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Enraizados - Os Hibridos Glocais

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Enraizados:
os híbridos glocais
Enraizados: os híbridos glocais
Dudu de Morro Agudo
ApoioPrograma Petrobras Cultural
Copyright © 2010 Dudu de Morro Agudo
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
projeto gráfi co
CUBICULO
ENRAIZADOS: OS HÍBRIDOS GLOCAIS
produtor gráfi co
SIDNEI BALBINO
designer assistente
DANIEL FROTA
revisão
CAMILLA SAVOIA
CAROLINA CASARIN
ITALA MADUELL
revisão tipográfi ca
CAMILLA SAVOIA 
D897e
Dudu, de Morro Agudo, 1979-
Enraizados, os híbridos locais / Dudu de Morro Agudo. - Rio de Janeiro : 
Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas)
Apêndice 
ISBN 978-85-7820-053-4
1. Dudu, de Morro Agudo, 1979-. 2. Movimento Enraizados (Projeto 
cultural). 3. Músicos de rap - Brasil - Biografi a. 3. Hip-hop (Cultura 
popular) - Rio de Janeiro (RJ). 4. Rap (Música) - Rio de Janeiro (RJ). 
I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. II. Série.
10-5555. CDD: 927.845
 CDU: 929:78.067.26
27.10.10 29.10.10 022285
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401
LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
CEP: 22.440-030
TEL: 21 2529-6974
TELEFAX: 21 2239-7399
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sem-
pre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualifi car 
ou autorizar a produção cultural dos artistas que se 
encontram na periferia por critérios sociais, econômi-
cos e culturais. Faz parte da percepção de que a cul-
tura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportu-
nidade de ter sua voz.
No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba-
lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas 
procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ-
nicos, profundamente conectados com experiências 
sociais específi cas. Não raro, boa parte dessas histórias 
assume contornos biográfi cos de um sujeito ou de um 
grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas 
condições socioeconômicas e da afi rmação cultural de 
suas comunidades.
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, 
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem-
plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros 
tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase 
desta coleção. 
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con-
tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar 
não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas 
experiências novas formas de responder a questões 
culturais, sociais e políticas emergentes. Afi nal, como 
diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da 
periferia se impõe como um dos movimentos culturais 
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-
vel dicção proativa e um claro projeto de transformação 
social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação 
nas práticas que atualmente se desdobram no pano-
rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes 
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece 
hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-
tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-
ral, sua história ainda está para ser contada.
É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem 
como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas 
desse novo capítulo da memória cultural brasileira. 
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história. 
Heloisa Buarque de Hollanda
Agradecimentos
Agradecemos a Heloisa Buarque de Hollanda pela opor-
tunidade. Aos Enraizados do Mundo, quiçá do Universo, 
e ao nosso patrocinador maior: Deus, pelo milagre de 
transformar cada barrigudinho melequento das peri-
ferias em grandes homens e mulheres, grandes líderes 
das quebradas e grandes articuladores da cultura de 
raiz. Aos amigos e familiares, não precisamos agrade-
cer, já que eles existem para nos apoiar mesmo, amigos 
e parentes são pra essas coisas. É nóis, vagabundo! 
Sumário
12 Introdução
14 Apresentação
16 Prefácio – por Luiz Carlos Dumontt
20 Cap.01 Antes de tudo
 Um líder mirim
 Primeiro contato com a arte
 Trabalho: como conseguir grana?
 O rap: como conheci e por que pratiquei
 Cabeça vazia: ofi cina do diabo
56 Cap.02 Enraizados: como começou?
 A criação do Movimento Enraizados
 Portal Enraizados
 Iniciando projetos
 Enlaçado pelo Enraizados
 A imprensa nos descobriu e descobrimos
 a imprensa
 2003: um ano divisor de águas
 A experiência de mobilizar e entreter
 O fi m do começo…
 Ousadia: deixe-me ir, preciso andar…
 O Neoenraizados
 Level two
144 Cap.03 Seguindo em frente
 A arte de criar o inimaginável
 Ousando em novos territórios
 Cada um com o seu cada um
 Nossas superproduções
 Dinheiro: solução ou mais problemas?
 Comunicação: passeando entre classes
 Se não sonhássemos, não sairíamos
 do lugar
 Algumas luzes no fi m do túnel
 Entre trancos e barrancos
226 Cap.04 Estamos só no início
 Acionando a Rede Enraizados
 Um elefante branco nas mãos
 Núcleo de mulheres do Enraizados:
 uma questão de gênero
 Mil fi tas acontecendo
 Articulação internacional
 O pulo do gato
 Nossa odisseia pela Europa
 Voltando para casa
291 Anexo - Movimento Enraizados por
 Movimento Enraizados (Frases no twitter)
301 Posfácio – por DJ Raffa
302 Imagens: índice e créditos
307 Sobre o autor
12
Introdução
A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer 
coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fi zeram. 
Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta 
da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, 
verifi car, e não aceitar tudo que a elas se propõe.
— Jean Piaget
Meu nome é Flávio Eduardo, no hip-hop me conhecem 
como Dudu de Morro Agudo ou simplesmente DMA. 
Nasci em 1979, em Morro Agudo, um bairro pobre e – 
para alguns – violento da cidade de Nova Iguaçu, na Bai-
xada Fluminense do Rio de Janeiro.
Sou fi lho de Guilherme, um vidraceiro, que hoje é conhe-
cido como Dico por causa de uma de minhas músicas – 
“Dico Sequela” –, e de Lúcia, uma ex-vendedora de rou-
pas que trabalha atualmente como merendeira numa 
escola do município do Rio de Janeiro.
Quando eu nasci, minha mãe queria me colocar o nome 
de Carlos Eduardo, porque na época passava uma novela 
e o galã tinha esse nome. Meu pai queria Flávio porque 
ele queria algum nome que lembrasse o Flamengo, a 
grande paixão dele. Então ele pensou: Fla, fl a, Flávio, 
corta o Carlos e deixa o Eduardo, pronto: Flávio Eduardo.
Meu pai é o tipo de sujeito que podemos chamar de boê-
mio, vive cada dia como se fosse o último de sua vida; por 
outro lado minha mãe é uma mulher centrada, que tem 
como maior qualidade a honestidade e dedicou sua vida 
ao trabalho para me dar uma educação de qualidade. A 
prova disso é que estudei toda a minha vida em escolas 
13
particulares até o momento em que entrei para a facul-
dade e não pudemos mais pagar pelos estudos.
Eu acho que sou um misto dos dois. Um cara que ama a 
noite, a vida, mas que tem uma preocupação excessiva 
com suas responsabilidades. Em toda a minha família, 
creio que sou a única pessoa que trabalha com arte. A 
maioria dos meus familiares começou a trabalhar bem 
cedo, boa parte em trabalhos braçais, e pouquíssimos 
conseguiram cursar uma universidade. A arte nunca foi 
bem-vista na minha casa. É comum nas famílias que vivem 
na periferia as crianças começarem a trabalhar bem cedo, 
para ajudar em casa ou para ter sua independência fi nan-
ceira, e para isso quase sempre param de estudar, repetindo 
a mesma história de vida de seus paise avós. 
As escolas públicas de nível fundamental e de nível 
médio na Baixada Fluminense não têm um ensino muito 
bom. Na prática eu já sabia, mas resolvi fazer uma pes-
quisa e fi quei ainda mais surpreso com o resultado. Des-
cobri que das 50 melhores escolas do país 42 são parti-
culares e apenas oito são públicas. Analisando a mesma 
tabela percebi que no estado do Rio de Janeiro estão 18 
das 50 melhores escolas de nível médio do país, e des-
sas 18, 14 são particulares e apenas quatro são públicas, 
e das quatro, três são federais e somente uma estadual. 
Descobri ainda nessa pesquisa que das 18 melhores 
escolas do nosso estado apenas uma está na Baixada 
Fluminense, em Nova Iguaçu, e é particular. Quer dizer, 
as pessoas de baixa renda jamais vão conseguir estudar 
em uma escola dessas.
Baseado nisso é fácil entender por que minha mãe fez de 
tudo para que eu estudasse em escola particular, mas 
nem por isso tive o melhor ensino. Poucos são os que 
conseguem quebrar esse ciclo social, mas graças a Deus 
eu sou um desses.
14
Apresentação
Não existe uma fórmula para o sucesso. 
Mas, para o fracasso, há uma infalível:
tentar agradar a todo mundo.
— Herbert Bayard Swope
Resolvi escrever este livro para contar de forma cronoló-
gica a história do Movimento Enraizados. A ideia é focar 
nas principais atividades, baseado naquilo que vivi e vivo 
dentro da organização.
Apesar de eu tê-lo criado em 1999, o Movimento Enrai-
zados é na verdade o refl exo das centenas de pessoas 
que por ali passam e vivem os mais variados e intensos 
momentos, dando forma, vida e movimento à organiza-
ção. Por isso, pela grande quantidade de histórias boas 
e interessantes, nem todos puderam entrar nesse livro.
O Movimento Enraizados é uma organização complexa 
que me permitiria abordar diversos eixos, mas decidi 
enfatizar a Rede Enraizados e seus processos de comu-
nicação capazes de agregar pessoas e organizações de 
todo o mundo para discutir e pensar soluções coletivas 
para problemas locais, que também podem se tornar 
soluções globais.
Segundo o professor Leonel Azevedo de Aguiar1, em um 
trecho do artigo “Apropriação das tecnologias de infor-
mação e estratégias da ecologia do virtual”, publicado 
na revista “Rastros”: “Enraizados na rede rizomática: 
1 Professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Comuni-
cação pela UFRJ. Jornalista formado pela UFF.
15
simultaneamente, local e global – ação política local e 
produção cultural global. Movimento hip-hop, aporte 
glocal para o ciberativismo político.”
Por muito tempo a história da organização se confundiu 
com a minha, por isso os primeiros textos falam um pouco 
da minha vida até o momento da criação do movimento. 
