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Título original americano THE CAT WHO COULD READ BACKWARDS 1966 Tradução (amadora) Mari Oaks, 2014-2020 A Autora LILIAN JACKSON (1913-2011) nasceu em Willimansett, Chicopee, Massachusetts, e começou a escrever poesia ainda adolescente para o Detroit News. Fez os textos publicitários de muitas lojas de departamentos de Detroit. Por 30 anos foi editora da seção Good Living (Bem Viver) do diário Detroit Free Press, até se aposentar em 1978. Entre 1966 — quando o New York Times a elegeu "Novo Detetive do Ano” por seu livro de estreia — e 1968, publicou três romances aclamados por crítica e público: este O Gato que Podia Ler de Trás para Frente, The Cat Who Ate Danish Modern e The Cat Who Turned On and Off. Então, em 1968, Lilian desapareceu completamente do cenário editorial, e por 18 anos. Em 1986, a Berkley reapresentou seu trabalho a uma nova geração de fãs, com a publicação de um livro original, The Cat Who Saw Red. Vieram mais quatro títulos e a reimpressão dos sucessos dos anos 60. A série voltou ao topo da lista de mais vendidos, onde permaneceu por 20 anos, traduzida em 16 línguas e vendendo cópias aos milhões mundo afora. Seu 29º (e último) romance publicado, The Cat Who Had 60 Whiskers, foi lançado pela Penguin em janeiro de 2007. Como muitos escritores de sua geração, era tecnofóbica assumida: escrevia os livros à mão e só depois os digitava. Pouco se sabe sobre Lilian Jackson Braun, que protegia com rigor sua vida privada. Somente em 2005 ela revelou, numa rara entrevista, a data correta de seu nascimento. Ficou viúva do primeiro marido, Louis Paul Braun, e se casou com Earl Bettinger, a quem dedicava os livros: "Para Earl Bettinger, o marido que...". Ficaram casados por 32 anos. Lilian morreu aos 97 anos de infecção pulmonar em 2011. Estava escrevendo o 30º romance, The Cat Who Smelled Smoke. (Com informações da Wiki) Sinopse O gato que podia ler de trás para frente (1966) é o primeiro romance da série "The cat who...", da escritora americana LILIAN JACKSON BRAUN. Quando a história começa, o desempregado repórter de polícia Jim Qwilleran consegue trabalho, para seu próprio espanto, na editoria de arte de um jornal. Se a área é um profundo mistério para o jornalista, mais ainda o assassinato de um crítico de arte detestado por todos. É neste cenário que Qwill será adotado pelo cerebral gato siamês Koko, parceiro inseparável na investigação das pistas e do comportamento criminoso. Ordem dos livros 1. The Cat Who Could Read Backwards (1966) 2. The Cat Who Ate Danish Modern (1967) 3. The Cat Who Turned On and Off (1968) 4. The Cat Who Saw Red (1986) 5. The Cat Who Played Brahms (1987) • 1º romance publicado no Brasil 6. The Cat Who Played Post Office (1987) 7. The Cat Who Knew Shakespeare (1988) • 2º romance publicado no Brasil 8. The Cat Who Sniffed Glue (1988) 9. The Cat Who Went Underground (1989) 10. The Cat Who Talked to Ghosts (1990) • 3º romance publicado no Brasil 11. The Cat Who Lived High (1990) 12. The Cat Who Knew a Cardinal (1991) • 4º romance publicado no Brasil 13. The Cat Who Moved a Mountain (1992) 14. The Cat Who Wasn't There (1992) 15. The Cat Who Went into the Closet (1993) 16. The Cat Who Came to Breakfast (1994) 17. The Cat Who Blew the Whistle (1995) 18. The Cat Who Said Cheese (1996) 19. The Cat Who Tailed a Thief (1997) • 5º romance publicado no Brasil 20. The Cat Who Sang for the Birds (1999) 21. The Cat Who Saw Stars (1999) 22. The Cat Who Robbed a Bank (2000) 23. The Cat Who Smelled a Rat (2001) 24. The Cat Who Went up the Creek (2002) 25. The Cat Who Brought Down the House (2003) 26. The Cat Who Talked Turkey (2004) 27. The Cat Who Went Bananas (2005) 28. The Cat Who Dropped a Bombshell (2006) 29. The Cat Who Had 60 Whiskers (2007) 30. The Cat Who Smelled Smoke (cancelado pela Putnan por morte da autora) Dedicado a Earl Bettinger, o marido que... UM Jim Qwilleran, cujo nome confundiu revisores e linotipistas por duas décadas, chegou quinze minutos mais cedo para seu compromisso com o editor do Daily Fluxion. Na recepção, pegou um exemplar da edição matinal e estudou a primeira página. Leu a previsão do tempo (excepcionalmente quente), os números da circulação (427.463) e o slogan da editora, esnobemente impresso em latim (FIAT FLUX). Leu a matéria principal, um julgamento por assassinato, e a secundária, sobre a disputa para governador, na qual encontrou dois erros tipográficos. Viu que o museu de arte perdeu sua verba de um milhão de dólares, mas pulou os detalhes. Pulou também o caso de um gatinho preso num cano de esgoto, mas leu todo o resto: Tira pega pulha a tiro. Juiz flagra stripper no pulo. Bolsa sobe, taxa irrita. Qwilleran podia ouvir ruídos familiares além da porta com painéis de vidro: máquinas de escrever soando, teletipos tilintando, telefones gritando. A esses sons, seu amplo bigode preto e branco se eriçou e ele alisou-o com os nós dos dedos. Saudoso da visão de agitação e desordem de uma redação de notícias locais antes do fechamento, foi até a porta para uma olhada. Os sons eram autênticos, mas a cena, descobriu, estava toda errada. As persianas estavam alinhadas. As mesas pareciam arrumadas e sem arranhões. Jornais e papéis amarrotados que deveriam estar no chão podiam ser vistos em lixeiras de arame. Enquanto contemplava a cena com espanto, um som estranho chegou a seus ouvidos — um som que não se harmonizava com a música de fundo de todas as redações que conhecera bem. Então notou um office boy de tênis apontando lápis amarelos numa pequena engenhoca que gemia. Qwilleran olhou a coisa. Um apontador de lápis elétrico! Jamais pensara que se pudesse chegar a isso... A coisa lembrou-lhe quanto tempo estivera fora. Outro office boy de tênis saiu da redação e disse: "Sr. Qwilleran? Pode entrar agora." Qwilleran seguiu-o até a salinha onde um jovem editor-chefe o esperava com um aperto de mão e um sorriso sinceros. "Então você é Jim Qwilleran! Já ouvi falar muito de você." Qwilleran imaginou quanto — e quão mal. No currículo que tinha enviado ao Daily Fluxion sua carreira traçava uma curva duvidosa: repórter de esportes, repórter policial, correspondente de guerra, vencedor do Troféu Publishers, autor de livro sobre criminalidade urbana. Vinha então uma sucessão de empregos de curto prazo em jornais cada vez menores, seguida de longo período de desemprego ou de empregos irrelevantes. O editor disse: "Lembro-me da cobertura do julgamento em que você ganhou o troféu Publishers. Eu era repórter na época e grande admirador seu." Pela idade do homem e suas maneiras educadas, Qwilleran reconheceu- o como da nova geração de editores — a precisa, refinada geração que via o jornalismo como ciência, e não causa sagrada. Qwilleran sempre tinha trabalhado para o outro tipo, o dos velhos cruzados sempre zangados. O editor estava dizendo: "Com sua experiência você pode se decepcionar com a nossa oferta. Tudo o que temos para você é uma vaga na Editoria de Cultura, mas queríamos que você aceitasse até que a seção ganhe uma cara." "E até eu provar que posso ficar no emprego?", Qwilleran indagou, olhando o homem nos olhos. O editor já dera sua demonstração de humildade, agora tocava o acorde certo entre humildade e confiança. "Isso é evidente. O que acha?" "Até agora, tudo bem. O importante é voltar a jornal. Perdi tempo em várias cidades antes de ficar esperto. Por isso queria vir para cá. Cidade estranha, jornal ativo, um novo desafio. Acho que pode dar certo. "Claro que pode!", disse o editor, projetando a mandíbula. "E eis o que temos em mente para você. Precisamos de um repórter de arte." "Repórter de arte!" Qwilleran estremeceu e mentalmente imaginou a manchete: Jornalista veterano guardado em baú. "Sabe alguma coisa de arte?" Qwilleran foi honesto. "Não distingo a Vênus de Milo da Estátua da Liberdade." "Você é exatamente o que queremos! Quanto menos você souber, mais original seu ponto de vista. A arte está crescendo nesta cidade e precisamos dar mais cobertura. Nosso crítico de arte escreve uma colunaduas vezes por semana, mas queremos um repórter experiente que escreva matérias sobre os próprios artistas. Há abundância de material. Hoje em dia, como você sabe, há mais artistas do que cães e gatos." Qwilleran penteou o bigode com os dedos. O editor prosseguia com sua veia positiva. "Você vai se reportar ao editor de Cultura, mas pode cavar suas próprias histórias. Queremos que frequente a arte, conheça um monte de artistas, aperte mãos, faça amigos para o jornal." Qwilleran silenciosamente compôs outra manchete: Jornalista vira relações públicas. Mas precisava do emprego. A necessidade lutava com a consciência. "Bem", disse, "não sei..." "Vai ser uma tarefa agradável, limpa e você encontrará pessoas decentes, para variar. Você provavelmente já teve seu quinhão de mafiosos e vigaristas". Espasmos no bigode de Qwilleran tentavam dizer que “o diabo quer tarefa agradável e limpa", mas seu dono manteve silêncio diplomático. O editor consultou o relógio e se levantou. "Por que você não vai lá em cima falar sobre isso com Arch Riker? Ele pode..." "Arch Riker! O que ele está fazendo aqui?" "Ele é o editor de Cultura. Você o conhece?" "Trabalhamos juntos em Chicago anos atrás." "Ótimo! Ele vai dar todos os detalhes. Espero que você decida entrar para o Flux". O editor estendeu a mão e deu um sorriso medido. Qwilleran saiu e vagueou meio tonto pela redação, passando pelas fileiras de camisas brancas de mangas curtas, pelas cabeças inclinadas sobre máquinas de escrever, pela inevitável repórter. Por sinal, a única pessoa a lhe dar um olhar inquisidor, e ele se esticou em seus metro e oitenta e dois centímetros, contraiu os quatro quilos extras que forçaram um furo novo no cinto e passou a mão no cabelo. Tal como no lábio superior, ainda ostentava na cabeça três cabelos pretos para cada grisalho. No andar de cima encontrou Arch Riker presidindo uma sala cheia de mesas, máquinas de escrever e telefones tudo num único tom, verde ervilha. "Muito