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SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia GT01 – B – Cidades: transformações, governança e participação – II Título: Cidades, novas práticas estatais e o processo de segregação sócioespacial Autora: Antônia Jesuíta de Lima Belo Horizonte, 31 de maio a 3 de junho de 2005 2 Introdução O presente texto é produto de uma pesquisa 1 , em andamento, sobre gestão das cidades e governos locais, tomando como referência empírica a realidade de Teresina, capital do estado do Piauí, mais precisamente uma ação iniciada em 1997 que visava promover uma ampla transformação na cidade e na realidade socioeconômica do município. Essa proposição se materializou em um projeto de intervenção urbanística (vila-bairro) com atuação focalizada em assentamentos de famílias de baixa renda, através de ações de infra-estrutura, equipamentos urbanos e geração de renda. Avaliado por organismos nacionais e internacionais como experiência bem sucedida, esse projeto constituiu-se no principal empreendimento do governo local, a partir daquele período, para consolidar uma imagem de administração moderna e voltada para as demandas urgentes da cidade e da população pobre. Experiências como esta, que se disseminaram no país durante os anos 90, ao tempo em que revelaram virtuosidades no formato da gestão - novas dinâmicas administrativas e a implantação de um modelo co-participativo -, suscitaram também questionamentos sobre os limites da capacidade de os gestores responderem aos graves problemas urbanos, num quadro tanto de indefinição constitucional no que tange às responsabilidades dos diferentes níveis de governo, em relação às políticas urbanas, quanto de dilemas na implantação do programa de descentralização político-administrativa. Objetivamente, indaga-se sobre o potencial de autonomia política e administrativa municipal diante de uma agenda local que interpela a intervenção de esferas políticas mais amplas no enfrentamento da problemática urbana. Na verdade, o tema que preside esse debate não é novo, pois a questão da autonomia dos governos subnacionais figura na agenda política desde os anos 80, com a redemocratização do país, ganhando maior expressividade nos anos 90, com as práticas em torno da regulamentação dos princípios constitucionais. À medida que os impasses e dilemas iam surgindo na implantação do processo de descentralização das políticas públicas, inúmeros estudos emergiram como necessidade de análise da dinâmica institucional e política das esferas governamentais sob um novo modelo de gestão pública, com ênfase nas relações entre as unidades federativas. Nesse campo temático, situa-se nossa investigação, a qual busca avaliar o impacto de iniciativas locais de políticas urbanas sobre as condições de vida de populações pobres, a partir da reflexão sobre o “Projeto Vila-Bairro”. 1 A pesquisa conta com auxílio do CNPq e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI). 3 Esse texto contém questões teóricas relativas ao tema em discussão, uma caracterização do contexto sócio-político, em que emerge a proposta de intervenção urbana e os resultados preliminares. 1. O processo de descentralização das políticas públicas e os dilemas da ação dos governos locais no campo das políticas urbanas A sociedade brasileira, desde a década de 1990, enfrenta desafios no sentido de materializar os dispositivos político-institucionais estabelecidos pela Constituição de 1988, destacando-se a descentralização das políticas públicas, que, no campo político, constituiu-se num ponto de ruptura com a tradição de políticas centralizadas, tecnocráticas e autoritárias do Brasil recente e, no campo institucional, significou transferências de atribuições e competências para as instâncias municipais. Consoante Almeida e Carneiro (2003, p. 126), na Assembléia Nacional Constituinte, a valorização do município como alicerce da democracia, consensual entre os partidos e movimentos políticos que nasceram do MDB e dos grupos de oposição à ordem autoritária, tomou forma em um conjunto de propostas descentralizadoras. Elas provocaram uma redefinição em regra da estrutura do Estado brasileiro: o federalismo centralizado até então predominante deu lugar a um modelo federativo descentralizado e em boa medida cooperativo. Nesse novo desenho institucional, o município transformado em ente federativo adquiriu autonomia político-administrativa, legislativa e financeira, isto é, capacidade auto- organizativa e decisória, podendo, assim, produzir sua própria Constituição, criar leis locais em complementação às estaduais e federais e outros dispositivos relativos às novas responsabilidades dessa esfera governamental. Foi sob o signo das mudanças que, ao longo dos anos 90, se criaram, em vários municípios brasileiros, instrumentos de participação e de controle público das políticas sociais, como conselhos populares, ouvidorias, audiências públicas, etc. 2 , no sentido de consolidar uma nova forma de conduzir a administração pública. No concernente à gestão das cidades, as leis orgânicas municipais e os planos diretores constituíram-se nos seus principais instrumentos normativos, aos quais se incorporaram outros mecanismos estatais ou semi-estatais, como o orçamento participativo, emprestando substancialidade ao processo democratizador da gestão urbana que ganhou escopo legal definitivo com o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 10.07.2001). Destarte, mediante novas regras constitucionais, fixaram-se as condições legais para a redistribuição de responsabilidades políticas e fiscais entre as diferentes esferas decisórias, 2 Em recente publicação Dagnino (2002) reúne resultados de pesquisas realizada em várias cidades do país em torno da constituição de espaços públicos de participação democrática. 4 com implicação direta nas relações intergovernamentais. Pesquisas empíricas sobre a evolução da carga tributária e da distribuição das receitas entre as esferas de governo apontam o município como o principal beneficiário da descentralização de recursos, devido à ampliação das transferências constitucionais - no caso, o FPM e o ICMS 3 . Com isso, delineou-se uma tendência à descentralização em todas as áreas de política social, garantindo- se, em tese, que os governos locais estabelecessem sua “própria agenda na área social” (ARRETCHE, 2004, p. 20). Desse modo, ao assumir a condição de principal unidade federativa, o município passou a gozar de liberdade e autonomia política para definir a pauta local e fazer face às desigualdades sociais exacerbadas pelo intenso processo de urbanização de que foram alvos, sobretudo, os grandes centros urbanos, nas últimas décadas. Foi nesse novo cenário político-legal que diversos administradores passaram a inovar no campo do desenvolvimento econômico e das políticas sociais. Uma grande parte desses administradores se preocupou com a modernização técnico-administrativa e institucional, a introdução de mecanismos de democracia participativa e critérios descentralizadores, enquanto uma outra parte com a urbanização de favelas, o combate ao desemprego e a pobreza, etc. Tal dinâmica, além de enunciar novas práticas de gestão, expressava um movimento crescente de transferência de atribuições políticas aos municípios, isto é, de aumento de responsabilidades dos governos locais com a melhoria das condições de vida e com a busca de soluções dos problemas urbanos, ou seja, da gestão local 4 (VITTE, 2003). Na realidade, essa dinâmica respondia à nova institucionalidade que vinha consagrar uma tendência descentralizadora iniciada nos anos 80, com governos municipais identificados com a democratização da gestão local. Note-se que,após a restauração das eleições diretas para as capitais, foi constatada uma progressiva descentralização, através da ação de gestores que assumiam, cada vez mais, o compromisso com o desenvolvimento de políticas sociais e novos programas para as populações de baixa renda (CARDOSO e RIBEIRO, 2002). A despeito de tais avanços, ainda vigia, no âmbito institucional, naqueles anos, um sistema fortemente centralizado em que os municípios detinham reduzida margem de atuação, uma vez que eles dependiam política e financeiramente do governo federal, aliás, algo recorrente na história política do país, conforme Sadek (apud VITTE, 2003, p. 235): O exame da história municipal demonstra que a dependência político-administrativa dos municípios em relação aos poderes estaduais e da União foi uma constante, embora nem 3 Vê Almeida e Carneiro (2003). 4 Foi também o município o principal destinatário de competências e atribuições na área social (ALMEIDA e CARNEIRO, 2003). 