Creio que desta forma será mais fácil o entendimento de 
como tudo começou.
A ideia do livro é sintetizar algumas situações e também 
relatar os acontecimentos de forma objetiva para que o 
leitor tire suas próprias conclusões e talvez consiga per-
ceber neste material, após uma leve refl exão, o ponto 
chave em que uma intervenção cultural pode mudar o 
destino da juventude brasileira.
Então vamos lá!
16
Prefácio
Se houvesse uma única palavra para designar o que sig-
nifi ca o Movimento Enraizados em sua máxima ampli-
tude, seria difícil escolher termo mais exato que a pala-
vra milagre.
Uma ação despretensiosa que se desenvolve em um 
formato de rede-mãe com várias outras redes interliga-
das, provenientes de ideias tidas anteriormente como 
improváveis, descabidas e até mesmo impossíveis de 
acontecerem em um primeiro momento, isoladamente 
ou em cadeia, dada a sua origem e o histórico de seus 
criadores, sem conhecimento prévio de outras formas 
de mobilizações parecidas, nem conhecimentos acadê-
micos, nem tutores, nem padrinhos ricos, nem herança 
alguma de quaisquer outros agentes de fora ou de den-
tro do Movimento.
É complicado falar de si próprio, sem deixar transpare-
cer aquilo que nos impulsiona de forma defi nitiva para 
um horizonte desconhecido, desafi ador, porém insti-
gador e mola mestra de tudo o que fazemos, a nossa 
autoestima, nossa força maior; nosso caráter guerreiro, 
pronto para nos lançar do penhasco e construir as asas 
no meio do caminho antes que “esborrachemos” de cara 
no chão; essa força que provém do quase nada e domina 
toda a nossa alma, mente e corpo e nos possibilita tentar 
algo novo e inusitado e quase suicida é o que chamamos 
carinhosamente de militância cultural – interferir local-
mente com ações culturais em rede para discutirmos 
17
políticas públicas e mudar uma realidade histórica de 
exclusão sociocultural e econômica em nossas “quebra-
das” (bairros).
Nas próximas páginas o leitor se deparará com a quebra 
vigorosa de um paradigma presente em todas as comuni-
dades brasileiras e talvez do mundo, o ciclo de repetição 
a que estamos fadados a viver viciosamente em nossas 
vidas: se sou de família abastada, também serei abas-
tado, mas se sou de família pobre, continua rei pobre e 
deixarei a minha pobreza de herança para a minha prole. 
Essa noção está bem consolidada nas famílias de dou-
tores, médicos, militares, empresários e, acima de tudo, 
nas milhares de famílias de operários; sendo que no 
caso dos operários ou proletários, como queiram cha-
mar, há quase que uma infl exibilidade, é quase impossível 
para um fi lho de um proletário ser um médico, um doutor 
ou um ofi cial militar, porque o processo de exclusão social 
seguido de uma forte pressão psicológica nos impulsiona 
a pensar que as coisas são assim mesmo, que não há 
nada de mais em repetir a profi ssão do meu pai e não 
tentar uma medicina ou qualquer outra profi ssão que 
me faça ascender socialmente é uma praga que comba-
temos com treinamento psicológico na nossa escola de 
militância, o Cefam – Centro de Estudo e Formação de 
Ativismo e Militância, onde nós, por nós mesmos, inter-
pretamos as várias mensagens diretas, indiretas e até 
mesmo subliminares dos vários meios de comunicações 
que nos rotulam, nos cegam e nos condicionam a pensar 
que todo esse “esquema social” é a vontade de Deus.
Nessas páginas não há a verdade acima de tudo, muito 
menos todos os fatos que aconteceram na história do 
Movimento Enraizados, mas apenas um ponto de vista de 
um dos seus idealizadores e um dos maiores líderes que 
eu tenho o prazer de conhecer e chamar de meu amigo: 
DMA, Dudu de Morro Agudo, Flávio Eduardo. Não importa 
18
como o conheça, é mais um sobrevivente e um guerreiro 
dedicado, sempre voluntário para as tarefas mais difí-
ceis, líder da F.E. – Forças Especiais desse grande exér-
cito que se espalha desde os becos mais escuros e som-
brios das favelas até o asfalto, chegando até mesmo às 
praias da Zona Sul. A clareza de ideias, a multicultura-
lidade e principalmente a vivacidade de uma juventude 
pronta para a guerra social que se desenrola a todo o ins-
tante em nossas vidas arrebanha cada vez mais volun-
tários, fazendo-nos crescer em número e qualidade em 
uma taxa de não menos que 500% ao ano, começando 
com 3 cartas escritas inicialmente para militantes da 
cultura hip-hop, para a quebra da barreira dos 600.000 
acessos únicos mensais em nosso site na Internet.
Ganhamos prêmios, status e moral, mas o nosso maior 
orgulho é ganhar mais um irmão para essa grande famí-
lia que chamamos de Enraizados. Alguns nos chamam 
de loucos fantásticos, bairristas lunáticos ou provin-
cianos; nós preferimos nos autodesignar simplesmente 
de Enraizados; mas a defi nição de fora do movimento 
que mais nos deixa felizes é a do professor Leonel Aze-
vedo, um homem fantástico que nos chama carinhosa-
mente de híbridos glocais.
Obrigado a todos que nos ajudam das formas possíveis 
e imagináveis a divulgar, difundir e até mesmo explicar 
para os outros e para nós mesmos aquilo que fazemoscom tanto amor e afi nco, simplesmente por ser a nossa 
razão de viver.
Amamos nossa arte, nossa cultura
e todos os que nos cercam.
Boa leitura.
Luiz Carlos Dumontt
Às 17h22 do dia 23 de abril de 2010.
Cap.01
Antes de tudo
22
Um líder mirim
A diferença entre um chefe e um líder:
um chefe diz, Vá!
um líder diz, Vamos!
— E. M. Kelly
Meus pais sempre trabalharam fora, então eu fi cava sozi-
nho desde muito novo, tendo que cuidar dos afazeres de 
casa, tomar banho, ir para a escola, fazer as lições e fi car 
no sapatinho até meus pais chegarem, sendo frequente-
mente vigiado pelos vizinhos a pedido de minha mãe.
Lembro de poucas coisas da minha infância, apenas algu-
mas fi caram marcadas na memória, como, por exemplo, o 
dia em que aprendi a andar de bicicleta. Meu pai tirou as 
rodinhas auxiliares e me levou pra rua, comecei a peda-
lar e quando eu estava me sentindo seguro ele largou o 
selim. A partir daí começava a me equilibrar sozinho pelas 
ruas de Morro Agudo. Lembro também do dia em que meu 
pai me levou para um campo de futebol. Isso me marcou 
muito porque meu pai era do tipo provedor, apesar de não 
me levar muito para passear como os pais costumam 
fazer com os fi lhos, porque a principal preocupação dele 
era não deixar as coisas faltarem em casa, uma atitude 
muito comum entre os pais da periferia.
Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, 
até que cheguei na sexta série e comecei a desandar. Em 
1990, com apenas 11 anos de idade, gazeteei aula por 
23Antes de tudo
quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha mãe, 
que sempre acompanhava minhas presenças na escola 
através dos carimbos na caderneta escolar, não descon-
fi ava das minhas travessuras porque eu mandei fazer 
um carimbo de presença idêntico ao da escola.
Os diretores do Colégio Luiz Silva, o melhor colégio do 
bairro na época, enviavam bilhetes para minha casa, 
querendo saber por que eu não estava comparecendo às 
aulas, mas eu sempre interceptava os bilhetes e falsifi -
cava a assinatura da minha mãe, até que um dia envia-
ram um telegrama. Foi quando minha mãe descobriu toda 
a verdade e eu levei a última grande surra da minha vida. 
A televisão me ensinava a falsifi car documentos. Lem-
bro de uma entrevista que vi com um velho estelionatá-
rio que dizia: “No Brasil a burocracia dá brecha para a 
falsifi cação, todo papel que tem um carimbo vira origi-
nal.” Eu viajei na ideia do coroa e fi quei pensando onde 
eu poderia aplicar esse “ensinamento”, até o dia em que 
fi z na escola. Como deu certo na primeira vez, continuei 
fazendo até dar errado, e me lasquei.
Eu apanhava com frequência, minha mãe não admitia 
que eu vacilasse, e nesse dia ela me bateu tanto que os 
vizinhos vieram me socorrer, mas não adiantou, minha 
mãe colocou todo mundo pra correr e me desceu a por-
rada. Lembro de um diálogo entre minha mãe e uma vizi-
nha que tentava interceder por mim:
— Lúcia, solta ele, você vai machucar o menino!
— O fi lho é meu e eu vou educar do meu jeito. Eu paguei 
um ano de escola pra quê? Pra ele gazetear aula? Ele tá 
pensando que eu ganho dinheiro onde?
Nesse momento eu pensei: “Tô fodido, agora ela vai me 
matar.”
24 Enraizados: os híbridos glocais
Com 11 anos, liderei muitos garotos rumo à reprovação. 
Depois disso tomei gosto pelos estudos novamente. Em 
1992 comecei a estudar informática – minha grande 
paixão – num curso de Morro Agudo. Ainda não existia 
o famoso Windows, então eu fazia curso de Digitação, 
MS-DOS, Word Star e Lótus 123. Meus pais não queriam 
pagar o curso alegando que eu não terminava nada do 
que começava, mas eles acabaram cedendo porque se 
tratava de conhecimento para o meu futuro.
Nas aulas de digitação eu treinava digitando um funk 
famoso da época, cantado por MC Mascote e MC Neném, 
cujo nome era “Rap da Daniela Perez”.