chique, não?", Arch disse, desculpando-se. "Chamam essa cor de Azeitona Suave ao Olhar. Todos têm que ser mimados hoje em dia. Pessoalmente, acho que parece mais azeitona-bílis." A Editoria de Cultura era uma pequena reedição da Redação sem o ar de urgência. A serenidade enchia a sala como uma névoa. Todos pareciam dez anos mais velhos que a equipe embaixo, e o próprio Arch estava mais gordo e careca. "Jim, é ótimo vê-lo novamente", disse. "Você ainda soletra seu nome com aquele W ridículo?" "É uma respeitável grafia escocesa", Qwilleran protestou. "E vejo que você não nos livrou desse bigode cheio de mato." "É minha única lembrança de guerra." Os nós dos dedos alisaram o mato carinhosamente. "Como vai sua mulher, Jim?" "Você quer dizer minha ex-mulher?" "Oh, não sabia. Desculpe." "Vamos pular essa... Que trabalho é esse que você tem para mim?" "É moleza. Se começar hoje, já pode emplacar matéria no domingo." "Eu ainda não disse que vou aceitar." "Você vai", disse Arch. "É ideal para você." "Considerando minha fama recente, você quer dizer?" "Vai bancar o sensível? Esqueça. Pare de alfinetar a si mesmo." Qwilleran separou o bigode, pensativo. "Acho que eu podia fazer uma tentativa. Quer que eu faça uma experiência?" "O que você quiser." "Tem alguma pauta?" "Sim". Arch Riker tirou uma folha de papel rosa de um arquivo. "O que o editor lhe disse?" "Nada", disse Qwilleran, "exceto que queria textos de interesse humano sobre artistas." "Bem, ele me mandou um memo cor-de-rosa sugerindo matéria sobre um cara chamado Cal Halapay". "E daí?" "Aqui no Flux temos um código de cores. Um memo azul significa para sua informação. Amarelo significa sugestão casual. Mas rosa significa Faça, homem, faça". "O que é tão urgente sobre Cal Halapay?" "Nessas circunstâncias, pode ser melhor que você não saiba de tudo. Basta ir lá fora na friagem, procurar essa pessoa e escrever algo legível. Você conhece todos os truques." "Onde posso encontrá-lo?" "Ligue para o escritório dele, imagino. É um artista comercial, dono de uma agência de sucesso, mas faz pintura a óleo nas horas de folga. Pinta retratos de crianças, muito populares. Crianças de cabelos encaracolados e bochechas rosadas. Parecem zangadas, mas as pessoas compram... Diga, quer almoçar? Podíamos ir ao Clube de Imprensa." O bigode de Qwilleran prestou atenção. Clubes de imprensa tinha sido sua vida, seu amor, seu hobby, sua casa, sua inspiração. Este ficava em frente à nova central de polícia. Era uma fortaleza de pedra calcária escura com janelas gradeadas, pois tinha sido um dia a cadeia municipal. Os degraus de pedra, abaulados pelo uso, eram a prova do degelo inesperado de fevereiro. No hall de entrada o madeirame antigo brilhava, vermelho, sob inúmeras camadas de verniz. "Podemos comer no bar", Arch disse, "ou subir para o restaurante. Lá tem toalhas nas mesas." "Vamos comer aqui", disse Qwilleran. Estava escuro e barulhento no bar. As conversas eram em tons confidenciais. Qwilleran conhecia bem. Significava que rumores estavam circulando, campanhas eram lançadas e casos sendo resolvidos extraoficialmente entre uma cerveja e um hambúrguer. Encontraram dois bancos vazios no bar e foram atendidos por um barman de colete vermelho e sorriso cúmplice que transbordava de informação privilegiada. Qwilleran lembrou que algumas de suas melhores dicas de matérias tinham vindo de bartenders de Press Clubs. "Scotch e água", Arch pediu. Qwilleran disse: “Suco de tomate duplo on the rocks." "Tom-tom nas pedras", traduziu o barman. "Com limão espremido e um toque de molho inglês?" "Não, obrigado." "É como eu preparo para meu amigo o prefeito quando ele vem aqui." O sorriso autoritário continuava. "Não, obrigado." "Que tal uma gota de Tabasco para ficar picante?" "Não, apenas o suco puro." Os cantos da boca do barman caíram e Arch lhe disse: "Este é Jim Qwilleran, um novo funcionário. Ele não entende que você é um artista... Jim, este é Bruno. Ele dá às bebidas muita expressão pessoal." Atrás de Qwilleran uma voz ensurdecedora disse: "Queria menos expressão e uma dose maior de álcool. Ei, Bruno, faça-me um martini, mas deixe de fora o lixo. Sem azeitona, sem limão, sem anchova ou tomatinhos em conserva." Qwilleran se virou e deu de cara com um charuto preso entre dentes sorridentes de um tamanho bem desproporcional ao jovem magro que o fumava. Um cabo preto pendia do bolso, obviamente ligado a um medidor de luz. Ele era barulhento. Ele era arrogante. Ele estava se divertindo. Qwilleran gostou dele. "Este palhaço", disse Arch a Qwilleran, "é Bunsen Odd, o Esquisitão da Fotografia. Esquisitão, este é Jim Qwilleran, velho amigo meu. Esperamos que ele se junte à equipe Flux". O fotógrafo estendeu uma mão rápida. "Jim, prazer em conhecê-lo. Importa-se com o charuto?" "Fumo cachimbo. Mas obrigado por perguntar." Odd estudou o bigode exuberante de Qwilleran com interesse. "Matagal quase fora de controle. Não tem medo de incêndio?" Arch disse a Qwilleran: "Essa corda preta saindo do bolso de Mr. Bunsen é o que usamos para amarrar a cabeça dele. Mas ele é um homem útil. Tem mais informação do que o Departamento de Pesquisa. Talvez ele possa falar de Cal Halapay." "Claro", disse o fotógrafo. "O que você quer saber? A mulher dele é interessante, 42-40-42." "Quem é este Halapay, afinal?", perguntou Qwilleran. Odd Bunsen consultou brevemente a fumaça do charuto. "Pintor. Dirige uma agência de publicidade grande. Pessoalmente vale alguns milhões. Mora em Lost Lake Hills. Linda casa, grande estúdio, onde pinta, duas piscinas. Duas, captou? Com a água tão escassa, ele provavelmente enche de bourbon". "Tem família?" "Dois ou três filhos. Linda mulher. Uma ilha no Caribe, um rancho no Oregon, dois aviões particulares. Tudo que o dinheiro pode comprar. E não é pão-duro, é um sujeito generoso". "E a pintura dele?" "Boas! Realmente boas", disse Odd. "Tenho uma pendurada na minha sala de estar. Depois que fotografei a esposa dele num baile de caridade no ano passado, ele me deu uma pintura. Casal de criançasde cabelo encaracolado... Bem, tenho que comer agora. Tem pauta na mesa." Arch esvaziou o copo e disse a Qwilleran: "Fale com Halapay e avalie a possibilidade de fotos, então chamamos Odd Bunsen. É nosso melhor homem. Talvez ele tente algumas fotos coloridas. Não faria mal uma página em cores". "Aquele memo rosa está rendendo, não é?", Qwilleran disse. "Qual é a conexão entre Halapay e o Daily Fluxion?" "Vou pedir outra bebida", disse Arch. "Quer mais um suco de tomate?" Qwilleran não insistiu na pergunta, mas disse: "Basta me dar uma resposta direta, Arch. Por que estão me oferecendo essa vaga na arte? Eu entre todas as pessoas..." "Porque é assim que os jornais fazem as coisas. Eles põem especialistas de beisebol em crítica de teatro e setoristas de igreja em boates. Você sabe disso tão bem quanto eu." Qwilleran assentiu e acariciou o bigode com tristeza. Então disse: "E quanto ao crítico de arte que você tem na equipe? Se eu aceitar a vaga vou ter que trabalhar com ele? Ou ela, se for o caso." "É um cara", disse Arch. "Ele escreve resenhas críticas, mas você vai fazer reportagens e perfis de personalidades. Não creio que haja algum conflito." "Ele trabalha na redação?" "Não, ele nunca vai à redação. Dita a coluna em casa, grava em fita e nos envia por mensageiro uma ou duas vezes por semana. Temos que transcrever. É um incômodo extra." "O que o mantém longe? Não gosta de verde ervilha?" "Não me pergunte. É o acordo dele com a direção. Tem contrato claro com o Flux". "Como ele é?" "Distante. Opinativo. Convivência difícil." "Isso é bom. É jovem ou velho?" "Médio. Vive sozinho com um gato, imagine! Muitos acham que o gato escreve a coluna, e podem estar certos." "E o material dele é bom?" "Ele acha que sim. E a chefia, evidentemente, também." Arch girou no banco enquanto pesava seu comentário seguinte. "Há um boato de que o Flux paga alto seguro pelo cara." "O que é tão valioso num crítico de arte?" "Este tem certa magia que os jornais adoram: é controvertido! A coluna gera centenas de cartas por semana, não, milhares!" "Que tipo de cartas?" "Zangadas. Açucaradas. Algumas histéricas. Leitores da área artística odeiam as tripas dele, outros pensam que ele é o maior. E brigam entre si. Ele consegue manter toda a cidade ligada. Sabe o que nossa última pesquisa mostrou? A página de arte tem público maior do que a seção de esportes! Você e eu sabemos que é uma situação anormal." "Vocês devem ter um monte de entusiastas de arte na cidade", disse Qwilleran. "Você não precisa gostar de arte para curtir nossa coluna de arte, você só precisa gostar de sangue." "Mas eles brigam por quê?" "Você vai descobrir." "Posso entender a controvérsia em esportes e política, mas arte é arte, não?" "Isso é o que eu achava", disse Arch. "Quando assumi a editoria tinha essa noção simplória de que arte era algo precioso para pessoas bonitas que têm belos pensamentos. Cara, larguei esse sonho depressa! A arte passou a ser democrática. Nesta cidade, é o maior modismo desde a canastra, e qualquer um pode jogar. As pessoas compram quadros em vez de piscinas". Qwilleran mastigou o gelo em seu suco de tomate e ponderou sobre os mistérios desta tarefa que o Daily Fluxion lhe oferecia. "Por falar nisso", disse ele, "qual é o nome do crítico?" "George Bonifield Mountclemens". "Diga de novo, por favor" "George Bonifield Mountclemens Terceiro! Com III!" "Caramba! E ele usa os três nomes?" "Todos os três, todas as nove sílabas, todas as vinte e sete letras, mais o numeral! Duas vezes por semana temos que encaixar sua assinatura na largura de uma coluna padrão. É impossível, a não ser para os lados. E ele não permite abreviaturas, hifens, contrações ou amputações!" Qwilleran lançou um olhar mais atento a Arch. "Você não gosta muito dele, não é?" Arch deu de ombros. "É ame-o ou deixe-o. Na verdade, nunca vi o cara. Vejo apenas os artistas que vão à redação querendo dar um soco nos dentes dele." "George Bonifield Mountclemens III!" Qwilleran sacudiu