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ANTROPOLOGIA CULTURAL

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CURSO: PUBLICIDADE
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 1: A ESPECIFICIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
O QUE É ANTROPOLOGIA?
O termo “antropologia” tem sua origem na junção de duas palavras gregas: anthropos (ser
humano / pessoa); logos (razão, pensamento). Trata-se, portanto, de acordo com a sua
etimologia, de um estudo sobre os seres humanos. O significado etimológico, entretanto, é
muito amplo – afinal, muitas ciências estudam aspectos relacionados aos seres humanos. É
comum, portanto, que se restrinja a área de estudos antropológicos a três domínios:
1) Antropologia Física (ou Biológica): o campo de estudos que aborda o ser humano
enquanto entidade biológica. Por exemplo: aspectos da anatomia humana, incluindo a
formação dos ossos, as diferenças entre as estruturas físicas de indivíduos de faixas etárias
diversas ou de sexo biológico masculino e feminino (assim como vemos em investigações
criminais, por exemplo, na identificação de vítimas de homicídio). A Antropologia Física
também estuda os ancestrais dos seres humanos modernos, estabelecendo inclusive uma
comparação entre as diversas espécies que se sucederam no tempo até o surgimento da
nossa espécie, o Homo sapiens, há cerca de 300 mil anos. Para este estudo, é preciso
recorrer a fragmentos de ossos, outros tipos de restos biológicos preservados e até mesmo
rastros como pegadas, bem como um grande conhecimento em disciplinas como Biologia e
Física. Esta área específica da Antropologia Física também é conhecida como
Paleoantropologia (o prefixo “paleo” tem origem em outra palavra grega, palaiós, que
significa “antigo”).
2) Arqueologia: o campo de estudos que aborda as sociedades humanas a partir daquilo
que elas produziram materialmente ao longo dos tempos. Todas as sociedades humanas,
em todas as épocas, utilizaram ferramentas e modificaram o meio no qual viveram – um
conjunto de intervenções que a Arqueologia denomina “cultura material”, uma vez que o ser
humano projeta o seu pensamento em todas as suas realizações materiais. Assim,
independentemente da época ou do tamanho daquela sociedade, é possível fazer
inferências sobre o seu modo de vida, as tecnologias que utilizavam, a forma de
organização social, aspectos ligados à sua vida espiritual, política e econômica a partir
daquilo que produziram e que, com o desaparecimento daqueles indivíduos, foi descartado.
O estudo arqueológico é especialmente importante para que possamos conhecer
sociedades que não deixaram muitos registros escritos, mas também pode auxiliar
muitíssimo para um conhecimento mais detalhado de sociedades que produziram textos –
como se faz, por exemplo, com o Egito Antigo e com o Império Romano, mas também com
a nossa própria sociedade. É possível, tratando de sociedades sem escrita, saber, por
exemplo, que a região amazônica é habitada há milhares de anos, e pode-se saber, através
das escavações e dos estudos arqueológicos em restos de cerâmicas ou de construções de
pedra, bem como restos de ossos de animais consumidos, qual a extensão daquelas
sociedades antigas, como eram suas habitações, que tipo de utensílios produziam e
utilizavam para cozinhar, caçar etc. Por outro lado, tratando de sociedades com escrita na
nossa época, estudos arqueológicos a partir do lixo produzido nas cidades podem informar
muito sobre padrões de consumo, níveis de renda e mesmo sobre a cultura gastronômica
dos diversos segmentos das sociedades urbanas contemporâneas. A palavra “Arqueologia”
também tem relação com um termo grego, archaios, que significa “passado”.
3) Antropologia Cultural: o campo de estudos que aborda as projeções da mente humana
e os sistemas criados por ela. Como o próprio nome indica, a Antropologia Cultural está
interessada em abordar os fenômenos culturais da humanidade, seja através da discussão
e da conceituação do termo “cultura”, seja investigando os mais diversos aspectos culturais
das diferentes sociedades humanas – trata-se de considerar que os seres humanos
integram sistemas de valores. Assim, por exemplo, é possível estudar o significado dos
rituais de um povo indígena na Amazônia, ou a forma como os adolescentes urbanos do
Brasil entendem aspectos relacionados à sexualidade, ou, ainda, compreender como o
racismo ou o machismo possuem uma dimensão simbólica importante em diversas
sociedades ocidentais nos dias de hoje, ou como geram um enorme sofrimento para
grandes segmentos da população.
Antes de nos aprofundarmos neste terceiro campo da Antropologia, é preciso distinguir, de
maneira geral, dois grandes campos do conhecimento científico, de modo que possamos
compreender a situação da disciplina que trataremos ao longo do semestre. Na opinião de
diversos filósofos da ciência, o conhecimento científico pode ser dividido em duas grandes
áreas: as Ciências Naturais e as Ciências Sociais (ou Humanas).
Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, as Ciências Naturais tratam de “fatos simples”,
isto é, fatos que ocorrem com uma certa frequência, cujas causas podem ser verificadas e
podem ser reproduzidas em um ambiente controlado (isto é, em um laboratório). Por
exemplo: pode-se reproduzir em qualquer lugar do mundo (na Rússia ou no Brasil) as
condições ideais de temperatura ou recursos naturais para o desenvolvimento de uma
colônia de um certo tipo de formigas, e os pesquisadores podem observar as mesmas
características na reprodução destes insetos. Do mesmo modo, pode-se observar em
qualquer lugar do mundo (na China ou na África do Sul) um raio luminoso e averiguar suas
propriedades. Biólogos e físicos são cientistas naturais.
Estas características (a recorrência e a reprodutibilidade) determinam outro traço
fundamental das Ciências Naturais: suas teorias podem ser testadas por diferentes
observadores e em locais diferentes – uma vez asseguradas as mesmas condições ideais
dos seus laboratórios, os pesquisadores poderão chegar exatamente aos mesmos
resultados. Há, portanto, um grau de objetividade (ou “certeza”), característica básica deste
tipo de conhecimento.
No caso das Ciências Sociais (ou Humanas), os fatos estudados são “complexos”, e suas
determinações são complicadas. Os fatos analisados por antropólogos, historiadoras,
sociólogos, economistas, psicólogas e cientistas políticos não podem ter suas “causas”
facilmente isoladas ou reproduzidas em condições laboratoriais. Até mesmo eventos
aparentemente simples, como comer um bolo, pode ter várias explicações (ou seja, suas
causas não são claramente identificáveis). É impossível desenvolver uma teoria – e testá-la
– que comprove, cientificamente, a existência de uma motivação única para o ato de comer
um bolo: por isso podemos dizer que os fatos estudados pelas Ciências Sociais têm
determinações complexas.
Tomando apenas a nossa sociedade como exemplo: um bolo comido ao fim de uma
refeição, escreve Roberto Da Matta, é o que chamamos de “sobremesa”, e seu significado é
o de fechar uma refeição (em geral, salgada). Portanto, significa que separamos alimentos
doces e salgados, e consideramos que estes últimos são a parte principal e mais
substancial da alimentação. Já um bolo comido em excesso e no meio da madrugada, às
escondidas, pode ser um sintoma de uma compulsão alimentar. Por sua vez, um bolo
comido em uma festa pode ter significados totalmente diferentes: quando se diz “venha
comer um bolo com fulano”, é sinal de que este ato de comer um bolo tem um significado
ritual, como o da passagem da idade, a entrada na maturidade sexual (caso do aniversário
de 15 anos para as mulheres, segundo o seu significado original), o reconhecimento de uma
ligação de caráter matrimonial entre indivíduos (comer um bolo em uma festa de
casamento). Além desta diversidade de significados, os fatos (ou eventos) que são objeto
das Ciências Sociais não se repetem e não podem ser repetidos em laboratórios. Por
exemplo: uma festa de aniversário jamais pode ser repetida. Podemos reunir as mesmas
pessoas que compareceram ao seu aniversário no ano passado, servir as mesmas
comidas, no mesmo lugar.Mas não será exatamente o mesmo evento. Assim como o
desfile de carnaval de algum ano pode comportar as mesmas escolas de samba, mas o
evento será diferente. Da mesma forma, as eleições presidenciais de 2018 ou a Revolução
Francesa de 1789 não acontecerão novamente. Em outros termos, embora os eventos
possam guardar entre si uma “semelhança estrutural”, cada evento (cada ocasião social
fechada) cria o que se pode chamar de “plano social próprio”, diferente de todos os outros
(ao contrário dos fatos estudados pelas Ciências Naturais, que se repetem).
Esta impossibilidade de repetir de maneira controlada os eventos, assim como a
complexidade de suas determinações, reforça a diferença entre as Ciências Sociais (ou
Humanas) e as Ciências Naturais. Podemos, nas Ciências Sociais, construir narrativas e
explicações sobre os eventos, mas tais narrativas e explicações jamais poderão ser
consideradas totalmente “verdadeiras” – pois jamais saberemos, por exemplo, exatamente
como se sentia uma pessoa diante dos fatos que levaram à Proclamação da República no
Brasil em 1889 (evento estudado pela História, uma Ciência Social), assim como jamais
poderemos testar em um laboratório todas as relações de causa e efeito daquele evento.
Trata-se, portanto, de um domínio científico marcado pela subjetividade.
Outro elemento fundamental para a distinção entre as ciências da natureza e as ciências
humanas é a relação entre o sujeito e o objeto – dois elementos fundamentais para a
existência de qualquer conhecimento científico. O sujeito, em todas as ciências, naturais ou
sociais, é aquele que observa (ou seja, o cientista ou a cientista), enquanto o objeto é
aquele que é observado (ou seja, aquilo que é estudado).