Daniela Perez era atriz, fi lha da autora de telenovelas 
Glória Perez, e foi assassinada pelo colega de trabalho 
Guilherme de Pádua no dia 22 de dezembro de 1992. Foi 
um crime que abalou o Brasil inteiro. Os dois MCs, então, 
fi zeram essa música em homenagem à atriz e fi caram 
famosos por causa desse rap, a única música que falava 
da morte de Daniela autorizada por Glória Perez, que 
fi cou emocionada com a homenagem.
Foi nesse ano que conheci um dos meus melhores ami-
gos, o Luciano Gomes – que hoje é policial militar. Ele é 
como um irmão, mas nossa amizade começou na base 
da porrada. Ele liderava uma galera no colégio e eu lide-
rava outra, até que um dia, por causa de uma garota, a 
gente se enfrentou.
Ele diz que me bateu, mas eu tenho certeza que ganhei 
a briga. E a fama de vencedor fi cou mesmo pra mim por-
que ele faltou as aulas por dois dias após a briga e me deu 
tempo de contar minha vantagem para todo o colégio. Tem-
pos depois a gente começou a se falar e juntamos nossas 
duas galeras. Ficamos então com mais moral na escola do 
que os caras da oitava série, que eram nossos inimigos.
25Antes de tudo
Eu fazia curso de informática, mas não tinha computa-
dor para treinar. Usava o de um amigo — Marcelo Granja 
— que tinha um TK85, um computador que ligava na 
televisão, funcionava com Basic e gravava os progra-
mas num gravador cassete. É engraçado lembrar dessas 
parafernálias porque parece que sou muito velho, mas 
tenho apenas 30 anos. Depois ele ganhou um CP500, um 
computador muito esquisito, pois o teclado e o moni-
tor eram colados, uma peça única. Os pais do Marcelo 
tinham uma condição fi nanceira legal, provavelmente os 
de mais grana na rua onde eu morava, então os brinque-
dos eletrônicos caros chegavam primeiro na casa dele.
Nesta época eu já arrumava revistas e livros de Basic 
e fazia pequenos programas de computador, mas não 
conseguia gravar na fi ta cassete. Todos os dias eu perdia 
tudo o que digitava e refazia novamente no dia seguinte, 
o que serviu pra eu aprender lógica de programação 
antes mesmo de estudar a matéria na escola e tomar 
gosto por ela.
Tempos depois um outro amigo ganhou um 386 dos pais. 
É um grande amigo e se chama Marcio, mas é conhe-
cido no bairro como Marcio Periquito, porque ele tem 
um nariz igual ao do Luciano Huck. A gente troca muita 
ideia até hoje, ele também é apaixonado por informática 
e nunca foi apegado a bens materiais, o que permitia que 
eu estudasse e treinasse no computador dele.
A desigualdade social é presente até em Morro Agudo, 
onde algumas pessoas têm carros importados, casa 
bonita, condições de colocar o fi lho em boas escolas e 
cursos, enquanto o outro extremo não tem nem mesmo 
o que comer e deixa seus fi lhos jogados nas ruas. O que 
separa essas famílias, geografi camente, é, às vezes, 
apenas um muro. Eu estava no meio dessas duas reali-
dades, conhecendo e transitando de um lado ao outro e 
colocando essa galera para conversar.
26 Enraizados: os híbridos glocais
27Antes de tudo
28 Enraizados: os híbridos glocais
29Antes de tudo
30
Primeiro contato 
com a arte
Não tocamos para agradar os críticos. 
Tocamos o que queremos, quando queremos
e o quanto quisermos.
E temos motivos para tocar.
— Bob Marley
Em 1993 o funk carioca fi cou muito forte e presente na 
minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. 
Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas 
culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas 
policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a 
produção de arte: fazer letras de música. O processo de 
criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap 
pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia 
muita vergonha.
Eu ouvia música desde pequeno, infl uenciado por meu 
pai, que gostava de Tim Maia, Jorge Ben, Elis Regina, Car-
los Alberto, Roberta Miranda. Ele era – e acho que ainda 
é – apaixonado pela música da Roberta Miranda, mas não 
sabe cantar nenhuma, só os refrões e alguns pequenos 
trechos. Fazia questão de “zoar o plantão”fazendo uns 
sons esquisitos nas partes em que não sabia cantar.
Meu pai colocava o som no último volume pros vizinhos 
ouvirem também. Hoje ainda é assim, e se bobear é 
ainda pior. No quartinho que ele tem no terraço de casa, 
31Antes de tudo
construído para guardar as ferramentas, e que hoje é o 
local em que ele faz alguns trabalhos de artesanato, foi 
montada uma espécie de rádio comunitária. São alto-
falantes pendurados no telhado do terraço, ligados a 
um rádio velho – porém barulhento –, em que ele põe 
as músicas antigas pra tocar e agora também o rap da 
minha rapaziada. O maneiro disso tudo é que ele gosta 
de rap. Ele e minha avó foram as pessoas que sempre 
me deram força pra eu fazer rap, mesmo sem saberem 
exatamente o que era.
Com essa idade eu já curtia os bailes funk no clube Vas-
quinho de Morro Agudo. Uma época que tinha muita 
briga, quando quem morava no bairro da Tenda não podia 
ir pro outro lado da estação de trem porque era o bonde 
inimigo. Dentro do baile, que supostamente era um local 
neutro, a porrada era generalizada. Eu era novo, mas 
estava lá, com os caras mais velhos da minha rua. Era 
uma maluquice de garotos, a gente ia pro baile pegando 
carona na porta dos ônibus. Lembro de um camarada 
chamado Ripe, que apesar de ser novo era o mais alto do 
grupo. Ele sofreu um acidente quando estava pegando 
carona na porta do ônibus. O motorista, por pura mal-
dade, jogou a lateral do ônibus num caminhão, e um 
parafuso entrou no braço dele. Era sangue pra todos 
os lados. Levamos ele em casa, entregamos pra mãe, e 
depois fomos pro baile.
Também lembro de uma vez que fi quei com medo por-
que o motorista estava correndo muito e eu pulei do ôni-
bus em movimento. Ele estava descendo uma ladeira, 
a rua era de paralelepípedo, mas tinha muita areia, e 
quando o ônibus passava subia poeira como naqueles 
fi lmes antigos de faroeste. Eu ainda não tinha a malícia 
de pegar carona, então pulei e fi quei parado. Meu corpo 
foi jogado para a frente e só lembro de descer rolando o 
morro atrás do ônibus. O mundo ia girando cada vez mais 
32 Enraizados: os híbridos glocais
rápido, eu colocava a mão na frente para não machucar 
o rosto, e no fi nal deu tudo certo. Não machuquei o rosto, 
mas em compensação minha mão fi cou em carne viva, 
minha roupa toda rasgada, joelhos e cotovelos ralados, 
e mesmo assim fui curtir o baile. Quando cheguei dentro 
do Vasquinho fui no banheiro lavar as pernas, os braços 
e corri para o “trenzinho” dar meus gritos de guerra.
Nas brigas dos bailes e do bairro eu sempre me desta-
cava porque era bom de porrada. Além disso, os garo-
tos da minha idade sentiam certo medo de mim porque 
eu andava com os caras mais velhos, mais infl uentes. 
Quando algum moleque da minha idade vacilava era por-
rada nele. Eu não costumava praticar as mesmas ati-
vidades que os garotos da minha idade, não sabia sol-
tar pipa, até jogava bola direitinho, mas não gostava, e 
só jogava bola de gude porque a molecada toda estava 
jogando. Eu gostava mesmo era de trocar ideia, escre-
ver, desenhar e fazer programas de computador.
Ao mesmo tempo em que eu deveria ser educado, res-
peitar os mais velhos, eu também tinha que ser respei-
tado na rua, senão eu virava “comédia”. Nessa época eu 
pegava um teclado e um gravador do Marcelo Granja, um 
microfone com outro camarada, fazia bases de funk e 
gravava minhas músicas em casa. Foram minhas primei-
ras gravações de funk. Eu envolvi até o próprio Marcelo 
nas gravações, a gente fez uns sons zoando uma mina 
que era ex-namorada dele. Mostramos a fi ta pra ela, que 
mostrou pra mãe, e então deu uma confusão danada. Eu 
tenho certeza que elas gostaram do som, porque fi cou 
maneiro de verdade, mas a gente falava várias besteiras, 
e a mãe da menina tinha que impor respeito.
No fi nal de 1993 terminei o primeiro grau, e no próximo 
ano eu daria um passo importante: sairia do colégio onde 
estudei por toda a minha vida e iria estudar à noite, no 
33Antes de tudo
centro de Nova Iguaçu. Pra mim isso signifi cava a minha 
independência. Minha mãe queria que eu estudasse no 
colégio Iguaçuano, que pertencia à mesma família da 
minha antiga escola. Eu não concordava porque no Igua-
çuano estudavam uns playboys de Nova Iguaçu e nessa 
época eu já sentia o preconceito e a discriminação que 
esse pessoal tinha por mim.
Nós conversamos e eu convenci minha mãe a me matri-
cular num colégio chamado Ceni, pois somente lá tinha 
o curso que eu queria fazer: tecnologia em processa-
mento de dados. Depois que comecei a estudar percebi 
que o ensino não era muito bom, mas foi a partir dali 
que dei um rumo na minha vida e comecei a me tornar o 
cara que sou hoje.
Já no primeiro ano conheci o Netinho, que hoje também 
é policial militar. Ele sempre morou perto da minha casa, 
mas a gente nunca tinha trocado ideia antes do Ceni. 
Começamos a vir de ônibus juntos pra casa, até que nos 
falamos a primeira vez e fi camos logo camaradas. A gente 
tocava o maior terror no colégio. Ele já era bem funkeiro 
e me levava pra curtir os bailes em outros lugares da 
cidade. E eu levava ele para gravar umas músicas comigo.
34 Enraizados: os híbridos glocais
35Antes de tudo
36
Trabalho: como 
conseguir grana?
Sua profi ssão não é aquilo que traz para casa o seu salário. 
Sua profi ssão é aquilo que foi colocado
na Terra para você fazer com tal paixão e tal intensidade 
que se torna chamamento espiritual. 