a cabeça com espanto. "Até o nome dele enfurece alguns leitores", disse Arch. "Querem saber o que ele pensa que é." "Continue falando. Estou começando a gostar do trabalho. O chefe disse que seria uma tarefa agradável e limpa e eu já estava com medo de trabalhar com um monte de santos". "Não deixe que ele o engane. Todos os artistas desta cidade se odeiam e todos os amantes de arte tomam partido. Então todo mundo joga duro. É como no futebol, só que mais sujo. Xingamento, intriga, traição." Arch deslizou da banqueta. "Vamos lá, vamos pegar um sanduíche de carne." O sangue de macaco velho de redação que fluía nas veias de Qwilleran começou a correr mais rápido. Seu bigode quase sorriu. "Ok, eu aceito", disse ele. "Vou aceitar o trabalho." DOIS Era o primeiro dia de Qwilleran no Daily Fluxion. Ele foi a uma das mesas verde-ervilha da Editoria de Cultura e pegou um punhado de lápis amarelos. Percebeu que no telefone verde-ervilha havia um lembrete oficial gravado: SEJA GENTIL COM AS PESSOAS. Experimentou a máquina de escrever verde-ervilha e teclou: “A hora de muitos assassinatos é depois da meia- noite". Então telefonou à garagem do Fluxion e pediu um carro para a ida a Lost Lake Hills. Para chegar a esse subúrbio da moda, 24 quilômetros além dos limites da cidade, Qwilleran atravessou arrabaldes plácidos e fazendas cercadas das últimas neves de inverno. Tinha muito tempo para pensar sobre a entrevista com Cal Halapay, e imaginou se o Método Qwilleran ainda funcionaria. Nos velhos tempos, era famoso pela abordagem fraternal que deixava os entrevistados à vontade. Era composta de duas partes de simpatia, duas partes de curiosidade profissional e uma parte de baixa pressão arterial, e tinha conseguido confidências de senhoras idosas, adolescentes infratores, meninas bonitas, reitores de universidades e criminosos. Apesar disso, estava cabreiro com a pauta Halapay. Há muito tempo não fazia uma entrevista e artistas não eram sua especialidade. Suspeitava que falavam uma língua secreta. Bem que podia haver algum release preparado por sua equipe de relações-públicas. O bigode de Qwilleran fremiu. Sempre fora hábito do jornalista compor com antecedência o parágrafo inicial de suas matérias. Nunca funcionava, mas fazia como exercício. Agora, no caminho para Lost Lake Hills, fez algumas tentativas. Poderia dizer: "Quando Cal Halapay deixa sua suíte executiva forrada de pelúcia no final do dia, ele esquece a concorrência acirrada na publicidade e relaxa em...". Não, isso era banal. Tentou novamente. "Um homem de publicidade multimilionário com uma bela esposa (34-22-32) e duas piscinas (uma cheia de champanhe, segundo a lenda) admite que vive uma vida dupla. Ao pintar retratos comoventes de crianças, escapa…" Não, era sensacionalismo. Qwilleran relembrou seu breve emprego numa revista noticiosa e fez outra tentativa no estilo crocante da publicação. "Com um lenço azul no colarinho da camisa esporte de seda italiana, o tsar de um império de publicidade, bonito, grisalho, de 1,80m, gasta seu tempo livre..." Qwilleran imaginou que um homem de realizações como Halapay deveria ser alto, grisalho e impressionante. Provavelmente teria um bronzeado de inverno também. "Com um foulard azul acentuando seu bronzeado caribenho..." A Lost Lake Road terminava abruptamente em enorme portão de ferro engastado numa parede de pedra que parecia inexpugnável e cara. Qwilleran freou o carro e olhou ao redor em busca de um porteiro. Quase imediatamente, uma voz gravada vinda da lateral do portão disse agradavelmente: "Por favor, aperte o botão a sua esquerda e anuncie claramente seu nome." Ele baixou o vidro da janela e disse: "Qwilleran, do Daily Fluxion". "Obrigado", respondeu a voz no porteiro eletrônico. O portão se abriu e o jornalista entrou na propriedade, seguindo uma estrada que serpenteava através de uma alta fileira de pinheiros. Terminava em um jardim de inverno de paisagista, todo em seixos, pedras, sempre-vivas, pontes em arco sobre pequenos lagos congelados.Neste cenário, sombrio mas pitoresco, havia uma casa estranha. Era de estilo contemporâneo, com curvas suaves no teto e paredes de vidro opaco que pareciam papel de arroz. Qwilleran revisou a abertura da matéria sobre a camisa esportiva italiana. Halapay provavelmente relaxava nesse pagode de um milhão de dólares em quimonos de seda. Na porta de entrada, que parecia esculpida em marfim, Qwilleran encontrou algo que se assemelhava a uma campainha e estendeu a mão para ela, mas antes que tocasse o botão, o painel brilhou com uma luz azul- esverdeada e sinos tocaram dentro da casa, seguidos por latidos de um cão, ou dois ou três. Houve um comando nítido, um momento de obediência silenciosa e uma porta foi aberta bruscamente. “Bom dia. Sou Qwilleran do Daily Fluxion", disse o jornalista a um jovem de rosto rosado e cabelos encaracolados de jardineira e camisa suada, e antes que pudesse acrescentar "Seu pai está em casa?" o jovem disse amavelmente: "Venha, senhor. Aqui está seu passaporte." Entregou-lhe um instantâneo difuso de um rosto fortemente embigodado olhando ansioso da janela de um carro. "Sou eu!", Qwilleran disse com espanto. "Tirado no portão antes que entrasse", disse o jovem, com prazer óbvio. "É assustador, não é? Aqui, deixe-me guardar seu casaco. Espero que não se importe com os cães. Eles são de uma espécie amigável. Amam visitas. Esta é a mãe. Tem quatro anos. Os filhotes são de sua última ninhada. Você gosta de terriers azuis? " Qwilleran disse: "Eu..." "Todo mundo quer Yorkshires nos dias de hoje, mas eu gosto dos Kerry blues. Eles têm belos casacos, não é? Você teve alguma dificuldade para encontrar o lugar? Nós temos um gato também, mas ela está grávida e dorme o tempo todo. Acho que vai nevar. Espero que sim. O esqui foi péssimo este ano." Qwilleran, que se orgulhava de fazer suas entrevistas sem nada anotar, começou um inventário mental da casa: foyer de mármore branco com piscina, peixes e árvores tropicais com provavelmente três metros de altura. Claraboia. Sala acarpetada com algo tipo guaxinim branco. Lareira em parede preta brilhante. Provavelmente ônix. Também notou que o rapaz tinha um furo na manga e usava meias suadas. O fluxo da conversa não havia cessado. "Gostaria de se sentar na sala de estar, Sr. Qwilleran? Ou quer ir direto para o estúdio? Lá é mais confortável, se o cheiro não o incomodar. Algumas pessoas são alérgicas a terebintina. Quer uma Coca ou algo? Alergia é uma coisa engraçada. Sou alérgico a crustáceos. Isso me arrasa, porque sou louco por lagosta…" Qwilleran esperava a chance de perguntar “Seu pai está em casa?" quando o jovem disse: “Minha secretária avisou que você queria fazer matéria sobre meus quadros, então vamos para o estúdio. Vai fazer perguntas ou apenas conversamos?" Qwilleran engoliu em seco e disse: “Francamente, esperava que você fosse bem mais velho..." “Sou um menino prodígio", disse Halapay sem sorrir. “Fiz meu primeiro milhão antes dos vinte e um. Tenho 29 agora. Parece que sou um gênio para fazer dinheiro. Você acredita em gênios? É espantoso, realmente. Eis um quadro de quando me casei. Minha mulher parece oriental, não? Ela saiu para uma aula de arte nesta manhã, mas você a conhecerá depois do almoço. Desenhamos a casa para combinar com a aparência dela. Gostaria de um café? Peço à empregada se você quiser café. Vamos reconhecer, pareço menino e sempre vou parecer. Há um bar no estúdio se você preferir uma bebida. O estúdio tinha cheiro de tinta, uma boa dose de bagunça e uma grande parede de vidro com vista para um branco lago congelado. Halapay pressionou um interruptor e uma sombra transparente se desenrolou do teto, filtrando a claridade. Tocou outro controle e as portas deslizaram, abrindo- se para revelar um estoque de bebidas maior que o do Press Club. Qwilleran disse que preferia café, assim Halapay apertou outro botão e deu a ordem a uma grade de bronze na parede. Ele mostrou a Qwilleran uma garrafa de forma estranha no bar. "Este é um licor que eu trouxe da América do Sul", disse. "Não pode comprá-lo aqui. Leve para casa com você. Gosta da vista? Sensacional, não é? Isso é um lago artificial. O paisagismo só custou meio milhão. Você quer um donut com seu café? Estas na parede são minhas pinturas. Você gosta?" As paredes do estúdio eram cobertas de telas emolduradas de meninos e meninas de cabelos encaracolados e bochechas de maçãs vermelhas. Para todos os lados que olhasse Qwilleran via maçãs vermelhas. "Escolha uma", disse Halapay, “e leve para casa com você, cortesia do artista. Os grandes vendo por quinhentos dólares. Leve um grande. Você tem filhos? Temos duas meninas. Ei-las no móvel do som. Cindy tem oito e Susan tem seis." Qwilleran estudou a fotografia das filhas de Halapay. Como a mãe, tinham olhos amendoados e cabelos classicamente em linhas retas, e disse: "Por que você só pinta crianças de cabelos encaracolados e bochechas rosadas?" "Você devia ir ao Baile dos Namorados na noite de sábado. Teremos um grande mix de jazz. Você está sabendo do baile? É a festa anual do Valentine's Day no clube de arte. Vamos todos em trajes representando amantes famosos. Você gostaria de ir? Não precisa se fantasiar se não gostar de fantasia. Custa vinte dólares por casal. Olha, deixe-me lhe dar um par de ingressos." "Voltando aos quadros", disse Qwilleran, "estou curioso por saber por que você se especializou em crianças. Por que não paisagens?" "Acho que você deveria escrever sobre o baile em sua coluna", disse Halapay. "É o maior evento do ano no clube. Sou o presidente, e minha mulher é muito fotogênica. Você gosta de arte? Todo mundo do campo da arte vai estar lá." "Incluindo George Bonifield Mountclemens III, eu imagino", disse Qwilleran, num tom destinado a ser humorístico. Sem qualquer alteração de sua fala inexpressiva, Halapay disse: "Essa fraude! Se essa fraude mostrar a cara no clube será atirado para fora. Espero que ele não seja seu amigo próximo. Considero um personagem inútil. Nada sabe de arte, mas