Um representante das Ciências Naturais, como uma bióloga ou uma veterinária, pode, por
exemplo, desenvolver teorias sobre o comportamento dos cães. Pode tentar imaginar e
formular teorias sobre o que sentem os cães diante de determinadas situações. Mas esta
estudiosa poderá sentir o que sentem os cães? Não. Há uma distância irredutível entre
pessoas e cães (por mais que cães sejam animais maravilhosos). Assim, o objeto de estudo
será sempre isso, objeto de estudo, e o sujeito poderá estudá-lo e interpretá-lo livremente.
O que os coloca em contato (sujeito e objeto) é o método científico utilizado. Os cães
continuarão latindo e urinando em postes e hidrantes, independentemente das teorias
formuladas pelas estudiosas – nenhum cão poderá contestar uma teoria formulada por uma
estudiosa.
No caso das Ciências Sociais, o que ocorre é totalmente diferente, pois há uma grande
proximidade entre sujeito e objeto. Neste caso, os estudiosos ou estudiosas observam
fenômenos relacionados aos seus iguais – por mais que se encontrem em sociedades com
culturas totalmente diferentes, sejam grupos indígenas no interior do país, sejam os
franceses da época da Revolução de 1789. Existe entre sujeito e objeto o compartilhamento
da mesma experiência de ser humano, o que interfere na formulação do discurso científico
(das teorias) em dois sentidos:
1) O estudioso ou a estudiosa, como também é humano/a, reconhecerá semelhança ou
diferença no que é o seu objeto de observação, e só vai estudá-lo a partir destes
parâmetros (por exemplo, podemos estudar as estruturas de parentesco em uma
determinada sociedade, muito diferente da nossa, mas o faremos a partir da consciência
das estruturas de parentesco em nossa própria sociedade; podemos estudar a conjuntura
política ou econômica atual, mas tal estudo acaba sendo influenciado pelas concepções
acerca de política ou de economia de quem realiza o estudo – Ciência Política e Economia
são Ciências Sociais, assim como a Antropologia Cultural);
2) O objeto, que também é humano, pode, a depender do seu lugar, opinar ou tomar parte
ativa na construção do discurso científico (das teorias) que falam sobre ele – além de poder
se utilizar das teorias formuladas pelo/a cientista com algum objetivo específico dentro ou
fora de sua própria sociedade (por exemplo, comunidades indígenas ou quilombolas podem
utilizar estudos provenientes da Antropologia para reivindicar seu direito ancestral às terras
nas quais vivem). Assim, ao contrário das Ciências Naturais, nas Ciências Sociais o objeto
de estudo nem sempre está passivo em relação ao conhecimento produzido.
Enfim, o estudo da Antropologia Cultural enquanto uma ciência social implica no
entendimento de que este conhecimento possui características próprias que, longe de
tornarem a área “menos científica”, contribuem para que tenhamos uma visão crítica do
próprio discurso antropológico, que se transforma ao longo do tempo e que possui objetivos
diversos, a depender do momento e do contexto específico no qual é produzido.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO:
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987, p. 17-38.
_________________________________________________________________________
CURSO: PUBLICIDADE
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 2: DETERMINISMOS E RACISMO
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
A NATURALIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS CULTURAIS E SOCIAIS
Considerou-se, durante o século XIX e parte do XX, que o comportamento humano
resultava de respostas automáticas à natureza – os chamados “determinismos”, que podem
ser de ordem biológica ou geográfica. É muito comum, ainda hoje, a crença de que homens
e mulheres possuem habilidades diferentes ou devem desempenhar papéis diferentes na
sociedade, que pessoas negras e brancas possuem capacidades intelectuais ou inclinações
morais diferentes, que indivíduos de origem nórdica são mais inteligentes do que as de
origem africana; que os judeus são avarentos; ou que os portugueses são pouco
inteligentes. Além disso, acredita-se que estas supostas características (a rigor, frutos de
preconceitos) são transmitidas geneticamente, isto é, que fazem parte da natureza.
Este tipo de explicação é amplamente contestada entre os antropólogos
atualmente. Não se encontrou, com todos os avanços da ciência genética, prova alguma de
que comportamentos culturais têm fundo biológico. Qualquer criança, nascida em qualquer
lugar do mundo, poderá absorver totalmente os hábitos, os costumes, a visão de mundo de
qualquer outra comunidade no globo – independentemente do seu sexo biológico ou da cor
da sua pele. Uma criança nascida no interior da África e levada para Ipanema desenvolverá
todos os hábitos culturais de outra criança que foi nascida e criada na Zona Sul do Rio de
Janeiro. Assim como um menino nascido em uma tribo indígena no Xingu e levado para
Londres agirá, de acordo com o seu desenvolvimento, como um típico londrino (ou
vice-versa).
Em 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial e o fim do horror do racismo nazista
(que acreditava na superioridade racial dos brancos europeus, chamados de “arianos”), um
grupo de estudiosos reunidos em Paris, com a organização da Unesco, divulgou um
documento que dizia, entre outras coisas: “Os dados científicos de que dispomos
atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias
constituiriam um fator de importância primordial entre as causas das diferenças que se
manifestam entre as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos
étnicos. Eles nos informam, pelo contrário, que essas diferenças se explicam, antes de
tudo, pela história cultural de cada grupo. Os fatores que tiveram um papel preponderante
na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla
aptidão é o apanágio de todos os seres humanos. Ela constitui, de fato, uma das
características específicas do Homo sapiens.”
A única grande diferença anatômica e fisiológica dentro da espécie humana é o
dimorfismo sexual – ou seja, a divisão biológica entre homens e mulheres. Mesmo assim,
as diferenças de comportamento que ocorrem entre homens e mulheres não são
determinadas biologicamente. A experiência em nossa própria sociedadetem demonstrado
que papéis tradicionalmente atribuídos aos homens podem ser igualmente desempenhados
pelas mulheres – e vice-versa. Quando comparamos a nossa sociedade com outras, vemos
mais nitidamente que todas as diferenciações de comportamentos entre os sexos não têm
nenhuma base biológica. Do ponto de vista dos comportamento humanos, aliás, mais
importante do que o sexo biológico é a noção de gênero, isto é, os papeis que são
atribuídos socialmente e culturalmente a homens e mulheres. Por exemplo, em uma certa
nação indígena, é o homem que fica de repouso após o parto, de resguardo, descansando
alguns dias na rede. Em algumas comunidades, o trabalho pesado como carregar
recipientes cheios de água sobre a cabeça é atributo feminino. O comportamento dos
indivíduos em geral, depende do aprendizado – processo também chamado de
“endoculturação” –, não guardando relação direta com aspectos biológicos.
O geógrafo alemão Friedrich Ratzel, em sua obra Antropogeografia (1882),
expunha um outro tipo de determinismo, o geográfico, ideia segundo a qual o meio físico
(ou seja, o mundo natural) no qual o homem vive define tanto o seu desenvolvimento
biológico quanto as suas características psicológicas e sociais. Valorizando a ideia de
“espaço”, via que a evolução das espécies – e a luta entre elas – se dava por conta do
domínio do espaço físico, do meio ambiente, dos recursos naturais. Da mesma forma, as
populações humanas se organizariam por conta do domínio de um território, e apenas o
mais forte (ou seja, o melhor adaptado à sobrevivência naquele meio) sobreviveria.
Acreditava, portanto, que um sinal de decadência de uma determinada sociedade era a
perda do seu território – esta ideia está plenamente de acordo com a ideologia
neocolonialista da Europa daquela época, que estava partilhando a África (a Conferência de
Berlim, finalizada em 1885, dividia o território africano entre as grandes potências da época,
como a Alemanha, a Inglaterra e a França). Suas ideias atendiam, portanto, o
expansionismo europeu em geral e alemão em particular – e ainda dariam sustentação para
a ideologia nazista no século XX, a noção (que a ciência provaria falsa) da superioridade da
raça ariana, destinada a conquistar e dominar todo o mundo.
Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, a percepção de que existe algo além do
que é determinado pela natureza, ao contrário do que supunham os determinismos
biológico (tanto o racismo quanto o machismo) e geográfico, ficou mais evidente a partir do
trabalho do sociólogo francês Émile Durkheim, As regras do método sociológico (1895):
nesta obra, Durkheim define que os “fatos sociais” são tão reais quanto os elementos
fisicamente concretos – portanto, elementos absolutamente dissociados da natureza
(porque sociais ou culturais, criados pelos seres humanos) ocupam o mesmo plano de
realidade que uma pedra, uma árvore ou uma mesa. Ou seja: assim como o sangue é uma
realidade, a religião ou os laços de parentesco também são reais – embora pertencentes a
outro plano, o da cultura ou da sociedade, e devem ser estudados como pertencentes a
estes planos, e não ao plano da natureza. Assim, um aspecto do plano sociocultural, como
a crença em entidades sobrenaturais, não pode ser explicado pela “raça”, pelo sexo
biológico ou pelo ambiente natural no qual um povo se desenvolveu, mas a partir de
elementos do próprio plano sociocultural.