— Vincent Van Gogh
Enquanto estudava, já arrumava um trocado instalando 
som de carro, pois além de informática eu também gos-
tava de eletrônica e usava os dois como um meio alter-
nativo de conseguir grana. Para os meus pais era difícil 
pagar meus estudos. Minha mãe trabalhava muito para 
pagar minha escola e eu não podia exigir mais dela.
Aprendi a consertar som de carro com o Mário, pai de um 
amigo da rua onde moro. Ele ganha a vida consertando 
aparelhos eletrônicos, e de tanto eu pedir me ensinou 
essa atividade que já me rendeu uns bons trocados. Mário 
dizia que som de carro quando para de funcionar quase 
sempre é problema da saída do próprio som, então eu 
tinha que trocar o CI (circuito interno). E isso era “batata”: 
quase sempre era mesmo esse o problema. 
Ganhei uma grana maneira consertando o rádio dos 
outros, e a fama ia aumentando, e cada vez chegava mais 
gente. Meu portão vivia cheio de carros. Com apenas 14 
anos já sabia dirigir, era um dos poucos garotos da rua 
que tinha essa habilidade. Até ensinei outros garotos, 
37Antes de tudo
como o César, fi lho do cara que me ensinou a conser-
tar aparelhos eletrônicos. Quem emprestava o carro era 
o Marcelo, um cara um pouco mais velho que eu, que 
morava no fi nal da rua. Meu pai nunca teve carro e até 
hoje não sabe dirigir, então tive que aprender olhando os 
outros na rua e pedindo para dar um rolé no carro deles.
Para arrumar um dinheiro a mais eu aprendi também a 
recondicionar alto-falantes, isso também foi o Mário 
quem me ensinou. Quando as pessoas chegavam à minha 
casa para instalar um som já vendia o pacote de servi-
ços completo. O tempo foi passando e a grana estava 
fi cando curta com esse esquema de recondicionamento 
de alto-falantes, então eu e o Netinho decidimos correr 
atrás de um trabalho de carteira assinada. Compramos 
o jornal no domingo e fomos atrás das vagas dos clas-
sifi cados. Chegamos até uma agência de empregos em 
Duque de Caxias, que nos mandou fazer uma entrevista 
na Comercial Lubi Peças, em Nova Iguaçu.
Estávamos confi antes, nosso primeiro emprego estava 
por vir. Na manhã do dia marcado chegamos à loja, que 
era uma autopeças, fazia calor, mas eu sentia frio na 
barriga. Nunca tinha passado por aquela situação antes. 
Tinha muita gente querendo aquela vaga de estágio. 
Fizemos uma entrevista com uma senhora chamada 
Sandra, uma morena de cabelos longos e encaracola-
dos, que estava grávidade uns sete ou oito meses. Ela 
era responsável pelo setor de recursos humanos. Fez a 
entrevista comigo e com o Netinho ao mesmo tempo.
Eu fi quei desanimado porque ela conversou muito mais 
com ele, me fez três perguntas e duas dúzias para ele, 
que fi cou muito mais confi ante. Surpreendentemente, 
no outro dia, foi o meu telefone que tocou, quer dizer, 
o da minha vizinha, pois a gente não tinha telefone em 
casa. Eu estava contratado, era o meu primeiro emprego. 
38 Enraizados: os híbridos glocais
Na verdade era um estágio em que eu deveria trabalhar 
na área de informática, mas me jogaram no setor fi nan-
ceiro. Fiquei três meses por lá, até que tive uma discus-
são com o dono da empresa.
Eu já estava puto da vida porque me tiraram do setor 
maravilhoso que eu estava trabalhando e me jogaram 
pra emitir nota fi scal. O rapaz que estava neste setor 
não dava conta do serviço e era sobrinho de um amigo do 
meu patrão. No novo setor, além de eu ter que lidar com 
a pressão dos vendedores, tinha que ir frequentemente 
trocar cheques por dinheiro na sala do todo-poderoso, 
que nem sempre estava de bom humor.
Eu chegava em casa todo dia muito cansado porque 
trabalhava e estudava e no trabalho estava um saco. 
Então parei pra conversar com o meu “coroa”, que me 
deu um conselho um tanto quanto perigoso para um 
cara da minha idade. Ele disse: “Filho, não deixe nin-
guém tirar onda com a tua cara, principalmente patrão, 
se tu sentir que ele tá abusando, tu manda logo ele se 
foder, porque tu não precisa dessa merda de trabalho, 
aqui em casa a gente dá um jeito, de fome tu não morre. 
Eu quero é que tu estude.”
Eu fi quei com aquilo martelando na cabeça. Ninguém vai 
tirar onda comigo, se o meu patrão meter uma bronca eu 
meto duas. Até que um dia subi para trocar um cheque 
e ele estava de mau humor, eu também não estava em 
um dos meus melhores dias, e o nosso encontro foi fatal.
A vontade dele prevalecia porque era dono da empresa 
e gostava de pisar nas pessoas, então quando ele ten-
tou me humilhar a gente se enfrentou, um garoto de 15 
anos batendo boca com um homem de quase 50. Pare-
cíamos gladiadores divertindo os funcionários que 
fi cavam ouvindo através da porta.
39Antes de tudo
Rolaram uns “puta que o pariu” pra cá, uns “fi lho da 
puta” pra lá, e quando eu já estava cansado de xingar, fui 
embora. Era quinta-feira de manhã quando aconteceu o 
bate-boca, e voltei ao trabalho somente no sábado, só 
pra pegar minhas coisas, mas o patrão já estava calmo 
e queria que eu continuasse na empresa. Ele ainda elo-
giou meu gênio forte, mas eu não quis fi car. Sabia que ali 
tinha acabado meu respeito por ele e não via como cres-
cer profi ssionalmente naquele lugar.
Apesar das alternativas que eu tive para ganhar dinheiro, 
e de ter conseguido emprego logo na primeira tentativa, 
essa não é a realidade da juventude das periferias do Rio 
de Janeiro, e quem sabe de todo o Brasil. Paula Martins 
Salles comenta em sua monografi a “Caminhos de Visi-
bilidade para a Juventude da Periferia da Metrópole do 
Rio de Janeiro”:
Os jovens das camadas populares têm oportunidades 
bastante limitadas de usufruir dessas características 
juvenis, não só porque precisam começar a trabalhar e 
construir família mais cedo, mas porque não têm como 
usufruir um período longo de despreocupação. [p. 9]
Tempos depois, quando o Movimento Enraizados produ-
ziu o documentário “E o meu direito ao emprego”, perce-
bemos que existem diversas juventudes no Brasil, e com-
parando a juventude pobre, que vive nas periferias das 
grande metrópoles, com a de classe média, concluímos 
que os jovens da periferia não têm as mesmas oportuni-
dades de trabalho porque não tiveram a mesma qualidade 
no ensino. Ainda de acordo com Paula Martins Salles: 
A juventude é uma construção social historicamente 
determinada, daí que não se pode pensá-la sem espe-
cifi car de qual juventude se está falando. As condições 
sociais, culturais, políticas e econômicas em que se 
encontram esses jovens são determinantes para se 
40 Enraizados: os híbridos glocais
entender e defi nir as experiências juvenis. A situação de 
desigualdade da sociedade brasileira torna esse recorte 
ainda mais fundamental. (...)
É importante ressaltar que a concepção moderna de 
juventude (adotada pelo senso comum até os dias de 
hoje) foi calcada principalmente na experiência dos 
jovens das classes médias. A esses, foi aberta a pos-
sibilidade de se alongar na fase de transição ao mundo 
do trabalho, visando um maior investimento na sua for-
mação profi ssional. Isso signifi cou uma ampliação con-
siderável no número de estudantes na sociedade (Corti, 
2004). Esse alongamento permitiu a esses jovens um 
adiamento de todas as marcas de entrada na vida adulta: 
trabalho, matrimônio e fi lhos. Como essa experiência 
de postergamento da vida adulta não foi e não é igual 
para todos os jovens torna-se necessário, ao se falar de 
juventude, defi nir de que juventude se está falando.
[Paula Martins Salles, pags 5 e 9]
42
O rap: como conheci 
e por que pratiquei
Ser você mesmo em um mundo 
que está constantemente tentando 
fazer de você outra coisa
 é a maior realização.
— Ralph Waldo Emerson
Assim que acabamos o primeiro grau, o Luciano Gomes 
foi morar em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Nós 
já éramos muito amigos nessa época, todo fi m de semana 
eu ia pra casa dele, e num desses fi ns de semana ele me 
mostrou uma fi ta cassete com uma música que eu achei 
bem mais maneira do que o funk carioca, uma fi ta com 
o rap do Racionais MCs. Creio que esse foi meu primeiro 
contato com o rap, e gostei na hora.
Para mim era tudo muito novo, as músicas duravam mui-
tos minutos, eram interessantes e inteligentes, e havia 
também histórias que falavam daquilo que eu vivia. 
Nessa época eu começava a refl etir a respeito da minha 
vida, a respeito da sociedade, começava a analisar o 
mundo por outro ângulo, e percebi que toda a angústia 
que eu já sentia era retratada naquelas músicas.
A partir daí, eu e o Luciano começamos a escrever algu-
mas letras de rap do hip-hop. Digo assim porque no Rio de 
Janeiro tínhamos que falar desta forma – rap do hip-hop 
– senão as pessoas achavam que era funk, e o funk já 
estava totalmente demonizado pela sociedade carioca.
43Antes de tudo
Nesse mesmo ano as músicas do Gabriel, o Pensador 
começaram a tocar nas rádios do Rio de Janeiro. Eu gos-
tava da maneira que ele escrevia e comprei o primeiro 
vinil dele, em que havia as músicas “Tô feliz (matei o pre-
sidente)” e “Indecência militar”, que eu gostava muito. 
