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O gato que podia ler de tras pa - Lilian Jackson Braun

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Título original americano
THE CAT WHO COULD READ BACKWARDS
1966
Tradução (amadora)
Mari Oaks, 2014-2020
A Autora
LILIAN JACKSON (1913-2011) nasceu em Willimansett, Chicopee,
Massachusetts, e começou a escrever poesia ainda adolescente para o
Detroit News. Fez os textos publicitários de muitas lojas de departamentos
de Detroit. Por 30 anos foi editora da seção Good Living (Bem Viver) do
diário Detroit Free Press, até se aposentar em 1978. Entre 1966 — quando
o New York Times a elegeu "Novo Detetive do Ano” por seu livro de estreia
— e 1968, publicou três romances aclamados por crítica e público: este O
Gato que Podia Ler de Trás para Frente, The Cat Who Ate Danish Modern
e The Cat Who Turned On and Off.
Então, em 1968, Lilian desapareceu completamente do cenário editorial,
e por 18 anos. Em 1986, a Berkley reapresentou seu trabalho a uma nova
geração de fãs, com a publicação de um livro original, The Cat Who Saw
Red. Vieram mais quatro títulos e a reimpressão dos sucessos dos anos 60.
A série voltou ao topo da lista de mais vendidos, onde permaneceu por 20
anos, traduzida em 16 línguas e vendendo cópias aos milhões mundo afora.
Seu 29º (e último) romance publicado, The Cat Who Had 60 Whiskers, foi
lançado pela Penguin em janeiro de 2007.
Como muitos escritores de sua geração, era tecnofóbica assumida:
escrevia os livros à mão e só depois os digitava. Pouco se sabe sobre Lilian
Jackson Braun, que protegia com rigor sua vida privada. Somente em 2005
ela revelou, numa rara entrevista, a data correta de seu nascimento. Ficou
viúva do primeiro marido, Louis Paul Braun, e se casou com Earl Bettinger,
a quem dedicava os livros: "Para Earl Bettinger, o marido que...". Ficaram
casados por 32 anos.
Lilian morreu aos 97 anos de infecção pulmonar em 2011. Estava
escrevendo o 30º romance, The Cat Who Smelled Smoke. (Com informações
da Wiki)
Sinopse
O gato que podia ler de trás para frente (1966) é o primeiro romance da
série "The cat who...", da escritora americana LILIAN JACKSON BRAUN.
Quando a história começa, o desempregado repórter de polícia Jim
Qwilleran consegue trabalho, para seu próprio espanto, na editoria de arte
de um jornal. Se a área é um profundo mistério para o jornalista, mais ainda
o assassinato de um crítico de arte detestado por todos. É neste cenário que
Qwill será adotado pelo cerebral gato siamês Koko, parceiro inseparável na
investigação das pistas e do comportamento criminoso.
Ordem dos livros
1. The Cat Who Could Read Backwards (1966)
2. The Cat Who Ate Danish Modern (1967)
3. The Cat Who Turned On and Off (1968)
4. The Cat Who Saw Red (1986)
5. The Cat Who Played Brahms (1987) • 1º romance publicado no Brasil
6. The Cat Who Played Post Office (1987)
7. The Cat Who Knew Shakespeare (1988) • 2º romance publicado no
Brasil
8. The Cat Who Sniffed Glue (1988)
9. The Cat Who Went Underground (1989)
10. The Cat Who Talked to Ghosts (1990) • 3º romance publicado no
Brasil
11. The Cat Who Lived High (1990)
12. The Cat Who Knew a Cardinal (1991) • 4º romance publicado no
Brasil
13. The Cat Who Moved a Mountain (1992)
14. The Cat Who Wasn't There (1992)
15. The Cat Who Went into the Closet (1993)
16. The Cat Who Came to Breakfast (1994)
17. The Cat Who Blew the Whistle (1995)
18. The Cat Who Said Cheese (1996)
19. The Cat Who Tailed a Thief (1997) • 5º romance publicado no Brasil
20. The Cat Who Sang for the Birds (1999)
21. The Cat Who Saw Stars (1999)
22. The Cat Who Robbed a Bank (2000)
23. The Cat Who Smelled a Rat (2001)
24. The Cat Who Went up the Creek (2002)
25. The Cat Who Brought Down the House (2003)
26. The Cat Who Talked Turkey (2004)
27. The Cat Who Went Bananas (2005)
28. The Cat Who Dropped a Bombshell (2006)
29. The Cat Who Had 60 Whiskers (2007)
30. The Cat Who Smelled Smoke (cancelado pela Putnan por morte da
autora)
Dedicado a Earl Bettinger, 
o marido que...
UM
Jim Qwilleran, cujo nome confundiu revisores e linotipistas por duas
décadas, chegou quinze minutos mais cedo para seu compromisso com o
editor do Daily Fluxion.
Na recepção, pegou um exemplar da edição matinal e estudou a
primeira página. Leu a previsão do tempo (excepcionalmente quente), os
números da circulação (427.463) e o slogan da editora, esnobemente
impresso em latim (FIAT FLUX).
Leu a matéria principal, um julgamento por assassinato, e a secundária,
sobre a disputa para governador, na qual encontrou dois erros tipográficos.
Viu que o museu de arte perdeu sua verba de um milhão de dólares, mas
pulou os detalhes. Pulou também o caso de um gatinho preso num cano de
esgoto, mas leu todo o resto: Tira pega pulha a tiro. Juiz flagra stripper no
pulo. Bolsa sobe, taxa irrita.
Qwilleran podia ouvir ruídos familiares além da porta com painéis de
vidro: máquinas de escrever soando, teletipos tilintando, telefones gritando.
A esses sons, seu amplo bigode preto e branco se eriçou e ele alisou-o com
os nós dos dedos. Saudoso da visão de agitação e desordem de uma redação
de notícias locais antes do fechamento, foi até a porta para uma olhada.
Os sons eram autênticos, mas a cena, descobriu, estava toda errada. As
persianas estavam alinhadas. As mesas pareciam arrumadas e sem
arranhões. Jornais e papéis amarrotados que deveriam estar no chão podiam
ser vistos em lixeiras de arame. Enquanto contemplava a cena com espanto,
um som estranho chegou a seus ouvidos — um som que não se
harmonizava com a música de fundo de todas as redações que conhecera
bem. Então notou um office boy de tênis apontando lápis amarelos numa
pequena engenhoca que gemia. Qwilleran olhou a coisa. Um apontador de
lápis elétrico! Jamais pensara que se pudesse chegar a isso... A coisa
lembrou-lhe quanto tempo estivera fora. Outro office boy de tênis saiu da
redação e disse: "Sr. Qwilleran? Pode entrar agora."
Qwilleran seguiu-o até a salinha onde um jovem editor-chefe o esperava
com um aperto de mão e um sorriso sinceros. "Então você é Jim Qwilleran!
Já ouvi falar muito de você."
Qwilleran imaginou quanto — e quão mal. No currículo que tinha
enviado ao Daily Fluxion sua carreira traçava uma curva duvidosa: repórter
de esportes, repórter policial, correspondente de guerra, vencedor do Troféu
Publishers, autor de livro sobre criminalidade urbana. Vinha então uma
sucessão de empregos de curto prazo em jornais cada vez menores, seguida
de longo período de desemprego ou de empregos irrelevantes.
O editor disse: "Lembro-me da cobertura do julgamento em que você
ganhou o troféu Publishers. Eu era repórter na época e grande admirador
seu."
Pela idade do homem e suas maneiras educadas, Qwilleran reconheceu-
o como da nova geração de editores — a precisa, refinada geração que via o
jornalismo como ciência, e não causa sagrada. Qwilleran sempre tinha
trabalhado para o outro tipo, o dos velhos cruzados sempre zangados.
O editor estava dizendo: "Com sua experiência você pode se
decepcionar com a nossa oferta. Tudo o que temos para você é uma vaga na
Editoria de Cultura, mas queríamos que você aceitasse até que a seção
ganhe uma cara."
"E até eu provar que posso ficar no emprego?", Qwilleran indagou,
olhando o homem nos olhos. O editor já dera sua demonstração de
humildade, agora tocava o acorde certo entre humildade e confiança.
"Isso é evidente. O que acha?"
"Até agora, tudo bem. O importante é voltar a jornal. Perdi tempo em
várias cidades antes de ficar esperto. Por isso queria vir para cá. Cidade
estranha, jornal ativo, um novo desafio. Acho que pode dar certo.
"Claro que pode!", disse o editor, projetando a mandíbula. "E eis o que
temos em mente para você. Precisamos de um repórter de arte."
"Repórter de arte!"
Qwilleran estremeceu e mentalmente imaginou a manchete: Jornalista
veterano guardado em baú.
"Sabe alguma coisa de arte?"
Qwilleran foi honesto. "Não distingo a Vênus de Milo da Estátua da
Liberdade."
"Você é exatamente o que queremos! Quanto menos você souber, mais
original seu ponto de vista. A arte está crescendo nesta cidade e precisamos
dar mais cobertura. Nosso crítico de arte escreve uma colunaduas vezes por
semana, mas queremos um repórter experiente que escreva matérias sobre
os próprios artistas. Há abundância de material. Hoje em dia, como você
sabe, há mais artistas do que cães e gatos."
Qwilleran penteou o bigode com os dedos. O editor prosseguia com sua
veia positiva. "Você vai se reportar ao editor de Cultura, mas pode cavar
suas próprias histórias. Queremos que frequente a arte, conheça um monte
de artistas, aperte mãos, faça amigos para o jornal."
Qwilleran silenciosamente compôs outra manchete: Jornalista vira
relações públicas. Mas precisava do emprego. A necessidade lutava com a
consciência. "Bem", disse, "não sei..."
"Vai ser uma tarefa agradável, limpa e você encontrará pessoas
decentes, para variar. Você provavelmente já teve seu quinhão de mafiosos
e vigaristas".
Espasmos no bigode de Qwilleran tentavam dizer que “o diabo quer
tarefa agradável e limpa", mas seu dono manteve silêncio diplomático.
O editor consultou o relógio e se levantou. "Por que você não vai lá em
cima falar sobre isso com Arch Riker? Ele pode..."
"Arch Riker! O que ele está fazendo aqui?"
"Ele é o editor de Cultura. Você o conhece?"
"Trabalhamos juntos em Chicago anos atrás."
"Ótimo! Ele vai dar todos os detalhes. Espero que você decida entrar
para o Flux".
O editor estendeu a mão e deu um sorriso medido.
Qwilleran saiu e vagueou meio tonto pela redação, passando pelas
fileiras de camisas brancas de mangas curtas, pelas cabeças inclinadas sobre
máquinas de escrever, pela inevitável repórter. Por sinal, a única pessoa a
lhe dar um olhar inquisidor, e ele se esticou em seus metro e oitenta e dois
centímetros, contraiu os quatro quilos extras que forçaram um furo novo no
cinto e passou a mão no cabelo. Tal como no lábio superior, ainda ostentava
na cabeça três cabelos pretos para cada grisalho.
No andar de cima encontrou Arch Riker presidindo uma sala cheia de
mesas, máquinas de escrever e telefones tudo num único tom, verde ervilha.