se apresenta como autoridade, e crucifica artistas consagrados. Estão permitindo que ele corrompa a atmosfera da arte na cidade. Deviam ficar espertos e demiti-lo." "Sou novo no ramo", disse Qwilleran quando Halapay parou para respirar, “e não sou nenhum expert..." "Só para demonstrar a fraude que é seu crítico, ele transformou Zoe Lambreth em grande artista. Você já viu as coisas dela? É uma farsa. Pode ver os quadros dela na Galeria Lambreth, e vai entender o que quero dizer. Nenhuma galeria respeitável aceitaria o trabalho dela, então ela teve que se casar com um negociante de arte. Há truques em todos os comércios. Quanto ao marido, é nada além de um guarda-livros que entrou na farra da arte, e eu quis dizer farra mesmo. Aqui está Tom com o café." Um rapaz de colete abotoado apareceu com uma bandeja, que depositou sem elegância numa mesa. Lançou um olhar hostil a Qwilleran. Halapay disse: "Gostaria de saber se devemos pedir um sanduíche, é quase hora do almoço. O que você quer saber sobre meu trabalho? Vá em frente e faça perguntas. Você não vai anotar?" "Gostaria de saber", disse Qwilleran, "por que pinta crianças." O artista fez um silêncio pensativo, o primeiro desde a chegada de Qwilleran. Então disse: "Zoe Lambreth parece ter uma forte conexão com Mountclemens. Seria interessante saber como ela consegue. Posso fazer algumas suposições, mas não para publicação. Por que não investiga este caso? Você poderia conseguir informações suculentas e Mountclemens seria demitido. Então você poderia ser crítico de arte." "Não quero...", Qwilleran começou. "Se seu jornal não limpar essa bagunça, e logo, vai começar a sentir onde dói. Eu não me importaria de comer um cachorro-quente com o café. Você quer um cachorro quente?" Às cinco e trinta daquela tarde Qwilleran refugiou-se no caloroso santuário envernizado do Press Club, onde tinha marcado encontro com Arch Riker. Arch queria uma bebida rápida a caminho de casa. Qwilleran queria uma explicação. Ele pediu a Bruno secamente: "Suco detomate on the rocks. Sem sal, sem molho inglês, sem Tabasco". A Arch, disse: "Obrigado, amigo. Obrigado pela festa de boas-vindas." "O que quer dizer?" "Foi um trote para iniciantes?" "Não sei do que você está falando." "Estou falando da pauta sobre Cal Halapay. Foi uma pegadinha? Não pode ter sido a sério. O cara é louco." Arch disse: "Bem, você sabe como os artistas são. Individualistas. O que aconteceu?" "Nada aconteceu. Nada que eu possa usar numa matéria e levei seis horas para descobrir. Halapay vive nesta casa estranha do tamanho de uma escola secundária, só que de uma espécie japonesa. Tudo é eletrônico, para todos os tipos de truques. O interior é selvagem. Há uma parede feita de hastes de vidro penduradas como pingentes. Eles se movem quando você passa e soam como um xilofone que precisa de ajuste." "Bem, por que não? Ele tem que gastar o dinheiro de alguma forma." "Eu sei, mas espere até eu terminar. Há toda essa configuração de luxo, e aparece Cal Halapay vestindo uma camisa suada, com um grande buraco no cotovelo. E ele parece ter uns quinze anos de idade." "Sim, eu ouvi falar que ele é jovem para um milionário", disse Arch. "Isso é outra coisa. Ele ostenta seu dinheiro e tenta forçar você a aceitar presentes. Tive de lutar contra charutos, licores, uma pintura de 500 dólares, um peru congelado de seu rancho no Oregon e um filhote de Kerry blue. Depois do almoço a mulher apareceu, e eu estava com medo de que a generosidade dele excedesse os limites da decência. Aliás, Mrs. Halapay é um prato." "Você está me deixando com inveja. O que foi o almoço? Línguas de avestruz?" "Cachorro-quente. Servido por um criado com o charme de um gorila." "Você conseguiu um almoço grátis. Está reclamando de quê?" "Halapay. Ele não responde a perguntas." "Ele se recusa?", Arch perguntou surpreso. "Ele as ignora. Você não consegue fixar a atenção dele. Vagueia de jazz progressivo a máscaras primitivas de gatos grávidos que trouxe do Peru. Tive mais sorte de me comunicar com o porteiro eletrônico do que com o menino prodígio". "Conseguiu alguma coisa?" "Eu vi os quadros, é claro, soube que haverá um baile no clube de arte na noite de sábado. Acho que posso ir." "O que você acha das pinturas?" "São um pouco monótonas. Todas aquelas bochechas de maçã vermelha! Mas fiz uma descoberta. Em todas essas fotos de crianças, Cal Halapay está pintando a si mesmo. Acho que ele é encantado pela própria aparência. Cabelo encaracolado. Pele rosada." Arch disse: "Concordo que isso não seria o tipo de matéria que o chefe quer. Parece As Mil e uma Noites". "Temos que fazer essa matéria?" "Você viu a cor do memorando. Rosa!" Qwilleran massageou o bigode. Depois de um tempo, disse: "A única vez que consegui uma resposta direta a uma pergunta foi quando mencionei George Bonifield Mountclemens". Arch largou a bebida. "O que Halapay disse?" "Ele explodiu de uma forma controlada. Basicamente, acha que Mountclemens não é qualificado para julgar arte." "Imagino. Halapay fez uma exposição solo um ano atrás, e nosso crítico o assou vivo. Os leitores adoraram. Ele confortou seus negros corações dizendo que máquinas bem-sucedidas de dinheiro podem fracassar em algo. Mas foi um duro golpe para Halapay. Ele descobriu que seu dinheiro podia comprar qualquer coisa, mas não uma boa resenha de arte". "Choro por ele. E os outros jornais? Criticam o trabalho dele também?" "Eles não têm crítico. Apenas uma repórter idosa, gentil senhora que cobre vernissages e fala de tudo. Ficam no seguro." Qwilleran disse: "Então Halapay é mau negócio..." "Sim, e você não sabe o quanto", disse Arch, puxando sua banqueta mais para perto de Qwilleran. "Desde aquele episódio ele vem tentando falir o Flux. Retirou um monte de anúncios e mudou-os para o outro jornal. Isso dói! Especialmente porque ele controla a maior parte da publicidade de comida e moda na cidade. Ele está mesmo tentando reunir outros publicitários contra o Flux. É sério." Qwilleran fez uma careta de incredulidade. "E eu tenho que escrever uma matéria simpática para que o departamento de publicidade possa recuperar os anúncios?" "Francamente, isso ajudaria. Esfriaria as coisas." "Não gosto disso. " "Não seja duro comigo", Arch pediu. "Basta escrever uma peça folclórica sobre um cara interessante que usa roupas velhas, tem cães e gatos, come cachorro-quente no almoço. Você sabe como fazer." "Não gosto disso." "Não estou pedindo a você para mentir. Basta ser seletivo, isso é tudo. Use a parte sobre o vidro, o jardim de meio milhão de dólares, as visitas à América do Sul, a fazenda de perus, sua adorável esposa e as gatinhas adoráveis." Qwilleran meditava. "Suponho que o nome disso seja jornalismo prático." "Ajuda a pagar as contas." "Não gosto disso", disse Qwilleran, "mas se você está nessa furada, vou ver o que posso fazer." Ergueu o copo de suco de tomate. "Halapay ou o inferno que pague!" "Não seja bonzinho. Tive um dia difícil." "Gostaria de ler algumas colunas do Mountclemens. Você tem?" "No arquivo da pesquisa", disse Arch. "Quero ver o que ele escreveu sobre uma artista chamada Zoe Lambreth. Halapay sugeriu uma ligação suspeita entre Mrs. Lambreth e Mountclemens. Sabe alguma coisa sobre isso?" "Eu só processo o texto dele. Não espreito sob as persianas", disse Arch, dando um tapa nas costas de Qwilleran. “Boa noite". TRÊS Qwilleran, usando o mais novo e mais escuro de seus dois ternos, foi sozinho ao Baile dos Namorados no Clube de Arte, o qual — ele descobriu — tinha o nome de Turp and Chisel, ou Cedro e Formão. O clube começara quarenta anos antes nos fundos de uma espelunca de jogatina e bebida barata dos anos 60. Agora ocupava o terraço do melhor hotel da cidade, seu quadro de sócios era amplo e elegante e os boêmios sem dinheiro que fundaram a fraternidade estavam velhos, sóbrios e cheios de dólares. Ao chegar, Qwilleran começou a explorar o clube. Encontrou um suntuoso salão de baile, o restaurante e um bar muito movimentado. A sala de jogos, com painéis de madeira de celeiros antigos, oferecia de tudo, de dardos a dominó. No salão, as mesas tinham toalhas em vermelho e branco, e uma orquestra tocava melodias insossas. Perguntou pela mesa de Halapay e foi recebido por Sandra Halapay vestindo um quimono branco de seda bordada. A maquiagem exagerada tornava seus olhos amendoados ainda mais exóticos. "Receava que você não viesse", disse ela, segurando a mão dele muito tempo depois de o cumprimento acabar e encantando-o com uma risada ondulante. "O convite era irresistível, Mrs. Halapay", disse Qwilleran. Então surpreendeu a si mesmo curvando-se até a mão dela e escovando-a com seu bigode. "Por favor, me chame de Sandy", disse ela. "Veio sozinho? Ao baile do Valentine's Day?" “Sim. Represento Narciso." Sandy riu, divertida. "Vocês jornalistas são tão inteligentes!" Ela era liricamente alta e bonita, decidiu Qwilleran, e nessa noite mostrava um charme descontraído, como esposas geralmente mostram quando os maridos estão ausentes. “Cal é presidente do baile", disse ela, "e está rodando por aí, então você pode ser meu par." Seus olhos pareciam tão malandrinhos quanto exóticos. Em seguida, mudando para um tom formal que soava indiferente, Sandy apresentou as pessoas à mesa. Eram todas da diretoria de Cal, explicou ela incisivamente. Mr. e Mrs. Riggs ou Biggs trajavam roupas francesas de época. Um casalzinho gordinho chamado Buchwalter, que parecia entediado, usava fantasia de camponês. Estava lá também Mae Sisler, a repórter de arte do outro jornal. Qwilleran dirigiu-lhe uma vênia fraternal, calculando que ela ultrapassava em dez anos a idade da aposentadoria. Mae Sisler estendeu-lhe a mão ossuda e disse com voz fina: "Seu Mountclemens é um menino muito travesso, mas você parece um jovem gentil." “Obrigado", disse Qwilleran. "Há vinte anos que ninguém me chamava de jovem." “Vai gostar de seu novo trabalho", ela previu. "Vai conhecer pessoas encantadoras." Sandy inclinou-se para Qwilleran e disse: "Você parece tão romântico com essebigode. Eu