5 sempre com a mesma natureza. Entre o típico arranjo coronelista, a política de governadores, o sistema populista de clientela e o incentivo a negociações através de canais não institucionais há diferenças substantivas apreciáveis (...). Essas diversas engenharias institucionais, a despeito das particularidades em suas lógicas de funcionamento, provocaram um resultado semelhante: a pequenez do município enquanto unidade de governo, ainda que em determinados momentos esta limitação convivesse com lideranças locais fortes. A Carta Constitucional de 88 acenou com uma inflexão importante no âmbito da capacidade governativa das unidades federativas, produzindo significativo impacto nas relações intergovernamentais e no papel das unidades subnacionais, especialmente dos municípios, invertendo a tradição histórica de pouca expressividade dessa instância no processo decisório, embora se constituíssem figuras centrais na trama política. É isso que explica a inscrição definitiva da questão do poder local e da autonomia municipal na agenda política brasileira, nos anos 90, movimento que resultou do processo de reestruturação que sofreram a sociedade e o Estado brasileiro, com o fim do regime autoritário pós-64, mas que também recebeu forte influência de tendências mundiais de fortalecimento da democracia participativa, com a sociedade civil atuando na condução dos negócios públicos. Foi sob impacto dessas mudanças que iniciativas locais, antes limitadas à atuação de alguns administradores, se disseminaram por todo o país, muitas delas com destaque nacional e internacional, por expressarem inovações na construção de parcerias entre governo e sociedade e por sinalizarem com impacto para a qualidade de vida de seus habitantes (CARDOSO e RIBEIRO, 2002), inserindo definitivamente os municípios nessa nova dinâmica institucional. Malgrado as virtudes do novo sistema, as ambigüidades constitucionais se tornaram evidentes com a implementação do processo de descentralização. Constatou-se que, embora estabelecidas as garantias legais e institucionais para a autonomização dos municípios, não se explicitaram devidamente as responsabilidades e competências para algumas áreas específicas, como as políticas urbanas, o que gerou impasses na nomeação dos responsáveis pelo enfrentamento de problemas estruturais, como a questão habitacional, a ocupação e o uso do solo urbano, etc., que se agravaram com a paralisia do setor, após a desarticulação do Sistema Financeiro de Habitação, em 1986. Na verdade, como sustentam Almeida e Carneiro (2003, p. p. 129), na Carta Constitucional, a descentralização assumiu significados e conteúdos distintos, de acordo com o formato de cada política, com a distribuição prévia de competências e com o controle sobre os recursos, podendo significar, portanto, “transferência parcial ou total de responsabilidades do governo federal para os estados; do governo federal para o nível local ou do governo 6 estadual para o local. Podia significar também, mudança de funções entre níveis de governo, ou de um nível de governo para outras organizações públicas ou privadas...”. Nesse contexto de imprecisão constitucional quanto às atribuições das instâncias de governo e à ausência de regulamentações, muitas políticas públicas deixaram de ser efetivadas, conforme observado acima, em relação às políticas urbanas, resultando em descontinuidades de ações e em aumento da crise das grandes cidades. Fator agravante dessa situação é a constatação de que a maior participação dos municípios, no total de recursos tributários disponíveis, não se mostrou suficiente para atender as demandas postas pelo acelerado processo de urbanização (VITTE, 2003). Foi, portanto, diante da ausência de critérios descentralizadores explícitos, da incompletude do processo de transferência de atribuições e competências para os municípios e da omissão da instância federal em algumas áreas, que se afirmaram determinadas ações em âmbito municipal. Particularmente, no campo urbanístico, a experiência é emblemática, visto que muitas iniciativas emergiram justamente do vácuo de uma definição de políticas urbanas de caráter nacional, após o fim do BNH e do SFH, em 1986, e da completa desarticulação das políticas de desenvolvimento urbano do governo federal. Conforme Arretche e Rodriguez (1999, p. 62), o fechamento do BNH, a transferência de suas funções para outros organismos federais, a 'pulverização' de sua burocracia em distintos órgãos e o elevado grau de instabilidade ministerial do setor no período 1985-95 e de desmantelamento da administração pública representaram um duro golpe contra a manutenção e/ou reestruturação das operações dos Sistemas Nacionais de habitação e saneamento. Na verdade, com a desestruturação institucional do sistema, as discussões foram dominadas por constrangimentos institucionais, intensos conflitos interburocráticos e incapacidade decisória, impedindo que se avançasse na agenda reformista da segunda metade dos anos 80 (MELO, 1993). Nesse sentido, a extinção do BNH representou mais que uma simples reorganização administrativa. Como matriz organizacional da policy community nas áreas de habitação e desenvolvimento urbano, o BNH possuía quadros técnicos especializados e a memória técnica do setor. A assunção pela Caixa Econômica Federal das atividades e pessoal do BNH foi marcada por descontinuidades e fragmentação institucional, provocando a marginalização da questão habitacional na agenda governamental. A derrota da proposta de um Banco de Desenvolvimento Urbano representou um recuo significativo para os setores reformistas (MELO, 1993, p. 127). Além disso, a crise econômica da década de 80 reduziu drasticamente as possibilidades de financiamento de programas federais de desenvolvimento urbano, verificado na comparação da arrecadação líquida do FGTS relativa aos anos de 1982 e 1993, a qual caiu em mais de cinqüenta por cento, fato que demonstrava a ausência de condições não apenas 7 institucionais, mas também financeiras, do governo federal para a formulação de uma nova política (ARRETCHE, 2000). Aliás, mesmo que houvesse uma corrente favorável à descentralização de competências e, portanto, à definição de um novo arranjo nacional de atribuições na burocracia federal ligada à área urbana, a fragilidade institucional do setor tornava muito difícil a implementação de qualquer medida nessa direção. Nos estados e municípios, algumas Cohab - até então inteiramente dependentes da União para a implementação de seus programas habitacionais – tornaram-se 'órfãs' de recursos, e alguns municípios ficaram impossibilitados de manter até mesmo suas empresas de habitação (ARRETCHE e RODRIGUEZ, 1999, p. 63). A despeito do quadro institucional e político desfavorável a essa área - conflitos interburocráticos, fragmentação deinteresses, debilidade dos setores técnicos mediadores, e desarticulação institucional -, esperava-se que, com a Constituição de 1988, esse impasse se resolvesse através da distribuição de responsabilidades. Afinal, essa tendência descentralizadora das políticas públicas de corte social ganhara centralidade na agenda política da sociedade e nas discussões em torno da reforma do Estado, a partir dos anos 80. Contudo, como ressalta Almeida (1995, p. 92-93), A carta constitucional não definiu com clareza uma hierarquia de competências dentro da federação. Ao contrário, estipulou cerca de trinta funções concorrentes entre União, estados e municípios, boa parte delas na área social. Nessas circunstâncias, a definição de atribuições específicas e de áreas de cooperação só pode resultar de políticas governamentais. Na maioria dos casos, a forma de financiamento padece de indefinição semelhante, quanto ao grau de envolvimento das diferentes instâncias e quanto às formas de repasse dos recursos geridos pela União. Exceção feita à Previdência Social, o financiamento de todas as outras áreas depende do envolvimento das três esferas de governo. Desse modo, diferentemente do que ocorrera com as áreas de educação, saúde e seguridade social, não houve, no âmbito das políticas urbanas, uma definição clara no que concerne às competências e à repartição de recursos entre os diferentes níveis de governo. Assim, diante tanto da ausência de uma proposta em âmbito federal quanto da indefinição, no tocante às responsabilidades das unidades federativas, gestores municipais buscaram alternativas para fazer face às pressões urbanas, o que coincidia com um movimento, já em curso, em que as cidades e o poder local ganhavam centralidade na formulação e definição das políticas públicas, consideradas “ativas e bem sucedidas na promoção do desenvolvimento econômico” (NETO E ARAÚJO, 1998, p. 11). Na realidade, em face das dificuldades na implantação do processo de descentralização e dos constrangimentos fiscais, muitas administrações passaram a desenvolver práticas que implicavam em alteração das relações do governo com a sociedade e com o setor privado e na qualidade de vida da população urbana, como as iniciativas nas áreas de habitação e de urbanização de favelas, ressaltadas em diversos estudos (GOMES, 2002; ZALUAR E 8 ALVITO, 1998; DAVIDOVICH, 1997). Como ressalta Azevedo (apud CARDOSO, 2001), foi a limitação de recursos que ensejou uma concentração das iniciativas locais em programas alternativos, sobretudo na área habitacional. Sob o olhar de alguns estudiosos, essas experiências são reputadas como significativas por ampliarem a capacidade administrativa das estruturas municipais e pelo seu caráter democratizador, ao aproximar governo e população. Além disso, chama-se a atenção sobre os limites institucionais e fiscais da esfera municipal para produzir respostas a uma agenda