O antropólogo Roque B. Laraia demonstra, através de alguns exemplos, que a
natureza não determina a resposta dos seres humanos, revelando como a Antropologia,
atualmente, descarta os determinismos biológico e geográfico. Ele utiliza como argumento a
comparação entre povos que vivem em regiões muito parecidas em relação ao clima, ao
tipo de vegetação e à fauna, mas que possuem culturas diferentes. Os inuítes (que também
conhecemos como “esquimós”), localizados no extremo norte da América do Norte, se
abrigam do frio nos iglus, construções feitas de blocos de gelo e forradas no interior com
peles de animais. Os lapões, que vivem na Europa em ambiente muito parecido, constroem
tendas com peles de renas, que acabam cobertas pela neve. Os inuítes, quando precisam
se mudar, levam o estritamente necessário, e rapidamente constroem outra habitação. Já
os lapões enfrentam um duro trabalho para desmontar a tenda, seca-la e leva-la a outro
local. Os inuítes se alimentam a partir da caça e da pesca; os lapões são criadores de
animais, especialmente renas. São, portanto, povos que vivem em situações ambientais
praticamente idênticas, mas que desenvolveram culturas significativamente diferentes. Do
mesmo modo, tribos indígenas no Brasil que vivem em espaços muito parecidos (e são, às
vezes, vizinhos e mesmo próximos do ponto de vista biológico ou genético) apresentam
culturas absolutamente diversas (hábitos alimentares, sistemas de crenças, línguas,
princípios morais...).
A Antropologia, portanto, a partir do estudo das mais diversas culturas humanas,
tem suficientes provas para demonstrar que que as diferenças culturais e sociais entre os
seres humanos não podem ser explicadas pelas suas diferenças genéticas e biológicas,
incluindo a cor da pele ou o sexo biológico, tampouco pelas condições impostas pelo meio
ambiente, como um clima mais ou menos frio, a presença ou ausência de determinados
recursos naturais. As diferenças entre os grupos sociais e entre as culturas, incluindo aí os
princípios morais ou os comportamentos, só podem ser compreendidas através do estudo
das sociedades e das culturas, da sua formação e da sua transformação.
O racismo: origens e transformações
O racismo é uma visão determinista – enquadrada especialmente no determinismo
biológico – que possui uma longa presença na nossa sociedade, passando por
transformações ao longo dos séculos. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, a
palavra “raça” tem origem em um termo da língua latina da Antiguidade, ratio, que significa
“categoria” ou “espécie”. Originalmente, a palavra era utilizada para fazer a distinção entre
tipos de elementos: diferentes plantas, diferentes objetos, diferentes pessoas. O termo
passou a ser utilizado sistematicamente para distinguir categorias de pessoas, de forma
hierárquica, na Idade Média (entre os séculos V e XV). Especialmente na França medieval,
o termo era utilizado para diferenciar indivíduos que descendiam dos nativos (os gauleses)
e dos conquistadores (os francos). Assim, descendentes dos gauleses e dos francos eram
considerados pertencentes a “raças” diferentes, e possuíam até mesmo direitos diferentes,
sendo os francos considerados superiores, e assim podendo governar e ser isentos de
certos impostos. Não havia, naquele momento, uma diferenciação por cor da pele, mas
fazia-se uma diferenciação a partir da filiação de cada indivíduo.
Este tipo de diferenciação entre grupos humanos foi utilizada posteriormente pelos
europeus para comparar e hierarquizar os diversos grupos humanos com os quais eles
entraram em contato ao longo da Idade Média. Com as viagens para a Ásia e a África ao
longo daquele período, os europeus foram buscar explicações para as diferenças culturais e
de aparência física entre eles, asiáticos e africanos, construindo a partir daí diversas
“raças”. E a explicação foi encontrada nos pilares do cristianismo, como nas histórias
bíblicas de Noé e dos Reis Magos. Assim, por exemplo, os cristãos europeus da Idade
Média entenderam que os descendentes do amaldiçoado Cam, filho de Noé, dariam início à
“raça” africana; ou que um dos reis magos seria negro, por representar a “raça” africana. De
todo modo, justificava-se de forma religiosa as diferenças e, no final da Idade Média e início
da Idade Moderna (justamente quando os portugueses chegavam ao Brasil pela primeira
vez), apoiava-se o movimento de escravização dos africanos por parte dos Europeus.
Esta explicação racial pela religião perdeu força entre os séculos XVII e XVIII,
quando se desenvolveu na Europa o pensamento científico e a racionalidade iluminista. A
partir de então, aquelas diferenças queeram explicadas pela religião precisaram de uma
nova roupagem. Assim, um dos grandes nomes do pensamento científico do século XVIII, o
cientista sueco Carl Lineu, desenvolveu uma fórmula para classificar todos os seres vivos:
reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie. Quando esta fórmula era aplicada aos
seres humanos, entretanto, os cientistas europeus ficavam insatisfeitos, pois eram forçados
a considerar toda a humanidade como pertencente a um mesmo grupo, a espécie humana.
Lineu, então, criou mais uma divisão biológica: a raça. Assim, a espécie humana seria
dividida em três raças: a branca (europeia), a amarela (asiática e indígena) e a negra
(africana). No século seguinte, o XIX, a cor da pele ganhou outros elementos para explicar
as diferenças, como o formato do crânio, a forma dos lábios e do nariz. Além disso, os
cientistas da época (brancos), também atribuíram às características físicas qualidades
morais e intelectuais: assim, os brancos seriam mais inteligentes, bonitos, honestos,
criativos, enquanto os negros e amarelos seriam mais estúpidos, feios, desonestos,
violentos etc. Este foi o chamado “racismo científico”, que dava ares de verdade científica a
velhos preconceitos nutridos pelos brancos em relação aos povos não brancos, justificando
a colonização, a exploração, a escravização e mesmo o extermínio de outros grupos.
O desenvolvimento do conhecimento científico no século XX, principalmente os
avanços na ciência genética e o descobrimento do DNA, acabou por comprovar que toda
aquela ciência racista dos séculos XVIII e XIX era, na verdade, uma pseudociência – isto é,
uma falsa ciência, que não se apoiava em critérios científicos, mas estava fundamentada
em um discurso parecido com a ciência para justificar relações de poder e de dominação.
Do ponto de vista do conhecimento genético humano, as “raças” não são um critério válido
para a diferenciação de grupos humanos – um europeu branco pode ser mais próximo, do
ponto de vista biológico, de um africano negro do que um outro africano negro, por exemplo.
A raça, como vimos, é uma construção social muito antiga, que demarca diferenças de
tratamento dos grupos dentro de uma sociedade. Ainda hoje, é comum que indivíduos e
grupos atribuam a características físicas – como a cor da pele – características
socioculturais, como capacidade intelectual e honestidade, atitude que caracteriza o
racismo.
O desmascaramento do racismo “científico”, entretanto, não foi suficiente para
eliminar as práticas racistas, ainda hoje muito presentes em diversos tipos de manifestação,
conformando aquilo que os especialistas denominam “racismo estrutural”, ou seja, a
discriminação racial que fica evidente em estatísticas como as da violência, do desemprego,
da representatividade na mídia, do acesso à educação, à saúde e aos serviços públicos em
geral, problemas graves de muitas sociedades, como a brasileira.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DAS SEGUINTES PUBLICAÇÕES:
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987, p. 39-47.
LARAIA, Roque B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2006, p. 17-24.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo,
identidade e etnia. Niterói: EDUFF, 2004. (
https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racism
o-dentidade-e-etnia.pdf )
_________________________________________________________________________
CURSO: PUBLICIDADE
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 3: EVOLUCIONISMO E FUNCIONALISMO
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
AS PRIMEIRAS TRADIÇÕES ANTROPOLÓGICAS
https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
As primeiras tentativas de explicar de maneira científica as diferenças entre os povos
humanos, incluindo suas culturas, estavam relacionadas com os interesses políticos das
nações centrais do sistema capitalista no século XIX. Assim foi com os determinismos
geográfico e biológico – que, por exemplo, consideravam os brancos europeus superiores
às populações africanas e asiáticas, o que oferecia uma justificativa pseudocientífica para a
expansão colonial sobre aqueles povos – e assim seria também com o desenvolvimento
inicial da própria Antropologia, que surgiu como disciplina na Europa justamente na
segunda metade do século XIX.
O antropólogo Roberto Da Matta, que escreveu sobre o desenvolvimento da disciplina
antropológica, chamou atenção para um aspecto interessante: o estudo das diferenças
entre os homens, a Antropologia, surgiu dos próprios desdobramentos da sociedade
europeia colonialista. As “teorias da diferença”, que mais tarde ganhariam atenção dos
antropólogos, foram formuladas, primordialmente, para legitimar a expansão colonial dos
europeus a partir do século XVI, quando as potências da época, como Portugal, Espanha e
França estavam enviando caravelas e naus para colonizar regiões distantes, como as
Américas, partes da África e da Ásia. Naquela época, os europeus entravam em contato
com populações e culturas muito variadas – os europeus ficaram especialmente chocados
com a prática da antropofagia (ou canibalismo) entre os indígenas brasileiros, e uma das
explicações para a diversidade de hábitos entre os grupos humanos seria a influência
“demoníaca”, o que estava de acordo com a mentalidade religiosa cristã dos europeus de
então.
Entretanto, no espaço onde se desenvolvem estas teorias, na mesma Europa, alguns
europeus acabaram por desenvolver também discursos libertários, defendendo ideias como
“liberdade” e “igualdade”, que também justificavam as diferenças, mas sob outra ótica, a do
respeito à diversidade – o francês Michel de Montaigne (1533-1592), que viveu no século
XVI, era uma das vozes que defendiam que os indígenas ou quaisquer outros povos que
possuíam costumes diferentes dos europeus não deveriam ser considerados inferiores, mas
simplesmente diferentes, rejeitando a postura de superioridade moral (que mais tarde
chamaríamos de “etnocêntrica”) dos europeus em relação aos outros povos. Esta
concepção enunciada por Montaigne também está na base da Antropologia moderna, que
tenta fazer uma reflexão sobre nossa própria sociedade a partir dos “outros”. Entretanto,
para chegarmos a esta concepção atual da Antropologia, devemos notar dois movimentos
principais dentro desta disciplina acadêmica. Estes dois movimentos estão associados a
alguns dos seus principais expoentes: os britânicos James Frazer (1845-1941) e Edward
Tylor (1832-1917), o norte-americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), e o polonês
naturalizado inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942).