queria que Cal deixasse crescer um assim, para parecer mais velho, mas ele resiste à sugestão. Ele parece uma criança, não acha?" Ela riu musicalmente. Qwilleran disse: "É verdade que ele parece muito jovem." "Acho que ele tem algum retardamento. Em alguns anos as pessoas vão pensar que ele é meu filho. Isso não seria terrível?" Sandy deu a Qwilleran um olhar de adoração. "Você vai me convidar para dançar? Cal é um dançarino terrível. Ele se acha o máximo, mas na verdade é horrível na pista de dança." “Consegue dançar nessa roupa?" O quimono branco de Sandy era muito justo e rijo, preso no meio com um grande obi preto. Seda branca enfeitava seus lisos cabelos escuros. “Oh, com certeza." Ela apertou o braço de Qwilleran enquanto eles andavam até a pista. "Você sabe o que meu traje representa?" Qwilleran disse que não. “Cal está de quimono preto. Representamos Jovens amantes na neve." “Quem são eles?" "Oh, você sabe, a famosa gravura de Harunobu". “Sinto muito. Sou um ignorante em matéria de arte." Qwilleran sentiu que podia admitir sua fraqueza, porque naquele momento estava conduzindo Sandy habilmente pelo salão nos passos de um foxtrote reforçados com algumas firulas. "Você é um dançarino divertido", disse ela. "É preciso muita coordenação para passar assim de um foxtrote para um chachachá. Mas precisamos fazer algo sobre sua educação artística. Que tal se eu o ajudasse?" "Não sei se posso pagar, com esse meu salário", disse, e o riso de Sandy pôde ser ouvido acima do som da orquestra. "E a senhorinha do outro jornal? Ela é especialista em arte?" “O marido dela era um artista da camuflagem na Primeira Guerra Mundial", disse Sandy. "Acho que isso faz dela uma especialista." “E quem são as demais pessoas na sua mesa?" “Riggs é escultor. Faz coisas compridas de fibra, que são exibidas na Galeria Lambreth. Parecem gafanhotos. Pensando bem, assim como Riggs... O outro casal, os Buchwalters, diz que representa o famoso par Amantes, de Picasso. Você não pode dizer que eles não estejam no clima, sempre se vestem como camponeses". Sandy franziu o nariz arrebitado. "Não a suporto. Ela se acha intelectual. O marido ensina arte na escola Penniman, e está na galeria Westside com uma mostra individual. Ele é um vegetal, mas faz lindas aquarelas." Em seguida, franziu a testa. "Espero que jornalistas não sejam intelectuais. Quando Cal me disse para... oh, bem, não importa. Falo demais. Vamos apenas dançar." Qwilleran perdeu a parceira logo depois, quando um jovem vagabundo a tirou. Ele usava camiseta rasgada e tinha modos de bandido. O rosto era familiar. Mais tarde, de volta à mesa, Sandy disse: “Aquele era Tom, nosso empregado. Ele está fantasiado de Stanley não-sei-o-quê. Aquele personagem da peça de Tennessee Williams, e seu par está por aí, vestida de negligê rosa. Tom é um cafajeste, mas Cal acha que ele tem talento, e daí colocou o garoto na escola de arte. Cal faz um monte de coisas maravilhosas. Você vai escrever um artigo sobre ele, não vai?" "Se eu tiver material suficiente", disse Qwilleran. “Ele é difícil de entrevistar. Talvez você possa me ajudar." "Eu adoraria. Você sabia que Cal é presidente do Conselho Estadual de Arte? Acho que quer ser o primeiro artista profissional a chegar à Casa Branca. Ele provavelmente vai chegar lá também. Não permite que nada o atrapalhe." Ela fez uma pausa e ficou pensativa. "Você deveria escrever uma matéria sobre o senhor da mesa ao lado." "Quem é ele?" "Eles o chamam de tio Waldo. É um açougueiro aposentado que pinta animais. Nunca tinha segurado um pincel até os sessenta e nove." "Onde já ouvi isso antes?", disse Qwilleran. "Ah, claro, todo idoso quer ser um Grandma Moses, mas Uncle Waldo é realmente talentoso, mesmo que Georgie não pense assim." "Quem é Georgie?" "Você sabe, Georgie, seu precioso crítico de arte." "Ainda não conheço o homem. Como ele é?" "Ele é realmente fedorento, é o que ele é. Quando fez a crítica da mostra individual de tio Waldo ele foi absolutamente cruel." "O que ele disse?" "Disse que tio Waldo deveria voltar para o mercado de carne e deixar as vacas e os coelhos para as crianças, que desenham com mais imaginação e honestidade. Disse que tio Waldo massacrou mais animais nas telas do que no açougue. Todo mundo ficou furioso! Muitas pessoas escreveram cartas ao editor, mas o pobre velho levou a sério e parou de pintar. Foi um crime! Ele fazia arte primitiva muito charmosa. Eu entendo por que o neto dele, que é motorista de caminhão, invadiu o jornal e ameaçou bater em George Bonifield Mountclemens, e não o culpo. A crítica dele é completamente irresponsável". "Ele já criticou o trabalho de seu marido?", perguntou Qwilleran, com sua melhor expressão de inocência. Sandy estremeceu. "Ele escreveu algumas coisas cruéis sobre Cal, só porque Cal é um artista comercial e bem sucedido. Mountclemens qualifica artistas comerciais de pintores de parece. Na verdade Cal desenha melhor do que qualquer um desses borradores de tela ou ditos expressionistas abstratos. Nenhum deles pode desenhar um copo de água!" Sandy franziu a testa e ficou em silêncio, e Qwilleran disse: "Você é mais bonita quando sorri." Ela se obrigou a uma gargalhada. "Olhe! Não é hilariante? Cal está dançando com Marco Antônio". Qwilleran seguiu o dedo dela, que apontava para a pista de dança, onde Cal Halapay em seu quimono japonês preto conduzia um guerreiro romano ao som de um lento foxtrote. O rosto sob o capacete era ousado, mas suave. "É Butchy Bolton", disse Sandy. "Ela ensina escultura na escola de arte, solda em metal e todo esse tipo de coisa. Seu companheiro veio de Cleópatra. Isso não é o máximo? Butchy soldou sua própria armadura. Parece um para-lama de caminhão." Qwilleran disse: "O jornal deveria ter enviado um fotógrafo. Tínhamos que documentar isso tudo..." Sandy fez algumas acrobacias com as sobrancelhas e disse: "Zoe Lambreth tinha a incumbência de cuidar da publicidade do baile, mas acho que ela só é boa em conseguir publicidade para si mesma." "Vou ligar para a fotografia do jornal", disse Qwilleran, "e ver se me enviam alguém." Meia hora mais tarde, Odd Bunsen, que estava de plantão, chegou com uma câmera pendurada no pescoço e o habitual charuto entre os dentes. Qwilleran o recebeu no foyer e disse: "Cuide de conseguir uma boa foto de Cal e Sandra Halapay". Odd disse: "Você está me pedindo? Eles adoram se ver no papel." "Tente pegar os pares. Estão todos vestidos como amantes famosos — Otelo e Desdêmona, Lolita e Humbert Humbert, Adão e Eva..." "Looooou-co!", disse Odd Bunsen enquanto preparava a câmera. "Quanto tempo você tem que ficar por aqui, Jim?" "Só o tempo suficiente para saber quem ganha o prêmio de melhor figurino e mandar algo para a redação." "Por que você não me encontra mais tarde no Press Club, companheiro? Posso sair depois de revelar essas fotos." De volta à mesa dos Halapay, Sandy apresentou Qwilleran a uma mulher impressionante num vestido de noite plissado. "Mrs. Duxbury", Sandy explicou, "é a colecionadora de arte mais importante da cidade. Você deveria escrever um artigo sobre sua coleção inglesa do século XVIII — Gainsborough e Reynolds, você sabe." Sra. Duxbury disse: "Não estou especialmente ansiosa para ver minha coleção divulgada, Mr. Qwilleran, a menos que isso sirva de ajuda em sua nova posição. Francamente, estou muito feliz por recebê-lo entre nós." Qwilleran fez uma reverência. "Obrigado. É um campo completamente novo para mim." "Acredito que sua presença no Daily Fluxion signifique finalmente que o jornal teve bom senso e derrubou Mountclemens". "Não", disse Qwilleran, "estamos simplesmente ampliando a cobertura. Mountclemens continuará a escrever comentários críticos." "Que pena. Estávamos todos esperando que o jornal demitisse aquele homem horrível." Uma fanfarra de trombetas no palco anunciou a apresentação dos prêmios de figurino, e Sandy disse a Qwilleran, "preciso pegar Cal para o julgamento e o desfile. Tem certeza de que não vai poder ficar mais tempo?" "Desculpe,preciso escrever minha matéria, mas não se esqueça de que vai me ajudar com o perfil de seu marido." "Vou ligar para você e me convidar para um almoço", disse Sandy, dando um abraço carinhoso no jornalista. "Vai ser divertido." Qwilleran foi para o fundo da sala, anotou os nomes anunciados como vencedores e procurava um telefone quando uma voz de mulher, macia e baixa, disse: "Você não é o novo homem do Daily Fluxion?" Seu bigode formigou. Às vezes a voz de uma mulher afeta seu bigode assim, e essa voz era como dedos acariciando. "Sou Zoe Lambreth", disse ela, "e receio ter falhado miseravelmente na minha obrigação. Era para eu avisar aos jornais sobre este baile, e esqueci completamente. Estou preparando uma exposição individual, trabalhando arduamente, se você aceita uma desculpa esfarrapada. Espero que não se sinta negligenciado... conseguiu todas as informações de que precisa?" "Acho que sim. Mrs. Halapay cuidou de mim." "Sim, eu notei", disse Zoe, com um ligeiro aperto dos lábios bem formados. "Mrs. Halapay foi muito útil." As sobrancelhas de Zoe se mexeram. "Eu imagino." "Não está fantasiada, Mrs. Lambreth?" "Não. Meu marido não se interessou em vir hoje à noite, e eu só passei por alguns minutos. Gostaria de visitar a Galeria Lambreth um dia e conhecer meu marido? Ambos gostaríamos de ajudá-lo no que pudermos." "Vou precisar de ajuda. Este é um território totalmente novo para mim", disse Qwilleran, e então acrescentou maliciosamente: "Mrs. Halapay se ofereceu para supervisionar minha educação em arte." "Oh, meu caro...", Zoe disse, com uma entonação que sugeria uma angústia suave. "Não aprova?" "Bem... Sandra não é a mais entendida das autoridades. Perdoe-me. Cedo ou tarde você vai descobrir que artistas são gatos notórios." Os grandes olhos castanhos de Zoe estavam surpreendentemente francos e Qwilleran momentaneamente se afogou neles. "Mas sou muito sincera em minha preocupação com você", ela continuou. "Não gostaria de vê-lo... mal orientado. Grande parte do trabalho