local que apresenta problemas prementes, como a segregação socioespacial. Muitos analistas, como Almeida (1995), avaliam que tais inovações estão menos associadas à nova dinâmica institucional que à incapacidade dos governos centrais de responder à multiplicidade de problemas, ao fracasso das políticas centralizadas e tecnocráticas e às condições da comunidade a que se destinam. No que concerne especificamente à política habitacional, relembra a autora que, com o seu colapso, essa área sofreu mudanças dramáticas quanto ao desempenho efetivo de papéis nas distintas instâncias de governo. Todavia, tais mudanças não eram resultado de um marco legal que redefinisse as funções ou de políticas governamentais deliberadas, mas de progressiva desarticulação em âmbito nacional, pois, “na medida em que o governo federal foi perdendo capacidade de ação, os estados e municípios começaram a desenvolver políticas próprias, assumindo de forma autônoma a responsabilidade por decisões sobre programas e por seu financiamento” (ALMEIDA, 1995, p. 100). Foi assim que se multiplicaram por todo o país, especialmente nas capitais, iniciativas descentralizadas, conformando uma certa hierarquização das ações, nas quais cabia à esfera estadual a oferta de moradias e, à municipal, programas de urbanização de favelas, oferta e regularização de lotes urbanos, etc. À medida que essas iniciativas se destacaram no cenário, sobretudo, das grandes cidades, surgiram muitas indagações sobre as potencialidades da ação municipal, o seu poder de impacto no quadro urbano das cidades, a abrangência e a perspectiva de consolidação dessas experiências, partindo-se do fato de que, em geral, os municípios dependem do apoio claro dos recursos federais para implementar suas ações que, na sua ausência, tendem a apresentar um caráter fragmentário e pontual e de limitado alcance social. Muitas vezes, “a maioria das ações não chega a assumir feição de políticas institucionalizadas, cuja continuidade ultrapasse o período de um mandato. Ao contrário, as iniciativas dependem fortemente das orientações e prioridades dos governantes de turno” (ALMEIDA, 1995, p. 101). 9 Muitas experiências que se destacaram, como o programa Favela-bairro (RJ), somente se concretizaram graças à capacidade administrativa do gestor de mobilizar recursos externos, seja no âmbito nacional seja no âmbito internacional. Nesse caso, em particular, a realização da ação foi favorecida pela captação de financiamento junto ao BID. Outro fator favorável à efetivação do programa foi o aproveitamento da capacidade técnica e administrativa, acumulada, de intervenção sobre as favelas e loteamentos populares, aumentando as possibilidades de maior efetividade das ações. À parte isto, muitos aspectos contraditórios ou problemáticos foram identificados, como por exemplo, o fato de os objetivos do programa (integração) serem tratados apenas do ponto de vista físico-urbanístico (CARDOSO, 2002). Ainda nesse mesmo campo de análise das intervenções urbanas locais, argumenta-se que as inovações nem sempre são originais. Antes, elas podem resultar em combinação de elementos existentes ou de soluções conhecidas, adaptadas a circunstâncias específicas, em formas ou processos novos, como é o caso dos mutirões em projetos habitacionais ou projetos de autoconstrução. Assim, nesse contexto não só de novas mediações institucionais e políticas, mas também de indefinições constitucionais e de limitações fiscais dos municípios, no qual muitas iniciativas locais passaram a ser valorizadas como expressões emblemáticas das inovações em gestão pública, as ponderações em torno da municipalização das políticas urbanas convergem para as seguintes indagações: a) em que medida essas iniciativas, que, em grande parte, se realizam na dependência de recursos externos, podem responder aos graves problemas de segregação socioespacial e de pobreza que recortam a dinâmica urbana das grandes cidades brasileiras, sem compor uma estratégia mais ampla de articulação com as esferas estadual e federal? b) essas experiências avançam efetivamente na configuração e consolidação de políticas públicas locais que possam responder às demandas urbanas, à medida que a questão federativa ainda é um problema a ser resolvido pela sociedade e o Estado? Eis, portanto, as questões que movem as reflexões contidas neste texto. 2. O contexto urbano e sociopolítico em que se estrutura a proposta do Projeto Vila- Bairro em Teresina 2.1 Teresina e as iniciativas locais de política sobre o espaço urbano no pós-88 Teresina, capital do estado do Piauí, como outras capitais nordestinas, recebeu grande impacto do processo de urbanização iniciado nos anos de 1960, provocado, sobretudo, 10 pelos fluxos migratórios originários, em sua grande parte, do interior do estado e de unidades territoriais vizinhas: Maranhão e Ceará. Pela condição de sede do aparelho administrativo Teresina se constituino principal centro de atração dessa população migrante, o que concorre para que, na década de 1970, se registre o maior índice de crescimento populacional da história desta cidade, representando uma taxa média geométrica anual de 5,53%, tendência que se manterá nas duas décadas seguintes, embora com percentuais menores. Assim sendo, Teresina apresenta, nessas três décadas, índices de crescimento superiores ao do estado, figurando como o seu município mais populoso. A Capital tinha, em 1970, uma população de 220.487 habitantes, em 1980, de 377.774 e atingiu, em 2000, o patamar de 714.583 mil (FUNDAÇÃO IBGE, 1970; 1980; 2000). É, todavia, na década de 1980, que se tornam mais visíveis os efeitos produzidos pelo acelerado processo de urbanização, pois, a despeito de, nesse período, ter sido a Capital alvo do maior volume de investimentos públicos, desde os anos 60, a cidade assiste ao aprofundamento dos contrastes sociais, detectáveis no baixo nível de qualidade de vida e nos elevados índices de pobreza da população. As expressões físico-espaciais exibiam uma cidade em franca expansão, em que se viam traços de modernização contrastando com aspectos segregadores e excludentes (LIMA, 2003). Nessa década de 1980, amplia-se a malha urbana, através da construção de grandes avenidas, de pontes que interligam todas as regiões da cidade 5 e de extensos conjuntos habitacionais 6 . Concomitantemente a isso, a década de 1980 é marcada por fortes tensões sociais no campo das práticas de uso e ocupação do solo, fruto do acirramento dos conflitos entre os distintos agentes que atuam no espaço urbano - agentes imobiliários, movimento de luta pela moradia e o próprio Estado – para o que concorreram de forma decisiva alguns fatores: a inadequação dos instrumentos urbanísticos - então vigentes 7 - a uma complexa realidade urbana; a ausência de políticas públicas que enfrentassem a questão urbana e a extinção do SFH e do BNH. Algumas iniciativas municipais, ao invés de atuar sobre os conflitos, concorriam para o seu agravamento, pois respondiam mais às demandas de determinados grupos de pressão, vinculados ao mercado de terras urbanas, que ao conjunto de interesses da sociedade, reforçando aquela velha idéia de que o desenvolvimento urbano no Brasil sempre fugiu do 5 Teresina é banhada por dois rios: Poti e Parnaíba. 6 Conforme estudos realizados por Lima (1996; 2003) entre 1970 e meados da década de 1980 a periferia da cidade foi recortada e ampliada pela intensa intervenção estatal via política de habitação do governo federal. 7 Em 1977 foi elaborado o Plano Estrutural de Teresina (I PET), que passou a orientar a administração municipal sobre o espaço urbano especialmente no que respeita ao disciplinamento do uso do solo urbano. 11 enfrentamento da questão fundiária, “... preservando velhas alianças que sustentam o poder político” (MARICATO, 2001, p. 93). Em face da ausência de políticas públicas e de instrumentos urbanísticos eficazes, voltados à gestão da cidade, a segunda metade da década de 80 é palco de fortes disputas pela apropriação e uso do espaço urbano, com o crescimento das favelas e do movimento de luta pela moradia, o que leva o prefeito Wall Ferraz a enviar à Câmara Municipal, em 1988, um novo Plano Diretor (II PET) 8 , em que se desenhava o futuro da cidade até o ano 2000. Nesse novo Plano, enunciava o gestor o desejo de constituir um instrumento normativo e orientador dos “processos de transformação urbana, nos seus aspectos político-sociais, físico-ambientais e administrativos” (TERESINA, PMT, 1988). Dessa forma, a cidade, que vivia um rápido processo de expansão e de agravamento dos conflitos urbanos, recebeu novos instrumentos legais que deveriam ordenar o uso e a ocupação do solo, promover o parcelamento e o zoneamento urbano e fixar um novo código de posturas da cidade 9 . Urge registrar que a conjuntura política da segunda metade da década marca o retorno das eleições diretas para as capitais e Wall Ferraz elege-se pelo PMDB para exercer o 2º mandato (1986-1988) 10 , com o compromisso de governar com princípios de justiça social e de valorização da comunidade, priorizando as áreas mais carentes da cidade, e “conduzir democraticamente a administração pública”, idéias que deveriam ser traduzidas em uma “política de bairros” (TERESINA, PMT, 1988, p. 4). Desse modo, ao dar início à gestão o Prefeito promoveu uma reorganização da máquina administrativa, criando secretarias na área social, dentre estas, a de Habitação e Urbanismo, e institucionalizou os “conselhos populares” com o propósito de aproximar governo e povo 11 . Nota-se, assim, que, sob os ventos da redemocratização do país, da pressão do voto e dos graves problemas locais, o novo gestor procurava adequar-se aos novos tempos, introduzindo instrumentos formais de administração e elementos democráticos de gestão, sem, contudo, arriscar-se em práticas inovadoras, como outras experiências que, nos anos 80, se transformaram em paradigmas das gestões participativas e democráticas 12 , e alicerçaram as 8 II Plano Estrutural de Teresina, instituído pela Lei nº 1932, de 16.8.1988. 