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Av. Paulista, 901, 3º andar Bela Vista – São Paulo – SP – CEP: 01311-100 SAC sac.sets@saraivaeducacao.com.br Direção executiva Flávia Alves Bravin Direção editorial Renata Pascual Müller Gerência de projetos e produção editorial Fernando Penteado Planejamento Josiane de Araujo Rodrigues Novos projetos Sérgio Lopes de Carvalho Dalila Costa de Oliveira Edição Isabella Sánchez de Souza (coord.) Liana Ganiko Brito Produção editorial Daniele Debora de Souza (coord.) Daniela Nogueira Secondo Rosana Peroni Fazolari Arte e digital Mônica Landi (coord.) Camilla Felix Cianelli Chaves Claudirene de Moura Santos Silva Deborah Mattos Guilherme H. M. Salvador Tiago Dela Rosa Projetos e serviços editoriais Daniela Maria Chaves Carvalho Kelli Priscila Pinto Laura Paraíso Buldrini Filogônio Marília Cordeiro Nicoly Wasconcelos Razuk Diagramação Know-How Editorial Revisão Know-How Editorial Capa Tiago Dela Rosa Produção do E-pub Guilherme Henrique Martins Salvador ISBN 9786555598476 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057 M217e Maia, Erick de Figueiredo Execução penal e criminologia / Erick de Figueiredo Maia ; coordenado por Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. - São Paulo : Saraiva Educação, 2021. (Defensoria pública – ponto a ponto). e-book 1. Direito. 2. Direito penal. 3. Execução penal. 4. Criminologia. I. Gomes, Marcos Vinícius Manso Lopes. II. Título. III. Série. 2021-919 CDD 345 CDU 343 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito penal 345 2. Direito penal 343 Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Saraiva Educação. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal. Data de fechamento da edição: 30-3-2021 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS NOTA DO COORDENADOR (COLEÇÃO DEFENSORIA PÚBLICA – PONTO A PONTO) PREFÁCIO DA COLEÇÃO APRESENTAÇÃO Parte I - EXECUÇÃO PENAL 1. SÃO PAULO Execução penal: evolução histórica, crise e alternativas Evolução histórica Crise e alternativas Crise Alternativas 2. RIO DE JANEIRO Princípios do direito de execução penal. Objetivos da execução penal. Sistemas de execução penal. Natureza da execução penal. Fontes positivas do direito de execução penal. Maranhão Princípios constitucionais que regem a execução penal. Objeto e aplicação da Lei de Execução Penal. São Paulo Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84) Natureza da execução penal e sistemas de execução penal Fontes positivas do direito de execução penal Princípios do direito de execução penal Princípio da humanidade Princípio da legalidade Princípio da não marginalização (ou não discriminação) Princípio da individualização da pena Princípio da intervenção mínima (ou da menor onerosidade) Princípio da culpabilidade Princípio da lesividade Princípio da transcendência mínima Princípio do estado de inocência Princípio da proporcionalidade Princípio da celeridade (ou razoável duração) do processo de execução penal Princípio do numerus clausus (número fechado) Do objeto e da aplicação da Lei de Execução Penal. Objetivos da execução penal 3. XXVII RIO DE JANEIRO Destinatários da Lei de Execução Penal. O condenado e o internado. Classificação. Preso estrangeiro. Exame criminológico. VI MARANHÃO Do exame de classificação e criminológico 4. XXVI Rio de Janeiro Deveres, direitos e disciplina. Sistema disciplinar. Trabalho do preso. Assistência. Anistia, graça, indulto e comutação de pena. VI MARANHÃO Direitos e deveres dos presos. Trabalho penitenciário. Faltas disciplinares. Sanções e recompensas. Aplicação das sanções. Procedimento disciplinar. Decretos Presidenciais que preveem indulto e comutação das penas. Monitoração eletrônica. VIII SÃO PAULO Indulto e comutação (Decreto n. 8.380/14) Da assistência e dos direitos Anistia, graça, indulto e comutação de pena Anistia Graça, indulto, comutação Dos deveres e da disciplina. Sistema disciplinar. Trabalho do preso Dos deveres Da disciplina Do sistema disciplinar (faltas graves) Incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina Fugir Possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem Provocar acidente de trabalho Descumprir, no regime aberto, as condições impostas Inobservar os deveres previstos nos incisos II e V do art. 39 da LEP Tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo Prática de fato previsto como crime doloso Da aplicação das sanções e do procedimento disciplinar Jurisprudência em Teses do STJ Regime disciplinar diferenciado Monitoração eletrônica 5. XXVI RIO DE JANEIRO Execução da pena privativa de liberdade. Execução da medida de segurança. Lei n. 10.216/01. Execução da pena de multa. Execução da pena restritiva de direitos. Suspensão condicional da pena. VIII SÃO PAULO Direito penal e saúde mental. Medidas de segurança: evolução histórica, conceito, espécies, execução. Lei n. 10.216/01. Reforma psiquiátrica. A antipsiquiatria. VI MARANHÃO Execução das penas. Penas privativas de liberdade. Penas restritivas de direito. “Sursis”. Multa. Conversões das penas privativas de liberdade. Medida de segurança. Regimes e aplicação do art. 111. Autorizações de saída. Remição. Livramento condicional Execução da pena privativa de liberdade Guia de recolhimento Regimes prisionais Estabelecimentos penais Progressão e regressão de regime Progressão Regressão de regime Soma e unificação de penas Remição Autorizações de saída (permissão de saída e saída temporária) Da permissão de saída Da saída temporária Detração Livramento condicional Requisitos Condições impostas ao apenado Suspensão Revogação Execução da pena restritiva de direitos Execução da medida de segurança. Direito penal e saúde mental. Medidas de segurança: evolução histórica, conceito, espécies, execução. Lei n. 10.216/2001. Reforma psiquiátrica. A antipsiquiatria Execução da pena de multa Suspensão condicional da pena 6. XXVI Rio de Janeiro Procedimento judicial. Recursos. Ações autônomas de impugnação. Tutela coletiva na execução penal. Incidentes. Excesso e desvio de execução. Conversões. Reabilitação. Lei n. 11.671/08 e Decreto n. 6.877/09 (Transferência de presos para estabelecimentos penais federais). VI Maranhão Agravo em execução. Habeas corpus. Excesso e desvio da execução penal Das conversões Conversão positiva Conversão negativa Conversão da pena privativa de liberdade em medida de segurança Conversão do tratamento ambulatorial em medida de internação Excesso ou desvio Procedimento judicial e recursos Ações autônomas de impugnação. Tutela coletiva na execução penal “Habeas corpus” Mandado de segurança Tutela coletiva Reabilitação Lei n. 11.671/2008 e Decreto n. 6.877/2009 (transferência de presos para estabelecimentos penais federais) 7. XXVI RIO DE JANEIRO Órgãos da execução penal. A Defensoria Pública e a Lei n. 12.313/10. Estabelecimentos penais. VI MARANHÃO Órgãos da execução penal. Do juízo da execução penal. Defensoria Pública. Ministério Público. Conselho penitenciário Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária Juízo da execução Ministério Público Conselho Penitenciário Departamentos Penitenciários Patronato Conselho da Comunidade Defensoria Pública PARTE II - CRIMINOLOGIA 1. XXVI Rio de Janeiro Conceito, objeto e método da criminologia. Interdisciplinaridade. VI Maranhão A ciência conjunta do direito penal: dogmática penal, política criminal e criminologia. VIII São Paulo Vitimologia 2. XXVI Rio de Janeiro Escola Clássica e Escola Positiva. Escola de Chicago e Teoria da Anomia. Teorias da associação diferencial e subculturas delinquentes. Teoria do etiquetamento. Criminologia Crítica. Pensamento criminológico contemporâneo. Criminologia feminista. Criminologia cultural. Criminologia Queer, Criminologia verde. Política criminal atuarial.VI Maranhão As escolas criminológicas. VIII São Paulo As escolas criminológicas. Modernas tendências do pensamento criminológico e de política criminal Vertentes da criminologia: microssociologia e macrossociologia (teorias do consenso x teorias do conflito) Escola Clássica Escola Positiva Fase antropológica ou antropobiológica (Lombroso) Fase sociológica (Ferri) Fase jurídica (Garofalo) Expoente do positivismo no Brasil: Raimundo Nina Rodrigues Escola de Chicago (teoria ecológica) Teoria da anomia (estrutura social funcionalista) Teoria da associação diferencial Teoria das subculturas delinquentes Teoria do etiquetamento Criminologia crítica (nova criminologia, criminologia radical) Criminologia feminista Criminologia queer Criminologia verde Política criminal atuarial Criminologia cultural Realismo marginal. Realismo de esquerda Realismo marginal Neorrealismo de esquerda REFERÊNCIAS AGRADECIMENTOS Dedico este livro à minha filha, Maria Flor, minha maior incentivadora, uma pessoa que me ensina muito por meio de sua sensibilidade e amor. Que o fruto deste trabalho possa compensar, ao menos um pouco, os momentos que deixamos de compartilhar. Aos meus pais, Ekner e Márcia, e ao meu irmão, Lucas, por todo o suporte, pelo amor incondicional e, sobretudo, pelos valores transmitidos. Vocês são a minha base. Não seria ninguém sem vocês. À Roberta, pelo companheirismo. Minha vida é bem mais feliz desde que você chegou. Ao meu amigo Marcos Gomes, por ter confiado a mim este importante projeto. Por fim, a todos os que são afetados, direta ou indiretamente, por um sistema de justiça falho e cruel. Saibam que têm em mim um companheiro de luta. NOTA DO COORDENADOR (COLEÇÃO DEFENSORIA PÚBLICA – PONTO A