o mundo do leitor é constituído pela comunidade de interpretação a que ele pertence, que se define por um mesmo conjunto de competências, usos códigos e interesses. Daí a necessidade de uma dupla atenção: à materialidade dos objetos escritos e aos gestos dos sujeitos leitores (CHARTIER, 2002, p. 124). Na medida em que se apropriam das produções elaboradas pelas vozes autorizadas e com autoridade, os autores, atores e grupos de pesquisa vão operando seus modos de leitura, modificando os sistemas estratégicos de poder e, talvez, produzindo uma circularidade cultural. Ginzburg (1987, p.13) se apropria do conceito elaborado por Mikhail Bakhtin, para indicar a circulação de cultura ―[...] entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas [...] como um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo‖. Dessa maneira, buscamos observar, neste trabalho, a circulação de uma cultura de pesquisa no campo do currículo entre os diferentes e variados atores envolvidos nesse grupo, bem como a circularidade cultural presente nas próprias fontes analisadas. Dito de outra maneira, na operação histórica (CERTEAU, 1990) realizada na leitura das fontes, procuramos, especialmente, indicar as múltipas constituições de sentido que, de forma estratégica e também astuciosa, foram produzindo circularidades culturais do modo como se pensam e se concebem os projetos editoriais das Reuniões Anuais, GT Currículo, Revista Brasileira de Educação e a própria produção sobre currículo publicizados por essas fontes. Foi preciso estabelecer a ―justa distância‖, baseando-nos em Chartier (1990), para lidar com fontes construídas para carregar os sentidos que instituições e grupos de 28 pesquisadores da produção sobre currículo desejam que sejam lidas pelos produtores e leitores. Foi necessário ler ―[...] os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas‖ (GINZBURG, 2002, p. 43). Procuramos, dessa forma, investigar e questionar aquilo que nos era familiar, uma vez que, como descreve Certeau (1996, p. 32), ―[...] o estudo se articula em torno da relação que a sua estranheza mantém com uma familiaridade‖. Nesse sentido, se destinamos um olhar de estranhamento, um olhar de heterogeneidade ao invés de homogeneidade, já que as fontes não são, como evidencia Ginzburg (2002, p. 44- 45), [...] janelas escancaradas, como acreditavam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os céticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção não é incompatível com a prova; a projeção do desejo, sem a qual não há pesquisa, não é incompatível com os desmentidos infligidos pelo princípio de realidade. O conhecimento (mesmo o conhecimento histórico) é possível. Mesmo reconhecendo as dificuldades encontradas na construção das análises históricas, o autor afirma: ―[...] se a realidade é opaca existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la‖ (GINZBURG, 2002, p. 177). Para isso, escavamos os meandros dos textos, contra as intenções de quem o produziu (GINZBURG, 2007). Além da opacidade das fontes, foi preciso compreender a sua intencionalidade, como nos ensina Bloch (2001, p. 83): A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito [de não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações. A operação historiográfica dos sinais e indícios deixados pelos autores, atores e grupos de pesquisa nos permitiu uma leitura de: [...] reapropriação no texto do outro: ali vai caçar, ali é transportado, ali se faz plural como os ruídos do corpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produção é igualmente uma ‗invenção‘ de memória. Faz das palavras as soluções de histórias mudas [...]. A fina película do escrito se torna um 29 remover de camadas, um jogo de espaços. Um mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor. [...]. A leitura introduz, portanto uma ‗arte‘ que não é passividade (CERTEAU, 1994, p. 264-265). Inventaremos, como enfatiza Certeau (1994), nos textos, outra coisa que não aquilo que era a ―intenção‖ deles, destacando e combinando os seus fragmentos e criando algo não-sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações. Pretendemos, neste estudo compreender a ANPEd como instituição promovedora das Reuniões Anuais, do GT Currículo e chanceladora da Revista Brasileira de Educação, sua natureza científica, o papel da diretoria, dos coordenadores do GT e dos editores na produção do campo científico e a constituição dos estudos sobre currículo como campo epistemológico. 