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CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 1: A ESPECIFICIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO O QUE É ANTROPOLOGIA? O termo “antropologia” tem sua origem na junção de duas palavras gregas: anthropos (ser humano / pessoa); logos (razão, pensamento). Trata-se, portanto, de acordo com a sua etimologia, de um estudo sobre os seres humanos. O significado etimológico, entretanto, é muito amplo – afinal, muitas ciências estudam aspectos relacionados aos seres humanos. É comum, portanto, que se restrinja a área de estudos antropológicos a três domínios: 1) Antropologia Física (ou Biológica): o campo de estudos que aborda o ser humano enquanto entidade biológica. Por exemplo: aspectos da anatomia humana, incluindo a formação dos ossos, as diferenças entre as estruturas físicas de indivíduos de faixas etárias diversas ou de sexo biológico masculino e feminino (assim como vemos em investigações criminais, por exemplo, na identificação de vítimas de homicídio). A Antropologia Física também estuda os ancestrais dos seres humanos modernos, estabelecendo inclusive uma comparação entre as diversas espécies que se sucederam no tempo até o surgimento da nossa espécie, o Homo sapiens, há cerca de 300 mil anos. Para este estudo, é preciso recorrer a fragmentos de ossos, outros tipos de restos biológicos preservados e até mesmo rastros como pegadas, bem como um grande conhecimento em disciplinas como Biologia e Física. Esta área específica da Antropologia Física também é conhecida como Paleoantropologia (o prefixo “paleo” tem origem em outra palavra grega, palaiós, que significa “antigo”). 2) Arqueologia: o campo de estudos que aborda as sociedades humanas a partir daquilo que elas produziram materialmente ao longo dos tempos. Todas as sociedades humanas, em todas as épocas, utilizaram ferramentas e modificaram o meio no qual viveram – um conjunto de intervenções que a Arqueologia denomina “cultura material”, uma vez que o ser humano projeta o seu pensamento em todas as suas realizações materiais. Assim, independentemente da época ou do tamanho daquela sociedade, é possível fazer inferências sobre o seu modo de vida, as tecnologias que utilizavam, a forma de organização social, aspectos ligados à sua vida espiritual, política e econômica a partir daquilo que produziram e que, com o desaparecimento daqueles indivíduos, foi descartado. O estudo arqueológico é especialmente importante para que possamos conhecer sociedades que não deixaram muitos registros escritos, mas também pode auxiliar muitíssimo para um conhecimento mais detalhado de sociedades que produziram textos – como se faz, por exemplo, com o Egito Antigo e com o Império Romano, mas também com a nossa própria sociedade. É possível, tratando de sociedades sem escrita, saber, por exemplo, que a região amazônica é habitada há milhares de anos, e pode-se saber, através das escavações e dos estudos arqueológicos em restos de cerâmicas ou de construções de pedra, bem como restos de ossos de animais consumidos, qual a extensão daquelas sociedades antigas, como eram suas habitações, que tipo de utensílios produziam e utilizavam para cozinhar, caçar etc. Por outro lado, tratando de sociedades com escrita na nossa época, estudos arqueológicos a partir do lixo produzido nas cidades podem informar muito sobre padrões de consumo, níveis de renda e mesmo sobre a cultura gastronômica dos diversos segmentos das sociedades urbanas contemporâneas. A palavra “Arqueologia” também tem relação com um termo grego, archaios, que significa “passado”. 3) Antropologia Cultural: o campo de estudos que aborda as projeções da mente humana e os sistemas criados por ela. Como o próprio nome indica, a Antropologia Cultural está interessada em abordar os fenômenos culturais da humanidade, seja através da discussão e da conceituação do termo “cultura”, seja investigando os mais diversos aspectos culturais das diferentes sociedades humanas – trata-se de considerar que os seres humanos integram sistemas de valores. Assim, por exemplo, é possível estudar o significado dos rituais de um povo indígena na Amazônia, ou a forma como os adolescentes urbanos do Brasil entendem aspectos relacionados à sexualidade, ou, ainda, compreender como o racismo ou o machismo possuem uma dimensão simbólica importante em diversas sociedades ocidentais nos dias de hoje, ou como geram um enorme sofrimento para grandes segmentos da população. Antes de nos aprofundarmos neste terceiro campo da Antropologia, é preciso distinguir, de maneira geral, dois grandes campos do conhecimento científico, de modo que possamos compreender a situação da disciplina que trataremos ao longo do semestre. Na opinião de diversos filósofos da ciência, o conhecimento científico pode ser dividido em duas grandes áreas: as Ciências Naturais e as Ciências Sociais (ou Humanas). Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, as Ciências Naturais tratam de “fatos simples”, isto é, fatos que ocorrem com uma certa frequência, cujas causas podem ser verificadas e podem ser reproduzidas em um ambiente controlado (isto é, em um laboratório). Por exemplo: pode-se reproduzir em qualquer lugar do mundo (na Rússia ou no Brasil) as condições ideais de temperatura ou recursos naturais para o desenvolvimento de uma colônia de um certo tipo de formigas, e os pesquisadores podem observar as mesmas características na reprodução destes insetos. Do mesmo modo, pode-se observar em qualquer lugar do mundo (na China ou na África do Sul) um raio luminoso e averiguar suas propriedades. Biólogos e físicos são cientistas naturais. Estas características (a recorrência e a reprodutibilidade) determinam outro traço fundamental das Ciências Naturais: suas teorias podem ser testadas por diferentes observadores e em locais diferentes – uma vez asseguradas as mesmas condições ideais dos seus laboratórios, os pesquisadores poderão chegar exatamente aos mesmos resultados. Há, portanto, um grau de objetividade (ou “certeza”), característica básica deste tipo de conhecimento. No caso das Ciências Sociais (ou Humanas), os fatos estudados são “complexos”, e suas determinações são complicadas. Os fatos analisados por antropólogos, historiadoras, sociólogos, economistas, psicólogas e cientistas políticos não podem ter suas “causas” facilmente isoladas ou reproduzidas em condições laboratoriais. Até mesmo eventos aparentemente simples, como comer um bolo, pode ter várias explicações (ou seja, suas causas não são claramente identificáveis). É impossível desenvolver uma teoria – e testá-la – que comprove, cientificamente, a existência de uma motivação única para o ato de comer um bolo: por isso podemos dizer que os fatos estudados pelas Ciências Sociais têm determinações complexas. Tomando apenas a nossa sociedade como exemplo: um bolo comido ao fim de uma refeição, escreve Roberto Da Matta, é o que chamamos de “sobremesa”, e seu significado é o de fechar uma refeição (em geral, salgada). Portanto, significa que separamos alimentos doces e salgados, e consideramos que estes últimos são a parte principal e mais substancial da alimentação. Já um bolo comido em excesso e no meio da madrugada, às escondidas, pode ser um sintoma de uma compulsão alimentar. Por sua vez, um bolo comido em uma festa pode ter significados totalmente diferentes: quando se diz “venha comer um bolo com fulano”, é sinal de que este ato de comer um bolo tem um significado ritual, como o da passagem da idade, a entrada na maturidade sexual (caso do aniversário de 15 anos para as mulheres, segundo o seu significado original), o reconhecimento de uma ligação de caráter matrimonial entre indivíduos (comer um bolo em uma festa de casamento). Além desta diversidade de significados, os fatos (ou eventos) que são objeto das Ciências Sociais não se repetem e não podem ser repetidos em laboratórios. Por exemplo: uma festa de aniversário jamais pode ser repetida. Podemos reunir as mesmas pessoas que compareceram ao seu aniversário no ano passado, servir as mesmas comidas, no mesmo lugar.Mas não será exatamente o mesmo evento. Assim como o desfile de carnaval de algum ano pode comportar as mesmas escolas de samba, mas o evento será diferente. Da mesma forma, as eleições presidenciais de 2018 ou a Revolução Francesa de 1789 não acontecerão novamente. Em outros termos, embora os eventos possam guardar entre si uma “semelhança estrutural”, cada evento (cada ocasião social fechada) cria o que se pode chamar de “plano social próprio”, diferente de todos os outros (ao contrário dos fatos estudados pelas Ciências Naturais, que se repetem). Esta impossibilidade de repetir de maneira controlada os eventos, assim como a complexidade de suas determinações, reforça a diferença entre as Ciências Sociais (ou Humanas) e as Ciências Naturais. Podemos, nas Ciências Sociais, construir narrativas e explicações sobre os eventos, mas tais narrativas e explicações jamais poderão ser consideradas totalmente “verdadeiras” – pois jamais saberemos, por exemplo, exatamente como se sentia uma pessoa diante dos fatos que levaram à Proclamação da República no Brasil em 1889 (evento estudado pela História, uma Ciência Social), assim como jamais poderemos testar em um laboratório todas as relações de causa e efeito daquele evento. Trata-se, portanto, de um domínio científico marcado pela subjetividade. Outro elemento fundamental para a distinção entre as ciências da natureza e as ciências humanas é a relação entre o sujeito e o objeto – dois elementos fundamentais para a existência de qualquer conhecimento científico. O sujeito, em todas as ciências, naturais ou sociais, é aquele que observa (ou seja, o cientista ou a cientista), enquanto o objeto é aquele que é observado (ou seja, aquilo que é estudado). Um representante das Ciências Naturais, como uma bióloga ou uma