que está sendo produzido hoje em nome da arte é espúria, para dizer o pior, e de má qualidade, para dizer o melhor. Você deve insistir em conhecer as credenciais de seus orientadores." "O que sugere?" "Venha visitar a Galeria Lambreth", ela pediu, e seus olhos repetiam o convite. Qwilleran encolheu a cintura e se distraiu com a ideia de perder alguns quilos — a partir de amanhã. Então fez mais uma tentativa de encontrar um telefone. O desfile terminou e os convidados estavam circulando. A notícia se espalhou pelo clube: o novo repórter do Daily Fluxion estava assistindo à festa e era facilmente reconhecível pelo bigode proeminente. Consequentemente, numerosos estranhos começaram a abordar Qwilleran e se apresentar. Todos lhe desejaram boa sorte, sempre completando com alguma injúria dirigida a George Bonifield Mountclemens. Os negociantes de arte acrescentavam breves comerciais de suas galerias, artistas mencionavam suas próximas exposições, os leigos convidavam-no a ver suas coleções particulares a qualquer momento, e podia levar um fotógrafo, se quisesse. Entre os que saudaram o jornalista estava Val Halapay. "Venha jantar uma noite dessas", disse. "Traga toda a família." Agora, a bebida rolava a sério, e o alarido da festa crescia. A maior animação vinha da sala de jogos, e Qwilleran seguiu a multidão para lá. Encontrou a sala apinhada de risinhos, convidados de pé, costela com costela, espaço suficiente apenas para levantar os copos. O centro das atenções era Marco Antônio. Ela estava em pé numa cadeira. Sem o capacete romano, Marco Antônio parecia mais uma mulher, rosto rechonchudo, cabelo curto ondulado. "Vamos lá, gente", ela gritava. "Teste suas habilidades!" Qwilleran se espremeu para dentro da sala. A multidão, descobriu, estava atenta a um jogo de dardos. Os participantes tentavam acertar o desenho de um homem em tamanho natural, riscado na parede de madeira com todas as características da anatomia explicitamente delineadas. "Vamos lá, gente", a guerreira cantava. "Não custa um centavo. Uma para cada um. Quem quer jogar Mate o crítico?" Qwilleran decidiu que já tinha o suficiente. Seu bigode se sentia vagamente desconfortável. Fez uma saída discreta, mandou a matéria ao jornal por telefone e, em seguida, foi encontrar Odd Bunsen no Clube de Imprensa. "Mountclemens deve ser um mala", disse ao fotógrafo. "Você lê a coluna dele?" "Quem lê?", respondeu Odd. "Olho as imagens e verifico minha linha de crédito." "Ele parece causar um monte de problemas. Sabe algo sobre a situação no museu de arte?" "Sei que tem uma gatinha bonita na chapelaria", disse Odd, "e uns nus loooou-cos no segundo andar." "Interessante, mas não é a isso que me refiro. O museu acaba de perder verba de um milhão de uma fundação, e por isso o gerente foi demitido. Isso é o que ouvi na festa de hoje, e dizem que todo o tumulto foi causado pelo crítico do Daily Fluxion". "Não duvido. Ele está sempre infernizando o Laboratório Fotográfico. Ele telefona e nos diz o que precisa para a coluna. Então, temos que ir às galerias fazer as imagens. Você precisa ver o lixo que ele nos pede para fotografar! Na semana passada, fui à Galeria Lambreth duas vezes, e ainda não consegui fazer uma foto que dê para imprimir." "Como assim?" "A pintura é em preto e azul-marinho, pelo amor de Deus! Minhas fotos pareciam um depósito de carvão em noite escura, e o chefe achou que era culpa minha. O velho Monty está sempre reclamando das fotos. Se tiver chance ainda arrebento uma câmera na cabeça dele. ________________ 1 Do japonês Suzuki Harunobu (1725–1770), Lovers Walking in the Snow (The Metropolitan Museum of Art, NYC) QUATRO No domingo de manhã Qwilleran pegou um exemplar do Fluxion na banca de jornal do hotel. Estava morando num velho hotel barato, que tinha substituído os tapetes desgastados e os veludos desbotados por pisos de linóleo e poltronas forradas de plástico. Na cafeteria, uma garota em avental de plástico serviu seus ovos mexidos numa fria placa de plástico, e Qwilleran abriu o jornal na página de Arte. George Bonifield Mountclemens III assinava resenha sobre a obra de Franz Buchwalter. Qwilleran lembrou do nome. Buchwalter era o homem quieto na mesa Halapay, marido da assistente social, que pintava adoráveis aquarelas, na opinião de Sandy Halapay. Duas pinturas do homem tinha sido fotografadas para ilustrar a resenha, e Qwilleran achou que eram muito boas. Eram veleiros. Ele sempre gostara de veleiros. Começou a ler: O frequentador de galerias que aprecie um bom artesanato não deve perder a exposição de Franz Buchwalter na Westside Gallery este mês, escreveu Mountclemens. O artista, que é aquarelista e instrutor da Escola de Belas Artes Penniman, optou por apresentar uma notável coleção de molduras. É óbvio até mesmo para o olho destreinado que o artista trabalhou diligentemente em enquadramento no ano passado. As molduras são bem atadas e os cantos, meticulosamente encaixados. A coleção se distingue também pela variedade. Há molduras largas, molduras estreitas, molduras de tamanho médio, com acabamento em folha de ouro, folha de prata, nogueira, cerejeira e ébano, além dessa lavagem turva que parece estar na moda, uma falsificação conhecida como branco antigo. Uma das melhores molduras da mostra é uma castanha carcomida. É difícil para um observador determinar com precisão — sem inserir de fato uma agulha de cerzir no buraco — se foi fabricada por cupins da Carolina do Norte ou por furadeiras elétricas de Kansas City. No entanto, seria improvável que o fabricante de molduras de Buchwalter usasse materiais de qualidade inferior, portanto este crítico sente, sim, que ela é uma genuína castanha carcomida. A exposição está bem pendurada. E um elogio especial deve ser feito às tonalidades e às texturas, escolhidas com bom gosto e imaginação. O artista encheu suas notáveis molduras com veleiros e outros assuntos que não, não prejudicam a excelência das molduras. Qwilleran olhou novamente as ilustrações, e seu bigodefez pequenos protestos mudos. Os veleiros eram agradáveis, muito agradáveis. Pegou seu jornal e saiu. Estava prestes a tentar algo que não fazia desde os onze anos, e na época tinha sido coagido. Em suma, passou a tarde no museu de arte. A coleção de arte da cidade estava alojada num edifício de mármore inspirado num templo grego, numa villa italiana e num palácio francês. Brilhava ao sol de domingo, branco e orgulhoso, cintilando sob uma franja gotejante de gelo. Ele resistiu à tentação de subir direto ao segundo andar para ver os nus recomendados por Odd Bunsen, mas foi dar uma olhada na gatinha da chapelaria. Encontrou uma garota de cabelos longos e rosto sonhador lutando com os cabides. Ela disse, olhando para o bigode. ”Não te vi ontem no baile?" "Não te vi num negligê rosa?" "Ganhamos um prêmio, Tom LaBlanc e eu." "Eu sei. Foi uma festa agradável." "Realmente legal. Pensei que seria uma bomba." No hall de entrada Qwilleran abordou um atendente uniformizado cujo rosto exibia expressão de suspeita, reprovação e ferocidade típica dos guardas de museu. "Onde posso encontrar o gerente?", perguntou Qwilleran. "Ele normalmente não vem aos domingos, mas eu o vi no saguão um minuto atrás. Provavelmente veio fazer as malas. Ele está deixando o posto, sabe." "Pena. Ouvi que é um bom homem." O guarda anuiu em concordância.”Política! E aquele difamador do jornal, foi isso o que ele fez. Estou feliz por ser funcionário público... Se quiser ver o Sr. Farhar, tente seu escritório, siga este corredor e vire à esquerda." A ala dos escritórios do museu estava envolta na calma dominical. Noel Farhar, diretor de acordo com as letras na porta, estava lá sozinho. Qwilleran atravessou a antessala e chegou a um escritório com painéis adornados de objetos de arte. ”Com licença", disse ele, ”Sr. Farhar?" O homem mexia numa gaveta e deu um pulo para trás, assustado. O homem mais frágil que Qwilleran já tinha visto. Embora Noel Farhar parecesse jovem para o trabalho, sua magreza doentia dava-lhe uma aparência de velho fantasmagórico. "Desculpe me intrometer. Sou Jim Qwilleran do Daily Fluxion". A boca apertada de Noel Farhar dizia tudo, e ele não conseguia controlar o tremor de uma pálpebra. ”O que você quer?", perguntou. Qwilleran disse amavelmente: ”Só queria me apresentar. Sou novo na área de arte e estou tentando conhecer as pessoas. ”Estendeu a mão e segurou a mão trêmula e relutante de Farhar. "Se o contrataram para consertar as coisas”, disse o gerente friamente, ”é tarde demais. O dano está feito." "Receio não estar entendendo. Acabo de chegar à cidade." "Sente-se, Sr. Qwilleran.” Farhar cruzou os braços e permaneceu de pé. ”Presumo que você saiba que o museu acaba de perder uma verba de um milhão de dólares." "Sim, ouvi falar." "Isso nos teria dado incentivo e prestígio para levantar mais cinco milhões, de doadores privados e da indústria. Teria trazido uma notável coleção mexicana pré-hispânica e uma nova ala para abrigá-la, mas seu jornal subverteu o programa inteiro. Seu crítico, com um assédio contínuo e ridículo, apresentou este museu sob uma luz desfavorável a tal ponto que a Fundação retirou sua oferta". Apesar do tremor visível, Farhar falava com vigor. ”Desnecessário dizer que este fracasso, além dos ataques pessoais de Mountclemens a minha gestão, forçou-me a pedir demissão." Qwilleran resmungou: ”Esta é uma acusação séria." "É incrível que um único indivíduo que nada saiba de arte possa poluir assim o clima artístico da cidade. Mas não há nada que se possa fazer sobre isso. Estou perdendo meu tempo falando com você. Escrevi a seu editor, exigindo que pare este Mountclemens antes que destrua nossa herança cultural". Farhar virou-se para os arquivos. ”Agora tenho trabalho a fazer, papéis para organizar." "Desculpe ter interrompido", disse Qwilleran. ”Sinto muito sobre tudo isso. Sem conhecer os fatos, não posso comentar..." "Eu lhe dei os fatos.” O tom de Farhar pôs fim à entrevista. Qwilleran vagou por vários andares do museu, mas sua mente não estava