Gabriel, o Pensador colaborou para a disseminação do 
rap e do hip-hop. Muita gente pode até não admitir, mas 
tem uma galera boa no rap do Rio de Janeiro que come-
çou ouvindo o rap do Gabriel, que é um puta letrista.
Com minha saída da Lubi Peças fi quei “quebrado”, tinha 
que arrumar outro emprego. Eu lembrei que meu primo 
Acácio, que tem o apelido de Junior Baiano, trabalhava 
num lava-jato, e fui ver se ele arrumava um trabalho pra 
mim. Ele disse que um camarada dele tinha um lava-
jato no Carmari, um bairro que apesar de ser na cidade 
de Nova Iguaçu era muito distante de onde eu morava, e 
que eu poderia arrumar um trabalho por lá. Me passou 
o endereço e eu fui pedir emprego. Eu já sabia dirigir e 
isso facilitou na hora da contratação. Chegando ao lava-
jato fi quei surpreso porque três caras que moravam na 
minha rua já trabalhavam lá, falei com o dono e comecei 
no mesmo dia.
O salário era R$15,00 por semana. Não tinha folga, não 
tinha dinheiro de passagem, não tinha dinheiro pra com-
prar almoço, e o salário mínimo na época era R$64,79. 
Mas eu estava feliz de estar trabalhando lá, era o meu 
dinheiro, conseguido, literalmente, com o meu suor.
Com o passar do tempo eu comecei a rezar pra chover, 
pois quando chovia a gente não trabalhava. Todos os 
funcionáriosdo lava-jato se reuniam, pegávamos uns 
baldes pra batucar e começávamos a cantar samba, eu 
sempre infi ltrava umas rimas no meio. Mas no outro dia, 
se fi zesse sol, tinha trabalho em triplo.
44 Enraizados: os híbridos glocais
Eu passava muito tempo na rua, e não a achava perigosa. 
Frequentemente via corpos nas esquinas, muitas vezes 
de conhecidos e até mesmo de amigos.
Era costume os pais levarem as crianças para verem os 
mortos. Minha mãe nunca me levou, ela morria de medo. 
Quando as pessoas não morriam assassinadas, eram 
atropeladas na Dutra e a molecada ia ver, esperando o 
rabecão chegar pra recolher o corpo.
A morte estava banalizada na minha área, a vida não 
tinha valor, e creio que hoje, por conta de muitos fato-
res, é ainda pior. Amigos de infância se mataram. Todo 
mundo sabe quem são os assassinos, mas ninguém fala 
nada. A polícia não investiga e fi ca tudo por isso mesmo. 
Eu fi cava pensando: “Por que a polícia não investiga as 
mortes que acontecem nas periferias?”
Teve um momento, na minha rua, em que todos anda-
vam armados, inclusive eu. Um dia minha mãe tomou um 
susto. Ela achou que eu estava meio estranho, entrava e 
saía muitas vezes do quarto. Ela esperou eu sair e abriu 
a porta do meu guarda-roupas, foi mexer nos meus livros 
e caiu um revólver calibre 38 no seu pé.
Nunca vi minha coroa chorar tanto. A arma era do meu 
tio, disse que ele tinha dado pra eu guardar. Ela acredi-
tou na minha versão, porém fi cou com um ódio mortal 
do meu tio.
Como eu tinha o costume de andar com os caras mais 
velhos, às vezes ouvia o que não devia. Sabia das pes-
soas que iriam morrer, dos assaltos que os caras iriam 
fazer, mas eu estava ali no meio e eles não se importa-
vam em falar desses asssuntos perto de mim, fi cavam 
tranquilos porque sabiam que eu era confi ável. Acho que 
na época eu tinha ainda 15 anos. E de uma maneira ou 
45Antes de tudo
de outra eles eram minha referência, eu achava maneiro 
o que eles faziam, apesar de não fazer igual. E isso é o 
que acontece com os moleques da minha área até hoje, 
eles acham que vão ter mais respeito dos outros se eles 
andarem armados, se roubarem ou praticarem outro 
delito qualquer. Minha sorte era que a palavra da minha 
mãe era sobreposta a qualquer outra, então valiam sem-
pre os valores que ela me passava.
Hoje em dia os valores estão perdidos, e se ninguém 
intervir para mudar essa realidade, muito garoto ainda 
vai morrer, porque em Morro Agudo não tem tráfi co de 
drogas igual ao centro do Rio de Janeiro, onde os bandi-
dos passeiam de fuzil na rua. Em Morro Agudo é grupo 
de extermíno, se as pessoas fumam maconha, cheiram, 
brigam em baile e roubam, não tem perdão, é morte.
Um dia estava saindo de casa, acho que ia pra escola, e 
dezenas de carros de polícia estavam parados na minha 
rua, procurando uma galera da área que dias antes tinha 
roubado um carro-forte. O pessoal do bairro fazia piada 
dizendo que se alguém chegasse na 56ªdelegacia, Morro 
Agudo, e dissesse que morava na minha rua, a Turíbio da 
Silva, fi cava preso. Os policiais diziam que toda a bandi-
dagem do bairro morava nessa rua. E tem gente que não 
entende de onde vinham as inspirações para o rap que 
eu escrevia. Toda essa história contraditória que eu vivia 
e testemunhava se transformava em arte através do rap. 
Ao mesmo tempo que eu estava tão próximo, me afas-
tava cada vez mais. 
Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque 
estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Dis-
tribuidora. O meu tio Humberto trabalha lá e estava 
me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época ouvia 
muito rap, GOG, Thaide, DJ Hum e não posso esquecer 
do Consciência X Atual. Tudo era na base da fi ta cassete. 
46 Enraizados: os híbridos glocais
Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas 
Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, 
me emprestou uma fi ta do CXA (Consciência X Atual). 
Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano, que na época já 
era o meu irmão, e a partir de então começamos a ouvir 
somente CXA.
Desde 1992 já existia a organização ATCON no Rio de 
Janeiro, e Gabriel, o Pensador, Def Yuri, TR, Big Richard, 
entre outros, já estavam no cenário, pensando e discu-
tindo o rap carioca. Mas eu e meu irmão estávamos ini-
ciando no processo sem ter noção da importância que 
tinha o movimento hip-hop pra essa galera. Hoje tenho 
orgulho de dizer que todos esses que citei, com exceção 
do Gabriel e do DJ Hum, são meus amigos, e que isso é 
uma honra pra mim.
O meu irmão conhecia e gostava de rap bem mais do que 
eu, e ele sempre tinha as novidades. Mas é importante 
deixar claro que a gente não tinha noção do que real-
mente era o hip-hop, nem mesmo sabíamos que exis-
tiam os famosos quatro elementos: rap, break, DJ e gra-
fi te. A gente gostava mesmo de rap, de ouvir e escrever 
algumas coisas, sempre protestos, seguindo a linha dos 
grupos que já conhecíamos.
47Antes de tudo
48
Cabeça vazia: 
ofi cina do diabo
O Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, 
não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los.
— Sigmund Freud
O estágio na Petrobras não “virava”, ou seja, não acon-
tecia, e por isso eu tinha que arrumar outra parada pra 
fazer. Foi então que o Serginho me chamou para traba-
lhar com ele numa obra, eu seria ajudante de pedreiro. 
Nunca tinha preparado uma massa em toda a minha 
vida, mas como eu estava precisando de grana, enca-
rei na boa. O Serginho é mais um dos meus amigos que 
entrou para a Polícia Militar.
Em julho de 1995 comecei a estagiar na Petrobras. Eu 
pegava o trem em Morro Agudo, descia em São Cristóvão 
e de lá ia andando. Levava cerca de uma hora até chegar 
no prédio da BR, como o pessoal chamava. Recebia um 
salário legal, ainda tinha vale-transporte, ticket refeição 
e quase sempre vinha um dinheiro a mais no pagamento.
Foi nessa época que comprei meu primeiro computa-
dor. Era um 486DX4-100, top de linha, os famosos Pen-
tium nem existiam. Fui aclamado por meus amigos que 
já tinham computador, agora eu estava no bonde dos 
caras que tinham computador, e não rolava inveja, eles 
sabiam que eu merecia ter minha própria máquina, que 
era um sonho e não um capricho, tanto que fi quei usando 
49Antes de tudo
o mesmo computador até 2002. Foi nesse computador 
que produzi muitos beats pra mim, para o Léo da XIII, 
para o Ultimato à Salvação, e muitos anos depois nele fi z 
também o Portal Enraizados e outros trabalhos.
Nesse ano o Netinho trabalhava no centro do Rio de 
Janeiro, nós vínhamos juntos de trem, da Central para 
Morro Agudo, nos divertindo na viagem. Ele vinha na 
porta, eu na parte de dentro, tinha uma preocupação 
porque dois amigos da minha rua já caíram do trem, os 
caras iam em cima porque o trem vivia lotado.
No ano seguinte saí da Petrobras e fi quei novamente 
desempregado. Estava com 17 anos e provavelmente não 
arrumaria emprego por causa do quartel, então fi quei só 
estudando e fazendo trabalhos de informática em casa.
O tempo livre para esses jovens está relacionado ao 
desemprego e à falta de oportunidades, portanto suas 
consequências são bastante diferentes do tempo livre 
dos jovens mais abastados.
[Paula Martins Salles, pag 9]
Eu fi z tanta merda esse ano que quase fui preso duas 
vezes. A primeira foi porque os moleques da minha rua 
andavam armados e um dia bateram de frente com o 
carro da polícia. Eles saíram correndo, a polícia atrás 
deles, e no desespero e sem ter onde se esconder, entra-
ram numa casa. A polícia fi cou com medo de entrar e os 
moleques mandarem bala, então a tia de um deles saiu 
chorando no portão e disse que a arma era minha. Os 
policiais foram bater na minha casa, meus pais estavam 
trabalhando, eu estava em casa, mas não abri a porta 
porque sabia que eles não poderiam invadir.