1.4 ENTRE A HISTÓRIA DO CURRÍCULO E O CURRÍCULO NA HISTÓRIA: PERCURSOS INVESTIGATIVOS Com um criterioso trabalho de fontes e uma sensibilidade histórica, como diria Bloch (2001), Ginzburg (2002) interpreta o texto de Lorenzo Valla, escrito em 1440, sobre a fraude da Doação de Constantino. Valla, ao analisar o Decreto de Constantino, um documento que tivera imensa circulação por toda a idade média, representa a falsidade do documento por meio de uma discussão que mostra, detalhadamente, os anacronismos, as contradições e os erros grosseiros nele presentes. Com base nesse texto, Ginzburg coloca a seguinte questão: o que significa, hoje, para nós, o discurso de Valla sobre a doação de Constantino? O autor busca compreender essa questão tomando como nexo o juízo de Valla sobre seu próprio texto, exercendo uma leitura a partir de duas possibilidades, quais sejam: o conteúdo e as características formais da obra de Valla. Ao situar suas análises nesses dois pontos, Ginzburg apresenta um interessante debate, a partir da filosofia e da filologia, ao colocar em destaque a noção de retórica e prova.3 3 Para Ginzburg (2002), a identificação da prova como núcleo racional da retórica, defendida por Aristóteles, se contrapõe, decididamente, à versão auto-referencial da retórica defendida por Nietzsche, baseada na incompatibilidade entre retórica e prova. Segundo o autor, ao apresentar a falsificação do documento, suas contradições, seus anacronismos, Lorenzo Valla se aproxima da concepção de retórica apresentada por Aristóteles. 30 Diante das contribuições apresentadas por Ginzburg, a partir da análise do texto de Lorenzo Valla, tivemos como intuito, neste tópico, compreender quais significados estão sendo produzidos pelos discursos dos estudos históricosno campo do currículo no Brasil. Dito de outro modo, o que significam, hoje, para nós, os discursos produzidos sobre a história do currículo? Buscamos, dessa maneira, fazer uma análise do conteúdo e das características formais dos estudos que se encontram entre a história do currículo e o currículo na história. As análises dos conteúdos presentes nas produções acadêmicas oferecem, geralmente, uma leitura das principais correntes teóricas e sua influência nos estudos sobre currículo no Brasil. É o caso, especificamente, dos trabalhos de Paraíso (1994) e Silva (2005). Esses autores demonstraram, por exemplo, como as produções acadêmicas sobre currículo vêm assumindo, ao longo de sua história, diferentes concepções epistemológicas. Percebemos, uma homogeneização e generalização das produções acadêmicas brasileiras, nos remetendo a uma perspectiva linear da História considerada como um movimento de fluxo contínuo. Paraíso (1994), por exemplo, apresenta um panorama das publicações sobre currículo, realizadas no Brasil, no período de 1983 a 1994. Demonstra um movimento de aproximação com outros referenciais teóricos advindos das teorias críticas. Nesse cenário, ganha destaque a influência dos estudos de Marx e Gramsci e, especificamente no campo do currículo, conforme Moreira (2005) e Paraíso (1994), o estudo de Domingues (1986), ―Interesses humanos e paradigmas curriculares‖, publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.4 Para se ter uma ideia desse movimento e de suas implicações para a redefinição do campo científico, no primeiro encontro do GT Supervisão e Currículo realizado na Reunião Anual de 1995, verificamos a preocupação em selecionar como temática a ―Reconceptualização da área de Currículo‖. De acordo com Moreira (2005, p. 82), esse movimento representava a rejeição: 4 Uma análise crítica do estudo de Domingues pode ser lida em Moreira (1990). 