PONTO) Esta coleção é inovadora! Um magnífico avanço em matéria de concursos públicos, principalmente para o concurso da Defensoria Pública. Sem dúvida, estaremos diante de obras que se tornarão livros de cabeceira de qualquer concurseiro dessa nobilíssima carreira. O objetivo da Coleção Defensoria Pública Ponto a Ponto é facilitar e sistematizar os estudos dos candidatos que se dedicam ao concurso da Defensoria Pública. Para abordar cada matéria, foram selecionados pontos de editais referentes a um ou mais estados, os quais, muitas vezes, servem de base para a elaboração de outros editais. Assim, separaram-se os editais por matérias. Após, busca-se abordá-las, ponto a ponto, ajudando o candidato a encontrar o conteúdo de cada tópico do edital, bem como a bibliografia para cada assunto. Sem medo de errar, a organização e a otimização do tempo de estudo é surpreendente! Nesse sentido, em cada tópico se destaca, objetivamente, aquilo que se considera importante em determinado ponto do edital, sem ter a pretensão de esgotar o assunto, o que seria de todo modo impossível! A coleção é escrita por ex-concurseiros aprovados, todos Defensores Públicos, muitos deles com anos de experiência! Por isso, de forma pragmática, demonstram-se conceitos básicos, questões controvertidas, o entendimento de doutrinadores, bem como a posição de diversos Tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Ao longo do texto, procuramos demonstrar situações concretas de provas, relacionando-as com os assuntos abordados em cada ponto do edital. Assim, o candidato pode vislumbrar como, de fato, são abordados determinados assuntos em prova. Seja nas provas objetivas ou nas provas dissertativas e orais, o candidato economiza tempo e otimiza o conhecimento, pois todo o conteúdo é elaborado em formato de dissertação. Nesta coleção o nosso escopo não é esgotar a matéria dos pontos, até porque seria uma intenção utópica, diante do vasto conteúdo jurídico suscitado pelos temas. O que se pretende é elaborar diretrizes para as respostas, considerando que os examinadores, inclusive, podem ter visões e posições diferentes das expostas pelos autores. Por isso, temos o cuidado de alertar o leitor para o fato de que estamos diante de diretrizes jurídicas, de acordo com o entendimento de cada autor. Até mesmo as DICAS DOS AUTORES , presentes em alguns volumes, têm o objetivo de oferecer uma sugestão/diretriz para a resposta. Busca-se aproximar o concurseiro da realidade das provas e eventuais correções. Entrementes, conforme alertado há pouco, não necessariamente o posicionamento sugerido pelo autor poderá ser aquele adotado pelo examinador. Procuramos direcionar o concurseiro para a prova, com temas específicos da carreira e do cotidiano do Defensor Público. Esperamos que, a partir da presente leitura, o estudioso passe a ter conhecimento sobre o detalhe que faltava para a aprovação. Agora, é momento de chegar à prova com segurança e conhecimento sobre os pontos do edital. Bons estudos! Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes (Coordenador) E-mail: marcosdefensoriagomes@hotmail.com Instagram: @marcoslopesgomes Telegram: t.me/marcoslopesgomes PREFÁCIO DA COLEÇÃO Honrou-me o nobre Defensor Público Dr. Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes, integrante da colenda Defensoria Pública do Estado de São Paulo, com o amável convite para prefaciar a Coleção Defensoria Pública – Ponto a Ponto, trabalho de índole coletiva submetido ao encargo de sua preclara coordenação. A publicação em epígrafe, de inestimável valor científico, reúne trabalhos de apreciável conteúdo, subscritos por especialistas em cada um dos temas propostos, o que lhe empresta autoridade e foros de excelência. O objetivo a ser atingido pela Coleção sob comento, consoante enunciado alhures pela sua ilustrada coordenação, é o de facilitar, sobremaneira, a sistematização dos estudos por parte daqueles que se preparam para certames da Defensoria Pública. Exitosos em concursos públicos, a participação dos autores está crismada, o que se mostra evidente, com o timbre prestigioso de experiência bem- sucedida. A obra é erudita, sendo o assunto de importância transcendental na tessitura do Estado de opção democrática – Assistência Jurídica, Defensoria Pública e Justiça Gratuita. Os textos articulados, ainda que de forma acadêmica, são de fácil entendimento e compreensão. A linguagem é clara, fluente e encadeada no seu desenvolvimento. A dinâmica expositiva está acompanhada de parte prática, o que agrega valor incomum ao trabalho. O exame das controvérsias de variados matizes, nelas incluídas as de cunho doutrinário e jurisprudencial, não fluiu ao largo das preocupações dos autores. Estou convencido, por tudo que foi estadeado, de que a Coleção em referência constituirá marco importante de êxito editorial. A produção nasce, induvidosamente, sob os signos da utilidade e do sucesso. O tempo em sua inquietude revelará esta premonição. Niterói-RJ, julho de 2015. Humberto Peña de Moraes1 APRESENTAÇÃO Esta obra pretende analisar os pontos exigidos em execução penal e criminologia nos últimos editais dos concursos para as Defensorias Públicas dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. Os dois primeiros foram escolhidos por terem provas historicamente com abordagem mais crítica nessas matérias, enquanto o terceiro foi o último concurso elaborado pela Fundação Carlos Chagas, responsável pela organização de diversas provas de Defensoria. Sem o desejo utópico de tentar esgotar toda a matéria, nosso objetivo principal foi subsidiar com conteúdo sistematizado os estudantes que almejam a tão sonhada carreira de Defensora ou Defensor Público. Para isso, sempre que possível, buscamos trazer os principais enunciados normativos da Constituição, de lei, dos diplomas internacionais e dos diplomas infralegais. Preocupamo-nos também em colacionar os posicionamentos dos Tribunais, os entendimentos e teses institucionais das Defensorias, bem como nos amparar na melhor doutrina sobre o tema, para enfrentar as principais controvérsias. O desafio foi conciliar uma abordagem objetiva, que facilite o estudo dos concursandos, com uma abordagem crítica, exigida na maioria dos concursos defensoriais. Ao longo do livro,trouxemos ainda questões de provas anteriores, para ilustrar a forma como os temas são cobrados. E, nesse ponto, importante alertar que – cada vez mais – as bancas examinadoras têm exigido um conteúdo interdisciplinar, que envolve, além da própria execução penal e da criminologia, disciplinas como direitos humanos, direito constitucional, sociologia, filosofia, entre outros. Por fim, apesar de nosso público-alvo ser quem se prepara para os certames das Defensorias, por tentarmos expor os principais posicionamentos (contrários ou favoráveis), esta obra pode ser útil também para quem atua na área criminal e para concursandos das demais carreiras jurídicas. Esperamos, humildemente e de coração, ajudar na aprovação de futuros colegas e operadores do direito, para que construamos – juntos – um sistema de justiça mais humano. Boa leitura! PARTE I EXECUÇÃO PENAL 1. SÃO PAULO Execução penal: evolução histórica, crise e alternativas EVOLUÇÃO HISTÓRICA Este tópico mantém íntima relação com a história e com a criminologia. Serão destacados os principais eventos históricos na evolução da execução penal na tradição ocidental. Depois, com base em uma visão crítica criminológica, faremos uma análise da crise e das possíveis alternativas ao atual sistema penal. Esse ponto costuma ser cobrado nas provas orais dos concursos para Defensoria, quando – mais do que uma resposta exata – os examinadores avaliam o raciocínio jurídico e a capacidade de problematização da candidata ou candidato. Como ensina Luís Carlos Valois, falar da história da punição sempre será importante porque traz a ideia de que a pena que temos hoje é resultado de um processo cultural e não um item dogmático que pode ser traçado em esquemas precisos e intocáveis2. Essa observação é relevante, pois, na maior parte do mundo, é tido como evidente que uma pessoa condenada por um crime seja mandada para a prisão. A prisão é encarada como um aspecto inevitável e permanente de nossa vida social. É como se ela fosse um fato inevitável da vida, como o nascimento e a morte3. Mas não é. E estudar a própria história das penas nos mostra isso. Uma classificação possível é de a de que a punição passou pelo (i) período da vingança privada; (ii) período da vingança divina; (iii) período da vingança pública e (iv) período contemporâneo. O período da vingança privada foi marcado pela autotutela, pela lei do mais forte. Nesse período, o Código de Hamurabi e sua lei de talião podem ser vistos como avanços, pois trouxeram a ideia de proporcionalidade. Esse ponto foi objeto de cobrança na prova oral do VIII concurso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no final de 2019. O período da vingança divina foi marcado pela punição aplicada pelos sacerdotes. A religião era a principal forma de controle social, e a classe eclesiástica era tida como representante da divindade. Nesse momento histórico vigorava o sistema do éprouve4. O período da vingança pública foi marcado pela punição aplicada pelo soberano, dito representante divino na Terra. A punição era uma demonstração da força do monarca. Como demonstra Foucault: “o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória, não é algo de acessório ou vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos ‘excessos’ dos suplícios se investe toda a economia do poder”5. O período contemporâneo é marcado, como defende Foucault, por uma “sociedade disciplinar”. A formação da sociedade disciplinar remete ao final do século XVIII e início do século XIX. A prisão não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII. Surge no início do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica. Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle. Emergiu a noção de periculosidade, o indivíduo considerado pelo nível de suas virtualidades e não pelo nível de seus atos. Essa espécie de controle penal punitivo não é efetuada exclusivamente pela Justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, como a polícia e uma rede de instituições de vigilância e correção. A função não é mais punir, mas corrigir. É a era da ortopedia social. A idade do controle social6. Outra classificação é trazida por Rusche e Kirchheimer, que estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, em uma economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão de obra suplementar – e constituir uma “escravidão civil” ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e em uma época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais – sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção, o trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas, como o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim corretivo7. CRISE E ALTERNATIVAS Crise Parafraseando Darcy Ribeiro: a crise da prisão no Brasil (e no mundo) não é uma crise; é um projeto. É evidente que a prisão não cumpre suas funções declaradas: não ressocializa, assim como o encarceramento em massa não reduz as estatísticas oficiais de criminalidade. E, a partir dessas “evidências”, a dita crise se revela: a prisão é vista como algo inevitável, e ao mesmo tempo é vista como algo que não funciona. Essa crise é agravada em virtude do período neoliberal e de modernidade líquida no qual nos encontramos. No tópico anterior enumeramos as principais fases históricas da execução penal em nosso contexto ocidental. Como visto, o último estágio, conforme Foucault, seria a sociedade disciplinar, baseada no modelo panóptico de Bentham, um modelo de ortopedia social, para moldar o indivíduo como um ser útil à sociedade. A explicação que Rusche e Kirchheimer deram era a necessidade de qualificar a mão de obra do preso. Isso se explica em um contexto de sociedade industrial (revolução industrial), em que Leis de Cercamento (Enclosure Acts) foram sendo editadas por sucessivos monarcas ingleses. A população foi expulsa do campo para as cidades, mas sem qualificação para trabalhar nas indústrias. Era preciso um mecanismo para formar essa mão de obra. A prisão servia a esse propósito. Por outro lado, nos países em que a mão de obra escrava era a base produtiva da sociedade, as prisões serviram para perpetuar a exploração. Tanto nos EUA como no Brasil, por exemplo, a vadiagem era codificada como um crime de negros, punível com o encarceramento ou o trabalho forçado, às vezes nas mesmas plantations que antes exploravam o trabalho escravo. E, por muito tempo, a prisão serviu para isso: formar ou manter mão de obra, de preferência barata, para a sociedade industrial, do capitalismo sólido. Hoje não mais. Como nos alertava Bauman8, o que quer que a história da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, pós- panóptica. Não que essa “nova era” tenha acabado com a prisão; apenas retirou qualquer finalidade relacionada à formação de mão de obra útil ao capital. No atual estágio, a antiga mútua dependência entre o capital e o trabalho não mais existe ou, ao menos, está atenuada. O trabalho continua dependente do capital, mas a recíproca não é verdadeira. Angela Davis9 também identifica esse fenômeno. Para a autora, vivemos em uma era de corporações migrantes. A fim de escapar da mão de obra sindicalizada, as corporações corremo mundo em busca de países que forneçam mão de obra barata. Essa migração deixa comunidades inteiras mergulhadas no caos. Um grande número de pessoas perde o emprego e a perspectiva de empregos futuros. Como a base econômica dessas comunidades é destruída, a educação e outros serviços sociais básicos são profundamente afetados. Esse processo torna os homens, mulheres e crianças que vivem nessas comunidades destruídas candidatos perfeitos ao encarceramento. A prisão se tornou um buraco negro no qual são depositados os detritos do capitalismo contemporâneo. Entendido o contexto no qual estamos inseridos, cientes também de que não se trata de uma crise, mas sim de um projeto, nos cabe questionar que projeto é esse e quem é seu mentor. Diversos estudos criminológicos nos mostram que é impossível entender verdadeiramente o sistema penal sem entender as opressões estruturais e estruturantes de nossa sociedade, marcadamente racista e sexista. Estudo inédito da Defensoria Pública do Rio10 mostra que o fator racial ainda tem impacto significativo nas prisões em flagrante. Dos 23.497 homens e mulheres conduzidos a audiências de custódia de setembro de 2017 a setembro de 2019 ouvidos pela instituição, cerca de 80% declararam-se pretos ou pardos. O grupo também tem mais dificuldade para obter liberdade provisória (27,4% contra 30,8% de brancos) e sofre mais agressões (40% ante 34,5% de brancos). A pesquisa revela ainda que apenas uma em cada três pessoas consegue liberdade provisória ou relaxamento da prisão. Mais de 80% dos casos analisados foram presos sob acusação de furto, roubo ou com base na Lei de Drogas. Segundo Caroline Tassara, coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria: “a pesquisa traz dados riquíssimos que permitem identificar, a partir da análise de mais de 23 mil casos, quem são as pessoas presas em flagrante no estado do Rio de Janeiro e denunciar a inegável seletividade do sistema penal”. Nesse sentido as valiosas lições de Juliana Borges11: o debate sobre justiça criminal no Brasil não pode jamais prescindir da questão racial como elemento pilar, inclusive para a instalação dessa instituição no país. A sociedade é compelida a acreditar que o sistema de justiça criminal surge para garantir normas e leis que assegurarão segurança para seus indivíduos. Mas, na verdade, trata-se de um sistema que surge já com uma repressão que cria o alvo que intenta reprimir. O Estado no Brasil é o que formula, corrobora e aplica um discurso e políticas segundo os quais os negros são indivíduos em relação aos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos à repressão. A sociedade, imbuída de medo por esse discurso e pano de fundo ideológico, corrobora e incentiva a violência, a tortura, as prisões e o genocídio. É o populismo penal midiático12 e o populismo penal legislativo13, bem trabalhados pelo saudoso professor Luiz Flávio Gomes, como táticas desse grande projeto (estratégia), traçando uma analogia com o jogo de xadrez. Nas palavras do professor Luiz Flávio Gomes, a única verdade na Criminologia é a realidade. E a realidade dos cadáveres é incontestável (Zaffaroni). A política do populismo penal vem se revelando inteiramente ineficaz em termos preventivos. Sua promessa de que resolve o problema é uma mentira. Contra essa mentira se antepõe a verdade dos cadáveres, que revela nossa genocidiocracia (que consiste na biopolítica brasileira – Foucault –, de cunho nitidamente tanatológico, que está voltada não para a preservação de vidas, e sim para o gerenciamento de mortes). São “mortes antecipadas”, como diz Zaffaroni. As guerras nunca acabam. A violência, sobretudo contra os mais fracos, não arrefece. Por força da seletividade, a prisão aloprada se centra nos pobres (daí o caráter classista e racista do populismo penal conservador clássico). O professor expõe diversos dados empíricos e enfatiza: não há como deixar de concluir, diante dos números mostrados, que o produto final gerado pela equivocada política do populismo penal (o direito penal autoritário e prepotente produzido pelo Estado policialesco e propagado pela manipuladora mídia expressiva) é atécnico, irracional, desproporcional (excessivo), desarrazoado, demagógico, antigarantista, hiperpunitivo, neoconservador, reacionário, simbólico (em termos de prevenção de crime), apenas sedativo, propagandístico, desigual, discriminatório, fundamentalista, racista, nada empírico, muito intuitivo, falso, tendencioso, manipulador, paranoico, enganoso, ineficiente e vingativo. Sobre tática e estratégia, atribui-se a Sun Tzu14 a seguinte frase: “Todos os homens podem ver as táticas pelas quais eu conquisto, mas o que ninguém consegue ver é a estratégia a partir da qual grandes vitórias são obtidas”. Pois bem. No Brasil, no âmbito jurídico (quase como uma cortina de fumaça para a verdadeira estratégia), a Lei de Execução Penal afirma que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Nesse sentido também o Código Penal, ao afirmar que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. Essas regras são extraídas dos próprios princípios da legalidade, do ne bis in idem e da dignidade da pessoa humana. O art. 41 da LEP traz um rol (exemplificativo) de direitos dos presos, sem prejuízo de outros garantidos pela própria Constituição, por Tratados e Resoluções Internacionais de Direitos Humanos e de outros previstos no ordenamento jurídico. No entanto, é fato notório que diariamente esses direitos são desrespeitados no âmbito penitenciário. Além