"Muito chique, não?", Arch disse, desculpando-se. "Chamam essa cor
de Azeitona Suave ao Olhar. Todos têm que ser mimados hoje em dia.
Pessoalmente, acho que parece mais azeitona-bílis."
A Editoria de Cultura era uma pequena reedição da Redação sem o ar de
urgência. A serenidade enchia a sala como uma névoa. Todos pareciam dez
anos mais velhos que a equipe embaixo, e o próprio Arch estava mais gordo
e careca.
"Jim, é ótimo vê-lo novamente", disse. "Você ainda soletra seu nome
com aquele W ridículo?"
"É uma respeitável grafia escocesa", Qwilleran protestou.
"E vejo que você não nos livrou desse bigode cheio de mato."
"É minha única lembrança de guerra."
Os nós dos dedos alisaram o mato carinhosamente.
"Como vai sua mulher, Jim?"
"Você quer dizer minha ex-mulher?"
"Oh, não sabia. Desculpe."
"Vamos pular essa... Que trabalho é esse que você tem para mim?"
"É moleza. Se começar hoje, já pode emplacar matéria no domingo."
"Eu ainda não disse que vou aceitar."
"Você vai", disse Arch. "É ideal para você."
"Considerando minha fama recente, você quer dizer?"
"Vai bancar o sensível? Esqueça. Pare de alfinetar a si mesmo."
Qwilleran separou o bigode, pensativo. "Acho que eu podia fazer uma
tentativa. Quer que eu faça uma experiência?"
"O que você quiser."
"Tem alguma pauta?"
"Sim". Arch Riker tirou uma folha de papel rosa de um arquivo. "O que
o editor lhe disse?"
"Nada", disse Qwilleran, "exceto que queria textos de interesse humano
sobre artistas."
"Bem, ele me mandou um memo cor-de-rosa sugerindo matéria sobre
um cara chamado Cal Halapay".
"E daí?"
"Aqui no Flux temos um código de cores. Um memo azul significa para
sua informação. Amarelo significa sugestão casual. Mas rosa significa
Faça, homem, faça".
"O que é tão urgente sobre Cal Halapay?"
"Nessas circunstâncias, pode ser melhor que você não saiba de tudo.
Basta ir lá fora na friagem, procurar essa pessoa e escrever algo legível.
Você conhece todos os truques."
"Onde posso encontrá-lo?"
"Ligue para o escritório dele, imagino. É um artista comercial, dono de
uma agência de sucesso, mas faz pintura a óleo nas horas de folga. Pinta
retratos de crianças, muito populares. Crianças de cabelos encaracolados e
bochechas rosadas. Parecem zangadas, mas as pessoas compram... Diga,
quer almoçar? Podíamos ir ao Clube de Imprensa."
O bigode de Qwilleran prestou atenção. Clubes de imprensa tinha sido
sua vida, seu amor, seu hobby, sua casa, sua inspiração.
Este ficava em frente à nova central de polícia. Era uma fortaleza de
pedra calcária escura com janelas gradeadas, pois tinha sido um dia a cadeia
municipal. Os degraus de pedra, abaulados pelo uso, eram a prova do
degelo inesperado de fevereiro. No hall de entrada o madeirame antigo
brilhava, vermelho, sob inúmeras camadas de verniz.
"Podemos comer no bar", Arch disse, "ou subir para o restaurante. Lá
tem toalhas nas mesas."
"Vamos comer aqui", disse Qwilleran.
Estava escuro e barulhento no bar. As conversas eram em tons
confidenciais. Qwilleran conhecia bem. Significava que rumores estavam
circulando, campanhas eram lançadas e casos sendo resolvidos
extraoficialmente entre uma cerveja e um hambúrguer.
Encontraram dois bancos vazios no bar e foram atendidos por um
barman de colete vermelho e sorriso cúmplice que transbordava de
informação privilegiada. Qwilleran lembrou que algumas de suas melhores
dicas de matérias tinham vindo de bartenders de Press Clubs.
"Scotch e água", Arch pediu.
Qwilleran disse: “Suco de tomate duplo on the rocks."
"Tom-tom nas pedras", traduziu o barman. "Com limão espremido e um
toque de molho inglês?"
"Não, obrigado."
"É como eu preparo para meu amigo o prefeito quando ele vem aqui."
O sorriso autoritário continuava.
"Não, obrigado."
"Que tal uma gota de Tabasco para ficar picante?"
"Não, apenas o suco puro."
Os cantos da boca do barman caíram e Arch lhe disse: "Este é Jim
Qwilleran, um novo funcionário. Ele não entende que você é um artista...
Jim, este é Bruno. Ele dá às bebidas muita expressão pessoal."
Atrás de Qwilleran uma voz ensurdecedora disse: "Queria menos
expressão e uma dose maior de álcool. Ei, Bruno, faça-me um martini, mas
deixe de fora o lixo. Sem azeitona, sem limão, sem anchova ou tomatinhos
em conserva."
Qwilleran se virou e deu de cara com um charuto preso entre dentes
sorridentes de um tamanho bem desproporcional ao jovem magro que o
fumava. Um cabo preto pendia do bolso, obviamente ligado a um medidor
de luz. Ele era barulhento. Ele era arrogante. Ele estava se divertindo.
Qwilleran gostou dele.
"Este palhaço", disse Arch a Qwilleran, "é Bunsen Odd, o Esquisitão da
Fotografia. Esquisitão, este é Jim Qwilleran, velho amigo meu. Esperamos
que ele se junte à equipe Flux".
O fotógrafo estendeu uma mão rápida. "Jim, prazer em conhecê-lo.
Importa-se com o charuto?"
"Fumo cachimbo. Mas obrigado por perguntar."
Odd estudou o bigode exuberante de Qwilleran com interesse. "Matagal
quase fora de controle. Não tem medo de incêndio?"
Arch disse a Qwilleran: "Essa corda preta saindo do bolso de Mr.
Bunsen é o que usamos para amarrar a cabeça dele. Mas ele é um homem
útil. Tem mais informação do que o Departamento de Pesquisa. Talvez ele
possa falar de Cal Halapay."
"Claro", disse o fotógrafo. "O que você quer saber? A mulher dele é
interessante, 42-40-42."
"Quem é este Halapay, afinal?", perguntou Qwilleran.
Odd Bunsen consultou brevemente a fumaça do charuto. "Pintor. Dirige
uma agência de publicidade grande. Pessoalmente vale alguns milhões.
Mora em Lost Lake Hills. Linda casa, grande estúdio, onde pinta, duas
piscinas. Duas, captou? Com a água tão escassa, ele provavelmente enche
de bourbon".
"Tem família?"
"Dois ou três filhos. Linda mulher. Uma ilha no Caribe, um rancho no
Oregon, dois aviões particulares. Tudo que o dinheiro pode comprar. E não
é pão-duro, é um sujeito generoso".
"E a pintura dele?"
"Boas! Realmente boas", disse Odd. "Tenho uma pendurada na minha
sala de estar. Depois que fotografei a esposa dele num baile de caridade no
ano passado, ele me deu uma pintura. Casal de criançasde cabelo
encaracolado... Bem, tenho que comer agora. Tem pauta na mesa."
Arch esvaziou o copo e disse a Qwilleran: "Fale com Halapay e avalie a
possibilidade de fotos, então chamamos Odd Bunsen. É nosso melhor
homem. Talvez ele tente algumas fotos coloridas. Não faria mal uma página
em cores".
"Aquele memo rosa está rendendo, não é?", Qwilleran disse. "Qual é a
conexão entre Halapay e o Daily Fluxion?"
"Vou pedir outra bebida", disse Arch. "Quer mais um suco de tomate?"
Qwilleran não insistiu na pergunta, mas disse: "Basta me dar uma
resposta direta, Arch. Por que estão me oferecendo essa vaga na arte? Eu
entre todas as pessoas..."
"Porque é assim que os jornais fazem as coisas. Eles põem especialistas
de beisebol em crítica de teatro e setoristas de igreja em boates. Você sabe
disso tão bem quanto eu."
Qwilleran assentiu e acariciou o bigode com tristeza. Então disse: "E
quanto ao crítico de arte que você tem na equipe? Se eu aceitar a vaga vou
ter que trabalhar com ele? Ou ela, se for o caso."
"É um cara", disse Arch. "Ele escreve resenhas críticas, mas você vai
fazer reportagens e perfis de personalidades. Não creio que haja algum
conflito."
"Ele trabalha na redação?"
"Não, ele nunca vai à redação. Dita a coluna em casa, grava em fita e
nos envia por mensageiro uma ou duas vezes por semana. Temos que
transcrever. É um incômodo extra."
"O que o mantém longe? Não gosta de verde ervilha?"
"Não me pergunte. É o acordo dele com a direção. Tem contrato claro
com o Flux".
"Como ele é?"
"Distante. Opinativo. Convivência difícil."
"Isso é bom. É jovem ou velho?"
"Médio. Vive sozinho com um gato, imagine! Muitos acham que o gato
escreve a coluna, e podem estar certos."
"E o material dele é bom?"
"Ele acha que sim. E a chefia, evidentemente, também." Arch girou no
banco enquanto pesava seu comentário seguinte. "Há um boato de que o
Flux paga alto seguro pelo cara."
"O que é tão valioso num crítico de arte?"
"Este tem certa magia que os jornais adoram: é controvertido! A coluna
gera centenas de cartas por semana, não, milhares!"
"Que tipo de cartas?"
"Zangadas. Açucaradas. Algumas histéricas. Leitores da área artística
odeiam as tripas dele, outros pensam que ele é o maior. E brigam entre si.
Ele consegue manter toda a cidade ligada. Sabe o que nossa última pesquisa
mostrou? A página de arte tem público maior do que a seção de esportes!
Você e eu sabemos que é uma situação anormal."
"Vocês devem ter um monte de entusiastas de arte na cidade", disse
Qwilleran.
"Você não precisa gostar de arte para curtir nossa coluna de arte, você
só precisa gostar de sangue."
"Mas eles brigam por quê?"
"Você vai descobrir."
"Posso entender a controvérsia em esportes e política, mas arte é arte,
não?"
"Isso é o que eu achava", disse Arch. "Quando assumi a editoria tinha
essa noção simplória de que arte era algo precioso para pessoas bonitas que
têm belos pensamentos. Cara, larguei esse sonho depressa! A arte passou a
ser democrática. Nesta cidade, é o maior modismo desde a canastra, e
qualquer um pode jogar. As pessoas compram quadros em vez de piscinas".
Qwilleran mastigou o gelo em seu suco de tomate e ponderou sobre os
mistérios desta tarefa que o Daily Fluxion lhe oferecia. "Por falar nisso",
disse ele, "qual é o nome do crítico?"
"George Bonifield Mountclemens".
"Diga de novo, por favor"
"George Bonifield Mountclemens Terceiro! Com III!"
"Caramba! E ele usa os três nomes?"
"Todos os três, todas as nove sílabas, todas as vinte e sete letras, mais o
numeral! Duas vezes por semana temos que encaixar sua assinatura na
largura de uma coluna padrão. É impossível, a não ser para os lados. E ele
não permite abreviaturas, hifens, contrações ou amputações!"