A rua estava cheia de gente. Eles foram embora, mas as 
fofoqueiras esperaram noponto de ônibus a minha mãe 
chegar do trabalho e disseram que a polícia estava me 
50 Enraizados: os híbridos glocais
procurando porque eu havia roubado o Ciep. Nem pre-
ciso dizer que minha mãe quase morreu do coração. 
Dessa vez eu nem tive culpa. Mas na semana seguinte 
falsifi quei umas carteiras de um clube aqui da cidade, 
o Dallas, porque lá tinha uma piscina enorme e a galera 
da minha rua queria curtir, mas não tínhamos grana pra 
entrar. A saída era falsifi car as carteiras.
Um dos sujeitos que andavam comigo conseguiu uma car-
teirinha do clube e me deu pra eu reproduzir. Fiz 12 idên-
ticas, mas não deu tempo de fazer os carimbos. Eu disse 
pra todo mundo não alterar a carteira, mas um dos garo-
tos passou uma canetinha em torno da foto para simular 
o carimbo. Quando nós chegamos no Dallas quem estava 
na porta olhando as carteirinhas era o dono do clube e o 
segurança particular dele, que era policial. Quase todas 
as carteirinhas passaram, mas na última o cara percebeu 
que era falsifi cada, justamente porque a tinta da caneti-
nha manchou. Então sujou pra todo mundo.
Eles enquadraram a gente na parede, seguraram nossas 
carteiras de identidade e chamaram a polícia. O dono do 
clube perguntou quem tinha feito e respondi dizendo que 
tinha sido eu. Ele me chamou de estelionatário, disse que 
minha mãe ia me visitar na cadeia. Lembrei do que havia 
acontecido na semana anterior e tentei argumentar, mas 
o cara nem deixava eu abrir a boca. Colocava a pistola 
9mm na minha cabeça, perguntava se eu era maluco, se 
eu sabia quantos anos de cadeia eu iria pegar por isso. 
Eu, tranquilo, disse: “Nenhum, nós somos todos menores 
de idade.” Então ele gritou que ia matar todo mundo pra 
gente deixar de bancar o malandro. Com muita argumen-
tação o cara liberou a gente, com a condição de levarmos 
a pessoa que deu a primeira carteirinha, pois ela seria 
expulsa do clube. Deixamos nossas identidades com 
ele como prova de que voltaríamos com o tal sujeito que 
51Antes de tudo
tinha a original. Assim que saímos do clube chegaram três 
carros de polícia. A gente estava de bicicleta e corremos 
muito, meu coração estava a mil por hora. No fi nal tudo 
deu certo, ninguém foi preso e ninguém morreu.
No ano seguinte comecei na Unig, uma universidade parti-
cular de Nova Iguaçu. Fiquei por lá uns dois anos, cursava 
Tecnologia em processamento de dados, mas não conse-
guia pagar. Minha mãe estava desempregada, eu também 
não arrumava mais grana, então tava tudo na conta do 
meu pai, que não conseguiu segurar. Ele até disse pra eu 
fi car que ele daria um jeito, mas eu não quis, porque pas-
sava por constrangimentos em sala de aula. Quem estava 
devendo a mensalidade não podia ter acesso à nota e 
era cobrado dentro de sala, na frente de todos, e isso me 
envergonhava muito, até que abandonei o curso.
52 Enraizados: os híbridos glocais
53Antes de tudo
Cap.02
Enraizados: como começou?
Cap.02
Enraizados: como começou?
58
A criação do 
Movimento Enraizados
Dou um destino para minha mente 
e o inconsciente trabalha em cima do caminho que devo seguir!
— Israel Ziller
Era tímido, não gostava de conversar com muita gente, 
nem de ser o centro das atenções, e se eu pudesse até 
preferiria passar despercebido, mas sempre gostei de 
fi car por dentro das coisas, saber de tudo o que acon-
tece, como acontece e por que acontece.
Assim que recebi minha carta de alforria do Exército, 
meu amigo Netinho informou que precisavam de uma 
pessoa no supermercado em que ele trabalhava. Neguei 
na hora. Não fazia sentido eu sair da Petrobras Distribui-
dora e entrar no supermercado Alto da Posse, um super-
mercado de que até então nunca tinha ouvido falar.
Porém a necessidade falou mais alto, e eu aceitei.
Comecei a trabalhar no mercado no dia 25 de novembro 
de 1997. Lembro que pensei em fi car somente uns três 
meses, até eu me estabilizar, por isso aceitei qualquer 
setor, e caí no de contas a pagar. Meu sonho sempre foi a 
área de informática e eu havia prometido para mim mesmo 
que só trabalharia se fosse nesta área, jamais aceitaria 
outra proposta. Na verdade, eu queria adquirir experiên-
cia na carteira e depois voltar para a universidade.
59Enraizados: como começou?
Quando me dei conta já estava há um ano no supermer-
cado, não era mais tão ligado aos camaradas do meu 
bairro e fi cava muito na casa do meu irmão, que nessa 
época morava na Abolição, bairro da Zona Norte do Rio 
de Janeiro. Foi nesse ano que conheci minha primeira 
namorada, a Shirley, com quem namorei sete meses, o 
namoro mais longo da minha vida até eu conhecer a Fer-
nanda Rocha, minha atual namorada, com quem estou 
há mais de dois anos.
Nesta época eu só ouvia rap, já tinha muitas fi tas cas-
sete, então eu e meu irmão, o Luciano Gomes, conhe-
cemos o Arariboia, um camarada que sabia tudo de rap, 
pelo menos bem mais do que a gente. Depois de algumas 
conversas surgiu o Humildes Pensativos, nosso primeiro 
grupo de rap. Escrevi muitas letras nessa época, inclu-
sive a música “Sacolinha”, que gravei no meu primeiro 
disco solo, “Rolo compressor”, dez anos depois.
O Humildes Pensativos nunca saiu do papel, simples-
mente pelo fato de eu não conseguir cantar em público e 
o meu irmão não conseguir cantar no ritmo. O Arariboia 
foi preso pouco tempo depois da criação do grupo, o que 
desandou tudo de vez. Terminei o namoro com a Shirley, 
me afastei da Abolição e voltei para Morro Agudo.
Em 1998, já estava muito envolvido com o rap. Escre-
via muitas letras, tinha ido algumas vezes ao show do 
Racionais MCs (grupo de maior projeção no hip-hop bra-
sileiro, chegaram a vender mais de um milhão de cópias 
do disco “Sobrevivendo no Inferno”), e também conhe-
cia a música de alguns grupos de rap que não eram tão 
populares no meio do hip-hop. Sentia a necessidade de 
aprender mais sobre essa cultura.
Algum tempo depois passei um mês em Barra do Piraí, 
cidade do interior do Rio de Janeiro, porque minha 
namorada estava grávida. Lá os dias pareciam mais 
60 Enraizados: os híbridos glocais
longos, eu tive tempo de refl etir sobre a minha vida e 
o que aconteceria dali para frente. A minha responsa-
bilidade aumentaria, e muito, com a chegada da minha 
primeira fi lha, a Bia.
Lembro que meu cunhado também gostava muito de 
rap. A gente fi cou amigo logo na primeira conversa, ele 
é um cara gente boa, molecão, leva a vida “na vaselina”. 
Ele disse que me apresentaria a um outro camarada 
que também gostava muito de rap, e que inclusive tinha 
um grupo chamado 2ª Via, o Wilson Neném, um cara 
negro, magro, que usava dreadlocks e que media mais 
ou menos 1,75m.
Conheci o Neném, como o chamam em Barra do Piraí, 
numa manhã ensolarada. Ele nos atendeu com cara de 
quem tinha acabado de acordar. Nesta época ainda não 
existia o Dudu de Morro Agudo, eu era o Flávio Eduardo 
ou o Cabeça, apelido que me colocaram na infância. O 
Neném tinha uma visão ideológica, fi losofava o tempo 
inteiro, às vezes muito sonhador, mas eu precisava 
dessa carga de positividade para ter a ideia de criar o 
que mais pra frente seria o Movimento Enraizados.
Eu já estava de saco cheio de fi car em Barra do Piraí, não 
tinha o que fazer na cidade. Passava um tempo na casa 
do Neném conversando sobre rap, ele me mostrando 
CDs de rap gringo. Lembro que ele me deu um disco do 
grupo Fugges, e a partir daí eu virei fã da Lauryn Hill. 
Ele também gostava muito de Thaíde e DJ Hum. Até hoje 
aprendo muito com ele, nos damos superbem, apesar de 
nossas personalidades serem bem diferentes.
Alguns dias depois o Neném me apresentou o Juninho, que 
também tinha dreadlocks. Eles pareciam artistas concei-
tuados, falavam bem e conheciam muito de música, os 
dois já eram integrantes de bandas, o Neném como DJ e o 
Juninho cantando. Eu me sentia feliz em estar com esses 
61Enraizados: como começou?
novos amigos, então osconvidei para o aniversário da 
minha namorada. Ela, por sua vez, convidou seus amigos 
e amigas, mas a galera do rap fi cava no lado B (entre eles) 
da festa, bebendo cerveja e fazendo rimas. 
Nesse dia, talvez por causa do álcool, eu improvisei muito 
bem, e improvisar nunca foi meu forte, minha parada era 
escrever letras de rap. Mas nesse dia o Neném se conven-
ceu de que eu era um bom rimador, e, por causa da minha 
performance, ele me convidou para integrar o grupo de 
rap 2ª Via. Quando o convite aconteceu, dentro de um ôni-
bus que seguia do bairro de Vila Helena para o centro de 
Barra do Piraí, eu não acreditei, principalmente porque o 
Neném me disse que tinha uns contatos na Sony e estava 
quase tudo certo para gravarmos um disco. 