disso, as ditas funções/finalidades da pena se mostram ineficazes na prática. E também por isso a professora Vera Andrade15 nos alerta e nos ensina que a deslegitimação explicitada na teoria e na empiria constitui antes de mais nada a radical demonstração de que o poder do sistema penal está nu, pelo desvelamento de suas múltiplas incapacidades e violências; ela explicita a inteira nudez do sistema penal e particularmente da prisão, reduzida que está a espaço de neutralização e de extermínio indireto. Entender a deslegitimação é entender que o sistema penal está nu, que todas as máscaras caíram e que ele agora exerce abertamente a sua função real; é entender também que, pela via da nudez, uma nova e mais perigosa relegitimação está em curso e se apropria de outros espaços (mercado e finanças) e tecnologias da sociedade de comunicação (mídia e controles eletrônicos) e consumo, em detrimento do discurso pretensamente científico que operava sua legitimação histórica. Isso nos mostra que, diferentemente do que afirmava Sun Tzu, já é possível ver de maneira cristalina a estratégia usada por todo o sistema criminal. O sistema penal está nu. E sua seletividade, escancarada. Como dito há pouco, o superencarceramento não é um acidente, não é uma crise; é um projeto. E a realidade nos mostra que a tática mais potente usada nessa estratégia tem sido a dita “guerra às drogas”. Em uma guerra, somos “nós” contra “eles”, os “outros”. Os outros que ameaçam nossa existência, nossa segurança, nosso patrimônio, nosso bem-estar. E é esse discurso construído de guerra que legitima a necropolítica16, o estado de exceção17, a zona cinzenta18 e o superencarceramento a que está sujeita parcela vulnerável e estigmatizada da sociedade. Nesse sentido, Riccardo Cappi19, interpretando uma charge de Latuff, consegue – de maneira forte e genial – captar toda a lógica empregada: Os discursos estatais, as visões propagadas pela imprensa, os discursos do senso comum ou mesmo da ciência, também são sustentados por estas grades de leitura que, como nos ensinam De Greef e Debuyst, atualizam em maior ou menor medida o “instinto de defesa”. O mecanismo de conhecimento é o mesmo daquele que De Greef atribuía ao delinquente pelo qual o outro é brutalmente reduzido a sua qualidade de inimigo, isto é uma abstração cuja característica essencial é a de carregarintenções perigosas e ameaçadoras. A apreensão do perigo parece ser de crucial importância para a produção de conhecimento e para a produção de respostas estatais. Do lado da percepção, o sentimento de perigo leva a produzir uma projeção redutora: o outro só aparece em suas características maldosas e agressivas; é reduzido a estes elementos, que ganham interesse na perspectiva de reduzir o sentimento de perigo. Medo e ódio que se sustentam. O perigo, as pessoas perigosas, o grupo perigoso são vistos como dotados de grande força, incontrolável, que toma conta do observador ao ponto de ele se sentir ameaçado de inexistência física ou psíquica. Diante disso, só parece haver duas respostas possíveis: a proteção que o afasta – o muro – (e aqui podemos encarar como a prisão para os pobres e os condomínios luxuosos para os ricos) ou a eliminação definitiva – a metralhadora. O único resultado aceitável, segundo esta perspectiva, é aquele que deve corresponder, com extrema certeza, à anulação da fonte do perigo. Esta leitura da alteridade torna concebíveis unicamente respostas extremas, vingativas e/ou eliminatórias, que não tolerem cálculos ou hesitação. A charge faz então alusão aos discursos viscerais que conhecemos, atravessados pelo medo do crime; e pelo ódio frente aos jovens, negros e pobres, entendidos de maneira geral como criminosos ou inimigos da sociedade. Estamos além do direito penal do inimigo, segundo a célebre fórmula atribuída a Günther Jakabs, pois o autor alemão se refere a algumas figuras de exceção, enquanto aqui as estratégias de segregação e eliminação massivas são direcionadas para os grupos subalternos empobrecidos, essencialmente constituídos por jovens negros. Nesta visão, estes chegam a ser considerados como lixo humano, segundo a expressão de Bauman, ou ainda indivíduos tornados supérfluos pelo triunfo global do capitalismo. Para entendermos a agressividade dessa tática de guerra às drogas, a Lei de Drogas (Lei n. 11.343, de agosto de 2006) é uma das principais responsáveis pelo encarceramento em massa no país. De 2006 a 2016, o número de encarcerados aumentou em mais de 300 mil pessoas. Tendo como base a variação da taxa de aprisionamento de 1995 a 2010, o Brasil só fica atrás da Indonésia, país com regime marcadamente repressor em relação à política de drogas, inclusive com penalização por morte20. Nesse contexto em que não se pode mais negar a realidade, fora ajuizada a Arguição de Preceito Fundamental (ADPF 347) para que seja declarada pelo STF a violação de inúmeros direitos fundamentais dos presos, requerendo, ainda, o reconhecimento do “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema prisional brasileiro. Em caráter liminar, o STF decidiu da seguinte forma: CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão (STF, ADPF 347 MC, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 09/09/2015). O tema é interdisciplinar, passando por transconstitucionalismo, diálogo de cortes, controle de constitucionalidade e de convencionalidade, processo coletivo e processo estruturante, separação das funções de poder e controle da efetividade do mínimo existencial. O Poder Judiciário pode e deve exercer o controle de políticas públicas e de ações e omissões inconstitucionais dos demais Poderes, principalmente quando tais condutas atentem contra o mínimo existencial. A solução para problemas complexos, por vezes, virá por meio de processos estruturantes, e as referências podem ser encontradas ou construídas pelo diálogo entre Cortes e pelo transconstitucionalismo. Como nos ensina Pedro Lenza21, Marcelo Neves demonstra a tendência mundial de superação do constitucionalismo provinciano ou paroquial pelo transconstitucionalismo, mais adequado para a solução dos problemas de direitos fundamentais ou humanos e de organização legítima de poder. Para Marcelo Neves, transconstitucionalismo é o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e de limitação de poder que são discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversas. E não poderia ser diferente. A crise da prisão não é exclusividade brasileira, mas um problema enfrentado no mundo inteiro, ante a própria irracionalidade desse modelo de punição. Dessa forma, importante que haja um efetivo diálogo entre as Cortes Constitucionais e Supraconstitucionais para que sejam encontradas soluções para os problemas que se apresentam em nível supranacional. O STF, na medida cautelar, realizou não só um controle de constitucionalidade como também um controle de convencionalidade22, ou seja, um exame de compatibilidade entre a situação fática e os direitos previstos em Tratados Internacionais de Direitos Humanos (CADH e PIDCP). Nesse ponto, cabe mencionar a decisão da Corte IDH que concedeu medida provisória em 22 de novembro de 2018 em face do Estado brasileiro no que se refere ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e à superlotação carcerária. Sistematizam Caio Paiva e Thimotie Aragon Heemann23: a superpopulação carcerária sem dúvida é um dos principais fatores criminógenos no ambiente prisional, contribuindo diretamente para o embrutecimento e para a desumanização da pessoa presa, assim como fornecendo as condições necessárias para a criação e a expansão de organizações criminosas. Não há como discordar de Baratta, portanto, quando ele afirmava que “O cárcere é um lugar privilegiado para a violação de direitos humanos”24. Em seu voto no julgamento do Caso Tibi vs. Equador, o juiz García Ramirez também fez a seguinte advertência: “[...] as prisões têm sido, são e talvez serão – oxalá que não fosse assim – cenários das mais reiteradas, graves e notórias violações dos direitos humanos. É hora de que se volte a olhar para esses cenários, constantemente denunciados e insuficientemente reformados, para modificar-lhes radicalmente”. Em suas resoluções sobre medidas provisórias aplicadas ao Brasil no contexto de violações de direitos humanos no interior de estabelecimentos prisionais, a Corte IDH vinha coibindo a superpopulação carcerária mediante determinações mais genéricas, como a adotada em sua Resolução de 4 de julho de 2006, na qual ordenou ao Estado brasileiro que reduzisse substancialmente a superlotação no Complexo do Tatuapé da FEBEM. No entanto, com a Resolução adotada em 22 de novembro de 2018, referente às medidas provisórias adotadas sobre o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), a Corte IDH, observando que as medidas anteriormente determinadas não melhoraram concretamente as condições de privação de liberdade no IPPSC, e,ainda, levando em conta que a superpopulação carcerária no referido estabelecimento prisional estava em torno de 200% – quando os parâmetros internacionais, por exemplo, o do Conselho da Europa, indicam que ultrapassar 120% implica superpopulação crítica –, resolveu adotar uma medida provisória mais “audaciosa”: levando em conta que a densidade da superpopulação penal é de 200%, o tempo de pena ou de prisão preventiva realmente sofrido deve ser computado à razão de 2 dias de pena lícita por dia de efetiva privação de liberdade em condições degradantes. Caio Paiva critica a decisão por resultar em uma espécie de “remição por tortura”. Com o que concordamos parcialmente. A decisão da Corte, a medida cautelar na ADPF 347, a Súmula Vinculante 56 e a Resolução n. 5/2016 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, por exemplo, são apenas medidas paliativas, em uma ótica de redução de danos, que não resolvem o verdadeiro problema, que é a própria prisão. O Estado de Coisas Inconstitucional só tende a aumentar, pois frequentemente são editadas novas normas penais simbólicas, amparadas em um discurso de que mais direito penal e mais prisão seriam as soluções para os problemas sociais. Não são. Outra decisão importantíssima se deu no bojo da ADPF 63525. Liminarmente, suspenderam-se operações policiais em comunidades durante a pandemia do novo coronavírus. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, junto a outras entidades, atua como amicus curiae nessa ação26. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia do novo coronavírus, salvo em casos absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente e comunicadas ao Ministério Público estadual, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. De acordo com o ministro, nesses casos, deverão ser adotados cuidados para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária. A decisão foi tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em que o Partido Socialista Brasileiro (PSB) questiona a política de segurança pública do governador Wilson Witzel, que, segundo a legenda, estimula o conflito armado e “expõe os moradores de áreas conflagradas a profundas violações de seus direitos fundamentais”. Em sua decisão, o ministro Fachin afirma que o uso da força só é legítimo se for comprovadamente necessário para a proteção de um bem relevante, como a vida e o patrimônio de outras pessoas. Segundo ele, se os protocolos de emprego da força já eram precários, em uma situação de pandemia, com as pessoas passando a maior parte do tempo em suas casas, eles se tornam de utilidade questionável e de grande risco. Para o ministro, os fatos recentes tornam ainda mais preocupantes as notícias sobre a atuação armada do Estado nas comunidades do Rio de Janeiro. Ele se referiu ao caso do menino João Pedro, morto a tiros dentro de casa em operação conjunta das Polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “Muito embora os atos narrados devam ser investigados cabalmente, nada justifica que uma criança de 14 anos de idade seja alvejada mais de 70 vezes. O fato é indicativo, por si só, de que, mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita a Constituição”, concluiu. O pedido de urgência foi protocolado em 25 de maio e foi proposto pelo PSB em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado e ISER, entidades habilitadas como amicus curiae na ação. Para as entidades, o quadro dramático de violação de direitos humanos na implementação da política de segurança do Estado do Rio de Janeiro agravou-se ainda mais com o avanço da pandemia de Covid-19 nas favelas e periferias do estado. O ministro Fachin, no julgamento da ADPF 635, em 17 de abril, não incluiu a medida de proibição de operações policiais. A arguição pede que sejam reconhecidas e sanadas as graves violações a direitos fundamentais ocasionadas pela política de segurança em curso. De acordo com dados da Rede de Observatórios da Segurança, a partir de abril, as operações policiais aumentaram no Estado do Rio de Janeiro e superaram os números de 2019, com um acréscimo de 27,9%. Os dados apontam, ainda segundo o Observatório, que as polícias do estado do Rio de Janeiro usaram mais a força letal durante a pandemia do que nos meses equivalentes de 2019, quando o Rio teve o recorde de 1.810 mortes causadas por intervenção policial. Com o objetivo de avaliar os impactos dessa decisão, o Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) produziu relatório com base em dados das operações policiais e tiroteios produzidos pelo aplicativo Datalab Fogo Cruzado. O relatório demonstrou que no período de suspensão registrou-se a mais baixa incidência de operações policiais em favelas desde 2007, e que igualmente se observou redução da quantidade de óbitos e de feridos decorrentes de operações policiais, e da quantidade de tiroteios. Os dados são importantes não apenas para monitorar o cumprimento da decisão do STF e seus efeitos, mas também porque dão subsídios para demonstrar que a relação direta entre uma política ostensiva de maior presença policial e o aumento de segurança pública nem sempre é verdadeira27. Por fim, importante que tenhamos ciência da tendência global a diminuir a população encarcerada, como mostra o documentário A 13ª Emenda, que aborda a situação nos EUA, baseada em uma nova política criminal atuarial, escorada nas premissas neoliberais. Ana Luisa Zago Moraes28 sistematiza a mensagem trazida pelo documentário: O sistema “ficou caro demais”, “saiu do controle”, em uma nítida preocupação com os custos dessa política, o que induz à necessidade de sua reformulação. O documentário expõe o intenso trabalho da ALEC (American Legislative Exchange Council), que propõe e defende projetos de lei que beneficiam economicamente grandes corporações. Exemplos de beneficiários são os fornecedores de alimentos e de serviços médicos para as penitenciárias, as corporações que investem no trabalho dos presos, os comerciantes de munições, os administradores de prisões privatizadas, dentre outros. Para tornar esses interesses mais concretos, veja-se o caso da CCA (Correction Corporation of America), que atualmente tem um contrato para deter imigrantes que lhe rende mais de 11 milhões de dólares ao mês. A CCA, aliás, tem interesse na privatização das prisões e também está realizando um intenso lobby para a implantação de um sistema de acompanhamento da liberdade condicional via monitoramento por GPS. Os interesses financeiros, antes dos exploradores da mão de obra escrava, agora dos exploradores do “mercado da segurança pública” e, mais especificamente, do “mercado das prisões”, demonstram que os controles sociais vão se alterando em processos históricos longos, guiados por vários fatores, dentre eles, a própria economia e a manutenção de determinados status sociais no poder. Essas questões podem trazer provocações para o Brasil, dentre elas: quais os efeitos do aumento da criminalidade em relação à privatização da segurança? Sobre o custo do sistema carcerário, baseado no modelo panóptico de Bentham, Bauman já nos alertava29 de que o Panóptico apresenta também outras desvantagens. É uma estratégia cara: a conquista do espaço e sua manutenção, assim como a manutenção dos internos no espaço vigiado, abarcavam ampla gama de tarefas administrativas custosas e complicadas. Havia os edifícios a erigir e manter em bom estado, os vigias profissionais a contratar e remunerar, a sobrevivência e a capacidade de trabalho dos internos a ser preservada e cultivada.Finalmente, administrar significa, ainda que a contragosto, responsabilizar-se pelo bem-estar geral do lugar, mesmo que em nome de um interesse pessoal consciente – e a responsabilidade, outra vez, significa estar preso ao lugar. Contextualizando com a realidade brasileira30, estima-se que o Brasil gaste entre 15 e 25 bilhões de reais por ano com o sistema prisional. O déficit da previdência estava estimado em 230 bilhões para 2020. Em 10 anos, o gasto com o sistema prisional supriria o dito déficit da previdência. De acordo com dados do TCU, o Brasil gastou R$ 15,8 bilhões para custear os sistemas prisionais em 2017 e precisaria investir mais R$ 5,4 bilhões por ano até 2037 para dar mais estrutura e acabar com o déficit de vagas nas cadeias. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça, o país tinha 726 mil presos em junho de 2017, 706.619 detidos em sistemas penitenciários e o restante detido provisoriamente em delegacias. Em 2020, esse número ultrapassou os 820 mil presos. O levantamento do TCU apontou que um preso no país custa, em média, R$ 23 mil por ano. Para efeito de comparação, em 2017 o Ministério da Educação definiu para o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica) o custo anual mínimo por aluno de R$ 2.875,03. O país precisaria investir R$ 97 bilhões em 18 anos seguidos para “extinguir o déficit de vagas prisionais, reformar unidades prisionais precárias e viabilizar seu pleno funcionamento”. De 2000 a 2016, o déficit prisional saltou de 39 mil para 322 mil – crescimento de 720%. Para piorar, estima-se que o dito “pacote anticrime” gerará um custo adicional com presos de R$ 44,4 bilhões anuais31. Conclusão: o Brasil gasta fortunas com presídios que não servem para nada a não ser produzir dor, sofrimento, humilhação, desgraça. Ao mesmo tempo que afirma não ter dinheiro para os direitos sociais mais básicos como educação, saúde, seguridade etc. A desigualdade só aumenta. E isso precisa mudar. ALTERNATIVAS A professora Vera Regina de Andrade aponta algumas alternativas para a atual política criminal, tais como o abolicionismo e o minimalismo32. Segundo a professora, o abolicionismo pode ser encarado como perspectiva teórica e como movimento social, pois, desde o início, a relação entre teoria e prática, rompendo com os muros acadêmicos, aparece simultaneamente como teorização e militância social e, portanto, como práxis. Uma das características mais comuns de seus líderes é a de terem fundado grupos de ação ou de pressão contra o sistema penal e de