Qwilleran lançou um olhar mais atento a Arch. "Você não gosta muito
dele, não é?"
Arch deu de ombros. "É ame-o ou deixe-o. Na verdade, nunca vi o cara.
Vejo apenas os artistas que vão à redação querendo dar um soco nos dentes
dele."
"George Bonifield Mountclemens III!" Qwilleran sacudiu a cabeça com
espanto.
"Até o nome dele enfurece alguns leitores", disse Arch. "Querem saber
o que ele pensa que é."
"Continue falando. Estou começando a gostar do trabalho. O chefe disse
que seria uma tarefa agradável e limpa e eu já estava com medo de
trabalhar com um monte de santos".
"Não deixe que ele o engane. Todos os artistas desta cidade se odeiam e
todos os amantes de arte tomam partido. Então todo mundo joga duro. É
como no futebol, só que mais sujo. Xingamento, intriga, traição." Arch
deslizou da banqueta. "Vamos lá, vamos pegar um sanduíche de carne."
O sangue de macaco velho de redação que fluía nas veias de Qwilleran
começou a correr mais rápido. Seu bigode quase sorriu. "Ok, eu aceito",
disse ele. "Vou aceitar o trabalho."
DOIS
Era o primeiro dia de Qwilleran no Daily Fluxion. Ele foi a uma das
mesas verde-ervilha da Editoria de Cultura e pegou um punhado de lápis
amarelos. Percebeu que no telefone verde-ervilha havia um lembrete oficial
gravado: SEJA GENTIL COM AS PESSOAS. Experimentou a máquina de escrever
verde-ervilha e teclou: “A hora de muitos assassinatos é depois da meia-
noite". Então telefonou à garagem do Fluxion e pediu um carro para a ida a
Lost Lake Hills.
Para chegar a esse subúrbio da moda, 24 quilômetros além dos limites
da cidade, Qwilleran atravessou arrabaldes plácidos e fazendas cercadas das
últimas neves de inverno. Tinha muito tempo para pensar sobre a entrevista
com Cal Halapay, e imaginou se o Método Qwilleran ainda funcionaria.
Nos velhos tempos, era famoso pela abordagem fraternal que deixava os
entrevistados à vontade. Era composta de duas partes de simpatia, duas
partes de curiosidade profissional e uma parte de baixa pressão arterial, e
tinha conseguido confidências de senhoras idosas, adolescentes infratores,
meninas bonitas, reitores de universidades e criminosos.
Apesar disso, estava cabreiro com a pauta Halapay. Há muito tempo não
fazia uma entrevista e artistas não eram sua especialidade. Suspeitava que
falavam uma língua secreta. Bem que podia haver algum release preparado
por sua equipe de relações-públicas. O bigode de Qwilleran fremiu.
Sempre fora hábito do jornalista compor com antecedência o parágrafo
inicial de suas matérias. Nunca funcionava, mas fazia como exercício.
Agora, no caminho para Lost Lake Hills, fez algumas tentativas. Poderia
dizer: "Quando Cal Halapay deixa sua suíte executiva forrada de pelúcia no
final do dia, ele esquece a concorrência acirrada na publicidade e relaxa
em...". Não, isso era banal. Tentou novamente. "Um homem de publicidade
multimilionário com uma bela esposa (34-22-32) e duas piscinas (uma
cheia de champanhe, segundo a lenda) admite que vive uma vida dupla. Ao
pintar retratos comoventes de crianças, escapa…" Não, era
sensacionalismo.
Qwilleran relembrou seu breve emprego numa revista noticiosa e fez
outra tentativa no estilo crocante da publicação. "Com um lenço azul no
colarinho da camisa esporte de seda italiana, o tsar de um império de
publicidade, bonito, grisalho, de 1,80m, gasta seu tempo livre..." Qwilleran
imaginou que um homem de realizações como Halapay deveria ser alto,
grisalho e impressionante. Provavelmente teria um bronzeado de inverno
também.
"Com um foulard azul acentuando seu bronzeado caribenho..."
A Lost Lake Road terminava abruptamente em enorme portão de ferro
engastado numa parede de pedra que parecia inexpugnável e cara.
Qwilleran freou o carro e olhou ao redor em busca de um porteiro. Quase
imediatamente, uma voz gravada vinda da lateral do portão disse
agradavelmente: "Por favor, aperte o botão a sua esquerda e anuncie
claramente seu nome."
Ele baixou o vidro da janela e disse: "Qwilleran, do Daily Fluxion".
"Obrigado", respondeu a voz no porteiro eletrônico. O portão se abriu e
o jornalista entrou na propriedade, seguindo uma estrada que serpenteava
através de uma alta fileira de pinheiros. Terminava em um jardim de
inverno de paisagista, todo em seixos, pedras, sempre-vivas, pontes em arco
sobre pequenos lagos congelados.Neste cenário, sombrio mas pitoresco,
havia uma casa estranha. Era de estilo contemporâneo, com curvas suaves
no teto e paredes de vidro opaco que pareciam papel de arroz. Qwilleran
revisou a abertura da matéria sobre a camisa esportiva italiana. Halapay
provavelmente relaxava nesse pagode de um milhão de dólares em
quimonos de seda.
Na porta de entrada, que parecia esculpida em marfim, Qwilleran
encontrou algo que se assemelhava a uma campainha e estendeu a mão para
ela, mas antes que tocasse o botão, o painel brilhou com uma luz azul-
esverdeada e sinos tocaram dentro da casa, seguidos por latidos de um cão,
ou dois ou três. Houve um comando nítido, um momento de obediência
silenciosa e uma porta foi aberta bruscamente.
“Bom dia. Sou Qwilleran do Daily Fluxion", disse o jornalista a um
jovem de rosto rosado e cabelos encaracolados de jardineira e camisa suada,
e antes que pudesse acrescentar "Seu pai está em casa?" o jovem disse
amavelmente: "Venha, senhor. Aqui está seu passaporte." Entregou-lhe um
instantâneo difuso de um rosto fortemente embigodado olhando ansioso da
janela de um carro.
"Sou eu!", Qwilleran disse com espanto.
"Tirado no portão antes que entrasse", disse o jovem, com prazer óbvio.
"É assustador, não é? Aqui, deixe-me guardar seu casaco. Espero que não se
importe com os cães. Eles são de uma espécie amigável. Amam visitas. Esta
é a mãe. Tem quatro anos. Os filhotes são de sua última ninhada. Você gosta
de terriers azuis? "
Qwilleran disse: "Eu..."
"Todo mundo quer Yorkshires nos dias de hoje, mas eu gosto dos Kerry
blues. Eles têm belos casacos, não é? Você teve alguma dificuldade para
encontrar o lugar? Nós temos um gato também, mas ela está grávida e
dorme o tempo todo. Acho que vai nevar. Espero que sim. O esqui foi
péssimo este ano."
Qwilleran, que se orgulhava de fazer suas entrevistas sem nada anotar,
começou um inventário mental da casa: foyer de mármore branco com
piscina, peixes e árvores tropicais com provavelmente três metros de altura.
Claraboia. Sala acarpetada com algo tipo guaxinim branco. Lareira em
parede preta brilhante. Provavelmente ônix. Também notou que o rapaz
tinha um furo na manga e usava meias suadas. O fluxo da conversa não
havia cessado.
"Gostaria de se sentar na sala de estar, Sr. Qwilleran? Ou quer ir direto
para o estúdio? Lá é mais confortável, se o cheiro não o incomodar.
Algumas pessoas são alérgicas a terebintina. Quer uma Coca ou algo?
Alergia é uma coisa engraçada. Sou alérgico a crustáceos. Isso me arrasa,
porque sou louco por lagosta…"
Qwilleran esperava a chance de perguntar “Seu pai está em casa?"
quando o jovem disse: “Minha secretária avisou que você queria fazer
matéria sobre meus quadros, então vamos para o estúdio. Vai fazer
perguntas ou apenas conversamos?"
Qwilleran engoliu em seco e disse: “Francamente, esperava que você
fosse bem mais velho..."
“Sou um menino prodígio", disse Halapay sem sorrir. “Fiz meu primeiro
milhão antes dos vinte e um. Tenho 29 agora. Parece que sou um gênio para
fazer dinheiro. Você acredita em gênios? É espantoso, realmente. Eis um
quadro de quando me casei. Minha mulher parece oriental, não? Ela saiu
para uma aula de arte nesta manhã, mas você a conhecerá depois do
almoço. Desenhamos a casa para combinar com a aparência dela. Gostaria
de um café? Peço à empregada se você quiser café. Vamos reconhecer,
pareço menino e sempre vou parecer. Há um bar no estúdio se você preferir
uma bebida.
O estúdio tinha cheiro de tinta, uma boa dose de bagunça e uma grande
parede de vidro com vista para um branco lago congelado. Halapay
pressionou um interruptor e uma sombra transparente se desenrolou do teto,
filtrando a claridade. Tocou outro controle e as portas deslizaram, abrindo-
se para revelar um estoque de bebidas maior que o do Press Club.
Qwilleran disse que preferia café, assim Halapay apertou outro botão e
deu a ordem a uma grade de bronze na parede. Ele mostrou a Qwilleran
uma garrafa de forma estranha no bar. "Este é um licor que eu trouxe da
América do Sul", disse. "Não pode comprá-lo aqui. Leve para casa com
você. Gosta da vista? Sensacional, não é? Isso é um lago artificial. O
paisagismo só custou meio milhão. Você quer um donut com seu café?
Estas na parede são minhas pinturas. Você gosta?"
As paredes do estúdio eram cobertas de telas emolduradas de meninos e
meninas de cabelos encaracolados e bochechas de maçãs vermelhas. Para
todos os lados que olhasse Qwilleran via maçãs vermelhas. "Escolha uma",
disse Halapay, “e leve para casa com você, cortesia do artista. Os grandes
vendo por quinhentos dólares. Leve um grande. Você tem filhos? Temos
duas meninas. Ei-las no móvel do som. Cindy tem oito e Susan tem seis."
Qwilleran estudou a fotografia das filhas de Halapay. Como a mãe,
tinham olhos amendoados e cabelos classicamente em linhas retas, e disse:
"Por que você só pinta crianças de cabelos encaracolados e bochechas
rosadas?"
"Você devia ir ao Baile dos Namorados na noite de sábado. Teremos um
grande mix de jazz. Você está sabendo do baile? É a festa anual do
Valentine's Day no clube de arte. Vamos todos em trajes representando
amantes famosos. Você gostaria de ir? Não precisa se fantasiar se não gostar
de fantasia. Custa vinte dólares por casal. Olha, deixe-me lhe dar um par de
ingressos."
"Voltando aos quadros", disse Qwilleran, "estou curioso por saber por
que você se especializou em crianças. Por que não paisagens?"
"Acho que você deveria escrever sobre o baile em sua coluna", disse
Halapay. "É o maior evento do ano no clube. Sou o presidente, e minha
mulher é muito fotogênica. Você gosta de arte? Todo mundo do campo da
arte vai estar lá."
"Incluindo George Bonifield Mountclemens III, eu imagino", disse
Qwilleran, num tom destinado a ser humorístico.