31 a) ao caráter prescritivo e pretensamente apolítico dos estudos até então desenvolvidos; b) à ausência de uma perspectiva histórica, expressa no escasso diálogo entre as diversas gerações de investigadores; c) à excessiva preocupação em melhorar o trabalho desenvolvido nas escolas; d) à persistência de temas como objetivos escolares e planejamento; e) à indefinição referente ao objeto de estudo do campo e às suas relações com outros campos. A década de 1990 é marcada, segundo Moreira (2001, 2005) e Paraíso (1994), por um acentuado aumento nas produções acadêmicas brasileiras no campo do currículo. Esse aumento se fez presente nas publicações de dissertações, teses, livros, artigos de periódicos e em congressos, como na Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e no Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE). Paraíso (1994) oferece outros elementos para esse debate, ao apontar o caráter teórico de alguns estudos veiculados nos periódicos da educação brasileira e ao identificar os artigos que tiveram um impacto considerável na produção acadêmica: 1) as reflexões sobre o ensino de Currículos e Programas, na tentativa de propor uma abordagem das questões curriculares, na disciplina de Currículos e Programas, de modo que ofereçam subsídios à prática pedagógica (Moreira, 1991b); 2) o estudo sobre as contribuições da teoria à compreensão das relações conteúdo-forma-determinações sócio políticas nos currículos escolares (Bordas, 1992); 3) a análise crítica da evolução do pensamento de Michael Young na tentativa de questionar que contribuições significativas sua teoria pode oferecer para o desenvolvimento de propostas curriculares críticas adequadas à realidade brasileira (Moreira, 1990b); 4) o estudo para examinar as teorias de controle social que têm permeado as principais tendências do pensamento curricular (Moreira, 1992a) e 5) o estudo sobre a realização dialética existente entre conteúdos e forma no discurso pedagógico, cujo argumento central é o de que não apenas mudanças de conteúdo levam a mudanças na forma, como também mudanças na forma podem contribuir para a própria mudança do conteúdo e, por conseguinte, provocar transformações no próprio discurso pedagógico (Santos, 1992a) (PARAÍSO, 1994, p. 105). Moreira (2005) fortalece as reflexões apresentadas por Paraíso, acrescentando outros nomes. De acordo com o autor, alguns desses trabalhos [...] correspondem a adaptações de dissertações e teses (Garcia, 1995; Jorga, 1993; Moreira, 1990; Saviani, 1994, Silva, 1990); outros constituem coletâneas de artigos de autores nacionais e estrangeiros (Gentili e Silva, 1994; Moreira, 1994, 1997; Moreira e Silva, 1994; Silva, 1993, 1994, 1995; Silva e Moreira, 1995; Veiga-Neto, 1995); outros incluem trabalhos apresentados em seminários em que se discutiram questões curriculares (Silva e Azevedo, 1995; Silva, Azevedo e Santos, 1996); outros representam valoroso esforço de sistematizar o pensamento em construção (Silva, 1992, 1996) (MOREIRA, 2005, p. 18). 32 As teorias críticas são apresentadas a fim de evidenciar as possibilidades e os limites que elas trouxeram ao campo do currículo. Assim, os autores chegam à conclusão de que os problemas enfatizados pelas teorias críticas são impossíveis de serem respondidos a partir delas próprias. Dentre os principais problemas apontados, encontra-se a ideia do distanciamento entre os avanços indicados pelas pesquisas acadêmicas e sua materialização no cotidiano escolar. Paraíso (1999) ressalta que faltam estudos que investiguem qual tem sido o efeito de teorias curriculares críticas (brasileiras ou estrangeiras) nas instituições educacionais brasileiras de todos os níveis. A questão central da área, ou seja, a determinação, seleção, organização e transmissão do conhecimento, com toda a problemática que envolve, continua praticamente desconhecida dos professores. Nesse caso, prossegue a autora, existe uma distância grande entre todas as reflexões críticas detectadas nos estudos dos teóricos e a prática dos docentes nas instituições de ensino. Segundo Cunha (1997) e Moreira (2005), o hiato produzido pelas teorias críticas acabava por favorecer o uso de diferentes referenciais teóricos para se entender o currículo. Isso contribui para que a década de 1990 fosse marcada, conforme Burnham (1993), Macedo e Fundão (1996) e Moreira (2001), por uma multirreferencialidade nos estudos de currículo advindos de diversas áreas do conhecimento.5 O pensamento curricular começa a incorporar enfoques pós-modernos e pós- estruturais,6 como destacam Macedo e Fundão (1996) e Moreira (2001), que 5 Ao tomar como fonte a produção científica vinculada do Grupo Temático de Currículo da ANPEd nos anos de 1990, Macedo e Fundão (1996) e Moreira (2001) identificam a utilização do pensamento de Derrida sobre processos de desconstrução do currículo, de Foucault sobre as teorias dos micropoderes, de Deleuze e Guatarri, para apresentar implicações de novas metáforas da estrutura do conhecimento para a organização curricular. Paralelamente, continua a usar como referência Giroux, Aplle, Young e Forquin, bem como Habermas e Bachelard. Lopes e Macedo (2005) acrescentam ainda nessa lista a influência dos estudos de Morin. 