veterinária, pode, por exemplo, desenvolver teorias sobre o comportamento dos cães. Pode tentar imaginar e formular teorias sobre o que sentem os cães diante de determinadas situações. Mas esta estudiosa poderá sentir o que sentem os cães? Não. Há uma distância irredutível entre pessoas e cães (por mais que cães sejam animais maravilhosos). Assim, o objeto de estudo será sempre isso, objeto de estudo, e o sujeito poderá estudá-lo e interpretá-lo livremente. O que os coloca em contato (sujeito e objeto) é o método científico utilizado. Os cães continuarão latindo e urinando em postes e hidrantes, independentemente das teorias formuladas pelas estudiosas – nenhum cão poderá contestar uma teoria formulada por uma estudiosa. No caso das Ciências Sociais, o que ocorre é totalmente diferente, pois há uma grande proximidade entre sujeito e objeto. Neste caso, os estudiosos ou estudiosas observam fenômenos relacionados aos seus iguais – por mais que se encontrem em sociedades com culturas totalmente diferentes, sejam grupos indígenas no interior do país, sejam os franceses da época da Revolução de 1789. Existe entre sujeito e objeto o compartilhamento da mesma experiência de ser humano, o que interfere na formulação do discurso científico (das teorias) em dois sentidos: 1) O estudioso ou a estudiosa, como também é humano/a, reconhecerá semelhança ou diferença no que é o seu objeto de observação, e só vai estudá-lo a partir destes parâmetros (por exemplo, podemos estudar as estruturas de parentesco em uma determinada sociedade, muito diferente da nossa, mas o faremos a partir da consciência das estruturas de parentesco em nossa própria sociedade; podemos estudar a conjuntura política ou econômica atual, mas tal estudo acaba sendo influenciado pelas concepções acerca de política ou de economia de quem realiza o estudo – Ciência Política e Economia são Ciências Sociais, assim como a Antropologia Cultural); 2) O objeto, que também é humano, pode, a depender do seu lugar, opinar ou tomar parte ativa na construção do discurso científico (das teorias) que falam sobre ele – além de poder se utilizar das teorias formuladas pelo/a cientista com algum objetivo específico dentro ou fora de sua própria sociedade (por exemplo, comunidades indígenas ou quilombolas podem utilizar estudos provenientes da Antropologia para reivindicar seu direito ancestral às terras nas quais vivem). Assim, ao contrário das Ciências Naturais, nas Ciências Sociais o objeto de estudo nem sempre está passivo em relação ao conhecimento produzido. Enfim, o estudo da Antropologia Cultural enquanto uma ciência social implica no entendimento de que este conhecimento possui características próprias que, longe de tornarem a área “menos científica”, contribuem para que tenhamos uma visão crítica do próprio discurso antropológico, que se transforma ao longo do tempo e que possui objetivos diversos, a depender do momento e do contexto específico no qual é produzido. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO: DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 17-38. _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 2: DETERMINISMOS E RACISMO TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO A NATURALIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS CULTURAIS E SOCIAIS Considerou-se, durante o século XIX e parte do XX, que o comportamento humano resultava de respostas automáticas à natureza – os chamados “determinismos”, que podem ser de ordem biológica ou geográfica. É muito comum, ainda hoje, a crença de que homens e mulheres possuem habilidades diferentes ou devem desempenhar papéis diferentes na sociedade, que pessoas negras e brancas possuem capacidades intelectuais ou inclinações morais diferentes, que indivíduos de origem nórdica são mais inteligentes do que as de origem africana; que os judeus são avarentos; ou que os portugueses são pouco inteligentes. Além disso, acredita-se que estas supostas características (a rigor, frutos de preconceitos) são transmitidas geneticamente, isto é, que fazem parte da natureza. Este tipo de explicação é amplamente contestada entre os antropólogos atualmente. Não se encontrou, com todos os avanços da ciência genética, prova alguma de que comportamentos culturais têm fundo biológico. Qualquer criança, nascida em qualquer lugar do mundo, poderá absorver totalmente os hábitos, os costumes, a visão de mundo de qualquer outra comunidade no globo – independentemente do seu sexo biológico ou da cor da sua pele. Uma criança nascida no interior da África e levada para Ipanema desenvolverá todos os hábitos culturais de outra criança que foi nascida e criada na Zona Sul do Rio de Janeiro. Assim como um menino nascido em uma tribo indígena no Xingu e levado para Londres agirá, de acordo com o seu desenvolvimento, como um típico londrino (ou vice-versa). Em 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial e o fim do horror do racismo nazista (que acreditava na superioridade racial dos brancos europeus, chamados de “arianos”), um grupo de estudiosos reunidos em Paris, com a organização da Unesco, divulgou um documento que dizia, entre outras coisas: “Os dados científicos de que dispomos atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial entre as causas das diferenças que se manifestam entre as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos. Eles nos informam, pelo contrário, que essas diferenças se explicam, antes de tudo, pela história cultural de cada grupo. Os fatores que tiveram um papel preponderante na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos. Ela constitui, de fato, uma das características específicas do Homo sapiens.” A única grande diferença anatômica e fisiológica dentro da espécie humana é o dimorfismo sexual – ou seja, a divisão biológica entre homens e mulheres. Mesmo assim, as diferenças de comportamento que ocorrem entre homens e mulheres não são determinadas biologicamente. A experiência em nossa própria sociedadetem demonstrado que papéis tradicionalmente atribuídos aos homens podem ser igualmente desempenhados pelas mulheres – e vice-versa. Quando comparamos a nossa sociedade com outras, vemos mais nitidamente que todas as diferenciações de comportamentos entre os sexos não têm nenhuma base biológica. Do ponto de vista dos comportamento humanos, aliás, mais importante do que o sexo biológico é a noção de gênero, isto é, os papeis que são atribuídos socialmente e culturalmente a homens e mulheres. Por exemplo, em uma certa nação indígena, é o homem que fica de repouso após o parto, de resguardo, descansando alguns dias na rede. Em algumas comunidades, o trabalho pesado como carregar recipientes cheios de água sobre a cabeça é atributo feminino. O comportamento dos indivíduos em geral, depende do aprendizado – processo também chamado de “endoculturação” –, não guardando relação direta com aspectos biológicos. O geógrafo alemão Friedrich Ratzel, em sua obra Antropogeografia (1882), expunha um outro tipo de determinismo, o geográfico, ideia segundo a qual o meio físico (ou seja, o mundo natural) no qual o homem vive define tanto o seu desenvolvimento biológico quanto as suas características psicológicas e sociais. Valorizando a ideia de “espaço”, via que a evolução das espécies – e a luta entre elas – se dava por conta do domínio do espaço físico, do meio ambiente, dos recursos naturais. Da mesma forma, as populações humanas se organizariam por conta do domínio de um território, e apenas o mais forte (ou seja, o melhor adaptado à sobrevivência naquele meio) sobreviveria. Acreditava, portanto, que um sinal de decadência de uma determinada sociedade era a perda do seu território – esta ideia está plenamente de acordo com a ideologia neocolonialista da Europa daquela época, que estava partilhando a África (a Conferência de Berlim, finalizada em 1885, dividia o território africano entre as grandes potências da época, como a Alemanha, a Inglaterra e a França). Suas ideias atendiam, portanto, o expansionismo europeu em geral e alemão em particular – e ainda dariam sustentação para a ideologia nazista no século XX, a noção (que a ciência provaria falsa) da superioridade da raça ariana, destinada a conquistar e dominar todo o mundo. Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, a percepção de que existe algo além do que é determinado pela natureza, ao contrário do que supunham os determinismos biológico (tanto o racismo quanto o machismo) e geográfico, ficou mais evidente a partir do trabalho do sociólogo francês Émile Durkheim, As regras do método sociológico (1895): nesta obra, Durkheim define que os “fatos sociais” são tão reais quanto os elementos fisicamente concretos – portanto, elementos absolutamente dissociados da natureza (porque sociais ou culturais, criados pelos seres humanos) ocupam o mesmo plano de realidade que uma pedra, uma árvore ou uma mesa. Ou seja: assim como o sangue é uma realidade, a religião ou os laços de parentesco também são reais – embora pertencentes a outro plano, o da cultura ou da sociedade, e devem ser estudados como pertencentes a estes planos, e não ao plano da natureza. Assim, um aspecto do plano sociocultural, como a crença em entidades sobrenaturais, não pode ser explicado pela “raça”, pelo sexo biológico ou pelo ambiente natural no qual um povo se desenvolveu, mas a partir de elementos do próprio plano sociocultural. O antropólogo Roque B. Laraia demonstra, através de alguns exemplos, que a natureza não determina a resposta dos seres humanos, revelando como a Antropologia, atualmente, descarta os determinismos biológico e geográfico. Ele utiliza como argumento a comparação entre povos que vivem em regiões muito parecidas em relação ao clima, ao tipo de vegetação e à fauna, mas que possuem culturas diferentes. Os inuítes (que também conhecemos como “esquimós”), localizados no extremo norte da América do Norte, se abrigam