9 Em 1993, o II PET sofre sua primeira atualização através da modificação das leis relativas à ocupação e uso do solo urbano e a obras e edificações de Teresina. O argumento oficial era de que a emergência de novos problemas, como o crescimento vertical da cidade e da população, a presença de “construções desordenadas”, dentre outros, estavam a demandar “modernas e eficazes leis municipais” (TERESINA, PMT, 1993, p. 1). Na verdade, a complexa dinâmica espacial e o agravamento da questão urbanística apontavam os limites do Plano Diretor, suas contradições e incompatibilidades, demandando uma nova legislação urbana (LIMA, 2003). 10 Assumiu, pela 1ª vez, como prefeito nomeado, a prefeitura de Teresina, no período de 1975 a 1978. 11 Criados sob o decreto municipal nº 789, em março de 1986, esses órgãos serviam mais de âncora às ações do gestor municipal, não se caracterizando, portanto, por um perfil deliberativo. 12 A esse respeito, vejam-se Soares e Caccia-Bava (1998), Larangeira (1996) e Jacobi e Teixeira (1996). 12 propostas de descentralização das políticas públicas inscritas na Constituição de 1988, conforme já mencionado neste texto. Ao eleger como meta a urbanização da periferia, no contexto da “política de bairros”, os investimentos em saneamento básico, infra-estrutura e serviços urbanos constituíram a base da gestão de Wall Ferraz. Com efeito, o governo investe grande parte de sua receita em pavimentação e drenagem, construção de galerias, calçamento e fossas, bem como em ações pontuais de assentamentos de famílias retiradas de áreas consideradas inadequadas para habitação. Como se vê, tratava-se de iniciativas que reproduziam as formas tradicionais de atuação da administração pública municipal, não ousando o gestor em medidas que tocassem no foco dos conflitos urbanos: a questão fundiária e imobiliára. Assim, não se tornaram prioridades ações previstas no II PET, como: a regularização de ocupações em áreas de conflito fundiário, a criação do Fundo Municipal de Terras, o aumento da oferta de habitação popular e a criação de programas de melhoria habitacional. Na realidade, esses impasses apenas demonstravam a fragilidade dos governos, local e nacional, na formulação de políticas urbanas, o que se refletia tanto na ampliação dos conflitos relacionados à apropriação e uso do solo urbano quanto na ausência de uma política de habitação para os setores de baixa renda. Vale lembrar que desde o fechamento do BNH, o Brasil não apresentou um desenho consistente de política habitacional (MARICATO, 2001). Teresina torna-se, assim, a caixa de ressonância de um conjunto deproblemas estruturais, expressos em um forte processo de exclusão social, marca da “tragédia urbana” dos médios e centros urbanos, que deita raízes na formação histórica da sociedade brasileira, alicerçada em relações e práticas sociais clientelistas e paternalistas (MARICATO, 2001). Na verdade, a expansão da cidade engendrou o aumento dos conflitos urbanos, particularmente em torno da moradia, resultando na multiplicação dos assentamentos sob a forma de ocupações coletivas, marca expressiva dos problemas vividos por Teresina que, em princípio dos anos de 1990, já registrava 141 favelas, com 14.077 domicílios e 14.542 famílias (TERESINA, PMT, 1993a). Não obstante a um cenário de poucas realizações, após um interregno de 4 anos, período em que Teresina foi administrada pelo PFL, Wall Ferraz é reconduzido ao executivo municipal para o terceiro mandato, em 1993 (pelo PSDB), graças à imagem construída de um governo voltado para a periferia e comprometido com as mudanças democráticas. Nesse terceiro mandato, Wall Ferraz traça como objetivos básicos de sua nova gestão a melhoria da qualidade de vida e a oferta de empregos, particularmente para a população 13 pobre. Sintonizado com a reforma administrativa em curso, na esfera federal, o Prefeito toma algumas medidas para a modernização da estrutura administrativa, sobretudo, através do aperfeiçoamento do sistema de planejamento e de arrecadação fiscal. Destacam-se entre as diretrizes de seu governo (TERESINA, PMT, 1993b): Assegurar a participação do cidadão e das entidades da sociedade civil; Garantir a transparência de todas as ações do governo municipal; Informatizar os procedimentos de elaboração do orçamento e o acompanhamento de sua execução; Informatizar os diversos setores da administração pública, promover a descentralização administrativa com a implantação das administrações regionais; Incrementar e agilizar a arrecadação de tributos municipais; Instituir programas de geração de empregos; Implantar gradualmente a direção municipal do SUS; Reduzir o déficit habitacional e melhorar as condições de moradia da população de baixa renda; Instrumentalizar a ação municipal, implantando um programa de organização de uso e ocupação; Como se nota, Wall Ferraz traçou uma estratégia de governo voltada para a modernização da máquina administrativa, em especial para as áreas de planejamento, administração e arrecadação tributária e para a realização de ações para enfrentar os efeitos da crise econômica em nível nacional e as dificuldades da economia local, bem como as limitações tributárias, a despeito das mudanças constitucionais no tocante à descentralização fiscal. Na perspectiva de continuidade da “política de bairros”, Wall Ferraz reafirma o compromisso com as populações pobres, porém reorientando suas ações para as favelas, o que marca uma inflexão importante nas formas de tratamento dos assentamentos “ilegais”. Dessa feita, o Prefeito procura dotar as áreas já ocupadas, especialmente, as legalizadas, de obras de infra-estrutura, equipamentos e serviços urbanos. Além disso, inicia um programa de reassentamento que consistia na transferência de famílias, retiradas de locais considerados inadequados, para núcleos construídos pela Prefeitura – parques e residenciais – e áreas ocupadas que foram objeto de regularização. Complementarmente a essas ações, foram não só concedidos títulos de aforamento, de uso e posse de terreno, mas também realizadas desapropriações, além de projetos de melhoria habitacional (e de condições sanitárias). Com efeito, no período 1993-1996, a Prefeitura reassentou 3.562 famílias, distribuídas em 4 Parques e em duas áreas de conflitos (em processo de legalização), realizou 3.593 ações de melhoria habitacional em bairros, vilas e favelas, instalou 10.591unidades sanitárias e concedeu 6.132 títulos de uso e posse de terreno e 638 de aforamento (TERESINA, PMT, 1996), o que ainda representava uma resposta tímida à magnitude dos problemas urbanos e à urgência por uma política urbana. Conforme vimos, com a desarticulação da política de habitação, no âmbito nacional, e com a ausência de programas e financiamentos voltados para habitação, saneamento e urbanização de favelas, as iniciativas locais de diversos municípios brasileiros ficaram 14 condicionadas à captação de recursos e à apresentação de projetos em vários ministérios e órgãos federais. Nesse caso, em particular, os recursos foram mobilizados junto ao Ministério do Planejamento e Orçamento e à Fundação Nacional de Saúde e ao Ministério do Bem Estar Social. Parte significativa das ações na área de habitação foi desenvolvida pela Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS), que capitalizou mais espaço no governo, por assumir a tarefa de coordenar as ações de reassentamento de famílias, exercendo, assim, uma ação direta nas favelas, o que lhe conferia maior responsabilidade na representação do governo perante os conflitos por ocupação e uso do solo urbano e na negociação com os movimentos sociais. Essa Secretaria se destacou por ter realizado levantamentos sobre a situação das favelas em Teresina, constituindo base de dados para ações da prefeitura e de outros órgãos. Com efeito, em 1993 realiza-se o primeiro das três edições do censo de vilas e favelas; reatualizam-se os dados no Censo de 1996 e se observa que houve uma alteração positiva do quadro de conflitos por ocupação, o que foi atribuído às ações de urbanização empreendidas pela prefeitura. Entretanto, em que pesem os esforços da prefeitura, eles haviam sido insuficientes para atenuar a crise urbana, sobretudo, no que dizia respeito à questão habitacional, de tal forma que, em 1998, Teresina assiste à maior ocupação de toda sua história, Vila Irmã Dulce, que, na fase de ocupação, reunia 5 mil famílias – atualmente, 7 mil -, dado esse que, por si, denota a insuficiência das iniciativas locais para atender demandas gritantes que evocam medidas concretas de políticas urbanas e de largo alcance social. Contudo, Wall Ferraz fixou a sua imagem de um governante de cariz popular, graças à qual Firmino Filho, Secretário de Finanças, dessa terceira (e última) gestão, elegeu-se para exercer o mandato de 1997 a 2000. 