haverem levado adiante movimentos ou organismos com a participação de técnicos, presos, liberados, familiares e simpatizantes, isto é, pessoas com alguma experiência prática no campo da criminalização. E essa característica se compatibiliza perfeitamente com o perfil constitucional da Defensoria Pública33, que é reforçado pelo art. 4º, II, da Lei Complementar n. 80, ao trazer como função institucional a solução extrajudicial dos litígios de maneira prioritária. Acreditamos, sinceramente, que o Defensor Público, como agente de transformação social, só alcançará resultados efetivos por meio de sua atuação extrajudicial. No âmbito judicial, a tarefa é a de minimizar danos, em um trabalho de Sísifo34, quase que em um modelo de produção fordista no etiquetamento de selecionáveis pelo sistema penal. Enxergamos a educação em direitos, assim como o abolicionismo penal, como uma das melhores alternativas à crise da atual política criminal. Porém, educação em direitos na perspectiva defendida por Allan Ramalho Ferreira35, Defensor Público do Estado de São Paulo. Com inspiração em Paulo Freire. Ou seja, o direito não é algo conhecido/dominado apenas pelo/a Defensor/a Público/a. E é necessário que haja um diálogo horizontal entre a Instituição e os Movimentos da Sociedade Civil, nos moldes de uma educação que emancipe e liberte, como defendia Paulo Freire, e em uma sociedade aberta dos intérpretes, como defendia Haberle. Allan pontua que, da mesma forma que o/a Defensor/a Público/a tem a contribuir com a população, com seu saber legislativo, jusdoutrinário e jurisprudencial acerca de determinado assunto regulado pelo direito, a população, vivente daquela norma ou do vazio de sua eficácia social, tem a contribuir acerca da definição da essência daquele direito e da eventual inexpressividade da política pública correspondente. Deve-se construir com a população vivente o significado desses direitos em uma expedição conjunta de interpretação, que leve em consideração não apenas as técnicas hermenêuticas, mas também a realidade social traduzida em experiências testemunhadas. A educação em direitos deve ser um instrumento de libertação, de direcionamento à humanização, e não de opressão e de manutenção do status quo. Dessa forma, firmada essa premissa de valorização dos caminhos extrajudiciais e verdadeiramente democráticos e plurais, voltamos ao ponto específico do abolicionismo penal. Aqui, ensina a professora Vera Andrade que, como perspectiva teórica, existem diferentes tipos de abolicionismo, com diferentes fundamentações metodológicas para a abolição: a) a variante estruturalista, do filósofo e historiador francês Michael Foucault; b) a variante materialista, de orientação marxista, do sociólogo norueguês Thomas Mathiesen; c) a variante fenomenológica, do criminólogo holandês Louk Hulsman; d) a variante fenomenológico- historicista, de Nils Christie. Segundo Vera Andrade, o objeto da abolição ou minimização não é o direito penal (que é a programação normativa e tecnológica do exercício de poder dos juristas), mas o sistema penal, em que se institucionaliza o poder punitivo do Estado e sua complexa fenomenologia, a que abolicionistas como Louk Hulsman chamam de “organização cultural do sistema de justiça penal” e que inclui tanto a engenharia quanto a cultura punitivas, tanto a máquina quanto sua interação com a sociedade, de modo que, se o sistema é formal e instrumentalmente o “outro”, informal, difusos e periféricos somos todos “nós”. Nesse contexto, entende-se por sistema penal a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão, entre outros), a totalidade das normas, dos saberes e categorias cognitivos que programam e legitimam ideologicamente sua atuação e seus vínculos com a mecânica de controle social global na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivos que se enraizaram, muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas penais. Hulsman advoga três razões fundamentais para abolir o sistema penal: 1) causa sofrimentos desnecessários distribuídos socialmente de modo injusto; 2) não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvidas nos conflitos; e 3) é extremamente difícil de ser mantido sob controle. Por outro lado, o minimalismo, de acordo com Vera Andrade, volta-se à limitação da violência punitiva e à máxima contração do sistema penal, mas também à construção alternativa dos problemas sociais. Há uma vertente do minimalismo que se pauta como meio para alcançar o abolicionismo (Zaffaroni, Baratta), e há outra corrente que busca relegitimar o sistema penal, encarando o próprio minimalismo como um fim em si mesmo (Ferrajoli). Zaffaroni, falando sobre as alternativas aventadas na década de 80 do século passado, esclarece que, no plano das diversas tendências ou linhas que se propõem para a reforma dos sistemas penais nos países centrais e das quais, em boa parte, se encarrega a ONU em seus congressos de prevenção do crime e tratamento do delinquente, mencionam-se (i) a descriminalização em relação a vários delitos; (ii) a despenalização e toda uma gama de penas alternativas à privação da liberdade; (iii) a diversificação, medida que propõe que o processo seja suspenso para que seja alcançada uma solução não punitiva; e (iv) a intervenção mínima. De qualquer forma, o que está em curso na era da globalização neoliberal não é a hegemonia de práticas minimalistas e abolicionistas,mas a mais gigantesca expansão e relegitimação do sistema penal, orquestrada pelo eficientismo penal (ou “Lei e Ordem”) a partir de uma leitura da crise do sistema como crise conjuntural de eficiência. Para esse modelo, é necessário criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários e penitenciários, como se pode ver com o ganho de musculatura de discursos como o da criminologia atuarial, o da eficiência em privatizar presídios e o próprio “pacote anticrime”. DICA DO AUTOR: No último concurso para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi cobrada a seguinte questão: Considere uma situação hipotética em que esteja em tramitação no Congresso um projeto de lei que preveja a inclusão de um parágrafo único no artigo 59, do CP, com a seguinte redação: “O juiz poderá, com observância aos critérios previstos neste artigo, fixar período mínimo de cumprimento de pena no regime inicial fechado ou semiaberto, antes da possibilidade de progressão”. a. Analise, fundamentadamente, a constitucionalidade material da norma acima transcrita. b. Esclareça de forma justificada se essa norma está em consonância com as medidas propostas pelos teóricos do labelling approach no plano político-criminal, fazendo uma breve explanação sobre cada uma dessas medidas. O gabarito, em relação ao item b, que aqui nos interessa, passava por apontar que a norma está em dissonância com as medidas propostas pelos teóricos do labelling approach, pois, em vez de obstar o processo em espiral criado pela estigmatização dos indivíduos prisonizados que gera a desviação secundária, a norma contribuiria para o maior encarceramento, dificultando a desinstitucionalização do apenado. Além disso, defendia a Política dos 4 Ds: Descriminalização, Desinstitucionalização, Diversificação e Devido Processo Legal. Trazia ainda que a teoria da rotulação defende a descriminalização das condutas de menor danosidade social, a adoção de medidas despenalizadoras e de penas alternativas à prisão, a opção por meios informais de resolução de conflitos, como a justiça restaurativa, além de políticas para desencarceramento e auxílio ao egresso. Ainda nessa linha, reflexão importante é trazida pela vinheta – com a voz da professora Vera Malaguti Batista – do excelente podcast Segurança dos direitos. Joel Rufino dizia: “não tem que ter uma política de segurança pública, tem que ter uma política de proteção dos direitos. É o que o Alessandro Baratta dizia: não é direito à segurança, é segurança dos direitos”. Nesse sentido também as lições do querido professor Luiz Flávio Gomes e de Luís Wanderley Gazoto36: as crises são bem identificadas pelas massas (de todas as classes sociais), que apenas não compreendem (ou não discutem) a causa de todas as causas, que reside na violência trágica que encerra a desigualdade enraizada na miséria. Do ponto de vista racional, a ideia de um futuro de violência contida exigiria a superação do paradigma de segurança pública e de segurança nacional ancoradas na lógica da exceção fática (não declarada); em seu lugar, consoante a lógica do constitucionalismo democrático de direitos e deveres, ingressaria a segurança dos direitos individuais e sociais (Ferrajoli), dentro de um contexto de vida digna e livre, que requer políticas sociais e ações estratégicas que se orientem em sentido completamente antagônico ao estado de exceção e ao institium. Essas podem ser boas medidas e alternativas para combater a “crise” do sistema penal. E é papel da Defensoria se valer dos meios judiciais e principalmente extrajudiciais no combate a essa estratégia perversa e que já não se mostra mais oculta. O sistema penal está nu. Mas continua forte. Para derrubá-lo, somente com a força do coletivo. Retomando a analogia com o xadrez, essa deve ser a estratégia: a conscientização para que todos vejam que o sistema está nu e lutem contra seu mecanismo cruel. Enquanto isso, a política dos 4 Ds é uma tática que minimiza os danos, bem como o reforço contínuo de um discurso garantista em âmbito criminal. 