do frio nos iglus, construções feitas de blocos de gelo e forradas no interior com peles de animais. Os lapões, que vivem na Europa em ambiente muito parecido, constroem tendas com peles de renas, que acabam cobertas pela neve. Os inuítes, quando precisam se mudar, levam o estritamente necessário, e rapidamente constroem outra habitação. Já os lapões enfrentam um duro trabalho para desmontar a tenda, seca-la e leva-la a outro local. Os inuítes se alimentam a partir da caça e da pesca; os lapões são criadores de animais, especialmente renas. São, portanto, povos que vivem em situações ambientais praticamente idênticas, mas que desenvolveram culturas significativamente diferentes. Do mesmo modo, tribos indígenas no Brasil que vivem em espaços muito parecidos (e são, às vezes, vizinhos e mesmo próximos do ponto de vista biológico ou genético) apresentam culturas absolutamente diversas (hábitos alimentares, sistemas de crenças, línguas, princípios morais...). A Antropologia, portanto, a partir do estudo das mais diversas culturas humanas, tem suficientes provas para demonstrar que que as diferenças culturais e sociais entre os seres humanos não podem ser explicadas pelas suas diferenças genéticas e biológicas, incluindo a cor da pele ou o sexo biológico, tampouco pelas condições impostas pelo meio ambiente, como um clima mais ou menos frio, a presença ou ausência de determinados recursos naturais. As diferenças entre os grupos sociais e entre as culturas, incluindo aí os princípios morais ou os comportamentos, só podem ser compreendidas através do estudo das sociedades e das culturas, da sua formação e da sua transformação. O racismo: origens e transformações O racismo é uma visão determinista – enquadrada especialmente no determinismo biológico – que possui uma longa presença na nossa sociedade, passando por transformações ao longo dos séculos. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, a palavra “raça” tem origem em um termo da língua latina da Antiguidade, ratio, que significa “categoria” ou “espécie”. Originalmente, a palavra era utilizada para fazer a distinção entre tipos de elementos: diferentes plantas, diferentes objetos, diferentes pessoas. O termo passou a ser utilizado sistematicamente para distinguir categorias de pessoas, de forma hierárquica, na Idade Média (entre os séculos V e XV). Especialmente na França medieval, o termo era utilizado para diferenciar indivíduos que descendiam dos nativos (os gauleses) e dos conquistadores (os francos). Assim, descendentes dos gauleses e dos francos eram considerados pertencentes a “raças” diferentes, e possuíam até mesmo direitos diferentes, sendo os francos considerados superiores, e assim podendo governar e ser isentos de certos impostos. Não havia, naquele momento, uma diferenciação por cor da pele, mas fazia-se uma diferenciação a partir da filiação de cada indivíduo. Este tipo de diferenciação entre grupos humanos foi utilizada posteriormente pelos europeus para comparar e hierarquizar os diversos grupos humanos com os quais eles entraram em contato ao longo da Idade Média. Com as viagens para a Ásia e a África ao longo daquele período, os europeus foram buscar explicações para as diferenças culturais e de aparência física entre eles, asiáticos e africanos, construindo a partir daí diversas “raças”. E a explicação foi encontrada nos pilares do cristianismo, como nas histórias bíblicas de Noé e dos Reis Magos. Assim, por exemplo, os cristãos europeus da Idade Média entenderam que os descendentes do amaldiçoado Cam, filho de Noé, dariam início à “raça” africana; ou que um dos reis magos seria negro, por representar a “raça” africana. De todo modo, justificava-se de forma religiosa as diferenças e, no final da Idade Média e início da Idade Moderna (justamente quando os portugueses chegavam ao Brasil pela primeira vez), apoiava-se o movimento de escravização dos africanos por parte dos Europeus. Esta explicação racial pela religião perdeu força entre os séculos XVII e XVIII, quando se desenvolveu na Europa o pensamento científico e a racionalidade iluminista. A partir de então, aquelas diferenças queeram explicadas pela religião precisaram de uma nova roupagem. Assim, um dos grandes nomes do pensamento científico do século XVIII, o cientista sueco Carl Lineu, desenvolveu uma fórmula para classificar todos os seres vivos: reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie. Quando esta fórmula era aplicada aos seres humanos, entretanto, os cientistas europeus ficavam insatisfeitos, pois eram forçados a considerar toda a humanidade como pertencente a um mesmo grupo, a espécie humana. Lineu, então, criou mais uma divisão biológica: a raça. Assim, a espécie humana seria dividida em três raças: a branca (europeia), a amarela (asiática e indígena) e a negra (africana). No século seguinte, o XIX, a cor da pele ganhou outros elementos para explicar as diferenças, como o formato do crânio, a forma dos lábios e do nariz. Além disso, os cientistas da época (brancos), também atribuíram às características físicas qualidades morais e intelectuais: assim, os brancos seriam mais inteligentes, bonitos, honestos, criativos, enquanto os negros e amarelos seriam mais estúpidos, feios, desonestos, violentos etc. Este foi o chamado “racismo científico”, que dava ares de verdade científica a velhos preconceitos nutridos pelos brancos em relação aos povos não brancos, justificando a colonização, a exploração, a escravização e mesmo o extermínio de outros grupos. O desenvolvimento do conhecimento científico no século XX, principalmente os avanços na ciência genética e o descobrimento do DNA, acabou por comprovar que toda aquela ciência racista dos séculos XVIII e XIX era, na verdade, uma pseudociência – isto é, uma falsa ciência, que não se apoiava em critérios científicos, mas estava fundamentada em um discurso parecido com a ciência para justificar relações de poder e de dominação. Do ponto de vista do conhecimento genético humano, as “raças” não são um critério válido para a diferenciação de grupos humanos – um europeu branco pode ser mais próximo, do ponto de vista biológico, de um africano negro do que um outro africano negro, por exemplo. A raça, como vimos, é uma construção social muito antiga, que demarca diferenças de tratamento dos grupos dentro de uma sociedade. Ainda hoje, é comum que indivíduos e grupos atribuam a características físicas – como a cor da pele – características socioculturais, como capacidade intelectual e honestidade, atitude que caracteriza o racismo. O desmascaramento do racismo “científico”, entretanto, não foi suficiente para eliminar as práticas racistas, ainda hoje muito presentes em diversos tipos de manifestação, conformando aquilo que os especialistas denominam “racismo estrutural”, ou seja, a discriminação racial que fica evidente em estatísticas como as da violência, do desemprego, da representatividade na mídia, do acesso à educação, à saúde e aos serviços públicos em geral, problemas graves de muitas sociedades, como a brasileira. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DAS SEGUINTES PUBLICAÇÕES: DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 39-47. LARAIA, Roque B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 17-24. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Niterói: EDUFF, 2004. ( https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racism o-dentidade-e-etnia.pdf ) _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 3: EVOLUCIONISMO E FUNCIONALISMO TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO AS PRIMEIRAS TRADIÇÕES ANTROPOLÓGICAS https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf As primeiras tentativas de explicar de maneira científica as diferenças entre os povos humanos, incluindo suas culturas, estavam relacionadas com os interesses políticos das nações centrais do sistema capitalista no século XIX. Assim foi com os determinismos geográfico e biológico – que, por exemplo, consideravam os brancos europeus superiores às populações africanas e asiáticas, o que oferecia uma justificativa pseudocientífica para a expansão colonial sobre aqueles povos – e assim seria também com o desenvolvimento inicial da própria Antropologia, que surgiu como disciplina na Europa justamente na segunda metade do século XIX. O antropólogo Roberto Da Matta, que escreveu sobre o desenvolvimento da disciplina antropológica, chamou atenção para um aspecto interessante: o estudo das diferenças entre os homens, a Antropologia, surgiu dos próprios desdobramentos da sociedade europeia colonialista. As “teorias da diferença”, que mais tarde ganhariam atenção dos antropólogos, foram formuladas, primordialmente, para legitimar a expansão colonial dos europeus a partir do século XVI, quando as potências da época, como Portugal, Espanha e França estavam enviando caravelas e naus para colonizar regiões distantes, como as Américas, partes da África e da Ásia. Naquela época, os europeus entravam em contato com populações e culturas muito variadas – os europeus ficaram especialmente chocados com a prática da antropofagia (ou canibalismo) entre os indígenas brasileiros, e uma das explicações para a diversidade de hábitos entre os grupos humanos seria a influência “demoníaca”, o que estava de acordo com a mentalidade religiosa cristã dos europeus de então. Entretanto, no espaço onde se desenvolvem estas teorias, na mesma Europa, alguns europeus acabaram por desenvolver também discursos libertários, defendendo ideias como “liberdade” e “igualdade”, que também justificavam as diferenças, mas sob outra ótica, a do respeito à diversidade – o francês Michel de Montaigne (1533-1592), que viveu no século XVI, era uma das vozes que defendiam que os indígenas ou quaisquer outros povos que possuíam costumes diferentes dos europeus não deveriam ser considerados inferiores, mas simplesmente diferentes, rejeitando