Estava cada vez mais eufórico com o rap e o hip-hop, sons 
que eu começava a entender o fundamento. Andando 
pelas ruas do centro de Barra do Piraí passei por uma 
banca de jornal e comprei uma revista de hip-hop cha-
mada “Som na Caixa”. Comprei também canetas, lápis, 
borracha e um caderno pra escrever letras de rap, por-
que a inspiração vinha a toda hora. Quando cheguei em 
casa comecei a folhear a revista e vi algo interessante: 
o CD que vinha junto, além dos endereços de militantes 
do hip-hop. Eu pensei em escrever para todos aqueles 
endereços, mas não sabia o que dizer. 
Talvez dizer que eu era um cara gente boa, morador de 
Morro Agudo, no Rio de Janeiro, e que não entendia de 
rap, mas que gostaria de receber alguns materiais para 
estudar sobre essa cultura. Isso seria o mais correto, 
mas achei que as pessoas não dariam atenção a um 
cara tão sem história dentro do hip-hop como eu. Então 
decidi escrever outra história, contando que fazia parte 
de uma organização de hip-hop. Eu precisava arrumar 
rápido um nome para a tal organização que estava aca-
bando de criar.
62 Enraizados: os híbridos glocais
Pesquisando na internet encontrei uma frase do Tupac: 
“Quanto mais escura é a pele, mais profundas são as raí-
zes.” Achei a frase muito boa, forte. Lembrei também do 
Juninho, que sempre falava a palavra enraizado. Era uma 
espécie de gíria que somente ele usava, não sei bem se 
isso vem do reggae, mas ele falava essa frase com fre-
quência. Eu não tinha mais dúvidas. Fazia parte do Movi-
mento Enraizados, uma organização com o objetivo de 
interligar pessoas que praticam hip-hop em todo o Brasil.
Lembro que enviei apenas três cartas, uma para o Dime-
nor (Rodrigo de Oliveira), de São Paulo, outra para o Cas-
siano Pedra, de João Pessoa, na Paraíba, e por último 
para o Gil BV, de Teresina, no Piauí. Recebi o retorno 
do Dimenor e do Cassiano Pedra, que me informaram 
que enviaram meu endereço para alguns militantes de 
outros estados do Brasil, e que também gostariam de 
fazer parte do Movimento Enraizados.
Os dois foram os primeiros integrantes da organização 
que acabava de nascer.
Quando recebi as duas primeiras cartas senti uma feli-
cidade impossível de descrever. Foi algo que nunca mais 
senti na vida. Ser valorizado por um trabalho não tem a 
ver com ego, mas com autoestima. Passaram-se alguns 
dias e chegaram dezenas de cartas na minha casa. Eu 
tentava responder a todas, mas com a falta de tempo 
era inviável retribuir a enorme quantidade de cartas que 
chegavam. O custo dos correios estava fi cando alto e 
minha mãe começava a fi car preocupada porque eu não 
saía mais de casa. Era o tempo todo dedicado ao Movi-
mento Enraizados, lendo e respondendo cartas.
As histórias que os militantes relatavam eram impres-
sionantes, as pessoas queriam falar, se mostrar para 
mundo, mostrar o seu mundo, suas músicas, suas ideias 
e pinturas, mas não havia um canal para escoar toda 
63Enraizados: como começou?
essa arte, essa gana de comunicação. A propagação 
de endereços, poesias e desenhos foi devida aos fanzi-
nes, que eram febre na época. Existiam diversos títulos, 
em toda carta que eu recebia via um fanzine, às vezes o 
mesmo em cartas diferentes. 
Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais pro-
priamente da aglutinação da última sílaba da palavra 
magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Trata-
se de uma publicação despretensiosa. Engloba todo 
o tipo de temas, com especial incidência em histórias 
em quadrinhos, fi cção científi ca, poesia, música, femi-
nismo, em padrões experimentais. No Brasil o termo 
fanzine é genérico para toda produção independente. 
Houve uma distinção entre fanzines (feitos por fãs) e 
produção independente (produção artística inédita), 
mas a disseminação do termo fanzine fez com que toda 
a produção independente no Brasil, antes denominada 
boletim, fosse denominada fanzine.
Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/fanzine)
Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movi-
mento Enraizados, e pode ser que estejam certos por 
alguns momentos, mas somos um organismo vivo, 
mutante, assim qualquer defi nição expira rapidamente.
64 Enraizados: os híbridos glocais
65Enraizados: como começou?
66 Enraizados: os híbridos glocais
67Enraizados: como começou?
68
Portal Enraizados
Muita gente pequena
Em muitos lugares pequenos
Fazendo coisas pequenas
Mudará a face da Terra
— Provérbio Africano
Impulsionado por minha difi culdade fi nanceira, resolvi 
criar uma maneira que evitasse as cartas, foi assim que 
surgiu a ideia de fazer a versão 1.0 do Portal Enraizados. 
Por meio das cartas e dos fanzines percebi que meus 
novos correspondentes tinham necessidade de se comu-
nicar e mostrar sua arte para o mundo. Decidi usar minha 
experiência com programação para criar uma ferramenta 
que possibilitasse publicar textos, pinturas e músicas 
dos novos membros do Movimento Enraizados. A ferra-
menta ideal seria um site, mas havia um grave problema: 
eu era formado em uma linguagem de programação que 
não dava suporte à internet. Teoricamente eu não con-
seguiria fazer um site. Além disso, a internet não era tão 
popular em meados de 1999, quando surgiu esta ideia, e 
talvez o site não tivesse a utilidade que eu esperava.
Mesmo com todos os contras, fazer o site era a única 
solução prática que estava ao alcance naquele momento. 
Eu já tinha um computador e minha avó havia com-
prado uma linha telefônica com uma extensão até o meu 
quarto. A questão da internet estava resolvida, mesmo 
69Enraizados: como começou?
sendo uma internet que quando estava veloz chegava 
a no máximo 46kbps. Coloquei a mão na massa, baixei 
apostilas da internet e comecei a estudar HTML para 
poder construir o site. Aprendi também a editar imagens 
para produzir algumas coisas gráfi cas, como por exem-
plo, o logotipo do Movimento Enraizados.
Aliás, fazer o logotipo foi uma força-tarefa. Começou 
com uma vaga ideia que eu tive do que seria o símbolo 
que representaria a organização. Pedi, então, ajuda 
para um amigo que trabalhava na mesma empresa que 
eu, no departamento pessoal, o Luiz Antônio, um cama-
rada que com o passar do tempo se tornou um verda-
deiro irmão. Todos os dias a gente parava num bar pra 
beber umas cervejas e eu fi cava o tempo inteiro falando 
de Movimento Enraizados e hip-hop. Ele, que curtia 
mais rock, de tanto fi car ouvindo minhas histórias aca-
bou gostando de rap. O Luiz arrumou o desenho que eu 
comecei a fazer, mas ainda estava muito ruim, longe de 
ser um logotipo decente.
Então liguei para o Neném e pedi ajuda. O Neném, além 
de rapper, grafi teiro, b. boy e DJ, é ainda um dos melho-
res desenhistas que eu conheço. Inclusive foi ele quem 
me ensinou os primeiros passos no Corel Draw e no Pho-
toshop. Já desenhou para marcas como a Redley, a Qix e 
a Oceano, e hoje ele tem sua própria marca de roupas, a 
Jah Bless. Ele topou fazer o logo, então enviei pelo cor-
reio o esboço que eu e o Luiz criamos. 
Hoje a gente manda tudo por e-mail e usa algum ser-
vidor para baixar depois, mas antigamente era mais 
difícil. A saída era recorreraos correios e esperar um 
tempo até a pessoa receber, fazer o trabalho e enviar 
de volta. Uma semana depois fi cou pronto o logotipo 
que fi cou famoso no Brasil inteiro, totalmente diferente 
do esboço que enviamos.
70 Enraizados: os híbridos glocais
Assim como surgiram conceitos a respeito do nome 
Enraizados e da forma de trabalho da organização, não 
foi diferente com o logotipo. Ele tem alma e concei-
tos próprios, não é apenas um desenho, representa as 
etnias, o modo como trabalhamos nas comunidades: 
não vejo, não escuto e não falo. Teoricamente.
Em menos de um mês eu já sabia bastante de HTML, e 
coloquei o primeiro site do Movimento Enraizados no ar, 
com hospedagem e endereço gratuitos. (www.enraiza-
dos.cjb.net). Enviei cartas para todos que se correspon-
deram comigo e pedi que passassem o endereço do site 
para outras pessoas, e que também me enviassem tex-
tos por meio de cartas ou e-mail para que eu pudesse 
publicar no site. Como não havia tanta gente com acesso 
a internet, as cartas continuaram a chegar aos montes, 
mas eu tinha a vantagem de não ter obrigação de res-
ponder a todas, somente publicar no site.
O Portal Enraizados foi o primeiro projeto do Movimento 
Enraizados e está no ar até hoje, no endereço www.
enraizados.com.br. Ficava feliz quando comparava as 
estatísticas iniciais do site, em que havia somente 30 
acessos por mês, com as dos meses posteriores, e a 
cada novo acesso eu vibrava e tentava descobrir quem 
era. Percebia que a organização dava certo, que as pes-
soas estavam aderindo e que realmente o Movimento 
Enraizados se tornava aquilo que eu havia profetizado 
nas primeiras cartas.
Trabalhar para o desenvolvimento do Movimento Enrai-
zados era parte da minha rotina, e a cada dia eu induzia 
mais pessoas a fazer o mesmo. Meus amigos contribu-
íam com a organização sem saber ao certo o que era. 
Alguns achavam que era um hobby, e que mais cedo ou 
mais tarde eu desistiria da brincadeira. 
72
Iniciando projetos
Se não puder voar, corra. 
Se não puder correr, ande. 
Se não puder andar, rasteje, 
mas continue em frente de qualquer jeito.
— Martin Luther King
O Movimento Enraizados se comunicava com São Paulo, 
Paraíba e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro os locais 
de maior engajamento eram Nova Iguaçu e Barra do Piraí. 