Sem qualquer alteração de sua fala inexpressiva, Halapay disse: "Essa
fraude! Se essa fraude mostrar a cara no clube será atirado para fora. Espero
que ele não seja seu amigo próximo. Considero um personagem inútil. Nada
sabe de arte, mas se apresenta como autoridade, e crucifica artistas
consagrados. Estão permitindo que ele corrompa a atmosfera da arte na
cidade. Deviam ficar espertos e demiti-lo."
"Sou novo no ramo", disse Qwilleran quando Halapay parou para
respirar, “e não sou nenhum expert..."
"Só para demonstrar a fraude que é seu crítico, ele transformou Zoe
Lambreth em grande artista. Você já viu as coisas dela? É uma farsa. Pode
ver os quadros dela na Galeria Lambreth, e vai entender o que quero dizer.
Nenhuma galeria respeitável aceitaria o trabalho dela, então ela teve que se
casar com um negociante de arte. Há truques em todos os comércios.
Quanto ao marido, é nada além de um guarda-livros que entrou na farra da
arte, e eu quis dizer farra mesmo. Aqui está Tom com o café."
Um rapaz de colete abotoado apareceu com uma bandeja, que depositou
sem elegância numa mesa. Lançou um olhar hostil a Qwilleran.
Halapay disse: "Gostaria de saber se devemos pedir um sanduíche, é
quase hora do almoço. O que você quer saber sobre meu trabalho? Vá em
frente e faça perguntas. Você não vai anotar?"
"Gostaria de saber", disse Qwilleran, "por que pinta crianças."
O artista fez um silêncio pensativo, o primeiro desde a chegada de
Qwilleran. Então disse: "Zoe Lambreth parece ter uma forte conexão com
Mountclemens. Seria interessante saber como ela consegue. Posso fazer
algumas suposições, mas não para publicação. Por que não investiga este
caso? Você poderia conseguir informações suculentas e Mountclemens seria
demitido. Então você poderia ser crítico de arte."
"Não quero...", Qwilleran começou.
"Se seu jornal não limpar essa bagunça, e logo, vai começar a sentir
onde dói. Eu não me importaria de comer um cachorro-quente com o café.
Você quer um cachorro quente?"
Às cinco e trinta daquela tarde Qwilleran refugiou-se no caloroso
santuário envernizado do Press Club, onde tinha marcado encontro com
Arch Riker. Arch queria uma bebida rápida a caminho de casa. Qwilleran
queria uma explicação. Ele pediu a Bruno secamente: "Suco detomate on
the rocks. Sem sal, sem molho inglês, sem Tabasco". A Arch, disse:
"Obrigado, amigo. Obrigado pela festa de boas-vindas."
"O que quer dizer?"
"Foi um trote para iniciantes?"
"Não sei do que você está falando."
"Estou falando da pauta sobre Cal Halapay. Foi uma pegadinha? Não
pode ter sido a sério. O cara é louco."
Arch disse: "Bem, você sabe como os artistas são. Individualistas. O
que aconteceu?"
"Nada aconteceu. Nada que eu possa usar numa matéria e levei seis
horas para descobrir. Halapay vive nesta casa estranha do tamanho de uma
escola secundária, só que de uma espécie japonesa. Tudo é eletrônico, para
todos os tipos de truques. O interior é selvagem. Há uma parede feita de
hastes de vidro penduradas como pingentes. Eles se movem quando você
passa e soam como um xilofone que precisa de ajuste."
"Bem, por que não? Ele tem que gastar o dinheiro de alguma forma."
"Eu sei, mas espere até eu terminar. Há toda essa configuração de luxo,
e aparece Cal Halapay vestindo uma camisa suada, com um grande buraco
no cotovelo. E ele parece ter uns quinze anos de idade."
"Sim, eu ouvi falar que ele é jovem para um milionário", disse Arch.
"Isso é outra coisa. Ele ostenta seu dinheiro e tenta forçar você a aceitar
presentes. Tive de lutar contra charutos, licores, uma pintura de 500 dólares,
um peru congelado de seu rancho no Oregon e um filhote de Kerry blue.
Depois do almoço a mulher apareceu, e eu estava com medo de que a
generosidade dele excedesse os limites da decência. Aliás, Mrs. Halapay é
um prato."
"Você está me deixando com inveja. O que foi o almoço? Línguas de
avestruz?"
"Cachorro-quente. Servido por um criado com o charme de um gorila."
"Você conseguiu um almoço grátis. Está reclamando de quê?"
"Halapay. Ele não responde a perguntas."
"Ele se recusa?", Arch perguntou surpreso.
"Ele as ignora. Você não consegue fixar a atenção dele. Vagueia de jazz
progressivo a máscaras primitivas de gatos grávidos que trouxe do Peru.
Tive mais sorte de me comunicar com o porteiro eletrônico do que com o
menino prodígio".
"Conseguiu alguma coisa?"
"Eu vi os quadros, é claro, soube que haverá um baile no clube de arte
na noite de sábado. Acho que posso ir."
"O que você acha das pinturas?"
"São um pouco monótonas. Todas aquelas bochechas de maçã
vermelha! Mas fiz uma descoberta. Em todas essas fotos de crianças, Cal
Halapay está pintando a si mesmo. Acho que ele é encantado pela própria
aparência. Cabelo encaracolado. Pele rosada."
Arch disse: "Concordo que isso não seria o tipo de matéria que o chefe
quer. Parece As Mil e uma Noites".
"Temos que fazer essa matéria?"
"Você viu a cor do memorando. Rosa!"
Qwilleran massageou o bigode. Depois de um tempo, disse: "A única
vez que consegui uma resposta direta a uma pergunta foi quando mencionei
George Bonifield Mountclemens".
Arch largou a bebida. "O que Halapay disse?"
"Ele explodiu de uma forma controlada. Basicamente, acha que
Mountclemens não é qualificado para julgar arte."
"Imagino. Halapay fez uma exposição solo um ano atrás, e nosso crítico
o assou vivo. Os leitores adoraram. Ele confortou seus negros corações
dizendo que máquinas bem-sucedidas de dinheiro podem fracassar em algo.
Mas foi um duro golpe para Halapay. Ele descobriu que seu dinheiro podia
comprar qualquer coisa, mas não uma boa resenha de arte".
"Choro por ele. E os outros jornais? Criticam o trabalho dele também?"
"Eles não têm crítico. Apenas uma repórter idosa, gentil senhora que
cobre vernissages e fala de tudo. Ficam no seguro."
Qwilleran disse: "Então Halapay é mau negócio..."
"Sim, e você não sabe o quanto", disse Arch, puxando sua banqueta
mais para perto de Qwilleran. "Desde aquele episódio ele vem tentando falir
o Flux. Retirou um monte de anúncios e mudou-os para o outro jornal. Isso
dói! Especialmente porque ele controla a maior parte da publicidade de
comida e moda na cidade. Ele está mesmo tentando reunir outros
publicitários contra o Flux. É sério."
Qwilleran fez uma careta de incredulidade. "E eu tenho que escrever
uma matéria simpática para que o departamento de publicidade possa
recuperar os anúncios?"
"Francamente, isso ajudaria. Esfriaria as coisas."
"Não gosto disso. "
"Não seja duro comigo", Arch pediu. "Basta escrever uma peça
folclórica sobre um cara interessante que usa roupas velhas, tem cães e
gatos, come cachorro-quente no almoço. Você sabe como fazer."
"Não gosto disso."
"Não estou pedindo a você para mentir. Basta ser seletivo, isso é tudo.
Use a parte sobre o vidro, o jardim de meio milhão de dólares, as visitas à
América do Sul, a fazenda de perus, sua adorável esposa e as gatinhas
adoráveis."
Qwilleran meditava. "Suponho que o nome disso seja jornalismo
prático."
"Ajuda a pagar as contas."
"Não gosto disso", disse Qwilleran, "mas se você está nessa furada, vou
ver o que posso fazer." Ergueu o copo de suco de tomate. "Halapay ou o
inferno que pague!"
"Não seja bonzinho. Tive um dia difícil."
"Gostaria de ler algumas colunas do Mountclemens. Você tem?"
"No arquivo da pesquisa", disse Arch.
"Quero ver o que ele escreveu sobre uma artista chamada Zoe
Lambreth. Halapay sugeriu uma ligação suspeita entre Mrs. Lambreth e
Mountclemens. Sabe alguma coisa sobre isso?"
"Eu só processo o texto dele. Não espreito sob as persianas", disse Arch,
dando um tapa nas costas de Qwilleran. “Boa noite".
TRÊS
Qwilleran, usando o mais novo e mais escuro de seus dois ternos, foi
sozinho ao Baile dos Namorados no Clube de Arte, o qual — ele descobriu
— tinha o nome de Turp and Chisel, ou Cedro e Formão. O clube começara
quarenta anos antes nos fundos de uma espelunca de jogatina e bebida
barata dos anos 60. Agora ocupava o terraço do melhor hotel da cidade, seu
quadro de sócios era amplo e elegante e os boêmios sem dinheiro que
fundaram a fraternidade estavam velhos, sóbrios e cheios de dólares.
Ao chegar, Qwilleran começou a explorar o clube. Encontrou um
suntuoso salão de baile, o restaurante e um bar muito movimentado. A sala
de jogos, com painéis de madeira de celeiros antigos, oferecia de tudo, de
dardos a dominó. No salão, as mesas tinham toalhas em vermelho e branco,
e uma orquestra tocava melodias insossas.
Perguntou pela mesa de Halapay e foi recebido por Sandra Halapay
vestindo um quimono branco de seda bordada. A maquiagem exagerada
tornava seus olhos amendoados ainda mais exóticos. "Receava que você
não viesse", disse ela, segurando a mão dele muito tempo depois de o
cumprimento acabar e encantando-o com uma risada ondulante.
"O convite era irresistível, Mrs. Halapay", disse Qwilleran. Então
surpreendeu a si mesmo curvando-se até a mão dela e escovando-a com seu
bigode.
"Por favor, me chame de Sandy", disse ela. "Veio sozinho? Ao baile do
Valentine's Day?"
“Sim. Represento Narciso."
Sandy riu, divertida. "Vocês jornalistas são tão inteligentes!"
Ela era liricamente alta e bonita, decidiu Qwilleran, e nessa noite
mostrava um charme descontraído, como esposas geralmente mostram
quando os maridos estão ausentes.
“Cal é presidente do baile", disse ela, "e está rodando por aí, então você
pode ser meu par."
Seus olhos pareciam tão malandrinhos quanto exóticos.
Em seguida, mudando para um tom formal que soava indiferente, Sandy
apresentou as pessoas à mesa. Eram todas da diretoria de Cal, explicou ela
incisivamente. Mr. e Mrs. Riggs ou Biggs trajavam roupas francesas de
época. Um casalzinho gordinho chamado Buchwalter, que parecia
entediado, usava fantasia de camponês. Estava lá também Mae Sisler, a
repórter de arte do outro jornal.
Qwilleran dirigiu-lhe uma vênia fraternal, calculando que ela
ultrapassava em dez anos a idade da aposentadoria.
Mae Sisler estendeu-lhe a mão ossuda e disse com voz fina: "Seu
Mountclemens é um menino muito travesso, mas você parece um jovem
gentil."