a postura de superioridade moral (que mais tarde chamaríamos de “etnocêntrica”) dos europeus em relação aos outros povos. Esta concepção enunciada por Montaigne também está na base da Antropologia moderna, que tenta fazer uma reflexão sobre nossa própria sociedade a partir dos “outros”. Entretanto, para chegarmos a esta concepção atual da Antropologia, devemos notar dois movimentos principais dentro desta disciplina acadêmica. Estes dois movimentos estão associados a alguns dos seus principais expoentes: os britânicos James Frazer (1845-1941) e Edward Tylor (1832-1917), o norte-americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), e o polonês naturalizado inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942). O Evolucionismo, que pode ser representado pelos trabalhos de Frazer, Tylor e Morgan, corresponderá a uma visão do mundo do colonialismo britânico vitoriano (ou seja, da época da Rainha Vitória – 1837-1901). Era uma época de expansionismo, e aquela sociedade se julgava superior a todas as outras, pelo desenvolvimento econômico, político e tecnológico que alcançara. Esta escola de pensamento antropológico será dominante entre as décadas de 1870 e 1920, perdendo muita força depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O Funcionalismo, por sua vez, pode ser representado pelo trabalho revolucionário de Bronislaw Malinowski, e resultará de uma perspectiva mais relativista – ou seja, uma interpretação antropológica segundo a qual cada sociedade terá os seus próprios padrões culturais internos, que não devem ser julgados pelos valores de qualquer outra sociedade. Esta visão antropológica começou a se difundir na década de 1920 e alguns dos seus princípios fundamentais ainda encontram espaço na reflexão antropológicaatual. O Evolucionismo O estudo da Antropologia evolucionista, nos moldes de Frazer, Tylor e Morgan, implicava em primeiro lugar em isolar dados e classificá-los. Estes estudiosos faziam o inventário do maior número de “fatos etnográficos” possível, do maior número possível de sociedades, ordenando-os de acordo com uma escala evolutiva, ao final da qual estava, obviamente, a sociedade ocidental capitalista (ou seja, a sociedade dos próprios antropólogos). Os fatos etnográficos eram qualquer hábito ou costume de uma sociedade que, na visão dos antropólogos, seria correspondente a hábitos ou costumes existentes nas outras sociedades – por exemplo, ao se depararem com uma cultura totalmente diferente da europeia, procurariam naquela cultura o que poderia ser considerado a sua religião (mesmo sem se darem conta de que a ideia de “religião” é própria da cultura europeia, nem sempre havendo correspondência automática entre outras sociedades). Deste modo, eles separavam o fato etnográfico do seu contexto, e comparavam as mais diversas sociedades através destes elementos isolados, deduzindo daí o nível de evolução das mesmas, estabelecendo uma escala hierárquica e evolutiva, indo das menos evoluídas às mais evoluídas – estas últimas eram, sempre, as culturas dos próprios antropólogos, isto é, a sociedade europeia (ou norte-americana), branca e cristã. Assim, por exemplo, descrevia-se apenas aquilo que consideravam ser a “religião” de um grupo, comparando-a com o que seriam as religiões de outros grupos (por isso a Antropologia evolucionista era chamada na época de “método comparativo”). Mas não se comparava aquele sistema de crenças com todo o conjunto da própria sociedade observada, de modo a compreender qual o lugar e qual o papel daquele conjunto de hábitos dentro daquela mesma sociedade (o que poderia ser bem diferente de outra sociedade). A Antropologia evolucionista considerava tudo o que era diferente ou “estranho” à sociedade do observador (do antropólogo evolucionista) como um momento anterior da evolução de sua própria sociedade. Assim, tudo o que é novo ou desconhecido é apresentado como se fosse o resquício de uma etapa no desenvolvimento da sociedade do próprio antropólogo. Assim, a tendência era classificar tudo o que é diferente como “sobrevivência” – ou seja, sem nenhuma relação com o presente, mas como uma prova de um momento passado, uma forma de se organizar ou de se relacionar que seria típica do passado das sociedades atualmente “evoluídas”. Estes antropólogos não realizavam os chamados “trabalhos de campo”, mas praticavam aquilo que ficou conhecido como “antropologia de gabinete”, uma vez que não deixavam seus postos universitários para conviver com as sociedades distantes que estudavam. Eles não precisavam, de acordo com a concepção antropológica que defendiam, conhecer o contexto sociocultural de uma sociedade específica para compreender seus códigos e suas regras culturais. Bastava-lhes colher algum relato sobre algum fato etnográfico específico, classificá-lo e compará-lo a outros, estabelecendo uma escala evolutiva – sempre em direção à sua própria sociedade. Outro detalhe importante: os responsáveis por colher as informações sobre as culturas que os antropólogos estudariam eram, na maior parte das vezes, funcionários coloniais que viviam em regiões distantes, convivendo com populações nativas colonizadas pelas quais nutriam grandes preconceitos. Assim, portanto, enquanto os políticos ingleses, alemães e franceses falavam em se expandir politicamente e economicamente, anexando todos os espaços possíveis à sua influência e ao seu domínio territorial, os estudiosos evolucionistas acreditavam poder classificar todas as diferenças culturais daquele momento em uma única escala evolutiva, que consideraria as sociedades europeias como as mais “evoluídas”. Um dos críticos deste tipo de postura foi o antropólogo alemão – naturalizado americano – Franz Boas (1858-1949), um dos fundadores da chamada escola culturalista da Antropologia. Segundo Boas, que chamava sua modalidade antropológica de “método histórico”, em oposição ao “método comparativo”, os elementos de uma cultura só poderiam ser compreendidos se fossem estudados dentro do sistema cultural ao qual pertenciam, como nasceram e como se desenvolveram em cada contexto específico – ao contrário do que procurava fazer o Evolucionismo. O Funcionalismo Como vimos, a Antropologia funcionalista está relacionada prioritariamente ao trabalho de Bronislaw Malinowski (que, ao contrário dos evolucionistas, esteve em “trabalho de campo”). Trata-se, em parte, de uma reação à ideia evolucionista de “sobrevivência” – ou seja, ele rejeitava a noção de que um aspecto cultural “estranho” seria um “resquício” do passado, símbolo de uma determinada etapa na evolução da sociedade. Malinowski acreditava que estas formas de se relacionar ou de se organizar que pareciam ser muito estranhas, mesmo quando pareciam remeter a formas culturais do passado, teriam uma função no presente – daí o nome da modalidade antropológica que desenvolveu, o Funcionalismo. Malinowski chegou às suas conclusões após um estudo que desenvolveu entre os anos de 1915 e 1918, quando viveu entre os nativos das Ilhas Trobriand, na Nova Guiné. O polonês estava especialmente interessado em compreender o ritual denominado “kula”, que era um ritual de troca de presentes entre os nativos do arquipélago. Ao longo dos anos, da convivência, das observações e das descrições que fez do ritual, acabou por compreender que não se tratava de um simples ritual de troca de presentes, mas de um sistema complexo que abrangia fenômenos culturais de comunicação, alianças familiares e políticas, trocas econômicas e reforço de status social. Deste seu trabalho de campo surgiu um livro, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado em 1922, considerado um clássico na literatura antropológica. O trabalho antropológico desenvolvido por Malinowski trazia três inovações centrais: em primeiro lugar, seu objetivo não era provar a “superioridade” cultural de um determinado grupo, mas compreender cientificamente a cultura observada; em segundo lugar, havia a necessidade de incorporação do observador (o antropólogo) ao grupo que seria estudado; em terceiro lugar, dividia o trabalho antropológico em duas etapas: 1) observação e coleta de dados, seja através de descrições daquilo que é observado, gravação, fotografias (etapa que também era chamada de “etnografia”); 2) análise dos dados colhidos. Para os funcionalistas, que acabaram por tomar o trabalho de Malinowski como modelo, as sociedades devem ser estudadas como um todo integrado, onde tudo tem o seu papel, a sua função – e não através da observação, isoladamente, de “fatos etnográficos” descontextualizados. Assim, inclusive elementos como festas que remetem a tradições antigas, têm um papel bem prático na vida atual das sociedades – o que só poderia ser percebido com o trabalho de campo, compreendendo a integração daquele elemento com os outros elementos da cultura. Entretanto, a visão funcionalista também implicava em alguns problemas. A ideia, por exemplo, de que todas as culturas tendem ao equilíbrio, já que tudo possuía uma função específica em um sistema cultural integrado, pressupunha que todos os conflitos e todas as mudanças eram “anomalias”, ou seja, algo a ser superado em busca do reequilíbrio do todo. Era, portanto, uma visão que tendia a ser conservadora, isto é, que considerava mudanças culturais como algo essencialmente negativo. Deste modo, tudo em uma determinada sociedade ocorre por um motivo, e nada está errado ou deslocado. Este tipo de visão, se radicalizada, tende a um equívoco: considerar que tudo está equilibrado. Segundo Da Matta, há inclusive instituições sociais cujo papel é provocar o desequilíbrio dentro de um dado sistema cultural, como os sistemas educacionais e científicos, que podem criticar as forças tradicionais e forçar transformações em uma cultura ou sociedade. Por exemplo: tradicionalmente, na sociedadebrasileira, as mulheres eram vistas como indivíduos que deveriam estar restritos