3. O Projeto Vila-Bairro num contexto de descentralização das políticas públicas Firmino Filho assume a administração de Teresina com a promessa de dar continuidade aos compromissos de Wall Ferraz e reafirmando um discurso democrático e modernizador. Um passo inicial nessa direção foi a manutenção de quase todos os membros da equipe de Wall Ferraz em seu governo, o que sinalizava para a adoção da mesma estratégia político-administrativa 13 . Outra medida importante foi a designação do ex-secretário da 13 Muitos representantes do partido de Firmino Filho (PSDB) e alguns analistas identificam no perfil desse governo o desenho de uma nova gestão pública, germinada no segundo mandato de Wall Ferraz, com a retomada das eleições para as capitais, caracterizada por uma tendência democratizadora. Há, no entanto, leitura diversa acerca da atuação do governo municipal sobre os conflitos urbanos na segunda metade da década de 80 (vê LIMA, 2003). 15 SEMTAS para a Secretaria de Habitação e Urbanismo (SEMHUR). Esta Secretaria e a SEMPLAN se constituíram nas condutoras das ações urbanísticas do município. Com isso, Firmino Filho pretendia dar prosseguimento a uma linha de atuação considerada “bem sucedida”, através da qual se perpetuara a imagem de seu antecessor, mas vislumbrava também constituir um ponto de inflexão no campo da política e da administração pública local. Nesse sentido, o novo governante defendia a necessidade de se formular uma visão estratégica da cidade, capaz de produzir mudanças significativas na estrutura socioeconômicado município. Com o discurso de um governo eficiente e empreendedor, sintonizado com os desafios das cidades num mundo globalizado, prometia Firmino transformar Teresina em uma cidade moderna e competitiva. Da mesma forma que, movido pela onda democratizadora do país, declarava que a participação da sociedade civil seria um dos pilares de sua gestão. Firmino estabeleceu, assim, como prioridades de seu governo as áreas de educação, saúde, habitação, saneamento básico e geração de emprego e renda, traçando como diretrizes a descentralização político-administrativa - universalização do ensino, municipalização da saúde e da assistência social -, a institucionalização da participação da sociedade na deliberação do orçamento municipal, a melhoria da qualidade do meio ambiente, a redução do déficit habitacional e a melhoria da prestação de serviços. No delineamento dos eixos de atuação da intervenção municipal, além das ações setoriais, no campo das diversas políticas públicas, destacavam-se as “ações integradas”, compreendendo um conjunto de programas, projetos e instrumentos que deveriam se constituir na marca diferenciadora dessa administração, em relação às anteriores, por seu caráter estratégico e de grande impacto na estrutura e no espaço urbano. Integravam esse eixo os Projetos Vila-Bairro, Lagoas do Norte 14 , Revitalização do Centro, Prefeitura nos Bairros, Orçamento Popular, Agência de Desenvolvimento de Teresina e Agenda Teresina (TERESINA, PMT, 1997). Tais propostas foram condensadas em outro documento, intitulado “Visão sumária do macro-planejamento de Teresina”, no qual o Secretário de Planejamento expressava a necessidade de o gestor municipal formular ações de longo prazo e voltar a exercitar a capacidade de mobilização de recursos, “um elo perdido na década de 1970”. Asseverava esse Secretário: O caminho de se buscar o desenvolvimento somente pela ótica do curto prazo, do urgente e do inadiável, ergue barreiras intransponíveis para o correto enfrentamento dos nossos mais graves problemas (...). São os recursos financeiros próprios sempre escassos, a infindável conjuntura 14 Tratava-se de um projeto que visava sanear um conjunto de lagoas na zona norte da cidade e revitalizar a região. 16 das crises nacionais ou a versão acomodada da incapacidade de atração de novos recursos para ampliar os investimentos municipais que servem de fonte às justificativas. O discurso comum da miséria alastrada, da fome e do império das pequenas soluções para os maiores problemas deve ser substituído pela ousadia criativa, onde o Estado se volta para quem dele precisa; pela vontade – condição básica da realização – de fazer o necessário, vencendo circunstâncias que se interpõem a isso; e pela determinação de seguir no rumo decidido. Aqui, portanto, encontra-se uma visão sumária das intenções de investimento de Teresina, quer com recursos internos ou externos, para os próximos quatro anos, para onde estarão voltados todos os esforços de negociação de recursos (TERESINA, PMT, 1997a). Esses projetos, ao ocuparem uma posição estratégica e de ponta na ação programática do governo, foram concentrados em um único órgão – a Secretaria de Planejamento. Sua operacionalização de tais projetos deveria ser orientada por um “modelo de intervenção co- responsável”, o que refletia uma tendência mais geral de adoção de práticas democráticas e participativas na condução da administração pública, extrapolando os mecanismos de participação da democracia representativa. As primeiras iniciativas do Prefeito centraram-se na criação de diferentes instrumentos normativos de deliberação e controle social, nos vários campos das políticas públicas, como os conselhos gestores 15 . Além disso, em face da intenção do governo de priorizar ações urbanísticas associadas a mecanismos de participação o Prefeito criou, sob o decreto-lei, nº 3.344, de 7 de janeiro de 1997, o Projeto Vila-Bairro e, em março, a Comissão do Orçamento Popular de Teresina (decreto nº 3.414, de 14.03.1997). No mesmo mês, Firmino submete à Câmara Municipal o projeto de criação do Conselho Municipal de Habitação e do Fundo Municipal de Habitação, os quais foram aprovados sob a Lei 2.510, de 26 de março de 1997. Com essa medida, ficou constituído o caráter deliberativo do Conselho que, na forma da lei, tem “a finalidade de assegurar a participação da comunidade na elaboração e implementação de programas sociais na área da habitação e urbanismo, além de gerir o Fundo Municipal de Habitação que dá apoio e suporte financeiro na implementação de programas sociais para população de baixa renda”. Assim, concebido para ser o marco de sua 1ª gestão 16 , o Projeto Vila-Bairro integrava uma articulação mais ampla de intervenção urbana, tendo sido a única iniciativa 17 que teve ressonância, por se tratar de uma ação direta e de grande visibilidade nas favelas da cidade, 15 Foram criados os conselhos de desenvolvimento econômico, habitação, de revitalização do centro, etc, dentre outros. 16 Na esteira dessas realizações e de uma imagem “bem construída”, sob o signo da competência e da eficiência”, Firmino Filho se reelege para o segundo mandato (2001-2004). 17 Das ações previstas na 1ª gestão, efetivamente, as que tiveram impacto foram o Projeto Vila-Bairro e o Orçamento popular, este fortemente criticado pelo não atendimento as demandas das comunidades. Ao final dessa gestão, foram criadas as Administrações Regionais e, no segundo mandato, foi realizado o Congresso da Cidade no qual se elaborou o Plano Estratégico da cidade, batizado de Agenda 2015. 17 produzindo um forte efeito-demonstração capaz de garantir a continuidade do PSDB na Prefeitura, através da eleição de seu sucessor, Silvio Mendes para o mandato de 2005-2008 18 . Ao apresentar o Projeto Vila-Bairro como principal iniciativa de seu governo, Firmino Filho justificava a necessidade de responder, com ações concretas e eficientes, ao profundo quadro de empobrecimento da população urbana, reconhecendo, em discurso, que a pobreza urbana era um dos principais desafios no tratamento dos problemas urbanos da Capital, o que demandava uma ação pública de enfrentamento das grandes disparidades econômicas e sociais, que, aliás, alimentam a existência de duas cidades, mutuamente excludentes, mas entranhadas numa mesma dinâmica. Desse modo, a questão da cidadania, a participação democrática e a construção de uma política urbana orientada para o enfrentamento da segregação socioespacial 19 da cidade se constituíam no núcleo central e, ao mesmo tempo, no grande desafio dessa proposta. Na realidade, a grande aposta do Prefeito residia no redesenho do espaço urbano a partir da intervenção urbanística na periferia, com vistas à reorientação do que classificava como “crescimento desordenado no município”. Para a sua materialização, o governo municipal traçara como objetivos estratégicos a implantação de ações globais de infra- estrutura física e social; parceria entre o poder público municipal e a sociedade civil; e estímulo à geração de renda. Delineava-se, assim, a idéia de que, dotando as áreas-foco desses serviços, bem como ensejando condições de geração de renda, a administração municipal realizaria, de forma objetiva, a integração dessas áreas pobres à cidade. Sustentado nessas premissas, o Projeto Vila-Bairro, que se convertera numa arrojada proposta físico-urbanística em assentamentos de baixa renda 20 , ganhou feição concreta em 1998, quando o município passou a receber recursos federais, provenientes do FGTS e do OGU e, posteriormente, do BNDES, principais fontes de financiamento, configurando, já no seu nascedouro, uma forte dependência externa e reafirmando uma tendência, apontada por18 Em 2004, foi eleito prefeito de Teresina o médico Silvio Mendes, então Secretário de Saúde de Firmino Filho, 19 Entende-se por segregação socioespacial a forma de apropriação desigual dos bens e serviços sociais, econômicos e culturais produzidos pelas diferentes classes sociais, no espaço urbano. As políticas urbanas na medida em que incidem sobre o espaço, produzindo sua marca na configuração territorial e espacial, podem aprofundar ou não essa dinâmica segregadora (RAMOS, 2003). 