O Evolucionismo, que pode ser representado pelos trabalhos de Frazer, Tylor e Morgan,
corresponderá a uma visão do mundo do colonialismo britânico vitoriano (ou seja, da época
da Rainha Vitória – 1837-1901). Era uma época de expansionismo, e aquela sociedade se
julgava superior a todas as outras, pelo desenvolvimento econômico, político e tecnológico
que alcançara. Esta escola de pensamento antropológico será dominante entre as décadas
de 1870 e 1920, perdendo muita força depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
O Funcionalismo, por sua vez, pode ser representado pelo trabalho revolucionário de
Bronislaw Malinowski, e resultará de uma perspectiva mais relativista – ou seja, uma
interpretação antropológica segundo a qual cada sociedade terá os seus próprios padrões
culturais internos, que não devem ser julgados pelos valores de qualquer outra sociedade.
Esta visão antropológica começou a se difundir na década de 1920 e alguns dos seus
princípios fundamentais ainda encontram espaço na reflexão antropológicaatual.
O Evolucionismo
O estudo da Antropologia evolucionista, nos moldes de Frazer, Tylor e Morgan, implicava
em primeiro lugar em isolar dados e classificá-los. Estes estudiosos faziam o inventário do
maior número de “fatos etnográficos” possível, do maior número possível de sociedades,
ordenando-os de acordo com uma escala evolutiva, ao final da qual estava, obviamente, a
sociedade ocidental capitalista (ou seja, a sociedade dos próprios antropólogos). Os fatos
etnográficos eram qualquer hábito ou costume de uma sociedade que, na visão dos
antropólogos, seria correspondente a hábitos ou costumes existentes nas outras
sociedades – por exemplo, ao se depararem com uma cultura totalmente diferente da
europeia, procurariam naquela cultura o que poderia ser considerado a sua religião (mesmo
sem se darem conta de que a ideia de “religião” é própria da cultura europeia, nem sempre
havendo correspondência automática entre outras sociedades).
Deste modo, eles separavam o fato etnográfico do seu contexto, e comparavam as mais
diversas sociedades através destes elementos isolados, deduzindo daí o nível de evolução
das mesmas, estabelecendo uma escala hierárquica e evolutiva, indo das menos evoluídas
às mais evoluídas – estas últimas eram, sempre, as culturas dos próprios antropólogos, isto
é, a sociedade europeia (ou norte-americana), branca e cristã. Assim, por exemplo,
descrevia-se apenas aquilo que consideravam ser a “religião” de um grupo, comparando-a
com o que seriam as religiões de outros grupos (por isso a Antropologia evolucionista era
chamada na época de “método comparativo”). Mas não se comparava aquele sistema de
crenças com todo o conjunto da própria sociedade observada, de modo a compreender qual
o lugar e qual o papel daquele conjunto de hábitos dentro daquela mesma sociedade (o que
poderia ser bem diferente de outra sociedade).
A Antropologia evolucionista considerava tudo o que era diferente ou “estranho” à
sociedade do observador (do antropólogo evolucionista) como um momento anterior da
evolução de sua própria sociedade. Assim, tudo o que é novo ou desconhecido é
apresentado como se fosse o resquício de uma etapa no desenvolvimento da sociedade do
próprio antropólogo. Assim, a tendência era classificar tudo o que é diferente como
“sobrevivência” – ou seja, sem nenhuma relação com o presente, mas como uma prova de
um momento passado, uma forma de se organizar ou de se relacionar que seria típica do
passado das sociedades atualmente “evoluídas”.
Estes antropólogos não realizavam os chamados “trabalhos de campo”, mas praticavam
aquilo que ficou conhecido como “antropologia de gabinete”, uma vez que não deixavam
seus postos universitários para conviver com as sociedades distantes que estudavam. Eles
não precisavam, de acordo com a concepção antropológica que defendiam, conhecer o
contexto sociocultural de uma sociedade específica para compreender seus códigos e suas
regras culturais. Bastava-lhes colher algum relato sobre algum fato etnográfico específico,
classificá-lo e compará-lo a outros, estabelecendo uma escala evolutiva – sempre em
direção à sua própria sociedade. Outro detalhe importante: os responsáveis por colher as
informações sobre as culturas que os antropólogos estudariam eram, na maior parte das
vezes, funcionários coloniais que viviam em regiões distantes, convivendo com populações
nativas colonizadas pelas quais nutriam grandes preconceitos.
Assim, portanto, enquanto os políticos ingleses, alemães e franceses falavam em se
expandir politicamente e economicamente, anexando todos os espaços possíveis à sua
influência e ao seu domínio territorial, os estudiosos evolucionistas acreditavam poder
classificar todas as diferenças culturais daquele momento em uma única escala evolutiva,
que consideraria as sociedades europeias como as mais “evoluídas”.
Um dos críticos deste tipo de postura foi o antropólogo alemão – naturalizado americano –
Franz Boas (1858-1949), um dos fundadores da chamada escola culturalista da
Antropologia. Segundo Boas, que chamava sua modalidade antropológica de “método
histórico”, em oposição ao “método comparativo”, os elementos de uma cultura só poderiam
ser compreendidos se fossem estudados dentro do sistema cultural ao qual pertenciam,
como nasceram e como se desenvolveram em cada contexto específico – ao contrário do
que procurava fazer o Evolucionismo.
O Funcionalismo
Como vimos, a Antropologia funcionalista está relacionada prioritariamente ao trabalho de
Bronislaw Malinowski (que, ao contrário dos evolucionistas, esteve em “trabalho de
campo”). Trata-se, em parte, de uma reação à ideia evolucionista de “sobrevivência” – ou
seja, ele rejeitava a noção de que um aspecto cultural “estranho” seria um “resquício” do
passado, símbolo de uma determinada etapa na evolução da sociedade. Malinowski
acreditava que estas formas de se relacionar ou de se organizar que pareciam ser muito
estranhas, mesmo quando pareciam remeter a formas culturais do passado, teriam uma
função no presente – daí o nome da modalidade antropológica que desenvolveu, o
Funcionalismo.
Malinowski chegou às suas conclusões após um estudo que desenvolveu entre os anos de
1915 e 1918, quando viveu entre os nativos das Ilhas Trobriand, na Nova Guiné. O polonês
estava especialmente interessado em compreender o ritual denominado “kula”, que era um
ritual de troca de presentes entre os nativos do arquipélago. Ao longo dos anos, da
convivência, das observações e das descrições que fez do ritual, acabou por compreender
que não se tratava de um simples ritual de troca de presentes, mas de um sistema
complexo que abrangia fenômenos culturais de comunicação, alianças familiares e políticas,
trocas econômicas e reforço de status social. Deste seu trabalho de campo surgiu um livro,
Os Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado em 1922, considerado um clássico na
literatura antropológica. O trabalho antropológico desenvolvido por Malinowski trazia três
inovações centrais: em primeiro lugar, seu objetivo não era provar a “superioridade” cultural
de um determinado grupo, mas compreender cientificamente a cultura observada; em
segundo lugar, havia a necessidade de incorporação do observador (o antropólogo) ao
grupo que seria estudado; em terceiro lugar, dividia o trabalho antropológico em duas
etapas: 1) observação e coleta de dados, seja através de descrições daquilo que é
observado, gravação, fotografias (etapa que também era chamada de “etnografia”); 2)
análise dos dados colhidos.
Para os funcionalistas, que acabaram por tomar o trabalho de Malinowski como modelo, as
sociedades devem ser estudadas como um todo integrado, onde tudo tem o seu papel, a
sua função – e não através da observação, isoladamente, de “fatos etnográficos”
descontextualizados. Assim, inclusive elementos como festas que remetem a tradições
antigas, têm um papel bem prático na vida atual das sociedades – o que só poderia ser
percebido com o trabalho de campo, compreendendo a integração daquele elemento com
os outros elementos da cultura.
Entretanto, a visão funcionalista também implicava em alguns problemas. A ideia, por
exemplo, de que todas as culturas tendem ao equilíbrio, já que tudo possuía uma função
específica em um sistema cultural integrado, pressupunha que todos os conflitos e todas as
mudanças eram “anomalias”, ou seja, algo a ser superado em busca do reequilíbrio do todo.