ao ambiente doméstico, cumprindo funções domésticas e reprodutivas sob a autoridade de indivíduos do gênero masculino, como seus pais e seus maridos – o que dificultaria, inclusive, a integração das mulheres no mercado de trabalho, bem como justificava diversos tipos de violência de gênero. Este aspecto, que chamamos de sexismo ou machismo, era tradicionalmente parte da cultura brasileira, de um modo geral (elemento, aliás, ainda não superado). Se adotássemos uma visão funcionalista radical, teríamos que considerar que o machismo é algo totalmente integrado à cultura brasileira e que a mudança de tal aspecto seria algo negativo, que poderia desestabilizar a sociedade como um todo. Ora, o próprio sistema educacional brasileiro, no qual aprendemos que homens e mulheres devem ter direitos iguais, está a serviço – ou deveria estar – da mudança daquele aspecto cultural. Assim, o desequilíbrio e a mudança em uma cultura não pode ser visto como algo necessariamente negativo. Entretanto, segue Da Matta, a “Revolução Funcionalista”, como denomina o impacto intelectual do trabalho de Malinowski, desloca o centro explicativo da Antropologia da sociedade que observa para a sociedade observada. Ou seja, se o Evolucionismo pregava a adequação de todas as diferenças sociais à sua sociedade (ou aos seus padrões culturais), o Funcionalismo considera que a sociedade observada deve ser explicada de acordo com os seus próprios padrões – os elementos de uma dada cultura só poderiam ser explicados de acordo com a função que desempenham dentro do seu próprio sistema, sem levar em consideração as concepções culturais do próprio observador. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO: DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 86-106. _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 4: HISTÓRIA DO CONCEITO DE CULTURA TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO O QUE É CULTURA? O termo “cultura”, tão presente em nossos dias e com diversos significados, é central nos estudos antropológicos. Para compreender seus diferentes sentidos, é necessário observar a origem e os usos dados à palavra ao longo do tempo. Sua origem é latina, datando de mais de 2 mil anos atrás, uma derivação de cultum, palavra do latim que designa o ato de cuidar da terra para obter desta os seus vegetais – o que no português moderno chamamos de “cultivar”. Trabalho rural, portanto, em sua origem. Por volta do século XV, na Europa, diversos estudiosos passaram a recuperar aspectos da antiguidade greco-romana, havendo uma verdadeira explosão dos estudos sobre a língua latina. Este momento, conhecido como Renascimento, que também ficaria conhecido pelo trabalho artístico de pessoas extraordinárias como Leonardo da Vinci e Michelangelo, assistiu a uma espécie de tentativa de retorno aos valores da Antiguidade, incluindo a recuperação do vocabulário antigo, que seria adaptado e utilizado para descrever diversos aspectos do mundo. É neste momento, por exemplo, que são criados termos como agricultura, assim como várias outras ligadas ao termo original, sempre relacionadas à mesma acepção de trabalho rural: vinicultura, avicultura, apicultura, floricultura, monocultura... O termo também foi apropriado ao longo da Época Moderna (séculos XVI-XVIII) com um sentido metafórico, para designar o cultivo de coisas do “espírito”, ou seja, a “cultura das letras”, “cultura das artes” etc. Este uso metafórico dizia respeito, portanto, a um conjunto restrito de elementos ligados àquilo que conhecemos atualmente como “cultura erudita” ou “alta cultura”. Quando, por exemplo, dizemos que pretendemos fazer um “programa cultural” no domingo, com uma visita ao museu ou assistir um concerto de música no teatro, estamos usando uma definição de “cultura” similar àquele uso metafórico, já que estaríamos “cultivando” os frutos do intelecto. Foi apenas no século XIX que uma nova concepção de “cultura” começou a se formar. Até aquele período, a palavra cultura na língua alemã, kultur, era utilizada pelos intelectuais para definir aqueles elementos que cultivariam o “espírito” (ou intelecto), como o teatro, a música, a pintura, a escultura... Era, portanto, uma definição elitista do que seria cultura, uma vez que tais elementos seriam apenas aqueles aos quais apenas as classes mais altas teriam acesso. Elementos populares, como a música de rua, as festas populares, a arte produzida por artesãos pobres eram todas designadas por um outro termo: “folclore”. Portanto, de acordo com aquela designação, “cultura” eram os elementos que definiam as classes ricas, enquanto “folclore” eram os elementos que caracterizavam os setores pobres. Quando ouvimos, atualmente, que música clássica é cultura e que funk não é cultura, estamos ouvindo uma definição de cultura que é elitista, tal como aquela do século XIX. Na França, também no século XIX, utilizava-se o termo civilization (“civilização”, em português) para designar a identidade de uma nação através das suas realizações materiais. Por exemplo, as pirâmides construídas pelos faraós faziam parte da civilização egípcia. A arte renascentista de Leonardo da Vinci e Michelangelo seriam provas da civilização italiana. Estes dois termos e estas duas noções – kultur e civilization – foram fundidos no século XIX pelo antropólogo evolucionista inglês Edward Tylor, que, em um livro de 1871, definiu pela primeira vez, em termos antropológicos, o conceito de “cultura”. Segundo o antropólogo, naquela que pode ser considerada, portanto, a primeira definição antropológica (e científica) do termo, cultura, “tomado em seu amplo sentido etnográfico [ou seja, antropológico] é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Para este pensador inglês, portanto, era fundamental notar o caráter adquirido da cultura, que se contrapunha fortemente à ideia de características herdadas biologicamente – cultura era tudo o que os homens aprendiam. Esta percepção já demonstrava que a Antropologia, mesmo que dentro de uma visão evolucionista, já rejeitava aquelas concepções deterministas que associavam a cultura a aspectos da natureza (tanto da biologia quanto do meio geográfico natural). A definição de Tylor, entretanto, já vinha se formando no pensamento europeu pelo menos dois séculos antes dele – embora não se utilizasse o termo cultura. O pensador inglês John Locke, por exemplo, em 1690, escreveu que a mente humana é originalmente uma “caixa vazia”, que vai sendo preenchida à medida em que nos desenvolvemos, com a convivência com outros membros da comunidade. Os homens teriam, segundo Locke, uma capacidade ilimitada de adquirir conhecimento. Trata-se daquilo que os antropólogos chamam hoje de endoculturação, o ato de colocar para dentro (endus, do grego “para dentro”) a cultura. Portanto, desde o século XVII, pelo menos, já estava posta a ideia de que não há princípios morais naturais, impressos biologicamente nos homens. Segundo o próprio Locke, as noções do que é certo ou errado variam consideravelmente de uma “tribo” para outra – ou seja, depende do aprendizado em cada contexto específico. Pensadores do século XVIII, como o filósofo iluminista genebrino Jean-Jacques Rousseau, acreditavam que o homem era o que ele aprendia a ser – daí a grande importância que atribuíam à educação. Rousseau, um pensador muito importante para os rumos políticos do século XVIII mas também um teórico ainda hoje muito valorizado no campo da educação, chegou a acreditar que até mesmo os outros grandes primatas (os orangotangos, os chimpanzés e os gorilas) poderiam ser “humanizados” caso fossem submetidos a um processo adequado de aprendizagem. Portanto, quando o britânico Edward Tylor,em 1871, definiu cultura em termos antropológicos, já existia uma base no pensamento europeu para aceitar que esta era todo o comportamento aprendido pelos seres humanos. A definição de Tylor está no seu livro Cultura Primitiva, publicado naquele ano. Embora a cultura não fosse transmitida geneticamente, mas sim aprendida, haveria, de acordo com sua reflexão, regras universais no seu desenvolvimento, podendo, portanto, haver um estudo sistemático da mesma. Podemos, assim, perceber que Tylor se enquadra na escola antropológica que conhecemos como evolucionista – uma vez que acreditava que todas as culturas se desenvolveriam da mesma forma, na direção da menos “evoluída” para a mais “evoluída”, o que foi, como vimos, objeto de grandes críticas posteriormente. Outro elemento importante na definição de Tylor é a consideração da cultura como um fenômeno natural. Ao construir o conceito deste modo, ele se defrontava, naquela época, com um sentimento religioso ainda muito presente no pensamento acadêmico e na opinião pública em geral. Por conta da noção teológica judaico-cristã de “livre arbítrio”, extremamente popular no século XIX, que colocava as ações humanas independentes de quaisquer determinações que não fossem as próprias vontades, não se podia aceitar que o comportamento humano obedecesse a certas regras. A opinião geral era que as ações humanas eram guiadas por desígnios exteriores à natureza – por exemplo, a ideia de que o ser humano possui uma origem e um “destino” sagrados, sendo livres para escolher entre o “bem” e o “mal”. Ao contrário desta visão religiosa e criando uma definição científica para os comportamentos humanos mais diversos, Tylor acreditava na existência de uma natureza humana, e esta poderia ser estudada através da comparação dos povos e dos seus níveis de desenvolvimento cultural (ou “graus de civilização”). Diferente da concepção que predominaria na Antropologia tempos mais tarde, as diferenças entre as culturas não significavam, de fato, uma diversidade entre as sociedades humanas, mas diferentes estágios em uma única e grande cultura universal. Tylor, como outros antropólogos evolucionistas, acreditava que existia uma unidade básica entre os homens, e que