“Obrigado", disse Qwilleran. "Há vinte anos que ninguém me chamava
de jovem."
“Vai gostar de seu novo trabalho", ela previu. "Vai conhecer pessoas
encantadoras."
Sandy inclinou-se para Qwilleran e disse: "Você parece tão romântico
com essebigode. Eu queria que Cal deixasse crescer um assim, para parecer
mais velho, mas ele resiste à sugestão. Ele parece uma criança, não acha?"
Ela riu musicalmente.
Qwilleran disse: "É verdade que ele parece muito jovem."
"Acho que ele tem algum retardamento. Em alguns anos as pessoas vão
pensar que ele é meu filho. Isso não seria terrível?" Sandy deu a Qwilleran
um olhar de adoração. "Você vai me convidar para dançar? Cal é um
dançarino terrível. Ele se acha o máximo, mas na verdade é horrível na pista
de dança."
“Consegue dançar nessa roupa?"
O quimono branco de Sandy era muito justo e rijo, preso no meio com
um grande obi preto. Seda branca enfeitava seus lisos cabelos escuros.
“Oh, com certeza." Ela apertou o braço de Qwilleran enquanto eles
andavam até a pista. "Você sabe o que meu traje representa?"
Qwilleran disse que não.
“Cal está de quimono preto. Representamos Jovens amantes na neve."
“Quem são eles?"
"Oh, você sabe, a famosa gravura de Harunobu".
“Sinto muito. Sou um ignorante em matéria de arte." Qwilleran sentiu
que podia admitir sua fraqueza, porque naquele momento estava
conduzindo Sandy habilmente pelo salão nos passos de um foxtrote
reforçados com algumas firulas.
"Você é um dançarino divertido", disse ela. "É preciso muita
coordenação para passar assim de um foxtrote para um chachachá. Mas
precisamos fazer algo sobre sua educação artística. Que tal se eu o
ajudasse?"
"Não sei se posso pagar, com esse meu salário", disse, e o riso de Sandy
pôde ser ouvido acima do som da orquestra. "E a senhorinha do outro
jornal? Ela é especialista em arte?"
“O marido dela era um artista da camuflagem na Primeira Guerra
Mundial", disse Sandy. "Acho que isso faz dela uma especialista."
“E quem são as demais pessoas na sua mesa?"
“Riggs é escultor. Faz coisas compridas de fibra, que são exibidas na
Galeria Lambreth. Parecem gafanhotos. Pensando bem, assim como
Riggs... O outro casal, os Buchwalters, diz que representa o famoso par
Amantes, de Picasso. Você não pode dizer que eles não estejam no clima,
sempre se vestem como camponeses". Sandy franziu o nariz arrebitado.
"Não a suporto. Ela se acha intelectual. O marido ensina arte na escola
Penniman, e está na galeria Westside com uma mostra individual. Ele é um
vegetal, mas faz lindas aquarelas." Em seguida, franziu a testa. "Espero que
jornalistas não sejam intelectuais. Quando Cal me disse para... oh, bem, não
importa. Falo demais. Vamos apenas dançar."
Qwilleran perdeu a parceira logo depois, quando um jovem vagabundo
a tirou. Ele usava camiseta rasgada e tinha modos de bandido. O rosto era
familiar.
Mais tarde, de volta à mesa, Sandy disse: “Aquele era Tom, nosso
empregado. Ele está fantasiado de Stanley não-sei-o-quê. Aquele
personagem da peça de Tennessee Williams, e seu par está por aí, vestida de
negligê rosa. Tom é um cafajeste, mas Cal acha que ele tem talento, e daí
colocou o garoto na escola de arte. Cal faz um monte de coisas
maravilhosas. Você vai escrever um artigo sobre ele, não vai?"
"Se eu tiver material suficiente", disse Qwilleran. “Ele é difícil de
entrevistar. Talvez você possa me ajudar."
"Eu adoraria. Você sabia que Cal é presidente do Conselho Estadual de
Arte? Acho que quer ser o primeiro artista profissional a chegar à Casa
Branca. Ele provavelmente vai chegar lá também. Não permite que nada o
atrapalhe." Ela fez uma pausa e ficou pensativa. "Você deveria escrever uma
matéria sobre o senhor da mesa ao lado."
"Quem é ele?"
"Eles o chamam de tio Waldo. É um açougueiro aposentado que pinta
animais. Nunca tinha segurado um pincel até os sessenta e nove."
"Onde já ouvi isso antes?", disse Qwilleran.
"Ah, claro, todo idoso quer ser um Grandma Moses, mas Uncle Waldo é
realmente talentoso, mesmo que Georgie não pense assim."
"Quem é Georgie?"
"Você sabe, Georgie, seu precioso crítico de arte."
"Ainda não conheço o homem. Como ele é?"
"Ele é realmente fedorento, é o que ele é. Quando fez a crítica da mostra
individual de tio Waldo ele foi absolutamente cruel."
"O que ele disse?"
"Disse que tio Waldo deveria voltar para o mercado de carne e deixar as
vacas e os coelhos para as crianças, que desenham com mais imaginação e
honestidade. Disse que tio Waldo massacrou mais animais nas telas do que
no açougue. Todo mundo ficou furioso! Muitas pessoas escreveram cartas
ao editor, mas o pobre velho levou a sério e parou de pintar. Foi um crime!
Ele fazia arte primitiva muito charmosa. Eu entendo por que o neto dele,
que é motorista de caminhão, invadiu o jornal e ameaçou bater em George
Bonifield Mountclemens, e não o culpo. A crítica dele é completamente
irresponsável".
"Ele já criticou o trabalho de seu marido?", perguntou Qwilleran, com
sua melhor expressão de inocência.
Sandy estremeceu. "Ele escreveu algumas coisas cruéis sobre Cal, só
porque Cal é um artista comercial e bem sucedido. Mountclemens qualifica
artistas comerciais de pintores de parece. Na verdade Cal desenha melhor
do que qualquer um desses borradores de tela ou ditos expressionistas
abstratos. Nenhum deles pode desenhar um copo de água!"
Sandy franziu a testa e ficou em silêncio, e Qwilleran disse: "Você é
mais bonita quando sorri."
Ela se obrigou a uma gargalhada. "Olhe! Não é hilariante? Cal está
dançando com Marco Antônio".
Qwilleran seguiu o dedo dela, que apontava para a pista de dança, onde
Cal Halapay em seu quimono japonês preto conduzia um guerreiro romano
ao som de um lento foxtrote. O rosto sob o capacete era ousado, mas suave.
"É Butchy Bolton", disse Sandy. "Ela ensina escultura na escola de arte,
solda em metal e todo esse tipo de coisa. Seu companheiro veio de
Cleópatra. Isso não é o máximo? Butchy soldou sua própria armadura.
Parece um para-lama de caminhão."
Qwilleran disse: "O jornal deveria ter enviado um fotógrafo. Tínhamos
que documentar isso tudo..."
Sandy fez algumas acrobacias com as sobrancelhas e disse: "Zoe
Lambreth tinha a incumbência de cuidar da publicidade do baile, mas acho
que ela só é boa em conseguir publicidade para si mesma."
"Vou ligar para a fotografia do jornal", disse Qwilleran, "e ver se me
enviam alguém."
Meia hora mais tarde, Odd Bunsen, que estava de plantão, chegou com
uma câmera pendurada no pescoço e o habitual charuto entre os dentes.
Qwilleran o recebeu no foyer e disse: "Cuide de conseguir uma boa foto de
Cal e Sandra Halapay".
Odd disse: "Você está me pedindo? Eles adoram se ver no papel."
"Tente pegar os pares. Estão todos vestidos como amantes famosos —
Otelo e Desdêmona, Lolita e Humbert Humbert, Adão e Eva..."
"Looooou-co!", disse Odd Bunsen enquanto preparava a câmera.
"Quanto tempo você tem que ficar por aqui, Jim?"
"Só o tempo suficiente para saber quem ganha o prêmio de melhor
figurino e mandar algo para a redação."
"Por que você não me encontra mais tarde no Press Club, companheiro?
Posso sair depois de revelar essas fotos."
De volta à mesa dos Halapay, Sandy apresentou Qwilleran a uma
mulher impressionante num vestido de noite plissado. "Mrs. Duxbury",
Sandy explicou, "é a colecionadora de arte mais importante da cidade. Você
deveria escrever um artigo sobre sua coleção inglesa do século XVIII —
Gainsborough e Reynolds, você sabe."
Sra. Duxbury disse: "Não estou especialmente ansiosa para ver minha
coleção divulgada, Mr. Qwilleran, a menos que isso sirva de ajuda em sua
nova posição. Francamente, estou muito feliz por recebê-lo entre nós."
Qwilleran fez uma reverência. "Obrigado. É um campo completamente
novo para mim."
"Acredito que sua presença no Daily Fluxion signifique finalmente que
o jornal teve bom senso e derrubou Mountclemens".
"Não", disse Qwilleran, "estamos simplesmente ampliando a cobertura.
Mountclemens continuará a escrever comentários críticos."
"Que pena. Estávamos todos esperando que o jornal demitisse aquele
homem horrível."
Uma fanfarra de trombetas no palco anunciou a apresentação dos
prêmios de figurino, e Sandy disse a Qwilleran, "preciso pegar Cal para o
julgamento e o desfile. Tem certeza de que não vai poder ficar mais
tempo?"
"Desculpe,preciso escrever minha matéria, mas não se esqueça de que
vai me ajudar com o perfil de seu marido."
"Vou ligar para você e me convidar para um almoço", disse Sandy,
dando um abraço carinhoso no jornalista. "Vai ser divertido."
Qwilleran foi para o fundo da sala, anotou os nomes anunciados como
vencedores e procurava um telefone quando uma voz de mulher, macia e
baixa, disse: "Você não é o novo homem do Daily Fluxion?"
Seu bigode formigou. Às vezes a voz de uma mulher afeta seu bigode
assim, e essa voz era como dedos acariciando.
"Sou Zoe Lambreth", disse ela, "e receio ter falhado miseravelmente na
minha obrigação. Era para eu avisar aos jornais sobre este baile, e esqueci
completamente. Estou preparando uma exposição individual, trabalhando
arduamente, se você aceita uma desculpa esfarrapada. Espero que não se
sinta negligenciado... conseguiu todas as informações de que precisa?"
"Acho que sim. Mrs. Halapay cuidou de mim."
"Sim, eu notei", disse Zoe, com um ligeiro aperto dos lábios bem
formados.
"Mrs. Halapay foi muito útil."
As sobrancelhas de Zoe se mexeram. "Eu imagino."
"Não está fantasiada, Mrs. Lambreth?"
"Não. Meu marido não se interessou em vir hoje à noite, e eu só passei
por alguns minutos. Gostaria de visitar a Galeria Lambreth um dia e
conhecer meu marido? Ambos gostaríamos de ajudá-lo no que pudermos."
"Vou precisar de ajuda. Este é um território totalmente novo para mim",
disse Qwilleran, e então acrescentou maliciosamente: "Mrs. Halapay se
ofereceu para supervisionar minha educação em arte."
"Oh, meu caro...", Zoe disse, com uma entonação que sugeria uma
angústia suave.