Era, portanto, uma visão que tendia a ser conservadora, isto é, que considerava mudanças
culturais como algo essencialmente negativo. Deste modo, tudo em uma determinada
sociedade ocorre por um motivo, e nada está errado ou deslocado. Este tipo de visão, se
radicalizada, tende a um equívoco: considerar que tudo está equilibrado. Segundo Da
Matta, há inclusive instituições sociais cujo papel é provocar o desequilíbrio dentro de um
dado sistema cultural, como os sistemas educacionais e científicos, que podem criticar as
forças tradicionais e forçar transformações em uma cultura ou sociedade. Por exemplo:
tradicionalmente, na sociedadebrasileira, as mulheres eram vistas como indivíduos que
deveriam estar restritos ao ambiente doméstico, cumprindo funções domésticas e
reprodutivas sob a autoridade de indivíduos do gênero masculino, como seus pais e seus
maridos – o que dificultaria, inclusive, a integração das mulheres no mercado de trabalho,
bem como justificava diversos tipos de violência de gênero. Este aspecto, que chamamos
de sexismo ou machismo, era tradicionalmente parte da cultura brasileira, de um modo
geral (elemento, aliás, ainda não superado). Se adotássemos uma visão funcionalista
radical, teríamos que considerar que o machismo é algo totalmente integrado à cultura
brasileira e que a mudança de tal aspecto seria algo negativo, que poderia desestabilizar a
sociedade como um todo. Ora, o próprio sistema educacional brasileiro, no qual
aprendemos que homens e mulheres devem ter direitos iguais, está a serviço – ou deveria
estar – da mudança daquele aspecto cultural. Assim, o desequilíbrio e a mudança em uma
cultura não pode ser visto como algo necessariamente negativo.
Entretanto, segue Da Matta, a “Revolução Funcionalista”, como denomina o impacto
intelectual do trabalho de Malinowski, desloca o centro explicativo da Antropologia da
sociedade que observa para a sociedade observada. Ou seja, se o Evolucionismo pregava
a adequação de todas as diferenças sociais à sua sociedade (ou aos seus padrões
culturais), o Funcionalismo considera que a sociedade observada deve ser explicada de
acordo com os seus próprios padrões – os elementos de uma dada cultura só poderiam ser
explicados de acordo com a função que desempenham dentro do seu próprio sistema, sem
levar em consideração as concepções culturais do próprio observador.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO:
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987, p. 86-106.
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CURSO: PUBLICIDADE
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 4: HISTÓRIA DO CONCEITO DE CULTURA
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
O QUE É CULTURA?
O termo “cultura”, tão presente em nossos dias e com diversos significados, é central
nos estudos antropológicos. Para compreender seus diferentes sentidos, é necessário
observar a origem e os usos dados à palavra ao longo do tempo. Sua origem é latina,
datando de mais de 2 mil anos atrás, uma derivação de cultum, palavra do latim que
designa o ato de cuidar da terra para obter desta os seus vegetais – o que no português
moderno chamamos de “cultivar”. Trabalho rural, portanto, em sua origem.
Por volta do século XV, na Europa, diversos estudiosos passaram a recuperar
aspectos da antiguidade greco-romana, havendo uma verdadeira explosão dos estudos
sobre a língua latina. Este momento, conhecido como Renascimento, que também ficaria
conhecido pelo trabalho artístico de pessoas extraordinárias como Leonardo da Vinci e
Michelangelo, assistiu a uma espécie de tentativa de retorno aos valores da Antiguidade,
incluindo a recuperação do vocabulário antigo, que seria adaptado e utilizado para
descrever diversos aspectos do mundo. É neste momento, por exemplo, que são criados
termos como agricultura, assim como várias outras ligadas ao termo original, sempre
relacionadas à mesma acepção de trabalho rural: vinicultura, avicultura, apicultura,
floricultura, monocultura...
O termo também foi apropriado ao longo da Época Moderna (séculos XVI-XVIII) com
um sentido metafórico, para designar o cultivo de coisas do “espírito”, ou seja, a “cultura das
letras”, “cultura das artes” etc. Este uso metafórico dizia respeito, portanto, a um conjunto
restrito de elementos ligados àquilo que conhecemos atualmente como “cultura erudita” ou
“alta cultura”. Quando, por exemplo, dizemos que pretendemos fazer um “programa cultural”
no domingo, com uma visita ao museu ou assistir um concerto de música no teatro,
estamos usando uma definição de “cultura” similar àquele uso metafórico, já que estaríamos
“cultivando” os frutos do intelecto.
Foi apenas no século XIX que uma nova concepção de “cultura” começou a se
formar. Até aquele período, a palavra cultura na língua alemã, kultur, era utilizada pelos
intelectuais para definir aqueles elementos que cultivariam o “espírito” (ou intelecto), como o
teatro, a música, a pintura, a escultura... Era, portanto, uma definição elitista do que seria
cultura, uma vez que tais elementos seriam apenas aqueles aos quais apenas as classes
mais altas teriam acesso. Elementos populares, como a música de rua, as festas populares,
a arte produzida por artesãos pobres eram todas designadas por um outro termo: “folclore”.
Portanto, de acordo com aquela designação, “cultura” eram os elementos que definiam as
classes ricas, enquanto “folclore” eram os elementos que caracterizavam os setores pobres.
Quando ouvimos, atualmente, que música clássica é cultura e que funk não é cultura,
estamos ouvindo uma definição de cultura que é elitista, tal como aquela do século XIX.
Na França, também no século XIX, utilizava-se o termo civilization (“civilização”, em
português) para designar a identidade de uma nação através das suas realizações
materiais. Por exemplo, as pirâmides construídas pelos faraós faziam parte da civilização
egípcia. A arte renascentista de Leonardo da Vinci e Michelangelo seriam provas da
civilização italiana.
Estes dois termos e estas duas noções – kultur e civilization – foram fundidos no
século XIX pelo antropólogo evolucionista inglês Edward Tylor, que, em um livro de 1871,
definiu pela primeira vez, em termos antropológicos, o conceito de “cultura”. Segundo o
antropólogo, naquela que pode ser considerada, portanto, a primeira definição antropológica
(e científica) do termo, cultura, “tomado em seu amplo sentido etnográfico [ou seja,
antropológico] é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro
de uma sociedade”.
Para este pensador inglês, portanto, era fundamental notar o caráter adquirido da
cultura, que se contrapunha fortemente à ideia de características herdadas biologicamente
– cultura era tudo o que os homens aprendiam. Esta percepção já demonstrava que a
Antropologia, mesmo que dentro de uma visão evolucionista, já rejeitava aquelas
concepções deterministas que associavam a cultura a aspectos da natureza (tanto da
biologia quanto do meio geográfico natural).
A definição de Tylor, entretanto, já vinha se formando no pensamento europeu pelo
menos dois séculos antes dele – embora não se utilizasse o termo cultura. O pensador
inglês John Locke, por exemplo, em 1690, escreveu que a mente humana é originalmente
uma “caixa vazia”, que vai sendo preenchida à medida em que nos desenvolvemos, com a
convivência com outros membros da comunidade. Os homens teriam, segundo Locke, uma
capacidade ilimitada de adquirir conhecimento. Trata-se daquilo que os antropólogos
chamam hoje de endoculturação, o ato de colocar para dentro (endus, do grego “para
dentro”) a cultura. Portanto, desde o século XVII, pelo menos, já estava posta a ideia de que
não há princípios morais naturais, impressos biologicamente nos homens. Segundo o
próprio Locke, as noções do que é certo ou errado variam consideravelmente de uma “tribo”
para outra – ou seja, depende do aprendizado em cada contexto específico.
Pensadores do século XVIII, como o filósofo iluminista genebrino Jean-Jacques
Rousseau, acreditavam que o homem era o que ele aprendia a ser – daí a grande
importância que atribuíam à educação. Rousseau, um pensador muito importante para os
rumos políticos do século XVIII mas também um teórico ainda hoje muito valorizado no
campo da educação, chegou a acreditar que até mesmo os outros grandes primatas (os
orangotangos, os chimpanzés e os gorilas) poderiam ser “humanizados” caso fossem
submetidos a um processo adequado de aprendizagem.
Portanto, quando o britânico Edward Tylor,em 1871, definiu cultura em termos
antropológicos, já existia uma base no pensamento europeu para aceitar que esta era todo
o comportamento aprendido pelos seres humanos. A definição de Tylor está no seu livro
Cultura Primitiva, publicado naquele ano. Embora a cultura não fosse transmitida
geneticamente, mas sim aprendida, haveria, de acordo com sua reflexão, regras universais
no seu desenvolvimento, podendo, portanto, haver um estudo sistemático da mesma.
Podemos, assim, perceber que Tylor se enquadra na escola antropológica que conhecemos
como evolucionista – uma vez que acreditava que todas as culturas se desenvolveriam da
mesma forma, na direção da menos “evoluída” para a mais “evoluída”, o que foi, como
vimos, objeto de grandes críticas posteriormente.
Outro elemento importante na definição de Tylor é a consideração da cultura como
um fenômeno natural. Ao construir o conceito deste modo, ele se defrontava, naquela
época, com um sentimento religioso ainda muito presente no pensamento acadêmico e na
opinião pública em geral. Por conta da noção teológica judaico-cristã de “livre arbítrio”,
extremamente popular no século XIX, que colocava as ações humanas independentes de
quaisquer determinações que não fossem as próprias vontades, não se podia aceitar que o
comportamento humano obedecesse a certas regras. A opinião geral era que as ações
humanas eram guiadas por desígnios exteriores à natureza – por exemplo, a ideia de que o
ser humano possui uma origem e um “destino” sagrados, sendo livres para escolher entre o
“bem” e o “mal”.
Ao contrário desta visão religiosa e criando uma definição científica para os
comportamentos humanos mais diversos, Tylor acreditava na existência de uma natureza
humana, e esta poderia ser estudada através da comparação dos povos e dos seus níveis
de desenvolvimento cultural (ou “graus de civilização”). Diferente da concepção que
predominaria na Antropologia tempos mais tarde, as diferenças entre as culturas não
significavam, de fato, uma diversidade entre as sociedades humanas, mas diferentes
estágios em uma única e grande cultura universal. Tylor, como outros antropólogos
evolucionistas, acreditava que existia uma unidade básica entre os homens, e que as
diferenças se explicavam por uma diferença no estágio de evolução cultural (gradações
entre a selvageria, o barbarismo e a civilização). A tarefa dos antropólogos, segundo esta
visão, seria colocar todas as sociedades humanas dentro desta escala, em cujo topo
estaria, como já vimos, a própria sociedade europeia, branca e cristã.