as diferenças se explicavam por uma diferença no estágio de evolução cultural (gradações entre a selvageria, o barbarismo e a civilização). A tarefa dos antropólogos, segundo esta visão, seria colocar todas as sociedades humanas dentro desta escala, em cujo topo estaria, como já vimos, a própria sociedade europeia, branca e cristã. Vimos que uma crítica bem fundamentada em relação a esta perspectiva evolucionista foi feita no final do século XIX por Franz Boas, antropólogo alemão estabelecido nos Estados Unidos, crítica que seria aprofundada no início do século XX através do trabalho de Bronislaw Malinowski. Estas críticas defendiam que cada povo possuía sua própria lógica no desenvolvimento da cultura, e não havia uma única regra geral para o surgimento e a transformação cultural. Abria-se a possibilidade de uma abordagem antropológica multilinear (ou seja, a cultura se desenvolve de maneira múltipla, e não em uma única direção). Alfred Kroeber, antropólogo norte-americano discípulo de Franz Boas também contribuiu para o desenvolvimento do conceito de cultura na Antropologia no século XX. Segundo Laraia, a grande preocupação deste estudioso foi estabelecer de forma nítida a distância entre o orgânico (isto é, biológico) e o cultural no estudo sobre os seres humanos. Kroeber, que publicou em 1917 o artigo O Superorgânico, acreditava que, sem dúvida, os seres humanos têm as mesmas necessidades naturais – comer, dormir, relações sexuais... Entretanto, a maneira de satisfazer tais necessidades é distinta, varia de acordo com a cultura. Para Kroeber, todas as ações humanas dependem do aprendizado. Por isso o título do seu artigo é O Superorgânico, pois o ser humano estaria acima (super, que significa “sobre”) das suas determinações biológicas, ao contrário dos outros animais. O autor tratou da existência do ser humano enquanto uma espécie biológica; escreveu sobre o seu estabelecimento no mundo, em meio a outras espécies, através de um tipo de desenvolvimento inteiramente diferente das demais espécies: enquanto os outros animais tiveram que aperfeiçoar, através de sucessivas gerações, o seu aparato biológico (como o urso polar, que desenvolveu uma densa pelagem branca, uma grossa camada de gordura e dentes longos e fortes para caçar animais de pele resistente), a espécie humana permaneceu sem alterações significativas em suas ferramentas corporais. Ao contrário: o animal humano inclusive perdeu algumas destas ferramentas (quando comparado com os seus ancestrais, o ser humano moderno perdeu, ao longo do processo evolutivo, os dentes caninos muito desenvolvidos que aqueles possuíam, pelos densos que cobriam todo o corpo, olfato supersensível para detectar possíveis presas ou predadores etc). O ser humano, ao contrário dos outros animais, desenvolveu um equipamento extracorpóreo capaz de ampliar sua força corporal, sua velocidade etc. O homem é capaz de construir ferramentas. O humano moderno, que é originário de regiões quentes na África, pôde se adaptar às mais diversas regiões do globo sem que para isso precisasse desenvolver equipamentos biológicos: ele pode construir um abrigo para protegê-lo do sol ou da chuva, costurar um casaco de pele para se proteger do frio, produzir calçados para caminhar por regiões pedregosas, usar lanças ou flechas para abater suas presas ou se proteger dos predadores. O organismo, entretanto, pôde permanecer inalterado em todas essas circunstâncias. Portanto, segundo Kroeber, o homem libertou-se do orgânico, sendo a única espécie capaz de se adaptar a qualquer região do globo terrestre – fato único entre os seres vivos. Entretanto, ao libertar-se do orgânico (ou seja, das limitações impostas pela natureza), o homem perdeu a capacidade (presente nos outros animais) de agir de acordo com o instinto, repetindo, a partir de características herdadas biologicamente, os antepassados. O homem ficou totalmente dependente do processo de aprendizado. Um cão ou um gato recém-nascido e retirado dos seus semelhantes, agirá, quando adulto, como um cão ou como um gato, latindo, miando, caçando, demarcando o território com sua urina... Todos estes comportamentos estão impressos em suas heranças biológicas. Um ser humano, ao contrário, depende de um longo processo de aprendizado com os demais indivíduos da sua espécie, até mesmo para dar vazão às suas necessidades biológicas. Este ponto defendido por Kroeber entrava diretamente em choque com o senso-comum, que acreditava (e ainda acredita) na transmissão genética de qualidades intelectuais e morais (negativas e positivas). Aquela ideia combatida por Kroeber, segundo a qual é possível herdar características morais (ou culturais, diríamos) biologicamente, havia se difundido muito a partir das teorias do criminalista italiano do século XIX Cesare Lombroso. Ele acreditava que a tendência inata para o crime poderia ser percebida em determinadas características anatômicas dos indivíduos (a teoria do “criminoso nato”, que já nasceria biologicamente determinado a ser um delinquente). Este tipo de teoria justificou, por exemplo, preconceitos raciais, que atribuíam certas características físicas à tendência para determinadas atividades culturais ou comportamentos. Estas teorias, que diziam, por exemplo, que pessoas negras possuíam mais tendência a cometer crimes, eram ensinadas como verdades científicas até o século XX, inclusive no Brasil, nos cursos de Direito. Segundo Kroeber, entretanto, o ser humano não age de acordo com sua herança biológica, mas sempre de acordo com o meio sociocultural no qual foi socializado – isto é, no qual ocorreu sua endoculturação. Tudo o que o ser humano faz, portanto, ele aprendeu, de alguma forma, com outros seres humanos. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO: LARAIA,Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 25-52. _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 5: O MITO DA ORIGEM TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO COMO SURGIU A CULTURA? Como o ser humano se tornou diferente das outras espécies animais, agindo de maneira não determinada pela biologia, mas condicionado pela cultura? Poderíamos responder, facilmente, que o ser humano produziu cultura a partir do momento em que o seu cérebro, evoluído em relação aos demais primatas, foi capaz de fazê-lo. Esta resposta, entretanto, é uma tautologia: é como explicar que o mar é azul por refletir a cor do céu, e este é azul por refletir o mar. As questões de fundo a explicar são: como e por que o cérebro humano se desenvolveu a tal nível de complexidade, de modo a ser diferenciado de todos os demais? A cultura se desenvolveu de maneira abrupta ou foi um longo processo? Segundo alguns especialistas em paleontologia humana, o que viria a ser o cérebro humano começou o seu processo de desenvolvimento a partir do momento em que nossos antepassados remotos (e antepassados de todos os outros primatas) foram submetidos a uma vida arborícola – ou seja, passaram a viver em árvores. Neste momento, iniciado há mais de 50 milhões de anos, o faro (essencial entre os outros mamíferos) perdeu lentamente a importância, sendo substituído paulatinamente pela visão – desenvolvendo-se, a partir daí, uma visão estereoscópica (a visão a partir de dois pontos ligeiramente diferentes, que dá a noção de profundidade). A vida em árvores requeria dos antepassados dos primatas uma visão muito apurada, para que se pudesse, por exemplo, calcular com precisão a distância entre os galhos, fundamental para a locomoção no novo habitat. Com isso, a caixa craniana começou a passar por mudanças, com os olhos sendo posicionados na parte da frente e com a redução da cana nasal (animais que dependem muito do faro, como os cães, possuem a cana nasal, o “focinho”, mais alongado). O desenvolvimento da visão estereoscópica aliada à capacidade de utilização das mãos – que foram liberadas da função de sustentar o peso do corpo no chão – contribuiu para a percepção tridimensional das coisas por parte daqueles animais – algo inexistente nos demais mamíferos. Esta capacidade de manipular objetos, pegando-o e examinando-o, também possibilita a atribuição de significados a estes: a forma, o peso, a dimensão e a cor formaram uma nova dimensão da percepção sobre os objetos. Cada vez mais, o cérebro recebia informações novas e era estimulado – e, ao longo de milhares de gerações, indivíduos que nasciam com uma capacidade neuronal mais apurada para receber e processar tais estímulos ganhavam vantagem em relação aos demais indivíduos da espécie. Este processo é conhecido como “seleção natural”, no qual novas características surgidas aleatoriamente por conta de mutações genéticas acabavam por se mostrar fundamentais em determinado meio ambiente, levando à transformação da espécie. O bipedismo, ou bipedalismo, ou ainda bipedia – isto é, a capacidade de andar sobre dois pés – também foi importante neste conjunto de transformações. Capacidade exclusiva de primatas e cangurus entre os mamíferos, decorre, segundo se acredita, de pressões do processo de seleção natural: a necessidade de parecer maior para intimidar predadores, transportar objetos (como alimentos ou filhotes) e aumentar o campo de visão. O andar ereto proporcionou de forma mais aguda a liberação dos membros anteriores (os braços), e a habilidade manual daí decorrente proporcionou ainda mais estímulos ao cérebro, desenvolvendo-se desta forma a inteligência. A cultura seria, portanto, consequência deste processo de desenvolvimento cerebral – e a nossa espécie, o Homo sapiens, que surgiu há cerca de 300 mil anos, estaria marcada fundamentalmente por esta capacidade de produzir cultura e de agir a partir dela. Mas as explicações para o surgimento da cultura vão além da paleontologia e da história biológica do desenvolvimento do cérebro humano e das suas capacidades. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, por exemplo, acredita que a cultura surgiu no exato momento em que o homem criou a primeira regra, a primeira norma. Segundo o antropólogo, esta seria a proibição do incesto (ou seja, a interdição sexual dos homens a certas categorias de mulheres – como a mãe, a filha e a irmã). Este padrão de comportamento é universal – logo, concluiu Lévi-Strauss, deve ter sido a primeira regra social criada entre os seres humanos, constituindo, portanto, a origem do comportamento de base cultural. Outros antropólogos, como o norte-americano Leslie White, acreditam que o surgimento da cultura se deu quando os seres humanos se tornaram capazes de produzir símbolos – ou seja, passaram a representar coisas (materiais ou abstratas) através de ideias. De fato, apenas o ser humano pode atribuir e compreender significados de objetos, significados que podem variar de uma cultura para outra. Um exemplo é o significado da cor preta como luto entre nós (os ocidentais), e da cor branca entre os chineses com o mesmo sentido – nenhum outro animal além dos humanos pode perceber este significado. Segundo White, nem mesmo outro primata, como os chimpanzés, que possuem mais de 98,7% do DNA idêntico ao do ser humano, poderia atribuir a um pedaço de pano a tremular em um mastro o significado de uma bandeira, simbolizando uma nação, por exemplo. Estas explicações para o aparecimento da cultura, seja por parte de cientistas naturais ou sociais, aceitam a existência de um “ponto crítico” – um dado momento, um salto repentino, no qual a nossa espécie tornou-se capaz de perceber o mundo de determinada maneira, atribuir-lhe significados e agir a partir destes. Segundo Laraia, este tipo de abordagem não difere muito de uma concepção religiosa do ser humano e de sua “criação”: o ser humano teve cultura no momento em que o Criador, a partir da configuração de determinadas características biológicas, conferiu-lhe uma “alma”. Seria uma apropriação científica de uma explicação religiosa. Observe: Laraia não contesta a narrativa religiosa, mas aponta que o pensamento científico não pode ser uma transposição do discurso religioso. O pensamento científico deve ser pautado por critérios científicos. A ideia de um “ponto crítico” no surgimento da cultura é, portanto, considerada uma impossibilidade científica, sobretudo por um motivo: nada na natureza acontece por saltos. O “salto” da natureza para cultura não aconteceu em uma ou algumas gerações; foi um processo extremamente lento. Como vimos no início do texto, o processo de transformação biológica que desembocou na estrutura neuronal do ser humano moderno aconteceu ao longo de muitos milhões de anos, e não de maneira abrupta. O antropólogo norte-americano Clifford Geertz, em um artigo da década de 1960, alegou, a partir da própria paleoantropologia, que este processo é mais complexo do que se imaginava. O Australopiteco africano, um gênero de hominídeo que viveu há cerca de 3 milhões de anos, media no máximo 1,2 m de altura e possuía cerca de 1/3 do volume cerebral do ser humano moderno. Mesmo assim, era capaz de manufaturar objetos e se organizar em grupos para caçar. O pequeno volume cerebral, aliado à conformação da caixa craniana, indica que é pouco provável que possuísse uma linguagem complexa. Entretanto, a própria capacidade de organização para a caça e a produção de instrumentos indica também que possuíam algum nível de comunicação superior ao dos demais primatas. Mas, o que isto significa? Qual a importância das capacidades de organização de uma espécie de hominídeo que viveu há milhões de anos para entendermos o desenvolvimento da cultura? Acontece que a existência de um ancestral humano com cérebro pequeno e com capacidade (ainda que limitada) de se comunicar e transmitir, de alguma forma, experiência (para caçar ou produzir objetos) indica quea cultura não apareceu após o pleno desenvolvimento cerebral – ou seja, a cultura não passou a existir apenas com o surgimento da nossa espécie, há 300 mil anos. Outras espécies humanas que antecederam a nossa – como o Homo habilis (2,2 milhões de anos) e o Homo erectus (cerca de 1,8 milhões de anos atrás) – deixaram nos registros fósseis e arqueológicos evidências de que eram capazes de produzir objetos e se organizar para realizar trabalhos como a obtenção de alimentos e mesmo produzir fogo, tarefas que exigiam técnicas que só poderiam ser transmitidas e apuradas com algum nível de sofisticação comunicacional. É evidente, da mesma forma, que os indivíduos que demonstravam maior capacidade no desenvolvimento destas capacidades comunicacionais – o que tem relação direta com a dimensão e o funcionamento do cérebro – acabavam por ter vantagens sobre os demais indivíduos, forçando, assim, o processo de transformação da espécie que conhecemos como “evolução humana” e que resultaria, centenas de milhares de anos depois, na emergência do Homo sapiens. Segundo Geertz, a cultura se desenvolveu simultaneamente ao aparato biológico humano. A cultura, portanto, não foi simplesmente resultado de uma evolução biológica – ela não foi uma capacidade que apareceu espontaneamente na nossa espécie, o Homo sapiens, quando este já apresentava as características biológicas atuais. Ao contrário, a cultura foi um fator indutor destas mudanças, uma vez que o cérebro se transformou atendendo a crescente complexidade da cultura – capacidade de dotar o mundo de significados e de transmitir estes mesmos significados aos outros membros do grupo. Os homens e as mulheres de hoje, isto é, o ser humano moderno, a espécie Homo sapiens, única espécie humana a habitar o planeta atualmente, não é apenas capaz de produzir cultura. Ela é igualmente produto da cultura, que já existia – embora em graus diferentes – em espécies que nos antecederam. Entretanto, como os antropólogos encaram atualmente a cultura? Não existe uma resposta única; os antropólogos de hoje – assim como os do passado – divergem na explicação da cultura, sobretudo de como o ser humano a utiliza para agir no mundo. Há tantas explicações para o funcionamento da cultura quanto há linhas antropológicas diferentes atualmente. Alguns antropólogos (como os norte-americanos Leslie White e Marshall Sahlins) a consideram simplesmente um sistema adaptativo. Estes antropólogos, que são designados como “neoevolucionistas”, consideram que a cultura é uma resposta humana ao meio. Assim, organização política, religião etc. serviriam para adaptar o ser humano às suas necessidades biológicas – inclusive ao meio geográfico. Esta concepção é muito criticada por sua semelhança com os antigos determinismos. Nesta concepção, toda mudança na cultura responde a uma necessidade material (assim como na seleção natural, na qual o mais adaptado biologicamente sobrevive, em modelo proposto por Darwin no século XIX): necessidade de alimentação, controle ambiental, controle de população... Estas seriam as causas para a existência dos elementos culturais. Em conflito com esta visão da cultura como um sistema adaptativo, outros antropólogos defendem as chamadas teorias idealistas da cultura. Estes estudiosos, como o norte-americano Clifford Geertz e o francês Claude Lévi-Strauss, defendem o estudo das culturas a partir dos próprios sistemas explicativos das sociedades estudadas. Para estes pensadores, a cultura é todo um sistema de conhecimentos obrigatórios para indivíduos de uma determinada comunidade, para que estes possam agir naquele grupo – é, portanto, um sistema observável, como a própria linguagem. Geertz, em particular, defende que a cultura não é um determinado complexo de comportamentos concretos dos seres humanos, mas um conjunto de regras, normas, instruções – na linguagem da informática, um programa, ou software. Segundo este antropólogo, todos os seres humanos nascem com as mesmas capacidades (o mesmo hardware, o cérebro), mas vão agir de acordo com a cultura (o software). Assim, todos nascemos com a possibilidade de viver a vida de mil maneiras diferentes, mas acabamos vivendo uma única vida – porque agimos de acordo com este programa, a cultura. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO: LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 53-58. _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 6: A CULTURA COMO LENTE TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO COMO A CULTURA AGE? Vimos que o conceito de cultura, desde a sua primeira formulação antropológica, no final do século XIX, por Edward Tylor, já reconhecia o caráter de aprendizado da mesma: a cultura não é algo do plano biológico que já nasce com os indivíduos, mas é adquirida ao longo da vida, no contato com outros seres humanos. Uma concepção antropológica que considera a cultura como um sistema simbólico, desenvolvida principalmente por Clifford Geertz na segunda metade do século XX, segundo a qual a cultura é uma espécie de programa que os seres humanos aprendem durante a vida e a partir do qual eles agem, mantém aquela formulação primordial: a cultura é adquirida. É preciso, entretanto, ir além e discutir, a partir do conhecimento antropológico, como a cultura age, conformando os seres humanos, e como estes atuam sempre a partir da cultura. Um bom exemplo prático deste condicionamento cultural é oferecido pelos estudos desenvolvidos pela antropóloga norte-americana Ruth Benedict (1887-1948). Segundo esta autora, que escreveu livros considerados clássicos da Antropologia, como Padrões de Cultura (1934) e O Crisântemo e a Espada (1946), a cultura é como uma lente utilizada pelos seres humanos para enxergar o mundo. Muito mais uma metáfora do que propriamente um conceito, esta ideia de uma lente pode ser comparada com os óculos que muitos de nós utilizamos. Imagine, por exemplo, um indivíduo com um certo grau de miopia e que necessita fazer uso cotidianamente dos óculos. Ao longo do dia, é possível que este indivíduo não se dê conta de que está