6 Apesar de tratar de uma categoria bastante ambígua e indefinida, servindo para classificar um número sempre variável de teorias e perspectivas, o pós-estruturalismo e o pós-modernismo pertencem a campos epistemológicos diferentes. Para Silva (2005) o pós-estruturalismo limita-se a teorizar sobre a linguagem e o processo de significação; o pós-modernismo abrange um campo bem mais extenso de objetos e preocupações. 33 convivem concomitantemente com as teorizações de cunho globalizante, seja das vertentes funcionalistas, seja da teorização crítica marxista.Observamos, nos estudos apresentados até o momento, que a História, compreendida de maneira linear, é narrada a fim de mostrar os avanços, ou melhor, a evolução, produzida pelos estudos no campo do currículo desde sua gênese, nos anos 20 até a década de 1990, perpassando pelas teorias tradicionais e críticas até chegar às teorias pós-críticas. Fica-nos a impressão de que as teorias, de tradicional à pós-moderna, se sucedem e estão em constante movimento de superação. Ao mesmo tempo, parece haver certa intencionalidade em legitimar uma retórica pós-moderna, em contraposição com outras possibilidades de fazer e apresentar o currículo. As próprias características formais com que são construídos os textos induzem a ler dessa maneira, ou seja, as teorias tradicionais começam a ser discutidas, passando pelas teorias críticas até chegar às pós-críticas. Verifica-se, por exemplo, que a delimitação das produções críticas sobre currículo, na década de 1990, feitas pelos autores, fixa no tempo essa forma de ler o currículo. Essa fixação, ao que parece, busca silenciar as atuais produções que tomam a perspectiva teórica crítica como referencial. Nesse caso, fica-nos a pergunta: como as vozes autorizadas estão se movendo no campo científico para (des)legitimar determinadas retóricas? Que possibilidades e ausências essas leituras oferecem ao campo do currículo? Além das questões colocadas em debate, gostaríamos de destacar as práticas realizadas por Paraíso (1994) e Moreira (2005) para constituir um discurso que legitime, no campo científico, algumas autoridades científicas (BORUDIEU, 1983). Estar presente ou ausente nas listas apresentadas por esses autores indica, por exemplo, as estratégias utilizadas no campo do currículo no Brasil para se legitimar um determinado discurso, mas, em contrapartida, sinaliza o estado de relações de forças (GINZBURG, 2002) que pressupõe um acordo e reconhecimento entre os próprios concorrentes para se constituir um campo enquanto tal. Para Bourdieu (1983, p. 127), 34 Isso significa que, num campo científico fortemente autônomo, um produtor particular só pode esperar o reconhecimento do valor de seus produtos (‗reputação‘, ‗prestígio‘, ‗autoridade‘, ‗competência‘ etc.) dos autores produtores que, sendo também seus concorrentes, são os menos inclinados a reconhecê-lo sem discussão ou exame. De fato, somente os cientistas engajados no mesmo jogo detêm os meios de se apropriar simbolicamente da obra científica e de avaliar seus méritos. Uma outra possibilidade de leitura sobre a produção curricular no Brasil, a partir da ideia de autoridades específicas que constituem e controlam o campo científico, pode ser vista no estudo de Lopes e Macedo (2005). Ao tomar a ideia de campo intelectual de Bourdieu, criado pelas posições, relações e práticas que surgem de um contexto de produção discursiva em determinada área, Lopes e Macedo (2005) utilizam como fonte três grupos de pesquisa institucionalizados formados por sujeitos investidos de legitimidade para falar sobre currículo: a perspectiva pós- estruturalista; o currículo em rede; e a história do currículo e a constituição do conhecimento escolar. Na perspectiva pós-estruturalista, efetua suas análises a partir da produção de Tomaz Tadeu da Silva, líder do Grupo de Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na vertente de trabalhos desenvolvidos, fundamentalmente, sobre currículo em rede, Lopes e Macedo (2005) apresentam suas leituras sobre o grupo de pesquisadores