"Não aprova?"
"Bem... Sandra não é a mais entendida das autoridades. Perdoe-me.
Cedo ou tarde você vai descobrir que artistas são gatos notórios." Os
grandes olhos castanhos de Zoe estavam surpreendentemente francos e
Qwilleran momentaneamente se afogou neles. "Mas sou muito sincera em
minha preocupação com você", ela continuou. "Não gostaria de vê-lo... mal
orientado. Grande parte do trabalho que está sendo produzido hoje em
nome da arte é espúria, para dizer o pior, e de má qualidade, para dizer o
melhor. Você deve insistir em conhecer as credenciais de seus
orientadores."
"O que sugere?"
"Venha visitar a Galeria Lambreth", ela pediu, e seus olhos repetiam o
convite.
Qwilleran encolheu a cintura e se distraiu com a ideia de perder alguns
quilos — a partir de amanhã. Então fez mais uma tentativa de encontrar um
telefone.
O desfile terminou e os convidados estavam circulando. A notícia se
espalhou pelo clube: o novo repórter do Daily Fluxion estava assistindo à
festa e era facilmente reconhecível pelo bigode proeminente.
Consequentemente, numerosos estranhos começaram a abordar Qwilleran e
se apresentar. Todos lhe desejaram boa sorte, sempre completando com
alguma injúria dirigida a George Bonifield Mountclemens. Os negociantes
de arte acrescentavam breves comerciais de suas galerias, artistas
mencionavam suas próximas exposições, os leigos convidavam-no a ver
suas coleções particulares a qualquer momento, e podia levar um fotógrafo,
se quisesse.
Entre os que saudaram o jornalista estava Val Halapay. "Venha jantar
uma noite dessas", disse. "Traga toda a família."
Agora, a bebida rolava a sério, e o alarido da festa crescia. A maior
animação vinha da sala de jogos, e Qwilleran seguiu a multidão para lá.
Encontrou a sala apinhada de risinhos, convidados de pé, costela com
costela, espaço suficiente apenas para levantar os copos. O centro das
atenções era Marco Antônio. Ela estava em pé numa cadeira. Sem o
capacete romano, Marco Antônio parecia mais uma mulher, rosto
rechonchudo, cabelo curto ondulado.
"Vamos lá, gente", ela gritava. "Teste suas habilidades!"
Qwilleran se espremeu para dentro da sala. A multidão, descobriu,
estava atenta a um jogo de dardos. Os participantes tentavam acertar o
desenho de um homem em tamanho natural, riscado na parede de madeira
com todas as características da anatomia explicitamente delineadas.
"Vamos lá, gente", a guerreira cantava. "Não custa um centavo. Uma
para cada um. Quem quer jogar Mate o crítico?"
Qwilleran decidiu que já tinha o suficiente. Seu bigode se sentia
vagamente desconfortável. Fez uma saída discreta, mandou a matéria ao
jornal por telefone e, em seguida, foi encontrar Odd Bunsen no Clube de
Imprensa.
"Mountclemens deve ser um mala", disse ao fotógrafo. "Você lê a
coluna dele?"
"Quem lê?", respondeu Odd. "Olho as imagens e verifico minha linha
de crédito."
"Ele parece causar um monte de problemas. Sabe algo sobre a situação
no museu de arte?"
"Sei que tem uma gatinha bonita na chapelaria", disse Odd, "e uns nus
loooou-cos no segundo andar."
"Interessante, mas não é a isso que me refiro. O museu acaba de perder
verba de um milhão de uma fundação, e por isso o gerente foi demitido.
Isso é o que ouvi na festa de hoje, e dizem que todo o tumulto foi causado
pelo crítico do Daily Fluxion".
"Não duvido. Ele está sempre infernizando o Laboratório Fotográfico.
Ele telefona e nos diz o que precisa para a coluna. Então, temos que ir às
galerias fazer as imagens. Você precisa ver o lixo que ele nos pede para
fotografar! Na semana passada, fui à Galeria Lambreth duas vezes, e ainda
não consegui fazer uma foto que dê para imprimir."
"Como assim?"
"A pintura é em preto e azul-marinho, pelo amor de Deus! Minhas fotos
pareciam um depósito de carvão em noite escura, e o chefe achou que era
culpa minha. O velho Monty está sempre reclamando das fotos. Se tiver
chance ainda arrebento uma câmera na cabeça dele.
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1 Do japonês Suzuki Harunobu (1725–1770), Lovers Walking in the
Snow (The Metropolitan Museum of Art, NYC)
QUATRO
No domingo de manhã Qwilleran pegou um exemplar do Fluxion na
banca de jornal do hotel. Estava morando num velho hotel barato, que tinha
substituído os tapetes desgastados e os veludos desbotados por pisos de
linóleo e poltronas forradas de plástico. Na cafeteria, uma garota em avental
de plástico serviu seus ovos mexidos numa fria placa de plástico, e
Qwilleran abriu o jornal na página de Arte.
George Bonifield Mountclemens III assinava resenha sobre a obra de
Franz Buchwalter. Qwilleran lembrou do nome. Buchwalter era o homem
quieto na mesa Halapay, marido da assistente social, que pintava adoráveis
aquarelas, na opinião de Sandy Halapay.
Duas pinturas do homem tinha sido fotografadas para ilustrar a resenha,
e Qwilleran achou que eram muito boas. Eram veleiros. Ele sempre gostara
de veleiros. Começou a ler:
O frequentador de galerias que aprecie um bom artesanato não
deve perder a exposição de Franz Buchwalter na Westside Gallery este
mês, escreveu Mountclemens. O artista, que é aquarelista e instrutor
da Escola de Belas Artes Penniman, optou por apresentar uma notável
coleção de molduras. É óbvio até mesmo para o olho destreinado que
o artista trabalhou diligentemente em enquadramento no ano passado.
As molduras são bem atadas e os cantos, meticulosamente encaixados.
A coleção se distingue também pela variedade. Há molduras largas,
molduras estreitas, molduras de tamanho médio, com acabamento em
folha de ouro, folha de prata, nogueira, cerejeira e ébano, além dessa
lavagem turva que parece estar na moda, uma falsificação conhecida
como branco antigo. Uma das melhores molduras da mostra é uma
castanha carcomida. É difícil para um observador determinar com
precisão — sem inserir de fato uma agulha de cerzir no buraco — se
foi fabricada por cupins da Carolina do Norte ou por furadeiras
elétricas de Kansas City. No entanto, seria improvável que o
fabricante de molduras de Buchwalter usasse materiais de qualidade
inferior, portanto este crítico sente, sim, que ela é uma genuína
castanha carcomida. A exposição está bem pendurada. E um elogio
especial deve ser feito às tonalidades e às texturas, escolhidas com
bom gosto e imaginação. O artista encheu suas notáveis molduras com
veleiros e outros assuntos que não, não prejudicam a excelência das
molduras.
Qwilleran olhou novamente as ilustrações, e seu bigodefez pequenos
protestos mudos. Os veleiros eram agradáveis, muito agradáveis.
Pegou seu jornal e saiu. Estava prestes a tentar algo que não fazia desde
os onze anos, e na época tinha sido coagido. Em suma, passou a tarde no
museu de arte.
A coleção de arte da cidade estava alojada num edifício de mármore
inspirado num templo grego, numa villa italiana e num palácio francês.
Brilhava ao sol de domingo, branco e orgulhoso, cintilando sob uma franja
gotejante de gelo.
Ele resistiu à tentação de subir direto ao segundo andar para ver os nus
recomendados por Odd Bunsen, mas foi dar uma olhada na gatinha da
chapelaria. Encontrou uma garota de cabelos longos e rosto sonhador
lutando com os cabides.
Ela disse, olhando para o bigode. ”Não te vi ontem no baile?"
"Não te vi num negligê rosa?"
"Ganhamos um prêmio, Tom LaBlanc e eu."
"Eu sei. Foi uma festa agradável."
"Realmente legal. Pensei que seria uma bomba."
No hall de entrada Qwilleran abordou um atendente uniformizado cujo
rosto exibia expressão de suspeita, reprovação e ferocidade típica dos
guardas de museu.
"Onde posso encontrar o gerente?", perguntou Qwilleran.
"Ele normalmente não vem aos domingos, mas eu o vi no saguão um
minuto atrás. Provavelmente veio fazer as malas. Ele está deixando o posto,
sabe."
"Pena. Ouvi que é um bom homem."
O guarda anuiu em concordância.”Política! E aquele difamador do
jornal, foi isso o que ele fez. Estou feliz por ser funcionário público... Se
quiser ver o Sr. Farhar, tente seu escritório, siga este corredor e vire à
esquerda."
A ala dos escritórios do museu estava envolta na calma dominical. Noel
Farhar, diretor de acordo com as letras na porta, estava lá sozinho.
Qwilleran atravessou a antessala e chegou a um escritório com painéis
adornados de objetos de arte. ”Com licença", disse ele, ”Sr. Farhar?"
O homem mexia numa gaveta e deu um pulo para trás, assustado. O
homem mais frágil que Qwilleran já tinha visto. Embora Noel Farhar
parecesse jovem para o trabalho, sua magreza doentia dava-lhe uma
aparência de velho fantasmagórico.
"Desculpe me intrometer. Sou Jim Qwilleran do Daily Fluxion".
A boca apertada de Noel Farhar dizia tudo, e ele não conseguia
controlar o tremor de uma pálpebra. ”O que você quer?", perguntou.
Qwilleran disse amavelmente: ”Só queria me apresentar. Sou novo na
área de arte e estou tentando conhecer as pessoas. ”Estendeu a mão e
segurou a mão trêmula e relutante de Farhar.
"Se o contrataram para consertar as coisas”, disse o gerente friamente,
”é tarde demais. O dano está feito."
"Receio não estar entendendo. Acabo de chegar à cidade."
"Sente-se, Sr. Qwilleran.” Farhar cruzou os braços e permaneceu de pé.
”Presumo que você saiba que o museu acaba de perder uma verba de um
milhão de dólares."
"Sim, ouvi falar."
"Isso nos teria dado incentivo e prestígio para levantar mais cinco
milhões, de doadores privados e da indústria. Teria trazido uma notável
coleção mexicana pré-hispânica e uma nova ala para abrigá-la, mas seu
jornal subverteu o programa inteiro. Seu crítico, com um assédio contínuo e
ridículo, apresentou este museu sob uma luz desfavorável a tal ponto que a
Fundação retirou sua oferta". Apesar do tremor visível, Farhar falava com
vigor. ”Desnecessário dizer que este fracasso, além dos ataques pessoais de
Mountclemens a minha gestão, forçou-me a pedir demissão."
Qwilleran resmungou: ”Esta é uma acusação séria."
"É incrível que um único indivíduo que nada saiba de arte possa poluir
assim o clima artístico da cidade. Mas não há nada que se possa fazer sobre
isso. Estou perdendo meu tempo falando com você. Escrevi a seu editor,
exigindo que pare este Mountclemens antes que destrua nossa herança
cultural". Farhar virou-se para os arquivos. ”Agora tenho trabalho a fazer,
papéis para organizar."
"Desculpe ter interrompido", disse Qwilleran. ”Sinto muito sobre tudo
isso. Sem conhecer os fatos, não posso comentar..."