2. RIO DE JANEIRO Princípios do direito de execução penal. Objetivos da execução penal. Sistemas de execução penal. Natureza da execução penal. Fontes positivas do direito de execução penal. MARANHÃO Princípios constitucionais que regem a execução penal. Objeto e aplicação da Lei de Execução Penal. SÃO PAULO Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84) NATUREZA DA EXECUÇÃO PENAL E SISTEMAS DE EXECUÇÃO PENAL A natureza jurídica da execução penal é constantemente alvo de cobranças nos certames para a Defensoria Pública. Três correntes disputam a primazia na doutrina e na jurisprudência pátria e internacional: (i) caráter administrativo; (ii) caráter jurisdicional e (iii) caráter misto. Sobre a primeira corrente, ensina Roig (Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro) que se desenvolveu inicialmente a compreensão de que a execução penal possuía caráter administrativo, ideia esta fundada na doutrina política de Montesquieu sobre a separação dos poderes. Ao longo do tempo, tal concepção perdeu força, sobretudo após a tendência jurisdicionalizante após a Segunda Guerra37. Giamberardino (Defensor Público do Estado do Paraná) afirma que prevalece na doutrina e na jurisprudência a posição em prol da natureza mista, híbrida ou complexa (jurisdicional e administrativa) da execução penal. A posição que visualiza o exercício da função jurisdicional somente no início ou no encerramento da execução da pena, ou em “incidentes”. Essa concepção pressupõe um processo administrativo de execução “dentro” do qual haveria procedimentos incidentais jurisdicionalizados38. Por outro lado, em relação à corrente que defende o viés jurisdicional da execução penal, Roig sustenta que a execução penal é atividade de natureza jurisdicional, ou seja, significa em primeiro lugar assumir que não pode haver prevalência do interesse estatal sobre o individual, mas polos distintos de interesse (Estado e indivíduo), cada qual refletindo suas próprias pretensões (retributivo-preventiva e libertária, respectivamente). Em segundo lugar, significa reconhecer que todos os atos executivos, mesmo aqueles administrativos de origem, sempre serão sindicáveis pela jurisdição (ato de justiça formal e substancial, não de administração)39. Essa concepção se baseia no art. 5º, XXXV, da Constituição e nos arts. 2º e 65 da Lei de Execução Penal. DICA DO AUTOR: Entendemos que esta última (jurisdicional) é a natureza jurídica da execução penal a ser defendida em provas de Defensoria. Porém, importante conhecer a reflexão sobre esse debate feita por Patrick Cacicedo40, Defensor Público do Estado de São Paulo e examinador em diversas provas de Defensoria organizadas pela Fundação Carlos Chagas: A questão do controle judicial sobre a vida prisional assume no Brasil características peculiares. A despeito de pouco estudado, o tema traz importantes consequências no cotidiano carcerário, além de ser fundamental na compreensão e conhecimento da situação prisional no Brasil. O tema pode ser estudado a partir de três formas de controle judicial das penas. A mais tradicional e legalmente obrigatória é a atividade judicial exercida no sistema progressivo de cumprimento de pena, que tem como característica principal a morosidade na análise dos pleitos jurídicos. A forma como tal atividade judicial é exercida tem como efeito concreto muito mais uma violação dos direitos do que a sua garantia, que é a função oficialmente conferida ao Poder Judiciário. A outra forma de analisar o grau de jurisdicionalização da execução penal é pelo papel exercido pelo juiz no controle disciplinar dos presos. Nesse aspecto, o sistema brasileiro é notadamente perverso, pois deixa o controle disciplinar da população prisional ao arbítrio da autoridade administrativa penitenciária. O controle da vida dos presos por meio da disciplina prisional tem o poder de decidir o destino da execução penal de cada um, cuja punição disciplinar pode significar uma medida pior do que os mais graves crimes previstosna legislação. A ausência de jurisdicionalização nesta seara permite o arbítrio e potencializa o poder dos agentes penitenciários em detrimento da liberdade dos presos. Por fim, a questão dos direitos relacionados às condições materiais de aprisionamento apresenta uma peculiar atuação judicial, pois o próprio Poder Judiciário nega sua atividade como jurisdicional. A consequência dessa negativa de jurisdição é uma vedação do acesso à justiça por parte da população prisional, criando-se a única exceção à garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição, além da manutenção do quadro de verdadeira barbárie representada pelas abjetas condições materiais de aprisionamento no Brasil. Assim, o controle judicial da execução penal no Brasil é caracterizado ora pela ausência, ora por uma presença prejudicial da atividade judicial, cujo resultado é o prejuízo à dignidade e à liberdade da população prisional. Trata-se de uma contradição perversa que supera o debate teórico sobre a natureza jurídica da execução penal e remete a discussão sobre a jurisdicionalização da execução para o plano das dinâmicas de controle social punitivo na era do grande encarceramento. As três formas de controle judicial sobre a execução penal analisadas permitem, portanto, deslocar o debate sobre a jurisdicionalização da execução penal para as formas de gestão e controle das pessoas presas. O deslocamento do debate sobre a natureza jurídica da execução penal para as manifestações concretas do controle judicial do cumprimento de pena no Brasil possibilita superar o caráter meramente jurídico e idealista da questão, elevando-a para a materialidade das relações de poder na prisão contemporânea. FONTES POSITIVAS DO DIREITO DE EXECUÇÃO PENAL Para Miguel Reale, fontes do direito são os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa41. Nesse ponto, é preciso realizar uma releitura da conceituação dada por Reale, uma vez que, com o pós-positivismo – defendido entre outros por Dworkin e Alexy –, a norma jurídica é gênero que comporta não só regras como também princípios. Humberto Ávila defende que há normas de primeiro grau (princípios e regras) e normas de segundo grau (postulados normativos)42. Muitos desses princípios são extraídos diretamente da Constituição, que não é mais vista como mero documento político, mas como verdadeiro documento com força normativa43 e superioridade hierárquica44 perante as demais normas do ordenamento jurídico, que não podem contrariá-la, sob pena de declaração de inconstitucionalidade. Dessa forma, no ordenamento jurídico brasileiro, a principal fonte da execução penal é a própria Constituição. Nada obstante, são também fontes da execução penal as diversas leis que disciplinam a matéria. A principal delas é a Lei de Execução Penal, Lei n. 7.210/84 (LEP), lei federal que traz as disposições gerais sobre a matéria. É importante que se atente para a diferença entre Direito Penal e Direito Processual Penal de um lado e Direito Penitenciário de outro. Isso porque a Constituição traz como competência privativa da União legislar sobre os primeiros (art. 22, I, da CRFB/88), enquanto estipula a competência concorrente para legislar sobre direito penitenciário (art. 24, I, da CRFB/88). Portanto, as leis estaduais relativas à matéria penitenciária também são fontes positivas naquilo em que não contrariarem as disposições gerais trazidas pelas leis federais. Cabe ressaltar que, conforme veremos, um dos princípios que regem a matéria é o princípio da legalidade (ou juridicidade), importante garantia do cidadão para contenção do poder punitivo estatal. Outra classificação sobre fontes do direito é trazida por Zaffaroni e Pierangeli45. Os autores dividem as fontes em: (i) fontes de produção da legislação (União e/ou Estados); (ii) fontes de cognição da legislação (a própria legislação); (iii) fontes de conhecimento do saber jurídico (legislação, dados históricos, jurisprudência, informação etc.) e (iv) fontes de informação do saber jurídico (tratados, monografias etc.). PRINCÍPIOS DO DIREITO DE EXECUÇÃO PENAL Agora passaremos a analisar os princípios do direito de execução penal. Sem prejuízo de outros preceitos muito importantes para a execução penal, tais como devido processo legal, contraditório, ampla defesa, duplo grau de jurisdição, non bis in idem, jurisdicionalidade, publicidade e imparcialidade do juiz, a execução penal, segundo Roig, é regida, entre outros, pelos princípios da humanidade, da legalidade, da não marginalização (ou não discriminação) das pessoas presas ou internadas, da individualização da pena, da intervenção mínima, da culpabilidade, da lesividade, da transcendência mínima, do estado de inocência, da proporcionalidade, da celeridade (ou razoável duração) do processo de execução penal e do numerus clausus (número fechado). Todos esses princípios são extraídos explícita ou implicitamente da Constituição Federal. E servem de base para uma teoria redutora de danos defendida por Roig46. Adotando o rol acima como referência, passemos a breve explicação de cada um desses princípios. Princípio da humanidade A Constituição trouxe como centro axiológico do ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana. Conforme ensina Sarmento, o princípio da dignidade da pessoa humana tem múltiplas funções na ordem jurídica brasileira, o que é natural, haja vista sua importância capital e seu vastíssimo âmbito de incidência: (i) fator de legitimação do Estado e do Direito, (ii) norte para a hermenêutica