Vimos que uma crítica bem fundamentada em relação a esta perspectiva
evolucionista foi feita no final do século XIX por Franz Boas, antropólogo alemão
estabelecido nos Estados Unidos, crítica que seria aprofundada no início do século XX
através do trabalho de Bronislaw Malinowski. Estas críticas defendiam que cada povo
possuía sua própria lógica no desenvolvimento da cultura, e não havia uma única regra
geral para o surgimento e a transformação cultural. Abria-se a possibilidade de uma
abordagem antropológica multilinear (ou seja, a cultura se desenvolve de maneira múltipla,
e não em uma única direção).
Alfred Kroeber, antropólogo norte-americano discípulo de Franz Boas também
contribuiu para o desenvolvimento do conceito de cultura na Antropologia no século XX.
Segundo Laraia, a grande preocupação deste estudioso foi estabelecer de forma nítida a
distância entre o orgânico (isto é, biológico) e o cultural no estudo sobre os seres humanos.
Kroeber, que publicou em 1917 o artigo O Superorgânico, acreditava que, sem dúvida, os
seres humanos têm as mesmas necessidades naturais – comer, dormir, relações sexuais...
Entretanto, a maneira de satisfazer tais necessidades é distinta, varia de acordo com a
cultura. Para Kroeber, todas as ações humanas dependem do aprendizado. Por isso o título
do seu artigo é O Superorgânico, pois o ser humano estaria acima (super, que significa
“sobre”) das suas determinações biológicas, ao contrário dos outros animais.
O autor tratou da existência do ser humano enquanto uma espécie biológica;
escreveu sobre o seu estabelecimento no mundo, em meio a outras espécies, através de
um tipo de desenvolvimento inteiramente diferente das demais espécies: enquanto os
outros animais tiveram que aperfeiçoar, através de sucessivas gerações, o seu aparato
biológico (como o urso polar, que desenvolveu uma densa pelagem branca, uma grossa
camada de gordura e dentes longos e fortes para caçar animais de pele resistente), a
espécie humana permaneceu sem alterações significativas em suas ferramentas corporais.
Ao contrário: o animal humano inclusive perdeu algumas destas ferramentas (quando
comparado com os seus ancestrais, o ser humano moderno perdeu, ao longo do processo
evolutivo, os dentes caninos muito desenvolvidos que aqueles possuíam, pelos densos que
cobriam todo o corpo, olfato supersensível para detectar possíveis presas ou predadores
etc).
O ser humano, ao contrário dos outros animais, desenvolveu um equipamento
extracorpóreo capaz de ampliar sua força corporal, sua velocidade etc. O homem é capaz
de construir ferramentas. O humano moderno, que é originário de regiões quentes na África,
pôde se adaptar às mais diversas regiões do globo sem que para isso precisasse
desenvolver equipamentos biológicos: ele pode construir um abrigo para protegê-lo do sol
ou da chuva, costurar um casaco de pele para se proteger do frio, produzir calçados para
caminhar por regiões pedregosas, usar lanças ou flechas para abater suas presas ou se
proteger dos predadores. O organismo, entretanto, pôde permanecer inalterado em todas
essas circunstâncias. Portanto, segundo Kroeber, o homem libertou-se do orgânico, sendo a
única espécie capaz de se adaptar a qualquer região do globo terrestre – fato único entre os
seres vivos.
Entretanto, ao libertar-se do orgânico (ou seja, das limitações impostas pela
natureza), o homem perdeu a capacidade (presente nos outros animais) de agir de acordo
com o instinto, repetindo, a partir de características herdadas biologicamente, os
antepassados. O homem ficou totalmente dependente do processo de aprendizado. Um cão
ou um gato recém-nascido e retirado dos seus semelhantes, agirá, quando adulto, como um
cão ou como um gato, latindo, miando, caçando, demarcando o território com sua urina...
Todos estes comportamentos estão impressos em suas heranças biológicas. Um ser
humano, ao contrário, depende de um longo processo de aprendizado com os demais
indivíduos da sua espécie, até mesmo para dar vazão às suas necessidades biológicas.
Este ponto defendido por Kroeber entrava diretamente em choque com o senso-comum,
que acreditava (e ainda acredita) na transmissão genética de qualidades intelectuais e
morais (negativas e positivas).
Aquela ideia combatida por Kroeber, segundo a qual é possível herdar características
morais (ou culturais, diríamos) biologicamente, havia se difundido muito a partir das teorias
do criminalista italiano do século XIX Cesare Lombroso. Ele acreditava que a tendência
inata para o crime poderia ser percebida em determinadas características anatômicas dos
indivíduos (a teoria do “criminoso nato”, que já nasceria biologicamente determinado a ser
um delinquente). Este tipo de teoria justificou, por exemplo, preconceitos raciais, que
atribuíam certas características físicas à tendência para determinadas atividades culturais
ou comportamentos. Estas teorias, que diziam, por exemplo, que pessoas negras possuíam
mais tendência a cometer crimes, eram ensinadas como verdades científicas até o século
XX, inclusive no Brasil, nos cursos de Direito. Segundo Kroeber, entretanto, o ser humano
não age de acordo com sua herança biológica, mas sempre de acordo com o meio
sociocultural no qual foi socializado – isto é, no qual ocorreu sua endoculturação. Tudo o
que o ser humano faz, portanto, ele aprendeu, de alguma forma, com outros seres
humanos.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO:
LARAIA,Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006, p. 25-52.
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CURSO: PUBLICIDADE
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 5: O MITO DA ORIGEM
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
COMO SURGIU A CULTURA?
Como o ser humano se tornou diferente das outras espécies animais, agindo de
maneira não determinada pela biologia, mas condicionado pela cultura? Poderíamos
responder, facilmente, que o ser humano produziu cultura a partir do momento em que o
seu cérebro, evoluído em relação aos demais primatas, foi capaz de fazê-lo. Esta resposta,
entretanto, é uma tautologia: é como explicar que o mar é azul por refletir a cor do céu, e
este é azul por refletir o mar. As questões de fundo a explicar são: como e por que o
cérebro humano se desenvolveu a tal nível de complexidade, de modo a ser diferenciado de
todos os demais? A cultura se desenvolveu de maneira abrupta ou foi um longo processo?
Segundo alguns especialistas em paleontologia humana, o que viria a ser o cérebro
humano começou o seu processo de desenvolvimento a partir do momento em que nossos
antepassados remotos (e antepassados de todos os outros primatas) foram submetidos a
uma vida arborícola – ou seja, passaram a viver em árvores. Neste momento, iniciado há
mais de 50 milhões de anos, o faro (essencial entre os outros mamíferos) perdeu
lentamente a importância, sendo substituído paulatinamente pela visão – desenvolvendo-se,
a partir daí, uma visão estereoscópica (a visão a partir de dois pontos ligeiramente
diferentes, que dá a noção de profundidade). A vida em árvores requeria dos antepassados
dos primatas uma visão muito apurada, para que se pudesse, por exemplo, calcular com
precisão a distância entre os galhos, fundamental para a locomoção no novo habitat. Com
isso, a caixa craniana começou a passar por mudanças, com os olhos sendo posicionados
na parte da frente e com a redução da cana nasal (animais que dependem muito do faro,
como os cães, possuem a cana nasal, o “focinho”, mais alongado).
O desenvolvimento da visão estereoscópica aliada à capacidade de utilização das
mãos – que foram liberadas da função de sustentar o peso do corpo no chão – contribuiu
para a percepção tridimensional das coisas por parte daqueles animais – algo inexistente
nos demais mamíferos. Esta capacidade de manipular objetos, pegando-o e examinando-o,
também possibilita a atribuição de significados a estes: a forma, o peso, a dimensão e a cor
formaram uma nova dimensão da percepção sobre os objetos. Cada vez mais, o cérebro
recebia informações novas e era estimulado – e, ao longo de milhares de gerações,
indivíduos que nasciam com uma capacidade neuronal mais apurada para receber e
processar tais estímulos ganhavam vantagem em relação aos demais indivíduos da
espécie. Este processo é conhecido como “seleção natural”, no qual novas características
surgidas aleatoriamente por conta de mutações genéticas acabavam por se mostrar
fundamentais em determinado meio ambiente, levando à transformação da espécie.
O bipedismo, ou bipedalismo, ou ainda bipedia – isto é, a capacidade de andar sobre
dois pés – também foi importante neste conjunto de transformações. Capacidade exclusiva
de primatas e cangurus entre os mamíferos, decorre, segundo se acredita, de pressões do
processo de seleção natural: a necessidade de parecer maior para intimidar predadores,
transportar objetos (como alimentos ou filhotes) e aumentar o campo de visão. O andar
ereto proporcionou de forma mais aguda a liberação dos membros anteriores (os braços), e
a habilidade manual daí decorrente proporcionou ainda mais estímulos ao cérebro,
desenvolvendo-se desta forma a inteligência. A cultura seria, portanto, consequência deste
processo de desenvolvimento cerebral – e a nossa espécie, o Homo sapiens, que surgiu há
cerca de 300 mil anos, estaria marcada fundamentalmente por esta capacidade de produzir
cultura e de agir a partir dela.