20 Estamos considerando assentamentos de baixa renda todos os núcleos situados no espaço urbano em que habitam populações pobres, geralmente constituídos a partir de ocupações coletivas ou da intervenção do poder público municipal. Esses núcleos recebem a caracterização oficial de favelas, vilas e parques e residenciais que seguem a seguinte conceituação: “Vila: área de moradia (comunidade) surgida a partir da ocupação por famílias sem-teto sem obedecer às exigências feitas pela lei de parcelamento do solo, mas possível de ser regularizada, saneada e urbanizada. Favela: área de moradia (comunidade) surgida a partir de ocupação por famílias sem-teto geralmente localizadas em áreas de risco iminente (alagamento/desmatamento) ou em leito de vias públicas (ruas e/ou avenidas) sujeitas quase sempre a remoção. Parques e Residenciais: loteamentos feitos pela Prefeitura obedecendo todos os requisitos vigentes na legislação de parcelamento do solo” (TERESINA, PMT, 1999). 18 Cardoso e Ribeiro (2000), de que essas iniciativas locais sobrevivem, muitas vezes, quando há habilidade de equipes técnicas locais na apresentação de bons projetos a ser financiados. Sobre isso, Firmino Filho dizia em entrevista 21 : Teresina é uma cidade de pequena capacidade de investimento. Então, um projeto de larga escala, necessariamente exige a busca de financiamento externo e para conseguir financiamento externo você tem que criar coisas criativas, inovadoras. Você não vai chegar ao financiador: olha, eu quero construir 200 metros de calçamento, quer dizer, é uma divulgação muito pobre. Tem que criar uma coisa, um nome fantasia. Tem que criar uma concepção diferente. As dificuldades locais, na verdade, apenas evidenciavam as limitações constitucionais no que respeita ao sistema federativo, em especial, no campo das políticas urbanas. Embora pesquisas empíricas demonstrem que as transferências federais para os municípios se elevaram significativamente, a partir de 1988, na práticas, essas transferências não se mostravam suficientes para fazer face à magnitude dos problemas das grandes cidades, em especial, as que apresentam limitações no desempenho da economia local, como é o caso de Teresina. Avaliações internas do projeto 22 apontam, no entanto, que um fator favorável à contratação de financiamento, por parte do município (vale a ressalva de que Firmino Filho fora secretário de finanças da gestão precedente), foi, além da capacidade técnica de mobilização de empréstimos em vários órgãos federais, a situação fiscal do município em termos de potencial de endividamento público. Essa situação se compatibilizava com as novas exigências introduzidas pelo governo FHC no contexto de descentralização da política de habitação e saneamento, segundo as quais um governo estadual ou municipal “... somente poderia receber um financiamento caso comprovasse capacidade de endividamento” (ARRETCHE, 2002, p. 34). Conforme veremos adiante, essas garantias não foram suficientes para evitar os constrangimentos institucionais e operacionais em face do atraso no processo de negociação e liberação dos recursos, o que resultou na alteração da dinâmica das atividades e no prolongamento da execução do projeto ao segundo mandato do prefeito Firmino Filho e na insatisfação permanente das comunidades envolvidas. 21 Concedida a Edmundo Ximenes Neto, em 10 de dezembro de 2004, por ocasião da pesquisa de campo. 22 Trata-se de avaliação institucional realizada por Oferta Assessoria e Consultoria Ltda (OERTA, 2000) e de estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), contratado por uma das agências financiadoras - CEF (FIRME, 2002; IBAM, 2002). 19 3.1. O formato e a concepção do Projeto Vila-Bairro A proposta, concebida quando Firmino encontrava-se em campanha, em 1996, ganhou sua forma definitiva em princípio de 1997. O prefeito, com o conhecimento que tinha da administração municipal lançou mão de um grupo de técnicos da prefeitura, com experiência acumulada em ações de planejamento e de atuação nas favelas, para consolidar o formato do projeto. Logo, para a contextualização da proposta e definição da estratégia operacional, a equipe buscou suporte em estudos institucionais já existentes sobre assentamentos urbanos de baixa renda, os Censos das Vilas e Favelas (TERESINA, PMT, 1993a; 1996a), a partir dos quais se construíram os argumentos empíricos para sensibilizar as agências de fomento e captar os financiamentos externos. Baseado nas premissas e diretrizes que orientavam o plano de governo de Firmino Filho, o Projeto Vila-Bairro foi construído com a intenção de ser um diferencial em relação às tradicionais ações de intervenção no espaço urbano, restritas a ações pontuais, setoriais e fragmentárias, de baixo impacto social, através tanto de uma atuação compartilhada de vários órgãos quanto da integração de distintas ações no mesmo território, executadas simultaneamente. O Projeto tinha como tinha como pressuposto inicial a idéia segundo a qual, através de uma intervenção sistematizada e integral em áreas vulneráveis do espaço urbano, se lograria alteração significativa no quadro de segregação socioespacial e de extrema pobreza da cidade (TERESINA, PMT, 1997b). Um segundo pressuposto era o de que, com essas realizações, as respectivas áreas beneficiadas ganhariam uma nova dinâmica e assumiriam o status de bairros, conforme objetivo geral da proposta, isto é, o de “consolidar as vilas existentes em Teresina em verdadeiros bairros, com padrão mínimo de urbanização, orientado para o desenvolvimento socioecômico” (op.cit, p.12). Com base nos dados do Censo das Vilas e Favelas (TERESINA, PMT, 1996a), a equipe da SEMPLAN delimitou a ação do projeto nos 149 assentamentos cadastrados, aos quais foram incorporados mais seis que surgiram, na Capital, após a conclusão do referido Censo. A população-alvo totalizava, então, 116.000 habitantes (17,7% da população), e 29.095 famílias. Estabeleceu-se, assim, como meta física a atuação em 155 assentamentos, localizados nas cinco regiões administrativas da cidade, os quais foram agrupados em 50 grandes núcleos territoriais, levando em conta critérios, como: proximidade entre os assentamentos; quantidade de domicílios/famílias para definição de demanda para equipamentos sociais; localização e capacidade de atendimento dos equipamentos existentes; inter-relação com circunvizinhança (utilização de infra-estrutura instalada). Esses núcleos, 20 bases de referência para a transformação dos assentamentos em bairros, foram formados a partir de uma área-pólo geralmente, um parque da prefeitura ou outro assentamento de grande porte. A intervenção foi concebida em 4 grandes eixos: Infra-estrutura física; Infra-estrutura comunitária; Ação educativa e Geração de emprego e renda, integrando 20 ações 23 , as quais deveriam ser executadas em todas as áreas contempladas no projeto, segundo o cronograma físico e o financeiro, previstos para os 4 anos de execução. Na configuração das ações, destaca-se a prevalência do eixo de infra-estrutura física e uma concentração de investimentos em urbanização, notadamente em infra-estrutura básica, regularização fundiária e melhoria habitacional, o que pode ser observado na distribuição das metas físicas e financeiras do projeto,em seu formato original e nos reajustes que se seguiram no transcorrer da intervenção, conforme registra Relatório de Oferta Consultoria e Assessoria Ltda (OFERTA, 2000). Com isso, observa-se que, já em sua formulação, o projeto enunciava uma forte ênfase em ações de impacto físico-espacial, embora se afirmasse que a infra- estrutura física seria apenas o suporte das demais ações. Outro ponto a destacar é que não foram previstas ações relativas à provisão de habitações, o que reforça mais ainda a focalização na urbanização, conforme se sucedera também com a experiência do Programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro 24 . Acredita-se que a não inclusão desse item deveu-se à natureza e aos objetivos do projeto, mas também a uma estratégia adotada pela equipe para a adequação do projeto às linhas de financiamento das instituições de fomento, embora o Censo das Vilas e Favelas já indicasse a existência de áreas inadequadas para urbanização, dada a precariedade das condições locais 25 . Os investimentos iniciais previstos, nesse setor de habitação, contemplavam somente ações de melhoria habitacional e construção de unidades sanitárias. Imediatamente após a implantação, a realidade impôs mudanças na proposta original, que, sofreu o seu primeiro reajuste, em 1998, 23 Pavimentação poliédrica, abastecimento de água (ligações), energia elétrica (ligações), regularização fundiária (lotes), melhoria habitacional (cesta básica), unidade sanitária popular, atenção integral à criança e ao adolescente (fam), creche (unid.), unidade de saúde (unid), escola (unid.), praça (unid.), campo de futebol (unid.), centro comunitário de treinamento e produção, quadra poliesportiva (unid), lavanderias comunitárias (unid), hortas comunitárias (unid), quintais urbanos de produção (unid), educação ambiental (domicílios), distribuição de filtros (unid.), arborização (unid.). 