jurídica, diretriz para a ponderação entre interesses colidentes, (iii) fator de limitação de direitos fundamentais, (iv) parâmetro para o controle de validade de atos estatais e particulares, (v) critério para a identificação de direitos fundamentais e (vi) fonte de direitos não enumerados47. Dessa forma, tendo como base o imperativo categórico de Kant48, os presos não podem ser tratados como meros objetos da execução penal, mas sim como verdadeiros sujeitos de direitos, devendo ser rechaçadas quaisquer argumentações utilitaristas ou organicistas49. Dito isso, os princípios informadores da execução penal extraídos da CRFB/88 e da própria dignidade, ante sua eficácia irradiante (dimensão objetiva), servem de base para o legislador, e também como vetores na atuação da autoridade judicial e da autoridade administrativa, além de serem fundamentos da atuação diligente da defesa do preso, buscando-se a limitação do poder punitivo estatal, bem como a restrição de direitos do preso tão somente nos limites da sentença. Além da base normativa constitucional, o princípio da humanidade tem previsão em diversos documentos internacionais de direitos humanos: art. 5º, 2, da CADH (Pacto de São José da Costa Rica, Decreto n. 678/92); art. 10.1 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (Decreto n. 592/92); art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), entre outros. Do princípio da humanidade decorre outro princípio: o da secularização. Explica Salo de Carvalho o termo secularização é utilizado para definir o processo de ruptura da cultura eclesiástica com as doutrinas filosóficas e as instituições jurídico-políticas, que ocorreu gradualmente a partir do século XV, objetivando expurgar da esfera civil o domínio da religião, sobretudo a colonização de ideias realizada pela Igreja Católica. A inspiração secularizadora ganharia relevo em 1781 com a Crítica da Razão Pura, de Kant, atingindo o apogeu com as publicações de Feuerbach (1841) e Nietzsche (1883) – A Essência do Cristianismo e Assim falou Zaratustra, respectivamente50. Dessa forma, a partir da separação entre o direito e valores morais ou religiosos, não se pode impor determinado padrão moral aos presos. Busca- se com esse princípio evitar a atuação dos empreendedores morais51. Porém, infelizmente, o professor LFG já denunciava que presenciamos “os grupos de presión mediáticos,de acordo com Díez Ripollés, conseguindo, com progressiva regularidade, desencadear legislações de âmbito penal”52. Neste ponto, importante lembrar que nossa Constituição de 1988 é eclética, não impondo apenas uma forma de enxergar o mundo e de viver, sendo conciliatória das mais variadas ideologias e pensamentos. Ensina Pedro Lenza53 que, no tocante à dogmática, Pinto Ferreira, valendo-se do critério ideológico e lembrando as lições de Paulino Jacques, identifica tanto a Constituição ortodoxa como a eclética. Eclética seria aquela formada por ideologias conciliatórias, como a brasileira de 1988 ou a da Índia de 1949. Nessa linha, alguns autores aproximam a eclética da compromissória. Nas palavras de Canotilho, em uma sociedade plural e complexa, a Constituição é sempre um produto do pacto entre forças políticas e sociais. Por meio de barganha e de argumentação, de convergência e de diferenças, de cooperação na deliberação mesmo em caso de desacordos persistentes, foi possível chegar, no procedimento constituinte, a um compromisso constitucional ou, se preferirmos, a vários compromissos constitucionais. Roxin54 afirmou que há muitos argumentos a favor para que o legislador moderno, mesmo que esteja legitimado democraticamente, não penalize algo simplesmente porque não gosta. A crítica veemente a um governo, a prática de convicções religiosas forâneas ou um comportamento privado que se afaste da norma civil serão circunstâncias incômodas para uma autoridade que põe especial interesse em cidadãos obedientes, conformistas e facilmente dirigíveis. A história – também, inclusive, a atual – conhece muitos exemplos de uma justiça penal que busca a repressão de um comportamento semelhante. Entretanto, de acordo com o estândar alcançado por nossa civilização ocidental, a penalização de um comportamento necessita, em todo caso, de uma legitimação diferente da simples discricionariedade do legislador. O princípio da secularização é ainda o instrumento teórico para combater a ortopedia social, o panoptismo e o exame, presentes em uma sociedade disciplinar55 como a nossa muitas vezes pretende ser, que tem como um dos objetivos declarados da pena a ressocialização do indivíduo (função preventiva especial positiva)56. Princípio da legalidade O princípio da legalidade no âmbito da execução penal possui previsão nos arts. 3º e 45 da LEP. Por esse princípio, somente condutas previstas em lei poderão ser tipificadas como infrações disciplinares, assim como os deveres do preso são somente aqueles previstos em lei. Além disso, a lei posterior que de qualquer forma beneficie o preso deverá ser aplicada pelo juízo da execução, nos termos do art. 66, I, da LEP. E não poderia ser diferente. O princípio da legalidade possui base constitucional e convencional (art. 5º, XXXIV e XL, da CRFB/88, art. 9º da CADH, art. 9.1 do PIDCP). Como ensina o professor Juarez Cirino dos Santos57, o princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual moderno Estado Democrático de Direito porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais. O significado político do princípio da legalidade é expresso nas fórmulas de Lex praevia, de Lex scripta, de Lex stricta e de Lex certa. Decorre da fórmula latina do nullum crimen, nulla poena sine lege, inaugurada por Feuerbach. DICA DO AUTOR: A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais cobrou em seu último concurso o princípio da normatividade, nomenclatura adotada pelos defensores públicos José Adaumir Arruda da Silva e Arthur Corrêa da Silva Neto58 para abranger leis e regulamentos, baseados no art. 49 da LEP. Cada ente deveria, por meio de lei, tipificar as faltas leves e médias. No entanto, na prática, são normas regulamentares que estabelecem faltas leves e médias, tanto no âmbito do Sistema Penitenciário Federal (Decreto n. 6.049/2007) como em diversos Estados. Há, porém, precedentes exigindo justamente observância à reserva de lei. Nesse sentido: Habeas corpus. Execução da pena. Anotação de falta disciplinar de natureza média. Conduta prevista apenas em manual de procedimentos de secretaria estadual. Ilegalidade. Art. 49 da LEP. Competência do Estado para descrever atos caracterizadores de faltas disciplinares de natureza média e leve. Princípio da reserva legal. Ordem concedida. 1. Para imputação do cometimento de faltas disciplinares de natureza média ou leve, ex vi do art. 49 da Lei de Execuções Penais, é necessária previsão legal estadual. 2. Nesse contexto, se o preso foi surpreendido com suposta bebida alcoólica dentro da cela e essa conduta não está prevista como falta disciplinar de natureza média ou leve pela legislação estadual, conduta descrita como infração disciplinar apenas em regimento interno de secretaria estadual, não há como ser reconhecida a falta (STJ, HC 176.036-SP (2010/0107699-5), Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 13/08/2012). No âmbito da execução penal, como bem ressalta Roig59, o brocardo da legalidade na vertente do nullum crimen, nulla poena sine lege certa impede a criação e aplicação de tipos penais e disciplinares com fórmulas genéricas ou indeterminadas, que possam dar margem ao abusivo arbítrio estatal. Fundando-se nessa premissa, é possível questionar a própria constitucionalidade dos incisos I e III do art. 50, que apontam como faltas graves as condutas de incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina e de possuir indevidamente instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem. Além disso, sob o prisma da legalidade em sua vertente estrita, igualmente criticável o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça ao afirmar que, após a vigência da Lei n. 11.466, de 28 de março de 2007, constitui falta grave a posse de aparelho celular ou de seus componentes, tendo em vista que a ratio essendi da norma é proibir a comunicação entre os presos ou destes com o meio externo. Para aprofundar e encerrar este ponto, importante abordar o conceito de juridicidade. Explica o professor Rafael Carvalho Rezende Oliveira60 que, com a crise da concepção liberal do princípio da legalidade e o advento do pós-positivismo, a atuação administrativa deve ser pautada não apenas pelo cumprimento da lei, mas também pelo respeito aos princípios constitucionais, com o objetivo de efetivar os direitos fundamentais. Princípio da não marginalização (ou não discriminação) Esse princípio decorre dos objetivos fundamentais previstos no art. 3º da CRFB/88; da própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88); do art. 1.1 da CADH; do art. 2.1 do PIDCP; da regra n. 2 de Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos), entre outros. É preciso ter em mente que o recluso encontra-se em posição de extrema vulnerabilidade. O professor Nilo Batista afirma que o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário. O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana, quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela61. Zaffaroni trabalha o conceito de culpabilidade por vulnerabilidade, ante a constatação
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