Mas as explicações para o surgimento da cultura vão além da paleontologia e da
história biológica do desenvolvimento do cérebro humano e das suas capacidades. O
antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, por exemplo, acredita que a cultura surgiu no
exato momento em que o homem criou a primeira regra, a primeira norma. Segundo o
antropólogo, esta seria a proibição do incesto (ou seja, a interdição sexual dos homens a
certas categorias de mulheres – como a mãe, a filha e a irmã). Este padrão de
comportamento é universal – logo, concluiu Lévi-Strauss, deve ter sido a primeira regra
social criada entre os seres humanos, constituindo, portanto, a origem do comportamento
de base cultural.
Outros antropólogos, como o norte-americano Leslie White, acreditam que o
surgimento da cultura se deu quando os seres humanos se tornaram capazes de produzir
símbolos – ou seja, passaram a representar coisas (materiais ou abstratas) através de
ideias.
De fato, apenas o ser humano pode atribuir e compreender significados de objetos,
significados que podem variar de uma cultura para outra. Um exemplo é o significado da cor
preta como luto entre nós (os ocidentais), e da cor branca entre os chineses com o mesmo
sentido – nenhum outro animal além dos humanos pode perceber este significado. Segundo
White, nem mesmo outro primata, como os chimpanzés, que possuem mais de 98,7% do
DNA idêntico ao do ser humano, poderia atribuir a um pedaço de pano a tremular em um
mastro o significado de uma bandeira, simbolizando uma nação, por exemplo.
Estas explicações para o aparecimento da cultura, seja por parte de cientistas
naturais ou sociais, aceitam a existência de um “ponto crítico” – um dado momento, um
salto repentino, no qual a nossa espécie tornou-se capaz de perceber o mundo de
determinada maneira, atribuir-lhe significados e agir a partir destes. Segundo Laraia, este
tipo de abordagem não difere muito de uma concepção religiosa do ser humano e de sua
“criação”: o ser humano teve cultura no momento em que o Criador, a partir da configuração
de determinadas características biológicas, conferiu-lhe uma “alma”. Seria uma apropriação
científica de uma explicação religiosa. Observe: Laraia não contesta a narrativa religiosa,
mas aponta que o pensamento científico não pode ser uma transposição do discurso
religioso. O pensamento científico deve ser pautado por critérios científicos.
A ideia de um “ponto crítico” no surgimento da cultura é, portanto, considerada uma
impossibilidade científica, sobretudo por um motivo: nada na natureza acontece por saltos.
O “salto” da natureza para cultura não aconteceu em uma ou algumas gerações; foi um
processo extremamente lento. Como vimos no início do texto, o processo de transformação
biológica que desembocou na estrutura neuronal do ser humano moderno aconteceu ao
longo de muitos milhões de anos, e não de maneira abrupta.
O antropólogo norte-americano Clifford Geertz, em um artigo da década de 1960,
alegou, a partir da própria paleoantropologia, que este processo é mais complexo do que se
imaginava. O Australopiteco africano, um gênero de hominídeo que viveu há cerca de 3
milhões de anos, media no máximo 1,2 m de altura e possuía cerca de 1/3 do volume
cerebral do ser humano moderno. Mesmo assim, era capaz de manufaturar objetos e se
organizar em grupos para caçar. O pequeno volume cerebral, aliado à conformação da
caixa craniana, indica que é pouco provável que possuísse uma linguagem complexa.
Entretanto, a própria capacidade de organização para a caça e a produção de instrumentos
indica também que possuíam algum nível de comunicação superior ao dos demais
primatas.
Mas, o que isto significa? Qual a importância das capacidades de organização de
uma espécie de hominídeo que viveu há milhões de anos para entendermos o
desenvolvimento da cultura? Acontece que a existência de um ancestral humano com
cérebro pequeno e com capacidade (ainda que limitada) de se comunicar e transmitir, de
alguma forma, experiência (para caçar ou produzir objetos) indica quea cultura não
apareceu após o pleno desenvolvimento cerebral – ou seja, a cultura não passou a existir
apenas com o surgimento da nossa espécie, há 300 mil anos. Outras espécies humanas
que antecederam a nossa – como o Homo habilis (2,2 milhões de anos) e o Homo erectus
(cerca de 1,8 milhões de anos atrás) – deixaram nos registros fósseis e arqueológicos
evidências de que eram capazes de produzir objetos e se organizar para realizar trabalhos
como a obtenção de alimentos e mesmo produzir fogo, tarefas que exigiam técnicas que só
poderiam ser transmitidas e apuradas com algum nível de sofisticação comunicacional. É
evidente, da mesma forma, que os indivíduos que demonstravam maior capacidade no
desenvolvimento destas capacidades comunicacionais – o que tem relação direta com a
dimensão e o funcionamento do cérebro – acabavam por ter vantagens sobre os demais
indivíduos, forçando, assim, o processo de transformação da espécie que conhecemos
como “evolução humana” e que resultaria, centenas de milhares de anos depois, na
emergência do Homo sapiens. Segundo Geertz, a cultura se desenvolveu simultaneamente
ao aparato biológico humano.
A cultura, portanto, não foi simplesmente resultado de uma evolução biológica – ela
não foi uma capacidade que apareceu espontaneamente na nossa espécie, o Homo
sapiens, quando este já apresentava as características biológicas atuais. Ao contrário, a
cultura foi um fator indutor destas mudanças, uma vez que o cérebro se transformou
atendendo a crescente complexidade da cultura – capacidade de dotar o mundo de
significados e de transmitir estes mesmos significados aos outros membros do grupo.
Os homens e as mulheres de hoje, isto é, o ser humano moderno, a espécie Homo
sapiens, única espécie humana a habitar o planeta atualmente, não é apenas capaz de
produzir cultura. Ela é igualmente produto da cultura, que já existia – embora em graus
diferentes – em espécies que nos antecederam.
Entretanto, como os antropólogos encaram atualmente a cultura?
Não existe uma resposta única; os antropólogos de hoje – assim como os do
passado – divergem na explicação da cultura, sobretudo de como o ser humano a utiliza
para agir no mundo. Há tantas explicações para o funcionamento da cultura quanto há
linhas antropológicas diferentes atualmente.
Alguns antropólogos (como os norte-americanos Leslie White e Marshall Sahlins) a
consideram simplesmente um sistema adaptativo. Estes antropólogos, que são designados
como “neoevolucionistas”, consideram que a cultura é uma resposta humana ao meio.
Assim, organização política, religião etc. serviriam para adaptar o ser humano às suas
necessidades biológicas – inclusive ao meio geográfico. Esta concepção é muito criticada
por sua semelhança com os antigos determinismos. Nesta concepção, toda mudança na
cultura responde a uma necessidade material (assim como na seleção natural, na qual o
mais adaptado biologicamente sobrevive, em modelo proposto por Darwin no século XIX):
necessidade de alimentação, controle ambiental, controle de população... Estas seriam as
causas para a existência dos elementos culturais.
Em conflito com esta visão da cultura como um sistema adaptativo, outros
antropólogos defendem as chamadas teorias idealistas da cultura. Estes estudiosos, como
o norte-americano Clifford Geertz e o francês Claude Lévi-Strauss, defendem o estudo das
culturas a partir dos próprios sistemas explicativos das sociedades estudadas. Para estes
pensadores, a cultura é todo um sistema de conhecimentos obrigatórios para indivíduos de
uma determinada comunidade, para que estes possam agir naquele grupo – é, portanto, um
sistema observável, como a própria linguagem. Geertz, em particular, defende que a cultura
não é um determinado complexo de comportamentos concretos dos seres humanos, mas
um conjunto de regras, normas, instruções – na linguagem da informática, um programa, ou
software. Segundo este antropólogo, todos os seres humanos nascem com as mesmas
capacidades (o mesmo hardware, o cérebro), mas vão agir de acordo com a cultura (o
software). Assim, todos nascemos com a possibilidade de viver a vida de mil maneiras
diferentes, mas acabamos vivendo uma única vida – porque agimos de acordo com este
programa, a cultura.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO:
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006, p. 53-58.
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DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 6: A CULTURA COMO LENTE
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
COMO A CULTURA AGE?
Vimos que o conceito de cultura, desde a sua primeira formulação antropológica, no final do
século XIX, por Edward Tylor, já reconhecia o caráter de aprendizado da mesma: a cultura
não é algo do plano biológico que já nasce com os indivíduos, mas é adquirida ao longo da
vida, no contato com outros seres humanos. Uma concepção antropológica que considera a
cultura como um sistema simbólico, desenvolvida principalmente por Clifford Geertz na
segunda metade do século XX, segundo a qual a cultura é uma espécie de programa que
os seres humanos aprendem durante a vida e a partir do qual eles agem, mantém aquela
formulação primordial: a cultura é adquirida.
É preciso, entretanto, ir além e discutir, a partir do conhecimento antropológico, como a
cultura age, conformando os seres humanos, e como estes atuam sempre a partir da
cultura.
Um bom exemplo prático deste condicionamento cultural é oferecido pelos estudos
desenvolvidos pela antropóloga norte-americana Ruth Benedict (1887-1948). Segundo esta
autora, que escreveu livros considerados clássicos da Antropologia, como Padrões de
Cultura (1934) e O Crisântemo e a Espada (1946), a cultura é como uma lente utilizada
pelos seres humanos para enxergar o mundo. Muito mais uma metáfora do que
propriamente um conceito, esta ideia de uma lente pode ser comparada com os óculos que
muitos de nós utilizamos. Imagine, por exemplo, um indivíduo com um certo grau de miopia
e que necessita fazer uso cotidianamente dos óculos. Ao longo do dia, é possível que este
indivíduo não se dê conta de que está utilizando este dispositivo ótico para enxergar o
mundo, criando a impressão de que está olhando diretamente, sem intermediários, o mundo
tal como ele é. Entretanto, embora tenha se “esquecido” de que está utilizando óculos, a
visão que este indivíduo têm do mundo é mediada por aquele mesmo dispositivo. Assim
como as lentes dos óculos, a cultura está tão arraigada nos indivíduos que estes não
percebem que o modo como enxergam o mundo – tanto o mundo físico como o mundo
social, dos valores humanos – é resultado direto do condicionamento cultural que cada um
e cada uma de nós passamos ao longo da vida.