24 Na proposta original do Programa Favela-Bairro, implementado por César Maia a partir de 1993, no Rio de Janeiro, também não foi prevista a construção de unidades habitacionais, conforme informa Cardoso (2002), sendo esta ação incorporada, posteriormente. Para efeito de esclarecimento, frise-se que, em entrevista concedida a Edmundo Ximenes Neto, em dezembro de 2004, Firmino Filho relatou viagem que fizera com seu Secretário de Planejamento ao Rio de Janeiro para conhecer aquela experiência, “in loco”, o que serviu de referência para a experiência de Teresina. 25 Segundo o Censo das Vilas e Favelas (TERESINA, PMT, 1996a), no qual se baseou a proposta do Vila-Bairro, 16,76% dos assentamentos estavam em áreas propensas a alagamento, em situação de risco, ou em leito de rua. 21 (OFERTA, 2000), momento em que se acrescentou ao conjunto das ações a construção de moradia 26 e se alteraram metas físicas e financeiras em outras áreas. 3.1.1 Estratégia de intervenção e forma de gestão Conforme mencionado anteriormente, como o Projeto Vila-Bairro integrava uma proposta urbanística mais ampla, a estratégia adotada pelo governo foi a de nomear uma comissão de direção e a Unidade Técnica Central (UTC), vinculada à estrutura da SEMPLAN, a qual deveria ser responsável pela condução das ações, competindo-lhe as tarefas de coordenação, supervisão, implementação e articulação institucional. Além disso, a equipe tinha a missão de mobilizar recursos, uma vez que a eficácia da proposta dependia, inteiramente, de captação externa, tanto junto aos órgãos federais, quanto a agências internacionais, com tradição nesse tipo de financiamento, como o BID 27 . A Co-execução estaria a cargo de diferentes órgãos vinculados às ações do projeto - Habitação e Urbanismo, Criança e Adolescente, Meio Ambiente, Saúde, Esportes e Lazer, Agricultura e Abastecimento - e das comunidades locais, com as entidades associativas. Com isso, se pretendia imprimir mais eficiência e racionalidade à execução das ações, o que foi assinalado como um dos aspectos positivos da experiência, tanto pelos técnicos (OFERTA, 2000) quanto pelas agências financiadoras (FIRME, 2002; IBAM, 2002). A estratégia operacional foi desenhada em dois pólos de atuação: intervenção sistematizada e integral nas áreas, e participação da comunidade. Com o primeiro, vislumbrou-se uma ação integral e intersetorial a partir de parcerias com outros órgãos e a sociedade civil. Essa atuação se daria de forma intensiva e ampla em cada área, condição para a continuidade da programação em novos assentamentos, segundo o roteiro de realizações por ano de execução. A participação da comunidade, como o sustentáculo da intervenção, deveria se materializar em todas as fases do projeto, constituindo-se na principal inovação, no tocante às relações entre governo e população. Ressalte-se, no entanto, que, na proposta, ficou pouco clara essa noção de processo, uma vez que as atividades previstas sugerem uma inserção apenas na fase de execução, conforme segue: Penetração nas vilas para apresentação de propostas e constatação do nível de aceitação e adesão; 26 Em conversa com técnicos da UTC (abril de 2005), verificou-se que a inclusão da construção de unidades habitacionais deveu-se exatamente ao fato de se ter detectado, durante a execução do projeto, situações com o perfil acima descrito, o que exigiu a retirada das famílias do local e sua transferência para outros assentamentos. 27 A esse propósito, o programa Favela-Bairro (RJ), contou com grande volume de financiamento do BID. Em Teresina, a captação de recursos junto a esse organismo somente ocorreu, conforme planilha da UTC, em 2004, ao final da segunda gestão de Firmino Filho, ano em que também se iniciaram as negociações para o Projeto Lagoas do Norte, item de sua agenda política em 1997, conforme vimos em parágrafos anteriores. 22 Definição de papéis para implantação das ações, estabelecendo-se o máximo de parceria com as comunidades; Definição de participantes nas ações sócio-educativas e produtivas; Instalação de processos de comunicação, como seminários, assembléias, cartilhas, rádios comunitárias, cartilhas e folders (TERESINA, PMT, 1997b). Em 1998, a UTC elaborou um documento, intitulado “Trabalho Social”, em que foram enfatizados a dimensão social e o caráter integrador do projeto e definidas as atividades a ser desenvolvidas como suporte das demais ações (TERESINA, PMT, 1998). Na sua justificativa, o documento traz temas centrais da discussão que se dá em torno da democratização do poder local, como participação, parcerias, mas, contraditoriamente, adota uma linguagem técnica própria de paradigma que nortearam gestões centralizadoras, burocráticas e autoritárias do passado. Não há, entre seus objetivos, a preocupação em fortalecer a governança local, através da articulação das entidades associativas ou de outras formas organizativas. Com efeito, a ênfase das ações está na mobilização, sensibilização e organização comunitária, na realização de atividades sócio-educativas, de reuniões de avaliação do projeto e na construção de parcerias, tudo isso concorrendo para uma estratégia mais voltada para a divulgação do projeto e para a convocação das populações para colaborar na implementação das ações. Trata-se de dimensões que merecem ser aprofundadas, constituindo-se uma das tarefas a ser cumpridas na continuidade da pesquisa. 3.1.2 Recursos previstos/fontes de financiamento Conforme visto, a viabilização do projeto ficou condicionada à parceria com organismos de fomento em âmbito nacional e internacional. No plano internacional, não foram definidas as fontes de recursos, quanto ao plano nacional, foram nomeados as seguintes: CEF, através dos programas Habitar–Brasil e Pró-Infra, envolvendo recursos da União (OGU) e do Pró-moradia e do Pró-saneamento, com recursos do FGTS; BNDES, atravésde linhas de financiamento para projetos de natureza econômica e social; Outros órgãos federais e estaduais; Organizações não-governamentais de cooperação internacional; O projeto foi orçado em R$ 67.660.530,00 (sessenta milhões, seiscentos e sessenta mil e quinhentos e trinta reais), sendo que a maior parte do financiamento, 58,25%, deveria ser contratada com a CEF. Outra parcela significativa dos recursos, 31,40%, deveria ser fomentada junto ao BNDES, ficando o restante, 10,35%, como contrapartida da prefeitura (tabela 1). 23 Tabela 1 - Projeto Vila-Bairro – Distribuição dos recursos previstos*, segundo fontes de financiamento. Teresina - Piauí. 1997 Fonte Valor (R$) % PMT (executado em 1997) 1.035.526,00 1,53 CEF (FGTS) Pró-Moradia Pró-Saneamento PMT (Contrapartida) 30.980.000,00 17.055.000,00 13.925.000,00 3.610.000,00 45,79 25,21 20,58 5,33 OGU Habitar-Brasil Pró-Infra 8.430.000,00 6.000.000,00 2.430.000,00 12,46 8,87 3,59 BNDES PMT (Contrapartida) 21.244.504,00 2.360.500,00 31,40 3,49 TOTAL 67.660.530,00 100,00 Fonte: Projeto Vila-Bairro (TERESINA, PMT, 1997). *Valor calculado em setembro de 1997, data de conclusão da proposta. No perfil de desembolso anual dos recursos, para a execução do projeto (Quadro 1), foi alocado maior volume de investimento no período de 1998 a 2000, e menor, em 1997, ano de implantação da proposta, tempo considerado necessário à contratação dos financiamentos previstos. Note-se que o maior volume de gastos deveria ocorrer em 1998, ano de consolidação do projeto. Quadro 1 – Projeto Vila-Bairro. Distribuição dos recursos previstos segundo fontes de financiamento e ano de contratação. Teresina – Piauí. 