"Eu lhe dei os fatos.” O tom de Farhar pôs fim à entrevista.
Qwilleran vagou por vários andares do museu, mas sua mente não
estava nos Renoir ou Canalettos. As culturas toltecas e astecas não
conseguiram captar seu interesse. Somente as armas históricas despertaram
seu entusiasmo — os punhais para canhotos, as facas de caça alemãs, as
clavas, os estiletes e os floretes espanhóis, as espadas italianas. E seus
pensamentos repetidamente iam para o crítico de arte que todos odiavam.
Na manhã seguinte Qwilleran estava no Fluxion. Pediu à pesquisa, no
terceiro andar, o arquivo das colunas de Mountclemens. ”Aqui está", disse o
funcionário com uma piscadela, ”e quando terminar com ele você
encontrará a sala de primeiros socorros no quinto andar, caso precise de um
antiácido."
Qwilleran leu doze meses de colunas. Encontrou a avaliação de Halapay
("arte de farmácia") e as palavras duras sobre os primitivos de Uncle Waldo
("idade não substitui talento"). Havia uma coluna, sem menção de nomes,
sobre colecionadores particulares que são menos dedicados à preservação
da arte do que à evasão fiscal. Mountclemens tinha palavras fortes para as
esculturas de figuras humanas em tamanho natural, que lhe lembrava as
armaduras usadas nas representações de Macbeth em escolas rurais.
Deplorava a produção em massa de artistas na Penniman School, cuja
produção em linha de montagem ficaria bem nas fábricas de automóveis de
Detroit. Elogiava as pequenas galerias de bairro por seu papel como centros
sociais, que substituíam o clube de bridge e os círculos de costura, embora
questionasse seu valor como provedores de arte. E investia contra o museu:
políticas, coleção permanente, diretor, a cor dos uniformes dos guardas.
Intercaladas entre os ataques havia entusiásticas loas a certos artistas,
especialmente Zoe Lambreth, cheias de jargões. ”A complexidade da
eloquente dinâmica na textura orgânica... impulsos internos expressos em
linguística compassiva."
Uma coluna nada tinha a ver com pintura ou escultura: tratava gatos
(Felis domestica) como obras de arte.
Qwilleran devolveu o arquivo ao departamento de pesquisa e procurou
um endereço na lista telefônica. Queria descobrir por que Mountclemens
considerava o trabalho de Zoe Lambreth tão bom e o de Cal Halapay tão
ruim.
Encontrou a Galeria Lambreth perto do distrito financeiro, em um velho
loft apertado entre torres de escritórios. Parecia ter classe. A placa sobre a
porta tinha letras douradas, e na vitrine havia apenas duas pinturas, sobre
trinta metros de veludo cinza.
Uma das telas era em azul-marinho salpicado de triângulos negros. A
outra era um misterioso molho de tinta espessa em marrons e roxos
cansados. Ainda assim, uma imagem parecia surgir dali, e Qwilleran sentiu
um par de olhos perscrutando de suas profundezas. Enquanto olhava, a
expressão dos olhos mudou de inocência para consciência selvagem.
Abriu a porta e se aventurou. A galeria era longa e estreita, decorada
como uma sala de estar, luxo casual em design moderno. Sobre um cavalete
Qwilleran avistou outro arranjo de triângulos salpicados — cinza sobre
branco — preferiu a da vitrine. A assinatura do artista: ”Scrano". Sobre um
pedestal, um joelho de telha com raios de bicicleta intitulava-se Coisa nº 17.
Um sino tilintara quando ele entrou na loja, e agora Qwilleran ouvia
passos nos degraus da escada em espiral, nos fundos da galeria. A estrutura
de ferro, pintada de branco, parecia uma enorme escultura. Qwilleran viu
primeiro pés, depois pernas em calças compridas, por fim a figura fria,
formal e arrogante do proprietário da galeria. Era difícil imaginar Earl
Lambreth como marido da calorosa, feminina Zoe. O homem parecia mais
velho do que a esposa e dolorosamente elegante.
Qwilleran disse: ”Sou o novo repórter de arte do Daily Fluxion. Mrs.
Lambreth me convidou para visitar a galeria."
O homem fez algo que se assemelhava a um sorriso, mas terminava em
maneirismo desagradável, o lábio superior limpando os dentes. ”Mrs.
Lambreth mencionou você", disse, ”e eu suponho que Mountclemens lhe
disse que esta é a principal galeria da cidade. Na verdade, ela éa única
galeria digna desse nome."
"Não conheço Mountclemens ainda, mas soube que fala muito bem do
trabalho de sua esposa. Gostaria de ver um pouco dele."
De pé, rígido, as mãos atrás das costas, o homem apontou um retângulo
marrom na parede. ”Esta é uma das pinturas recentes de Mrs. Lambreth.
Tem a rica qualidade pictórica reconhecida como sua assinatura."
Qwilleran estudou a imagem em silêncio cauteloso. A superfície tinha a
textura de um bolo de chocolate muito gelado, e inconscientemente passou
a língua nos lábios. No entanto, tinha consciência de que haveria um par de
olhos em algum lugar nos redemoinhos de tinta. Gradualmente viu a
evolução de um rosto de mulher.
"Ela usa um monte de tinta", Qwilleran observou. ”Deve levar um
tempão para secar."
O negociante limpou novamente os dentes e disse: ”Mrs. Lambreth usa
pigmentos para capturar o espectador e enredá-lo sensualmente antes de
fazer sua declaração. Sua declamação é sempre indescritível, nebulosa —
forçando o público a participar vivamente da interpretação.”
Qwilleran assentiu vagamente.
"Ela é uma grande humanista", continuou Lambreth. ”Infelizmente
temos poucas telas aqui, no momento. Ela as recolheu para a exposição de
março. No entanto, você viu na vitrine um de seus mais lúcidos e
disciplinados trabalhos."
Qwilleran lembrou-se dos olhos nublados de tinta que tinha visto antes
de entrar na galeria, olhos cheios de mistério e malícia. Ele disse: ”Ela
sempre pinta mulheres como essa?"
Lambreth mexeu um ombro. ”Mrs. Lambreth nunca pinta fórmulas.
Tem grande versatilidade e imaginação. E a pintura na vitrine não tem a
intenção de invocar associações humanas. É o estudo de um gato."
"Oh", disse Qwilleran.
"Você está interessado em Scrano? Ele é um dos artistas
contemporâneos mais importantes. Você viu uma de suas pinturas na
vitrine. Aqui está outra, no cavalete."
Qwilleran olhou de soslaio para os triângulos cinzentos sobre fundo
branco. A superfície pintada era de granulação fina e lisa, com um brilho
quase metálico, e os triângulos eram nítidos.
O jornalista disse: ”Ele parece ter fixação em triângulos... Se virar esta
de cabeça para baixo, verá três veleiros num nevoeiro."
Lambreth disse: ”O simbolismo deveria ser óbvio. As pinturas de
Scrano expressam sucintamente o libidinoso essencial, a natureza polígama
do homem. A pintura na vitrine é especificamente incestuosa".
"Bem, acho que isso acaba com minha teoria", disse Qwilleran. ”Eu
imaginava ter descoberto uns veleiros. O que Mountclemens diz de
Scamo?"
"S-c-r-a-n-o", Lambreth corrigiu. ”No trabalho de Scrano
Mountclemens encontra virilidade intelectual que transcende as
considerações menores de expressão artística, centrado na pureza do
conceito e no meio de sublimação."
"Muito caro, imagino."
"Um Scrano geralmente é avaliado em cinco dígitos."
"Uau!", Qwilleran disse. ”E esses outros artistas?"
"Consideravelmente mais baixo."
"Não vejo etiquetas de preço em parte alguma."
Lambreth endireitou uma tela ou duas. ”Dificilmente se espera que
galerias deste calibre exibam preços como nos supermercados. Em nossas
grandes exposições imprimimos catálogos, mas hoje temos apenas uma
exibição informal do nosso próprio grupo de artistas."
"Fiquei surpreso ao encontrar a galeria localizada no distrito
financeiro", disse Qwilleran.
"Nossos colecionadores são astutos homens de negócios."
Qwilleran deu uma volta pela galeria e ficou calado. Muitas telas
apresentavam gotas e borrões em gritantes cores explosivas. Algumas
tinham listras onduladas. Havia o close-up de uma goela escancarada de
dois metros por quatro, e Qwilleran recuou instintivamente. Em um
pedestal repousava uma bola de metal em forma de ovo intitulada Sem
título. Algumas formas alongadas em argila se assemelhavam a gafanhotos,
mas certas protuberâncias convenceram Qwilleran de que estava olhando
para seres humanos desnutridos. Dois pedaços de sucata de metal eram
marcadas como Coisa nº 14 e Coisa nº 20.
Qwilleran gostou mais dos móveis: poltronas em formato de colher,
sofás flutuantes sobre delicadas bases de aço cromado e mesas baixas com
tampo de mármore branco.
Ele disse: ”Você tem pinturas de Cal Halapay?"
Lambreth se encolheu. ”Você deve estar brincando. Nós não somos esse
tipo de galeria."
"Pensei que as coisas de Halapay fizessem sucesso."
"Ele vende facilmente a pessoas que não têm gosto", disse o
comerciante, ”mas na verdade as coisas de Halapay, como você
acertadamente as descreve, não passam de ilustrações comerciais
presunçosamente instaladas em molduras. Não têm valor algum como arte.
Na verdade, o homem estaria fazendo um favor ao público se esquecesse
suas pretensões e se concentrasse na atividade em que é bom, que é fazer
dinheiro. Não tenho desavença alguma com amadores que querem passar as
tardes agradáveis de domingo em frente a um cavalete, mas não deveriam
se apresentar como artistas e degradar o gosto do público."
Qwilleran voltou sua atenção para a escada em espiral. ”Você tem outra
galeria lá em cima?"
"Só meu escritório e a loja de molduras. Gostaria de ver a loja? Talvez
lhe interesse mais do que pinturas e esculturas..."
Lambreth liderou o caminho, passando a uma sala de estoque onde as
pinturas eram armazenadas em escaninhos verticais, e subiu as escadas. Na
loja de molduras havia uma bancada desarrumada e um cheiro persistente
de cola ou verniz.
"Quem faz suas molduras?", perguntou Qwilleran.
"Um artesão muito talentoso. Oferecemos o melhor acabamento e a
maior seleção de molduras na cidade.” Ainda de pé, rígido, com as mãos
atrás das costas, Lambreth acenou para um molde na bancada. ”Essa custa
US$ 35 o metro linear."
O olhar de Qwilleran transferiu-se para um escritório atulhado ao lado.
A pintura de uma bailarina estava torta na parede. Uma bailarina de roupa
azul transparente retratada em movimento contra um fundo de folhagem
verde.
"Agora, isso é algo que eu posso entender", ele disse. ”Realmente curto
isso."
"E você deve! É um Ghirotto1, como pode ver pela assinatura.”
Qwilleran estava impressionado. ”Vi um Ghirotto ontem no museu de
arte. Deve ser uma peça valiosa."
"Seria se estivesse completa."
"Você quer dizer que não está terminada?"