Assim, por exemplo, para um indivíduo da cidade e sem um conhecimento razoável de
botânica, a floresta amazônica não passa de um amontoado mais ou menos uniforme de
árvores grandes e de coloração verde. Para um indígena da floresta amazônica, entretanto,
o mesmo cenário se apresenta de uma maneira completamente diferente. Em primeiro
lugar, é difícil encontrar em alguma língua indígena, originalmente, uma palavra que
signifique “árvore”. Isto porque nós, que fomos criados em cidades, generalizamos em uma
palavra esta categoria de elementos que muitos aprendemos desde o jardim de infância que
são formadas de um tronco marrom e uma copa folhada verde. Para um indivíduo nascido e
criado no ambiente da floresta amazônica, entretanto, cada um daqueles elementos que
denominamos geneticamente de “árvore” é um ser diferente um do outro, e elas são
utilizadas como pontos de referência dentro das florestas, como locais sagrados, como
remédio, alimento ou veneno – assim como para um homem ou uma mulher da cidade uma
rua não é igual à outra, damos um nome diferente a cada uma e as utilizamos não só como
vias de circulação, mas como pontos de referência, e até consideramos, às vezes, umas
melhores doque outras, representando esta escala de valores em termos monetários, ou
seja, de dinheiro, outro elemento da nossa cultura e que aprendemos, desde a infância, a
atribuir um certo significado cultural.
Poderíamos aqui dar vários exemplos de como uma mesma realidade – inclusive a
realidade física – é vista de maneira diferente, dependendo da cultura de quem observa.
Imagine um dia de inverno no Ártico, no Polo Norte, entre lagos congelados, montanhas
cobertas de neve etc... Nós, nascidos e criados no Brasil, provavelmente enxergaríamos um
grande deserto gelado e branco, ao contrário dos inuítes (que chamamos de “esquimós”,
um termo que aqueles povos não utilizam), povos que vivem naquela região e que não têm
uma palavra para “neve” ou para “branco”. Eles conseguem perceber centenas de variações
dentro destas categorias, e por isso conseguem se guiar por aquelas paisagens congeladas
e, na visão (ou cultura) estrangeira, uniformes, que para eles é cheia de significados.
Reparem: do ponto de vista biológico, brasileiros e inuítes pertencem à mesma espécie
(Homo sapiens) e possuem as mesmas capacidades físicas e intelectuais. Entretanto, os
povos daquela região aprenderam a enxergar nuances naquilo que, entre os brasileiros, é
considerado “branco”. Afinal, as pequenas diferenças de coloração na neve ou na superfície
de um lago congelado podem significar a sobrevivência ou não de um grupo: qual neve
pode ser utilizada para a construção temporária de um abrigo, em qual superfície congelada
é possível abrir um buraco para a pesca, sobre qual trecho do lago é possível ou não
caminhar...? A paisagem é a mesma, mas enxergamos aquilo que aprendemos,
culturalmente, a ver.
A cultura que aprendemos ou dentro da qual somos criados nos condiciona a reagir de
maneira negativa quando alguém age fora do que é considerado correto (ou “normal”) pela
maioria (ou seja, fora do “padrão cultural” vigente). Por exemplo, ainda é muito comum em
nossa sociedade a discriminação contra a população LGTTB, inclusive através de atos de
violência física, que conhecemos como homofobia mas que atinge grupos além dos
homossexuais. Entretanto, entre algumas comunidades indígenas norte-americanas, por
exemplo, os indivíduos que classificamos como homossexuais são considerados seres
mágicos, que fazem a ligação entre o mundo humano e o mundo sobrenatural, e por isso
são muito respeitados e têm lugar de destaque.
Outro exemplo de elemento da sociedade ocidental contemporânea considerado fora do
“padrão cultural” e que pode ser visto de maneiras diversas por culturas diversas é a
prostituição. Atualmente, em nossa sociedade, as prostitutas são geralmente consideradas
à margem da sociedade – isto é, na maioria das vezes estão fora daquilo que é considerado
o “padrão cultural” e, por conta disso, são discriminadas. Entretanto, na Grécia antiga, por
volta do século V antes da Era Comum, havia a figura da “prostituta do templo”, mulheres
que, logo após a puberdade, dedicavam sua vida a um deus ou uma deusa, trabalhando
como prostituta em seu templo. Eram vistas como uma espécie de sacerdotisa e possuíam
um lugar respeitável naquela sociedade. Em outros contextos na sociedade grega da
Antiguidade, categorias diversas de prostitutas eram vistas de forma diversa: havia aquelas
que trabalhavam nas ruas, que eram pobres e não recebiam proteção de familiares
masculinos (a sociedade grega antiga era extremamente patriarcal, machista, e mulheres
que não possuíam membros masculinos nas suas famílias que as pudessem proteger
viviam quase sempre em situação de marginalização social). Estas prostitutas mais pobres
eram malvistas, consideradas membros muito rebaixados daquela sociedade. Havia,
entretanto, mulheres de alta categoria social, bem relacionadas e conhecedoras de filosofia
que também atuavam como prostitutas nos altos círculos sociais – estas mulheres eram
bem vistas e mesmo elogiadas por membros destacados da sociedade grega. Isto é: uma
mesma sociedade pode atribuir valores diferentes ao mesmo tipo de comportamento, a
depender dos indivíduos que o praticam.
Deste modo, podemos compreender que os valores que as pessoas atribuem a todos os
aspectos da realidade decorrem da cultura na qual o observador está inserido – isto é,
depende de um condicionamento cultural que é adquirido na vida social. A forma como os
indivíduos enxergam o mundo (vendo uma cor branca ou vários tons de branco, ou dando
significados diferentes à prostituição) sempre é determinada pela cultura.
AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM
EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO:
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006, p. 65-79.
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DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL
TEMA 7: ETNOCENTRISMO
TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO
DIFERENÇAS CULTURAIS E ESTRANHAMENTOS
Vimos anteriormente que a forma como enxergamos o mundo – seja o mundo físico, seja o
mundo criado pelos seres humanos, como os valores morais e a instituições culturais – é
informada a partir do processo de endoculturação, isto é, pela cultura que adquirimos no
contato com outros seres humanos, seja na família, nas instituições de ensino, no convívio
com os amigos, com os vizinhos etc. Vimos, igualmente, que este aprendizado cultural é
algo que ocorre durante toda a vida humana, fazendo parte de nós de uma forma tão
integrada que sequer nos damos conta desta “lente” que é a nossa própria cultura – para
lembrar a formulação da antropóloga Ruth Benedict.
A cultura está tão arraigada na nossa consciência e a utilizamos de uma forma tão
automática para interpretar o mundo ao nosso redor que acabamos por acreditar que o
modo como enxergamos o mundo é o correto, verdadeiro, “natural”, e não algo que
aprendemos. Isto é, acabamos por “naturalizar” a cultura. É preciso, assim, um certo
esforço para “desnaturalizar” a forma como vemos o mundo, para nos darmos conta (ou
aprendermos) que os seres humanos acessamos todo o nosso universo através da cultura
que aprendemos – que é sempre histórica, isto é, própria de uma época, de um lugar, de
um grupo sociocultural, mesmo que manifestada em um indivíduo particular.
Segundo o antropólogo Roque B. Laraia, até mesmo comportamentos que identificamos
geralmente como “naturais”, ou até mesmo com a fisiologia humana, com as nossas
funções biológicas, são conformados pela cultura. Podemos tomar como exemplo o riso,
característica dos humanos e dos primatas superiores. O riso é composto, basicamente,
pela contração de determinados músculos da face e da emissão de um ruído. Podemos,
portanto, dizer que o riso é uma função natural de um certo grupo de animais, e o fato de
que sorrimos cotidianamente poderia significar que este ato pertence à natureza,
exclusivamente. Entretanto, se pararmos para refletir a respeito, percebemos que as
pessoas riem de maneira diversa e por motivos também diversos.
Podemos acreditar, em um primeiro momento, que todos os japoneses ou todos os italianos
riem da mesma maneira. Mas entre os japoneses ou italianos eles conseguem muito bem
distinguir as variações de pessoa para pessoa; da mesma forma, um japonês ou um italiano
poderia acreditar que todos nós, brasileiros, rimos da mesma maneira, embora saibamos
que cada indivíduo tem a sua particularidade.
Além da forma, os motivos também variam de cultura a cultura. Por exemplo: comédias tipo
pastelão norte-americanas, com um humor que costumamos chamar de “inocente”, com
situações como tortas na cara, tombos etc, não costumavam fazer muito sucesso no Brasil
até um passado muito recente. Não riamos muito deste tipo de coisa. Aliás, o fato de que
conhecemos este tipo de humor – presente em filmes e programas antigos de TV, como O
Gordo e o Magro ou várias produções estreladas por Clarlie Chaplin e Buster Keaton –
como humor “inocente” demonstra uma certa desvalorização da modalidade, como se a
mesma fosse mais apropriada para crianças e não

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