do Rio de Janeiro, coordenados por Nilda Alves, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e por Regina Leite Garcia, da Universidade Federal Fluminense. Por fim, empreende seus esforços nas produções de Antonio Flavio Moreira, coordenador do Núcleo de Estudos de Currículo, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. As análises efetuadas por Lopes e Macedo (2005) apresentam uma interessante leitura das produções acadêmicas no campo do currículo que assumem uma perspectiva pós-estruturalista e pós-crítica, muito embora seja difícil pensar em classificações a partir dessas teorias. No entanto, as autoras não discutem os limites e possibilidades que essas perspectivas têm sinalizado para os estudos do currículo, bem como as relações de forças presentes entre os grupos, os modos de legitimação dos discursos na comunidade acadêmica e as estratégias utilizadas no campo político a fim de fortalecer esses grupos. Nesse caso, parece-nos ser difícil falar da constituição do campo científico garantindo força na análise das produções 35 dos coordenadores dos Grupos de Pesquisas e, ao mesmo tempo, desconsiderando as demais vozes que conferem autoridade, pois possuem autoridade reconhecida para falar sobre currículo. Por outro lado, é preciso reconhecer a fertilidade apresentada pelas autoras, ao enfatizarem o modo como as teorias pós-críticas e pós-estruturalistas vão se configurando a partir de um processo de hibridização das demais teorias. Essa perspectiva parece-nos se apresentar de maneira mais profícua para o avanço do debate no campo da história do currículo, pois não se apresenta de maneira linear. Contudo, essa não é uma especificidade dessas autoras, Dussel (2002), Matos e Paiva (2007), Silva (2005), Veiga-Neto e Macedo (2007) também estabelecem esse tipo de análise. Como podemos observar, essa forma de ler a produção acadêmica sobre currículo vem ganhando força no cenário brasileiro e internacional. De acordo com Matos e Paiva (2007), autores como Giroux, McLaren e McLaren e Giroux têm incorporado, em suas análises, conceitos considerados pós-críticos, mantendo-se fiéis a alguns princípios básicos da teoria crítica. A associação do conceito de recontextualização buscado na teoria estruturalista de Bernstein e de hibridismo, tributário dos princípios do pós-colonialismo para análise de políticas e práticas curriculares, configura um tipo de vinculação de conceitos procedentes de referenciais teóricos de origens distintas. Para Dussel (2002), pensar o currículo em termos de hibridação, a partir, sobretudo, dos estudos de Bhabha, contribui para analisar a complexidade dos processos de produção culturais, políticos e sociais que o configuram, introduzindo novas ideias em um campo cujas perguntas foram, muitas vezes, pobres teórica e tecnicamente. Segundo o autor (2005, p. 70), A própria noção de currículo pode ser considerada como um híbrido, se a pensarmos como o resultado de uma alquimia que seleciona a cultura e a traduz a um ambiente e uma audiência particular. Os discursos curriculares também têm sido estudados como híbridos que combinam distintas tradições e movimentos disciplinares, construindo coalizões que dão lugar a consensos particulares. O processo de hibridação ocorre, de acordo com Lopes e Macedo (2005), com a quebra e a mistura de coleções organizadas por sistemas culturais diversos, com a 36 desterritorialização de produções discursivas variadas, constituindo e expandindo gêneros impuros. Às teorizações de cunho globalizante, seja das vertentes funcionalistas, seja da teorização crítica marxista, vem se contrapondo a multiplicidade característica da contemporaneidade. Tal multiplicidade não vem se configurando apenas como diferentes tendências e orientações teórico- metodológicas, mas como tendências e orientações que se inter-relacionam, produzindo hibridismo culturais. Dessa forma, ―[...] o hibridismo do campo parece ser a grande marca dos estudos no Brasil na segunda metade da década de 1990‖ (LOPES; MACEDO, 2005, p. 33). De acordo com as autoras, esse hibridismo é fruto da mescla entre o discurso pós- moderno e o foco político na teorização crítica. Na busca de uma interpretação da escola no contexto pós-modernizado, as referências à Sociologia e à Filosofia são hibridizadas com as
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