utilizando este dispositivo ótico para enxergar o mundo, criando a impressão de que está olhando diretamente, sem intermediários, o mundo tal como ele é. Entretanto, embora tenha se “esquecido” de que está utilizando óculos, a visão que este indivíduo têm do mundo é mediada por aquele mesmo dispositivo. Assim como as lentes dos óculos, a cultura está tão arraigada nos indivíduos que estes não percebem que o modo como enxergam o mundo – tanto o mundo físico como o mundo social, dos valores humanos – é resultado direto do condicionamento cultural que cada um e cada uma de nós passamos ao longo da vida. Assim, por exemplo, para um indivíduo da cidade e sem um conhecimento razoável de botânica, a floresta amazônica não passa de um amontoado mais ou menos uniforme de árvores grandes e de coloração verde. Para um indígena da floresta amazônica, entretanto, o mesmo cenário se apresenta de uma maneira completamente diferente. Em primeiro lugar, é difícil encontrar em alguma língua indígena, originalmente, uma palavra que signifique “árvore”. Isto porque nós, que fomos criados em cidades, generalizamos em uma palavra esta categoria de elementos que muitos aprendemos desde o jardim de infância que são formadas de um tronco marrom e uma copa folhada verde. Para um indivíduo nascido e criado no ambiente da floresta amazônica, entretanto, cada um daqueles elementos que denominamos geneticamente de “árvore” é um ser diferente um do outro, e elas são utilizadas como pontos de referência dentro das florestas, como locais sagrados, como remédio, alimento ou veneno – assim como para um homem ou uma mulher da cidade uma rua não é igual à outra, damos um nome diferente a cada uma e as utilizamos não só como vias de circulação, mas como pontos de referência, e até consideramos, às vezes, umas melhores doque outras, representando esta escala de valores em termos monetários, ou seja, de dinheiro, outro elemento da nossa cultura e que aprendemos, desde a infância, a atribuir um certo significado cultural. Poderíamos aqui dar vários exemplos de como uma mesma realidade – inclusive a realidade física – é vista de maneira diferente, dependendo da cultura de quem observa. Imagine um dia de inverno no Ártico, no Polo Norte, entre lagos congelados, montanhas cobertas de neve etc... Nós, nascidos e criados no Brasil, provavelmente enxergaríamos um grande deserto gelado e branco, ao contrário dos inuítes (que chamamos de “esquimós”, um termo que aqueles povos não utilizam), povos que vivem naquela região e que não têm uma palavra para “neve” ou para “branco”. Eles conseguem perceber centenas de variações dentro destas categorias, e por isso conseguem se guiar por aquelas paisagens congeladas e, na visão (ou cultura) estrangeira, uniformes, que para eles é cheia de significados. Reparem: do ponto de vista biológico, brasileiros e inuítes pertencem à mesma espécie (Homo sapiens) e possuem as mesmas capacidades físicas e intelectuais. Entretanto, os povos daquela região aprenderam a enxergar nuances naquilo que, entre os brasileiros, é considerado “branco”. Afinal, as pequenas diferenças de coloração na neve ou na superfície de um lago congelado podem significar a sobrevivência ou não de um grupo: qual neve pode ser utilizada para a construção temporária de um abrigo, em qual superfície congelada é possível abrir um buraco para a pesca, sobre qual trecho do lago é possível ou não caminhar...? A paisagem é a mesma, mas enxergamos aquilo que aprendemos, culturalmente, a ver. A cultura que aprendemos ou dentro da qual somos criados nos condiciona a reagir de maneira negativa quando alguém age fora do que é considerado correto (ou “normal”) pela maioria (ou seja, fora do “padrão cultural” vigente). Por exemplo, ainda é muito comum em nossa sociedade a discriminação contra a população LGTTB, inclusive através de atos de violência física, que conhecemos como homofobia mas que atinge grupos além dos homossexuais. Entretanto, entre algumas comunidades indígenas norte-americanas, por exemplo, os indivíduos que classificamos como homossexuais são considerados seres mágicos, que fazem a ligação entre o mundo humano e o mundo sobrenatural, e por isso são muito respeitados e têm lugar de destaque. Outro exemplo de elemento da sociedade ocidental contemporânea considerado fora do “padrão cultural” e que pode ser visto de maneiras diversas por culturas diversas é a prostituição. Atualmente, em nossa sociedade, as prostitutas são geralmente consideradas à margem da sociedade – isto é, na maioria das vezes estão fora daquilo que é considerado o “padrão cultural” e, por conta disso, são discriminadas. Entretanto, na Grécia antiga, por volta do século V antes da Era Comum, havia a figura da “prostituta do templo”, mulheres que, logo após a puberdade, dedicavam sua vida a um deus ou uma deusa, trabalhando como prostituta em seu templo. Eram vistas como uma espécie de sacerdotisa e possuíam um lugar respeitável naquela sociedade. Em outros contextos na sociedade grega da Antiguidade, categorias diversas de prostitutas eram vistas de forma diversa: havia aquelas que trabalhavam nas ruas, que eram pobres e não recebiam proteção de familiares masculinos (a sociedade grega antiga era extremamente patriarcal, machista, e mulheres que não possuíam membros masculinos nas suas famílias que as pudessem proteger viviam quase sempre em situação de marginalização social). Estas prostitutas mais pobres eram malvistas, consideradas membros muito rebaixados daquela sociedade. Havia, entretanto, mulheres de alta categoria social, bem relacionadas e conhecedoras de filosofia que também atuavam como prostitutas nos altos círculos sociais – estas mulheres eram bem vistas e mesmo elogiadas por membros destacados da sociedade grega. Isto é: uma mesma sociedade pode atribuir valores diferentes ao mesmo tipo de comportamento, a depender dos indivíduos que o praticam. Deste modo, podemos compreender que os valores que as pessoas atribuem a todos os aspectos da realidade decorrem da cultura na qual o observador está inserido – isto é, depende de um condicionamento cultural que é adquirido na vida social. A forma como os indivíduos enxergam o mundo (vendo uma cor branca ou vários tons de branco, ou dando significados diferentes à prostituição) sempre é determinada pela cultura. AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE MATERIAL DE APOIO AO ESTUDO FORAM EXTRAÍDAS DA SEGUINTE PUBLICAÇÃO: LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 65-79. _________________________________________________________________________ CURSO: PUBLICIDADE DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CULTURAL TEMA 7: ETNOCENTRISMO TEXTO PARA APOIO AO ESTUDO DIFERENÇAS CULTURAIS E ESTRANHAMENTOS Vimos anteriormente que a forma como enxergamos o mundo – seja o mundo físico, seja o mundo criado pelos seres humanos, como os valores morais e a instituições culturais – é informada a partir do processo de endoculturação, isto é, pela cultura que adquirimos no contato com outros seres humanos, seja na família, nas instituições de ensino, no convívio com os amigos, com os vizinhos etc. Vimos, igualmente, que este aprendizado cultural é algo que ocorre durante toda a vida humana, fazendo parte de nós de uma forma tão integrada que sequer nos damos conta desta “lente” que é a nossa própria cultura – para lembrar a formulação da antropóloga Ruth Benedict. A cultura está tão arraigada na nossa consciência e a utilizamos de uma forma tão automática para interpretar o mundo ao nosso redor que acabamos por acreditar que o modo como enxergamos o mundo é o correto, verdadeiro, “natural”, e não algo que aprendemos. Isto é, acabamos por “naturalizar” a cultura. É preciso, assim, um certo esforço para “desnaturalizar” a forma como vemos o mundo, para nos darmos conta (ou aprendermos) que os seres humanos acessamos todo o nosso universo através da cultura que aprendemos – que é sempre histórica, isto é, própria de uma época, de um lugar, de um grupo sociocultural, mesmo que manifestada em um indivíduo particular. Segundo o antropólogo Roque B. Laraia, até mesmo comportamentos que identificamos geralmente como “naturais”, ou até mesmo com a fisiologia humana, com as nossas funções biológicas, são conformados pela cultura. Podemos tomar como exemplo o riso, característica dos humanos e dos primatas superiores. O riso é composto, basicamente, pela contração de determinados músculos da face e da emissão de um ruído. Podemos, portanto, dizer que o riso é uma função natural de um certo grupo de animais, e o fato de que sorrimos cotidianamente poderia significar que este ato pertence à natureza, exclusivamente. Entretanto, se pararmos para refletir a respeito, percebemos que as pessoas riem de maneira diversa e por motivos também diversos. Podemos acreditar, em um primeiro momento, que todos os japoneses ou todos os italianos riem da mesma maneira. Mas entre os japoneses ou italianos eles conseguem muito bem distinguir as variações de pessoa para pessoa; da mesma forma, um japonês ou um italiano poderia acreditar que todos nós, brasileiros, rimos da mesma maneira, embora saibamos que cada indivíduo tem a sua particularidade. Além da forma, os motivos também variam de cultura a cultura. Por exemplo: comédias tipo pastelão norte-americanas, com um humor que costumamos chamar de “inocente”, com situações como tortas na cara, tombos etc, não costumavam fazer muito sucesso no Brasil até um passado muito recente. Não riamos muito deste tipo de coisa. Aliás, o fato de que conhecemos este tipo de humor – presente em filmes e programas antigos de TV, como O Gordo e o Magro ou várias produções estreladas por Clarlie Chaplin e Buster Keaton – como humor “inocente” demonstra uma certa desvalorização da modalidade, como se a mesma fosse mais apropriada para crianças e não
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