nos Renoir ou Canalettos. As culturas toltecas e astecas não conseguiram captar seu interesse. Somente as armas históricas despertaram seu entusiasmo — os punhais para canhotos, as facas de caça alemãs, as clavas, os estiletes e os floretes espanhóis, as espadas italianas. E seus pensamentos repetidamente iam para o crítico de arte que todos odiavam. Na manhã seguinte Qwilleran estava no Fluxion. Pediu à pesquisa, no terceiro andar, o arquivo das colunas de Mountclemens. ”Aqui está", disse o funcionário com uma piscadela, ”e quando terminar com ele você encontrará a sala de primeiros socorros no quinto andar, caso precise de um antiácido." Qwilleran leu doze meses de colunas. Encontrou a avaliação de Halapay ("arte de farmácia") e as palavras duras sobre os primitivos de Uncle Waldo ("idade não substitui talento"). Havia uma coluna, sem menção de nomes, sobre colecionadores particulares que são menos dedicados à preservação da arte do que à evasão fiscal. Mountclemens tinha palavras fortes para as esculturas de figuras humanas em tamanho natural, que lhe lembrava as armaduras usadas nas representações de Macbeth em escolas rurais. Deplorava a produção em massa de artistas na Penniman School, cuja produção em linha de montagem ficaria bem nas fábricas de automóveis de Detroit. Elogiava as pequenas galerias de bairro por seu papel como centros sociais, que substituíam o clube de bridge e os círculos de costura, embora questionasse seu valor como provedores de arte. E investia contra o museu: políticas, coleção permanente, diretor, a cor dos uniformes dos guardas. Intercaladas entre os ataques havia entusiásticas loas a certos artistas, especialmente Zoe Lambreth, cheias de jargões. ”A complexidade da eloquente dinâmica na textura orgânica... impulsos internos expressos em linguística compassiva." Uma coluna nada tinha a ver com pintura ou escultura: tratava gatos (Felis domestica) como obras de arte. Qwilleran devolveu o arquivo ao departamento de pesquisa e procurou um endereço na lista telefônica. Queria descobrir por que Mountclemens considerava o trabalho de Zoe Lambreth tão bom e o de Cal Halapay tão ruim. Encontrou a Galeria Lambreth perto do distrito financeiro, em um velho loft apertado entre torres de escritórios. Parecia ter classe. A placa sobre a porta tinha letras douradas, e na vitrine havia apenas duas pinturas, sobre trinta metros de veludo cinza. Uma das telas era em azul-marinho salpicado de triângulos negros. A outra era um misterioso molho de tinta espessa em marrons e roxos cansados. Ainda assim, uma imagem parecia surgir dali, e Qwilleran sentiu um par de olhos perscrutando de suas profundezas. Enquanto olhava, a expressão dos olhos mudou de inocência para consciência selvagem. Abriu a porta e se aventurou. A galeria era longa e estreita, decorada como uma sala de estar, luxo casual em design moderno. Sobre um cavalete Qwilleran avistou outro arranjo de triângulos salpicados — cinza sobre branco — preferiu a da vitrine. A assinatura do artista: ”Scrano". Sobre um pedestal, um joelho de telha com raios de bicicleta intitulava-se Coisa nº 17. Um sino tilintara quando ele entrou na loja, e agora Qwilleran ouvia passos nos degraus da escada em espiral, nos fundos da galeria. A estrutura de ferro, pintada de branco, parecia uma enorme escultura. Qwilleran viu primeiro pés, depois pernas em calças compridas, por fim a figura fria, formal e arrogante do proprietário da galeria. Era difícil imaginar Earl Lambreth como marido da calorosa, feminina Zoe. O homem parecia mais velho do que a esposa e dolorosamente elegante. Qwilleran disse: ”Sou o novo repórter de arte do Daily Fluxion. Mrs. Lambreth me convidou para visitar a galeria." O homem fez algo que se assemelhava a um sorriso, mas terminava em maneirismo desagradável, o lábio superior limpando os dentes. ”Mrs. Lambreth mencionou você", disse, ”e eu suponho que Mountclemens lhe disse que esta é a principal galeria da cidade. Na verdade, ela éa única galeria digna desse nome." "Não conheço Mountclemens ainda, mas soube que fala muito bem do trabalho de sua esposa. Gostaria de ver um pouco dele." De pé, rígido, as mãos atrás das costas, o homem apontou um retângulo marrom na parede. ”Esta é uma das pinturas recentes de Mrs. Lambreth. Tem a rica qualidade pictórica reconhecida como sua assinatura." Qwilleran estudou a imagem em silêncio cauteloso. A superfície tinha a textura de um bolo de chocolate muito gelado, e inconscientemente passou a língua nos lábios. No entanto, tinha consciência de que haveria um par de olhos em algum lugar nos redemoinhos de tinta. Gradualmente viu a evolução de um rosto de mulher. "Ela usa um monte de tinta", Qwilleran observou. ”Deve levar um tempão para secar." O negociante limpou novamente os dentes e disse: ”Mrs. Lambreth usa pigmentos para capturar o espectador e enredá-lo sensualmente antes de fazer sua declaração. Sua declamação é sempre indescritível, nebulosa — forçando o público a participar vivamente da interpretação.” Qwilleran assentiu vagamente. "Ela é uma grande humanista", continuou Lambreth. ”Infelizmente temos poucas telas aqui, no momento. Ela as recolheu para a exposição de março. No entanto, você viu na vitrine um de seus mais lúcidos e disciplinados trabalhos." Qwilleran lembrou-se dos olhos nublados de tinta que tinha visto antes de entrar na galeria, olhos cheios de mistério e malícia. Ele disse: ”Ela sempre pinta mulheres como essa?" Lambreth mexeu um ombro. ”Mrs. Lambreth nunca pinta fórmulas. Tem grande versatilidade e imaginação. E a pintura na vitrine não tem a intenção de invocar associações humanas. É o estudo de um gato." "Oh", disse Qwilleran. "Você está interessado em Scrano? Ele é um dos artistas contemporâneos mais importantes. Você viu uma de suas pinturas na vitrine. Aqui está outra, no cavalete." Qwilleran olhou de soslaio para os triângulos cinzentos sobre fundo branco. A superfície pintada era de granulação fina e lisa, com um brilho quase metálico, e os triângulos eram nítidos. O jornalista disse: ”Ele parece ter fixação em triângulos... Se virar esta de cabeça para baixo, verá três veleiros num nevoeiro." Lambreth disse: ”O simbolismo deveria ser óbvio. As pinturas de Scrano expressam sucintamente o libidinoso essencial, a natureza polígama do homem. A pintura na vitrine é especificamente incestuosa". "Bem, acho que isso acaba com minha teoria", disse Qwilleran. ”Eu imaginava ter descoberto uns veleiros. O que Mountclemens diz de Scamo?" "S-c-r-a-n-o", Lambreth corrigiu. ”No trabalho de Scrano Mountclemens encontra virilidade intelectual que transcende as considerações menores de expressão artística, centrado na pureza do conceito e no meio de sublimação." "Muito caro, imagino." "Um Scrano geralmente é avaliado em cinco dígitos." "Uau!", Qwilleran disse. ”E esses outros artistas?" "Consideravelmente mais baixo." "Não vejo etiquetas de preço em parte alguma." Lambreth endireitou uma tela ou duas. ”Dificilmente se espera que galerias deste calibre exibam preços como nos supermercados. Em nossas grandes exposições imprimimos catálogos, mas hoje temos apenas uma exibição informal do nosso próprio grupo de artistas." "Fiquei surpreso ao encontrar a galeria localizada no distrito financeiro", disse Qwilleran. "Nossos colecionadores são astutos homens de negócios." Qwilleran deu uma volta pela galeria e ficou calado. Muitas telas apresentavam gotas e borrões em gritantes cores explosivas. Algumas tinham listras onduladas. Havia o close-up de uma goela escancarada de dois metros por quatro, e Qwilleran recuou instintivamente. Em um pedestal repousava uma bola de metal em forma de ovo intitulada Sem título. Algumas formas alongadas em argila se assemelhavam a gafanhotos, mas certas protuberâncias convenceram Qwilleran de que estava olhando para seres humanos desnutridos. Dois pedaços de sucata de metal eram marcadas como Coisa nº 14 e Coisa nº 20. Qwilleran gostou mais dos móveis: poltronas em formato de colher, sofás flutuantes sobre delicadas bases de aço cromado e mesas baixas com tampo de mármore branco. Ele disse: ”Você tem pinturas de Cal Halapay?" Lambreth se encolheu. ”Você deve estar brincando. Nós não somos esse tipo de galeria." "Pensei que as coisas de Halapay fizessem sucesso." "Ele vende facilmente a pessoas que não têm gosto", disse o comerciante, ”mas na verdade as coisas de Halapay, como você acertadamente as descreve, não passam de ilustrações comerciais presunçosamente instaladas em molduras. Não têm valor algum como arte. Na verdade, o homem estaria fazendo um favor ao público se esquecesse suas pretensões e se concentrasse na atividade em que é bom, que é fazer dinheiro. Não tenho desavença alguma com amadores que querem passar as tardes agradáveis de domingo em frente a um cavalete, mas não deveriam se apresentar como artistas e degradar o gosto do público." Qwilleran voltou sua atenção para a escada em espiral. ”Você tem outra galeria lá em cima?" "Só meu escritório e a loja de molduras. Gostaria de ver a loja? Talvez lhe interesse mais do que pinturas e esculturas..." Lambreth liderou o caminho, passando a uma sala de estoque onde as pinturas eram armazenadas em escaninhos verticais, e subiu as escadas. Na loja de molduras havia uma bancada desarrumada e um cheiro persistente de cola ou verniz. "Quem faz suas molduras?", perguntou Qwilleran. "Um artesão muito talentoso. Oferecemos o melhor acabamento e a maior seleção de molduras na cidade.” Ainda de pé, rígido, com as mãos atrás das costas, Lambreth acenou para um molde na bancada. ”Essa custa US$ 35 o metro linear." O olhar de Qwilleran transferiu-se para um escritório atulhado ao lado. A pintura de uma bailarina estava torta na parede. Uma bailarina de roupa azul transparente retratada em movimento contra um fundo de folhagem verde. "Agora, isso é algo que eu posso entender", ele disse. ”Realmente curto isso." "E você deve! É um Ghirotto1, como pode ver pela assinatura.” Qwilleran estava impressionado. ”Vi um Ghirotto