Lambreth bufou. Ӄ apenas a metade da tela original. A pintura foi
danificada. Receio não poder me dar o luxo de um Ghirotto em boas
condições."
Qwilleran então notou um mural com recortes de jornais. Disse: ”Vejo
que o Daily Fluxion lhe dá ótima cobertura."
"Vocês têm uma excelente coluna de arte", disse o homem.
”Mountclemens sabe mais sobre arte do que qualquer outra pessoa na
cidade, incluindo os autointitulados especialistas. E é de uma integridade
incontestável."
"Hmm", disse Qwilleran.
"Vai sem dúvida ouvir queixas de Mountclemens de todos os lados,
porque ele elimina os charlatães e eleva os padrões de gosto. Recentemente
prestou um grande serviço à cidade, desalojando Farhar do museu. Uma
nova gestão trará vida de novo àquela agonizante instituição".
"Mas não a fez perder uma verba importante ao mesmo tempo?"
Lambreth acenou com a mão. ”Outro ano, outra verba, e até lá o museu
vai merecê-la."
Pela primeira vez Qwilleran notou as mãos do negociante, suas unhas
sujas destoando do traje.
O jornalista disse: ”Mountclemens avalia bem o trabalho de Mrs.
Lambreth, pelo que notei."
"Ele tem sido muito gentil. Muitas pessoas pensam que esta galeria
recebe favores, mas a verdade é que lidamos apenas com os melhores
artistas."
"Esse cara que pinta triângulos, é um artista local? Gostaria de
conseguir uma entrevista."
Lambreth pareceu aflito. ”É bem sabido que Scrano é europeu.
Mantém-se recluso na Itália há muitos anos. Razões políticas, acredito."
"Como o descobriu?"
"Mountclemens nos apresentou um trabalho dele e nos colocou em
contato com seu agente americano, pelo que estamos agradecidos. Somos
representantes exclusivos de Scrano no Centro-Oeste.” Limpou a garganta e
disse com orgulho: ”O trabalho de Scrano tem uma virilidade
intelectualizada, um transcendente de pureza..."
"Não vou mais tomar seu tempo",disse Qwilleran. ”É quase meio-dia e
eu tenho compromisso para o almoço."
Qwilleran deixou a Galeria Lambreth com várias perguntas na cabeça.
Como dizer o que é bom ou ruim em arte? Por que triângulos têm sinal
positivo enquanto veleiros ganham polegares para baixo? Se Mountclemens
era tão bom quanto Lambreth dizia e a situação da arte local tão insalubre,
por que permanecia neste ambiente ingrato? Ele era realmente um
missionário, como disse Lambreth? Ou um monstro, como todos os outros
pensavam?
E mais um ponto de interrogação enrolou a cauda na cabeça de Qwin.
Existe realmente um homem chamado George Bonifield Mountclemens?
No Press Club, onde ia encontrar Arch Riker para o almoço, Qwilleran
disse ao barman: ”O crítico de arte do Fluxion vem aqui?"
Bruno parou a limpeza de um vidro. ”Quisera que viesse. Eu lhe faria
um Mickey.
"Por quê? Qual é sua queixa?"
"Uma coisa", disse Bruno. ”Ele é contra toda a raça humana.” Inclinou-
se sobre o balcão com ar confidencial. ”Digo-lhe que ele está prestes a
arruinar todos os artistas da cidade. Olha o que fez com o pobre Uncle
Waldo. E Franz Buchwalter no jornal de ontem! Os únicos artistas que
aprecia são ligados à galeria Lambreth. Chego a achar que ele é dono dela.”
"Para alguns ele é uma autoridade altamente qualificada."
"Para alguns, embaixo é em cima.” Depois Bruno sorriu sabiamente.
”Espere só até ele saber que você está bisbilhotando a atividade dele.” O
barman puxou um gatilho imaginário.
"Você parece saber muito sobre a situação da arte aqui na cidade."
"Claro. Sou artista também. Faço colagens. Gostaria que visse meu
trabalho e fizesse uma crítica".
"Estou nesse campo há dois dias!", Qwilleran disse. ”Nem mesmo sei o
que é colagem."
Bruno deu um sorriso condescendente. Ӄ uma forma de arte. Retiro
rótulos de garrafas de uísque, corto-os em pequenos pedaços e colo para
fazer retratos presidenciais. Estou trabalhando agora em Van Buren. Daria
uma fantástica mostra individual.” Sua expressão assumiu um ar de
intimidade. ”Talvez você possa me ajudar a conseguir uma galeria. Você
acha que poderia mexer uns pauzinhos?"
Qwilleran disse: ”Não sei se há muita aceitação para retratos
presidenciais feitos de rótulos de uísque, mas vou assuntar. Agora, que tal
meu habitual on the rocks?"
"Uma hora dessas você vai ter uma urticária de tanto suco de tomate."
Quando Arch Riker chegou ao bar, encontrou o repórter de arte
mastigando o bigode. Arch disse: ”Como foi tudo esta manhã?"
"Tudo bem", disse Qwilleran. ”No começo eu estava um pouco confuso
sobre a diferença entre o bom e o ruim em arte, mas agora estou
completamente confuso.” Tomou um gole de suco. ”Mas cheguei a uma
conclusão sobre George Bonifield Mountclemens III."
"Vamos ouvi-la."
"Ele é uma farsa."
"O que você quer dizer?"
"Ele não existe. É uma lenda, uma invenção, um conceito, uma
corporação, um brilho nos olhos do editor."
Arch disse: ”Quem você acha que escreve tudo o que imprimo sob
aquela assinatura sesquipedal?"
"Um comitê de escritores fantasmas. Uma comissão de três.
Provavelmente o Sr. George, o Sr. Bonifield e o Sr. Mountclemens.
Impossível um só homem causar tantos problemas ou ser tão odiado ou ter
tal imagem ambígua."
"Você simplesmente não conhece os críticos, é tudo. Está acostumado
com polícia e ladrão".
“Tenho uma teoria alternativa, se você não comprar essa primeira.”
"E qual é?"
"É um fenômeno da era eletrônica. A coluna de arte é ligada numa
bateria de computadores em Rochester, Nova York."
"O que Bruno colocou no seu suco?”, Arch disse.
"Bem, eu estou dizendo a você uma coisa: não vou acreditar em George
Bonifield Mountclemens até que o veja."
"Tudo bem. Que tal amanhã ou quarta-feira? Ele estava fora da cidade,
mas voltou. Vou marcar um encontro para você."
"Vamos marcar aqui, no almoço. Podemos comer lá em cima sobre uma
toalha de mesa."
Arch balançou a cabeça. ”Ele não virá ao Clube de Imprensa. Nunca
come no centro. Provavelmente você vai ter que ir a seu apartamento."
"Ok, marque", disse Qwilleran, “e talvez eu siga o conselho de Bruno e
alugue um colete à prova de balas."
________________
1 Pintor fictício na trama.
CINCO
Qwillern passou a manhã de terça-feira no prédio da secretaria de
Educação vendo uma exposição de arte infantil. Ele pretendia escrever algo
carinhosamente bem-humorado sobre os barquinhos flutuando no céu, as
casinhas roxas com chaminés verdes, o cavalinhos azuis que pareciam
ovelhas e os gatos-gatos-gatos. 
Depois da descomplicada passagem pelo mundo da arte juvenil, ele
voltou à redação em estado de graça. Sua chegada causou um estranho
silêncio. As máquinas pararam de soar. Cabeças inclinadas sobre provas
levantaram-se subitamente. Até os telefones verdes ficaram respeitosamente
quietos.
Arch disse: "Temos novidades para você, Jim. Ligamos para
Mountclemens para marcar o encontro e ele quer você lá amanhã à noite.
Para jantar!"
"Hã?"
"Não vai desmaiar? A editoria toda desmaiou."
"Já posso ver a manchete", disse Qwilleran. Crítico envenena sopa de
repórter.
"Ele é tido como grande cozinheiro", Arch disse. "Um verdadeiro
gourmet. Se você tiver sorte, ele adia o arsênico até a sobremesa. Eis o
endereço."
Às 18h da quarta-feira, Qwilleran pegou um táxi para a Blenhein Place
nº 26. Ficava numa antiga parte da cidade, outrora um bairro da moda com
casas majestosas. A maioria tinha se transformado em pensões baratas ou
sede de estranhas empresas comerciais. Havia um restaurador de porcelana
antiga, por exemplo; Qwilleran imaginou que devia ser uma casa de
apostas. A porta seguinte se anunciava como loja de moedas antigas,
provavelmente a fachada de um ponto de drogas. Quanto ao fabricante de
fantasias1, não havia dúvida na mente de Qwilleran sobre a verdadeira
natureza do estabelecimento.
Em meio a tudo isso, um valente e orgulhoso sobrado erguia-se como a
última trincheira. Tinha um ar residencial respeitável, alto e formalmente
vitoriano, até na cerca ornamental de ferro. Era o número 26. 
Qwilleran evitou uma dupla de bêbados que se arrastava pela calçada e
subiu os degraus de pedra que levavam ao pequeno pórtico com três caixas
de correio, indicando que a casa tinha sido dividida em apartamentos.
Ele alisou o bigode, que estava saliente de curiosidade e antecipação, e
tocou a campainha. Uma cigarra destrancou a porta da frente, e ele entrou
num vestíbulo com piso de azulejos. Diante dele havia outra porta, também
trancada — até que um zumbido de outro tom a abriu.
Qwilleran passou para um hall de entrada palaciano, mas fracamente
iluminado, que o envolveu com sua mobília. Notou grandes quadros de
molduras douradas, espelhos, estátuas, uma mesa de pés dourados, um
banco esculpido como os de igreja. Um tapete vermelho cobria o assoalho
do hall e as escadas, e do alto uma voz afinada disse: “Suba, Sr. Qwilleran.”
O homem em cima era extremamente alto e elegantemente magro.
Mountclemens vestia paletó de veludo vermelho escuro e seu rosto pareceu
poético para o repórter; talvez pelo cabelo fino caído na testa alta. Uma
fragrância de casca de lima o cercava.
“Minhas desculpas pelo estilo fosso-ponte-levadiça lá embaixo”, disse o
crítico. “Nesta vizinhança não se pode bobear”.
Cumprimentou Qwilleran com a mão esquerda e introduziu-o na sala de
estar. Qwilleran nunca tinha visto nada parecido. Era atulhada e sombria. A
única iluminação vinha da chama da lareira e dos spots ocultos que
destacavam obras de arte.
O olho de Qwilleran distinguiu bustos de mármore, vasos chineses,
muitos quadros de moldura dourada, um guerreiro de bronze e esculturas de
anjo em madeira. Uma das altas paredes era coberta por uma tapeçaria que
mostrava donzelas medievais em tamanho natural. Sobre a lareira, uma
pintura que até amadores reconheceriam como um Van Gogh.
“Você parece impressionado com minha pequena coleção, Sr.
Qwilleran”, disse o crítico, “ou espantado por meu gosto eclético… Aqui,
deixe-me pegar seu casaco.”
“É um museu de bolso”, disse Qwilleran, em choque.
“É minha vida, Sr. Qwilleran. E eu admito, sem nenhuma

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