1997 Fonte Recursos (R$) /Ano Total 1997 1998 1999 2000 CEF 2.968.769,95 5.886.230,05 10.712.500,00 10.712.500,00 30.980.000,00 Habitar Brasil* 1.000.000,00 5.000.000,00 - - 6.000.000,00 Pró-infra*) 405.000,00 2.025.000,00 - - 2.430.000,00 PMT 446.111,86 1.455.468,80 2.052.222,67 2.052.222,67 7.006.026,00 BNDES 236.989,06 7.002.505,98 7.002.505,98 7.002.505,98 21.244.504,00 Total 5.756.870,87 21.369.204,83 19.767.228,65 19.767.228,65 67.660.530,00 Fonte: Projeto Vila-Bairro (TERESINA, PMT, 1997) * Recursos previstos apenas para os dois primeiros anos de execução do projeto. Corroborando o mencionado em parágrafos acima, o eixo infra-estrutura se destaca, no conjunto dos recursos a serem investidos, com o percentual de 81%, ou seja, 53 milhões de reais, ao qual seguem, com um percentual mais baixo, de 14,1%, os investimentos a ser aplicados em infra-estrutura comunitária. No conjunto das ações, as prioridades são as relacionadas à melhoria habitacional, à pavimentação poliédrica, à construção de unidades sanitárias, ao abastecimento de água e à regularização de lotes urbanos, todos circunscritos ao eixo de infra-estrutura. Em segundo plano, situam-se os investimentos em construção de 24 creches, centros comunitários, escolas, implantação de hortas comunitárias e construção de quadras poliesportivas. Nota-se, assim, na proposta original, uma clara opção pelas atividades físico- urbanísticas, em detrimento das atividades sociais, que, segundo os próprios pressupostos da proposta, seriam o seu suporte, uma contradição também observada no Programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro, segundo Cardoso (2003) e Cabral (2002). 3.2. A implementação da proposta, avanços e impasses. O projeto, conforme o previsto, foi implantado no segundo semestre de 1997, período também em que se iniciaram as incursões junto aos órgãos financiadores para captação dos recursos necessários à sua execução, o que ocorreu apenas no 2º semestre de 1998 e 1º/1999. (OFERTA, 2000). Nesse ínterim, o projeto sofreu sua primeira alteração, resultando na elevação do montante de R$ 67.660.530,00 para 68.616.026 milhões de reais, conforme se confere na tabela 2. Tabela 2 – Projeto Vila–Bairro. Recursos atualizados segundo fonte de financiamento. Teresina – Piauí. 1998. Fonte Valor (R$) % CEF – FGTS (Pró-Moradia / Pró-Saneamento) 29.679.832 43,3 BNDES 22.200.000 32,4 ORÇAMENTO GERAL DA UNIÃO (Habitar-Brasil/Pró-Infra) 8.430.000 12,3 FNS 1.000.168 1,4 SEPRE/MPO 300.000 0,4 TESOURO MUNICIPAL 7.006.026 10,2 T O T A L 68.616.026 100,00 Fonte: Relatório de Avaliação do Projeto Vila–Bairro (OFERTA, 2000) Note-se que, além da atualização das metas financeiras, ocorreu também a inclusão de outras fontes de financiamento, como a SEPRE (MPO) e a FNS (MS). Dado ao reduzido valor do montante a ser captado junto a esses órgãos, supõe-se que essa foi uma forma encontrada para suprir as demandas enquanto se negociava com as agências financiadoras. Em face do atraso no processo de negociação e liberação dos recursos, em 1997, ano de implantação do projeto, os investimentos ficaram restritos aos recursos do tesouro municipal, na ordem de 2,62% do valor total aplicado até 2004, percentual que, embora reduzido, exerceu, segundo Firme (2002), uma função estratégica na sustentabilidade financeira e social do projeto. 25 As primeiras contratações consolidadas junto à CEF se realizaram através dos Programas Habitar-Brasil e Pró-Infra, financiados com recursos do OGU. Devido a exigências para a contratação de recursos oriundos do FGTS, as negociações com o pró-moradia e o pró- saneamento só ocorreram no 1º sem/1998. As contratações com o BNDES somente se concretizaram em julho de 1999 (FIRME, 2002). O atraso no início das atividades afetou, sobremodo, a proposta na sua própria concepção, pois “as ações foram adequadas ao ritmo da disponibilização dos recursos” (IBAM, p. 211, 2002) e a estratégia operacional ficou condicionada aos critérios das linhas programáticas das agências financiadoras (OFERTA, 2000). Em entrevista à Firme (2002, p. 10), a coordenadora da UTC declarava que “a diferença entre os tempos e os movimentos dos processos de negociação e de liberação de recursos junto às diversas fontes gerou uma descontinuidade das ações planejadas, tendo-se que executá-las, conforme os diferentes itens de serviços apoiados por fonte e em função do período em que cada uma de fato ocorreu” (grifo nosso). Nota-se, assim, que os objetivos sociais do projeto ficaram submetidos à liberação de recursos externos e a critérios técnicos das instituições financiadoras, o que expunha a vulnerabilidade do município para levar a cabo propostas de largo alcance, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ponto de vista qualitativo. Frente a esses obstáculos, a dinâmica da intervenção ficou comprometida, pois, conforme previsto, não houve a simultaneidade na execução das ações em todas as áreas-foco do projeto, uma vez que essas ações estavam à mercê da liberação dos recursos, o que é reforçado no estudo do IBAM (2002, p. 207): “As ações proposta pelo Vila-Bairro não se desenvolvem simetricamente ao longo do tempo. Há períodos de maior ênfase em alguns dos componentes e menor em outros, em grande medida em função da disponibilidade de recursos”. O documento acima citado menciona ainda que, até julho de 2000, último ano da 1ª gestão Firmino Filho (1997-2000), grande parte da meta, no concernente às ações de pavimentação poliédrica e construção de unidade habitacional, fora cumprida, ao passo que, para as demais ações, não se verificara um bom desempenho das metas previstas, frustrando as comunidades, cujas demandas se multiplicavam nos fóruns zonais do orçamento popular, sem nenhum aceno de retorno imediato. Segundo Oferta Consultoria e Assessoria Ltda. (OFERTA, 2000), do total de recursos previstos, até o ano de 2001 estavam assegurados R$ 42 milhões (62% do previsto), significando dizer que os R$ 26milhões (38% do total estimado) ainda dependiam de negociações junto às fontes financiadoras, o que se avaliava de fácil captação, devido ao grau de visibilidade atingido pelo projeto (FIRME, 2002). Entretanto, a performance de aplicação 26 dos recursos, conforme dados obtidos junto à UTC/SEMPLAN, não confirma essa previsão. Em primeiro lugar, até o ano 2000, haviam sido aplicados 35 milhões, um montante inferior ao acima aludido, o que correspondia a 52,14% do total orçado. Em segundo lugar, o processo de captação do percentual restante não se deu de forma tão rápida, pois somente, em 2004, foi possível captar uma quantidade significativa de recursos, da ordem de R$ 9 milhões e trezentos mil reais, não se atingindo, mesmo assim, a meta prevista. Considerações finais Malgrado os constrangimentos, o projeto é apresentado como inovador por conferir caráter multissetorial e integrado às ações, superando aspectos meramente físico-territoriais e urbanísticos e incorporando ações de cunho social e ambiental. Além disso, a natureza abrangente, a mobilização de parcerias e o trabalho com as comunidades, a capacidade e habilidade técnica da equipe para apresentar bons projetos e mobilizar vultosas somas de recursos, tudo isso concorreu para a avaliação da intervenção como inovadora, uma “good practice”. No entanto, há que se fazerem algumas considerações sobre a experiência local. Em primeiro lugar, em que pese a diferença de abordagem dessa intervenção, em relação a práticas anteriores, destaque-se que a concepção multissetorial e integrada foi enormemente afetada pela sua condicionalidade a fatores externos, deixando visíveis as dificuldades de sobrevivência do programa. A despeito da eficiência da equipe local, os dois primeiros anos limitaram-se às negociações, o que se deixa entreverem as dificuldades em operar as metas físicas e financeiras, segundo o cronograma fixado. A demora também nas liberações dos recursos implicou em prorrogação do prazo de conclusão da intervenção e em constrangimentos no atendimento das demandas, que não ocorriam no ritmo desejado pelas comunidades locais. No que tange ao desempenho das ações, constatou-se a focalização nos aspectos físico-urbanísticos, sobrepujando as ações de caráter social e ambiental, o que pode ser notado no quantitativo de recursos aplicados. Os números indicam que, dos R$ 55.483.083 milhões aplicados até dez/2004, 39 milhões foram destinados à infra-estrutura física, restando à geração de emprego e renda e ação educativa 1.877 e 922 mil, respectivamente. O que se nota é que o déficit em infra-estrutura nas favelas e vilas na cidade era enorme, o que explica a concentração dos investimentos em pavimentação, abastecimento de água, energia, melhoria habitacional e outras, mostrando-se limitada a ação em ternos de 27 impacto no quadro sócio-econômico do município, especialmente no cotidiano das populações-alvo da intervenção. Por fim, conclui-se que embora os dados e análises indiquem uma alteração importante na paisagem urbana da cidade, com efeito, no perfil de muitos assentamentos, na verdade, os resultados se mostraram insuficientes para alterar o quadro de segregação socioespacial da cidade. Cidade esta que acumula dívidas históricas em termos de cidadania e de políticas urbanas, que efetivamente enfrentem a questão das desigualdades sociais e a distribuição de renda. A titulo conclusivo, registre-se que, dados recentes do IBGE (2005), atestam que Teresina é o município com maior concentração de renda no estado e a Capital com menor renda per capita do país. Bibliografia ALMEIDA, M. Hermínia T. de. e CARNEIRO, Leandro P. Liderança local, democracia e políticas públicas. Opinião Pública, V. IX, n. 1, p. 124-147. Campinas, Unicamp, 2003. ALMEIDA, M. H. T. Federalismo e políticas sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 10, n.28, 1995. ARRETCHE, Marta. 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