ontem no museu de arte. Deve ser uma peça valiosa." "Seria se estivesse completa." "Você quer dizer que não está terminada?" Lambreth bufou. ”É apenas a metade da tela original. A pintura foi danificada. Receio não poder me dar o luxo de um Ghirotto em boas condições." Qwilleran então notou um mural com recortes de jornais. Disse: ”Vejo que o Daily Fluxion lhe dá ótima cobertura." "Vocês têm uma excelente coluna de arte", disse o homem. ”Mountclemens sabe mais sobre arte do que qualquer outra pessoa na cidade, incluindo os autointitulados especialistas. E é de uma integridade incontestável." "Hmm", disse Qwilleran. "Vai sem dúvida ouvir queixas de Mountclemens de todos os lados, porque ele elimina os charlatães e eleva os padrões de gosto. Recentemente prestou um grande serviço à cidade, desalojando Farhar do museu. Uma nova gestão trará vida de novo àquela agonizante instituição". "Mas não a fez perder uma verba importante ao mesmo tempo?" Lambreth acenou com a mão. ”Outro ano, outra verba, e até lá o museu vai merecê-la." Pela primeira vez Qwilleran notou as mãos do negociante, suas unhas sujas destoando do traje. O jornalista disse: ”Mountclemens avalia bem o trabalho de Mrs. Lambreth, pelo que notei." "Ele tem sido muito gentil. Muitas pessoas pensam que esta galeria recebe favores, mas a verdade é que lidamos apenas com os melhores artistas." "Esse cara que pinta triângulos, é um artista local? Gostaria de conseguir uma entrevista." Lambreth pareceu aflito. ”É bem sabido que Scrano é europeu. Mantém-se recluso na Itália há muitos anos. Razões políticas, acredito." "Como o descobriu?" "Mountclemens nos apresentou um trabalho dele e nos colocou em contato com seu agente americano, pelo que estamos agradecidos. Somos representantes exclusivos de Scrano no Centro-Oeste.” Limpou a garganta e disse com orgulho: ”O trabalho de Scrano tem uma virilidade intelectualizada, um transcendente de pureza..." "Não vou mais tomar seu tempo",disse Qwilleran. ”É quase meio-dia e eu tenho compromisso para o almoço." Qwilleran deixou a Galeria Lambreth com várias perguntas na cabeça. Como dizer o que é bom ou ruim em arte? Por que triângulos têm sinal positivo enquanto veleiros ganham polegares para baixo? Se Mountclemens era tão bom quanto Lambreth dizia e a situação da arte local tão insalubre, por que permanecia neste ambiente ingrato? Ele era realmente um missionário, como disse Lambreth? Ou um monstro, como todos os outros pensavam? E mais um ponto de interrogação enrolou a cauda na cabeça de Qwin. Existe realmente um homem chamado George Bonifield Mountclemens? No Press Club, onde ia encontrar Arch Riker para o almoço, Qwilleran disse ao barman: ”O crítico de arte do Fluxion vem aqui?" Bruno parou a limpeza de um vidro. ”Quisera que viesse. Eu lhe faria um Mickey. "Por quê? Qual é sua queixa?" "Uma coisa", disse Bruno. ”Ele é contra toda a raça humana.” Inclinou- se sobre o balcão com ar confidencial. ”Digo-lhe que ele está prestes a arruinar todos os artistas da cidade. Olha o que fez com o pobre Uncle Waldo. E Franz Buchwalter no jornal de ontem! Os únicos artistas que aprecia são ligados à galeria Lambreth. Chego a achar que ele é dono dela.” "Para alguns ele é uma autoridade altamente qualificada." "Para alguns, embaixo é em cima.” Depois Bruno sorriu sabiamente. ”Espere só até ele saber que você está bisbilhotando a atividade dele.” O barman puxou um gatilho imaginário. "Você parece saber muito sobre a situação da arte aqui na cidade." "Claro. Sou artista também. Faço colagens. Gostaria que visse meu trabalho e fizesse uma crítica". "Estou nesse campo há dois dias!", Qwilleran disse. ”Nem mesmo sei o que é colagem." Bruno deu um sorriso condescendente. ”É uma forma de arte. Retiro rótulos de garrafas de uísque, corto-os em pequenos pedaços e colo para fazer retratos presidenciais. Estou trabalhando agora em Van Buren. Daria uma fantástica mostra individual.” Sua expressão assumiu um ar de intimidade. ”Talvez você possa me ajudar a conseguir uma galeria. Você acha que poderia mexer uns pauzinhos?" Qwilleran disse: ”Não sei se há muita aceitação para retratos presidenciais feitos de rótulos de uísque, mas vou assuntar. Agora, que tal meu habitual on the rocks?" "Uma hora dessas você vai ter uma urticária de tanto suco de tomate." Quando Arch Riker chegou ao bar, encontrou o repórter de arte mastigando o bigode. Arch disse: ”Como foi tudo esta manhã?" "Tudo bem", disse Qwilleran. ”No começo eu estava um pouco confuso sobre a diferença entre o bom e o ruim em arte, mas agora estou completamente confuso.” Tomou um gole de suco. ”Mas cheguei a uma conclusão sobre George Bonifield Mountclemens III." "Vamos ouvi-la." "Ele é uma farsa." "O que você quer dizer?" "Ele não existe. É uma lenda, uma invenção, um conceito, uma corporação, um brilho nos olhos do editor." Arch disse: ”Quem você acha que escreve tudo o que imprimo sob aquela assinatura sesquipedal?" "Um comitê de escritores fantasmas. Uma comissão de três. Provavelmente o Sr. George, o Sr. Bonifield e o Sr. Mountclemens. Impossível um só homem causar tantos problemas ou ser tão odiado ou ter tal imagem ambígua." "Você simplesmente não conhece os críticos, é tudo. Está acostumado com polícia e ladrão". “Tenho uma teoria alternativa, se você não comprar essa primeira.” "E qual é?" "É um fenômeno da era eletrônica. A coluna de arte é ligada numa bateria de computadores em Rochester, Nova York." "O que Bruno colocou no seu suco?”, Arch disse. "Bem, eu estou dizendo a você uma coisa: não vou acreditar em George Bonifield Mountclemens até que o veja." "Tudo bem. Que tal amanhã ou quarta-feira? Ele estava fora da cidade, mas voltou. Vou marcar um encontro para você." "Vamos marcar aqui, no almoço. Podemos comer lá em cima sobre uma toalha de mesa." Arch balançou a cabeça. ”Ele não virá ao Clube de Imprensa. Nunca come no centro. Provavelmente você vai ter que ir a seu apartamento." "Ok, marque", disse Qwilleran, “e talvez eu siga o conselho de Bruno e alugue um colete à prova de balas." ________________ 1 Pintor fictício na trama. CINCO Qwillern passou a manhã de terça-feira no prédio da secretaria de Educação vendo uma exposição de arte infantil. Ele pretendia escrever algo carinhosamente bem-humorado sobre os barquinhos flutuando no céu, as casinhas roxas com chaminés verdes, o cavalinhos azuis que pareciam ovelhas e os gatos-gatos-gatos. Depois da descomplicada passagem pelo mundo da arte juvenil, ele voltou à redação em estado de graça. Sua chegada causou um estranho silêncio. As máquinas pararam de soar. Cabeças inclinadas sobre provas levantaram-se subitamente. Até os telefones verdes ficaram respeitosamente quietos. Arch disse: "Temos novidades para você, Jim. Ligamos para Mountclemens para marcar o encontro e ele quer você lá amanhã à noite. Para jantar!" "Hã?" "Não vai desmaiar? A editoria toda desmaiou." "Já posso ver a manchete", disse Qwilleran. Crítico envenena sopa de repórter. "Ele é tido como grande cozinheiro", Arch disse. "Um verdadeiro gourmet. Se você tiver sorte, ele adia o arsênico até a sobremesa. Eis o endereço." Às 18h da quarta-feira, Qwilleran pegou um táxi para a Blenhein Place nº 26. Ficava numa antiga parte da cidade, outrora um bairro da moda com casas majestosas. A maioria tinha se transformado em pensões baratas ou sede de estranhas empresas comerciais. Havia um restaurador de porcelana antiga, por exemplo; Qwilleran imaginou que devia ser uma casa de apostas. A porta seguinte se anunciava como loja de moedas antigas, provavelmente a fachada de um ponto de drogas. Quanto ao fabricante de fantasias1, não havia dúvida na mente de Qwilleran sobre a verdadeira natureza do estabelecimento. Em meio a tudo isso, um valente e orgulhoso sobrado erguia-se como a última trincheira. Tinha um ar residencial respeitável, alto e formalmente vitoriano, até na cerca ornamental de ferro. Era o número 26. Qwilleran evitou uma dupla de bêbados que se arrastava pela calçada e subiu os degraus de pedra que levavam ao pequeno pórtico com três caixas de correio, indicando que a casa tinha sido dividida em apartamentos. Ele alisou o bigode, que estava saliente de curiosidade e antecipação, e tocou a campainha. Uma cigarra destrancou a porta da frente, e ele entrou num vestíbulo com piso de azulejos. Diante dele havia outra porta, também trancada — até que um zumbido de outro tom a abriu. Qwilleran passou para um hall de entrada palaciano, mas fracamente iluminado, que o envolveu com sua mobília. Notou grandes quadros de molduras douradas, espelhos, estátuas, uma mesa de pés dourados, um banco esculpido como os de igreja. Um tapete vermelho cobria o assoalho do hall e as escadas, e do alto uma voz afinada disse: “Suba, Sr. Qwilleran.” O homem em cima era extremamente alto e elegantemente magro. Mountclemens vestia paletó de veludo vermelho escuro e seu rosto pareceu poético para o repórter; talvez pelo cabelo fino caído na testa alta. Uma fragrância de casca de lima o cercava. “Minhas desculpas pelo estilo fosso-ponte-levadiça lá embaixo”, disse o crítico. “Nesta vizinhança não se pode bobear”. Cumprimentou Qwilleran com a mão esquerda e introduziu-o na sala de estar. Qwilleran nunca tinha visto nada parecido. Era atulhada e sombria. A única iluminação vinha da chama da lareira e dos spots ocultos que destacavam obras de arte. O olho de Qwilleran distinguiu bustos de mármore, vasos chineses, muitos quadros de moldura dourada, um guerreiro de bronze e esculturas de anjo em madeira. Uma das altas paredes era coberta por uma tapeçaria que mostrava donzelas medievais em tamanho natural. Sobre a lareira, uma pintura que até amadores reconheceriam como um Van Gogh. “Você parece impressionado com minha pequena coleção, Sr. Qwilleran”, disse o crítico, “ou espantado por meu gosto eclético… Aqui, deixe-me pegar seu casaco.” “É um museu de bolso”, disse Qwilleran, em choque. “É minha vida, Sr. Qwilleran. E eu admito, sem nenhuma
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