Cada vez mais pessoas entravam em contato, enviavam 
músicas e fotografi as. As perguntas sobre os projetos 
que o Movimento Enraizados realizava no Rio de Janeiro 
eram frequentes nas cartas, assim como os pedidos 
para que eu enviasse minhas músicas e as músicas dos 
outros integrantes.
Como o grupo de rap 2ª Via não saía das conversas de 
fi m de semana que aconteciam na casa do Neném, 
eu decidi gravar meu primeiro rap sozinho. Havia um 
programa de computador chamado Hip-hop eJay que 
servia para fazer bases instrumentais de hip-hop. Fiz 
algumas para gravar uns raps que havia escrito, mas 
não conhecia um estúdio, e isso era um problema.
Trabalhava comigo no supermercado Alto da Posse um 
senhor evangélico chamado Edson, que era evolvido com 
música. Ele tinha muitas composições e estava come-
çando a gravar um disco. Perguntei se ele conhecia algum 
73Enraizados: como começou?
estúdio onde eu pudesse gravar meus raps, e ele me indi-
cou um em Campo Grande, bairro que fi ca a quilômetros 
de distância de onde eu moro, Nova Iguaçu. Mas aceitei ir 
nesse estúdio, até porque eu não conhecia outro.
O senhor Edson se encarregou de marcar a hora para mim 
no estúdio, me disse o preço, eu juntei o dinheiro e fui com 
minhas letras debaixo do braço. Quando estava chegando, 
lembrei que uma das músicas era cheia de palavrões e 
se o dono do estúdio fosse evangélico poderia haver um 
constrangimento de ambas as partes, mas graças a Deus 
não foi o que aconteceu. O cara era super gente boa e até 
gostou das minhas músicas, que eram quilométricas. 
Tinha uma com quase dez minutos, seguia o padrão dos 
raps da época. As músicas que gravei naquela ocasião 
foram: “Dudu”, “Negra difícil” e “Por quê?”.
Gravei as três músicas em duas horas, pois não tinha 
dinheiro para fi car mais tempo no estúdio, e nem expe-
riência para saber se aquilo estava certo ou errado. Eu 
queria pegar a fi ta K7 gravada com minhas três músicas, 
colocar no walkman e ir para casa ouvindo-as repetida-
mente nas quase duas horas de viagem de volta. Quando 
cheguei em casa coloquei o som para minha família 
ouvir. Era tudo muito diferente para eles, ninguém sabia 
ao certo o que falar. Na música “Dudu” eu cantava em 
primeira pessoa. Era um bandido que no fi nal da música 
morria por causa das drogas, do crime na sua comuni-
dade e da traição de um amigo. Hoje, quando paro pra 
refl etir, percebo que essa letra era o refl exo da minha 
infância. Essa música pode ser ouvida em sua versão 
original no site da gravadora Trama (http://tramavirtual.
uol.com.br/dudu_de_morro_agudo). 
Rapidamente eu dei um jeito de copiar algumas fi tas e 
distribuir entre os amigos, principalmente os que tra-
balhavam comigo e não acreditavam que era eu mesmo 
74 Enraizados: os híbridos glocais
quem estava cantando. Cada vez mais empolgado com 
as músicas, decidi enviar algumas fi tas para rappers de 
outros estados, e estes, por sua vez, me enviavam as suas 
para que eu e todos do Enraizados ouvíssemos.
Alguns meses depois fui a Barra do Piraí e contei para o 
Neném que o Movimento Enraizados estava crescendo, 
e que já existiam algumas pessoas de outros estados 
fazendo parte dele. Neném não entendia como isso tudo 
estava acontecendo tão rápido, mas mesmo assim fi cou 
orgulhoso. Mostrei, então, as músicas que havia gra-
vado. Eu sabia que nosso estilo de cantar rap era dife-
rente, mas mesmo assim senti que ele se surpreendeu 
com o que eu havia feito em tão pouco tempo. Naquele 
momento devolvi a carga de positividade que ele me 
deu quando o conheci. Toda vez que ele criava algo e me 
mostrava, parecia que eu tomava uma injeção de ânimo 
e começava a criar também, até mesmo para além da 
música. Eu estudava para aperfeiçoar o site, por exem-
plo, entre outras atividades. 
Em nossa primeira conversa institucional gravamos raps 
num estúdio em Barra do Piraí, muito mais bonito e equi-
pado do que aquele em Campo Grande, onde eu havia gra-
vado as primeiras músicas. Gravei com o Juninho um rap 
chamado “O ponto”. O Neném também utilizou o programa 
Hip-hop eJay para produzir as bases instrumentais. Esse 
era o único que a gente conhecia e sabia manusear.
Quando voltei para Nova Iguaçu enviei as minhas músicas 
e as do Neném para a galera dos outros estados. Nessa 
época não dava para colocar as músicas no site porque 
nas hospedagens gratuitas não havia espaço sufi ciente. 
Muita gente gostou das nossas músicas. Eu me empol-
guei e divulguei que o Movimento Enraizados planejava 
fazer uma coletânea nacional de rap, e que os interessa-
dos deveriam enviar suas músicas por correio ou e-mail.
75Enraizados: como começou?
A notícia se alastrou como um rastro de pólvora. Fanzi-
nes e rádios comunitárias divulgavam a coletânea, e eu 
fuzilava e-mails pelo site. Essa foi a primeira vez que o 
coletivo, pessoas com que eu nunca havia conversado 
pessoalmente, trabalhava a comunicação alternativa – 
fanzines, rádios comunitárias e internet – para propa-
gar um projeto do Movimento Enraizados. Quase o Bra-
sil inteiro sabia da coletânea que faríamos, menos o Rio 
de Janeiro, por isso decidi procurar alguns grupos de 
rap da minha cidade.
Lembrei que quando vinha de ônibus do centro de Nova 
Iguaçu para Morro Agudo, via a movimentação de uma 
galera que aparentemente era do hip-hop num lugar 
chamado MAB (Federação das Associações de Bairro de 
Nova Iguaçu). Um dia, quando saímos do trabalho, por 
volta das 18h, chamei o Netinho para me acompanhar 
até o local e verifi car se aquelas pessoas eram mesmo 
do hip-hop, e se eles queriam participarda coletânea. O 
Neto já estava totalmente envolvido no processo, parti-
cipando lado a lado.
Chegando lá falei com um rapaz que estava em um quarto 
mexendo na aparelhagem de som. Conversamos através 
da grade da janela. Ele estava muito tenso porque dias 
antes roubaram todo o equipamento de sua organização, 
a M2HBF (Movimento Hip-Hop da Baixada Fluminense). 
Apresentei-me como Dudu e disse que fazia parte do 
Movimento Enraizados, uma organização de hip-hop de 
Morro Agudo. Para minha surpresa ele fi cou nervoso e 
disse que não existia organização de hip-hop em Morro 
Agudo, a única organização de hip-hop que existia na 
cidade de Nova Iguaçu era a dele, a M2HBF.
Mesmo o achando estúpido e mal-educado, tive que con-
cordar com o fato. O Movimento Enraizados era uma orga-
nização mais virtual do que presencial, e até então eu não 
76 Enraizados: os híbridos glocais
conhecia qualquer integrante do hip-hop em Nova Iguaçu. 
Aquele era o meu primeiro contato, e não estava sendo 
muito bom. Todos os integrantes do Enraizados eram de 
fora do estado do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu a minha 
rapaziada nem sabia o que era hip-hop.
O rapaz se apresentou como B. Boy Gero, nos mostrou 
as instalações do MAB e disse que fazia eventos ali den-
tro, mas não tinha dinheiro nem para comprar papel higi-
ênico. Sugeri fazer alguns eventos de hip-hop e cobrar 
o valor simbólico de R$1,00 de entrada, somente para 
comprar os produtos de limpeza, que eram uma neces-
sidade. Na época eu procurava eventos de hip-hop como 
um louco, e se eu pudesse curtir um na cidade certa-
mente pagaria R$1,00. Outras pessoas também, só era 
necessário encontrá-las.
Ele discordou fi rmemente de mim e disse que não cobra-
ria evento ali de maneira alguma. Realmente o hip-hop 
tinha dessas coisas, e acho que ainda tem. Você investe 
do seu bolso, não tem retorno e acha normal. Eu mesmo 
fi z isso várias vezes, a diferença é que não reclamava.
Durante a conversa o B. Boy Gero me apresentou outro 
camarada que também era MC, a quem tempos depois 
eu seria apresentado novamente, o SDL, que hoje atende 
pelo pseudônimo Átomo. Ele era integrante do grupo 
Ultimato à Salvação, hoje apenas U-SAL, junto com sua 
esposa, Lisa Castro.
Eu e B. Boy Gero não chegamos a um acordo. Já na pri-
meira conversa pude perceber que a gente não tinha 
muito em comum. Continuei, assim, minha procura por 
outros grupos de rap da cidade. Apesar de respeitar o 
trabalho e a história dele dentro do hip-hop na Baixada 
Fluminense, essa foi a primeira e a última vez que a 
gente conversou por mais de dez minutos.
77Enraizados: como começou?
Recebi cartas de muitas pessoas que queriam partici-
par do CD. Naquela época era muito difícil gravar, mas 
mesmo assim chegaram músicas de oito grupos de rap, 
de seis estados diferentes (PB, SP, MS, TO, RJ e SC). No 
começo de 2001 instalei um gravador de CD no computa-
dor para gravar a coletânea. Comprei os CDs virgens, fi z 
a arte-fi nal das capas e comecei o processo de gravação 
dos CDs. Eu não tinha conhecimento de mixagem e mas-
terização. Do jeito que as músicas chegavam à minha 
mão elas entravam no CD. 
A coletânea tinha três objetivos: 
1) Divulgar os grupos de rap. Numa coletânea de oito gru-
pos de rap, se um divulgasse o CD na sua cidade, divulgaria 
a música dos outros sete grupos em lugares a que eles, 
teoricamente, não teriam acesso. Era um trabalho para 
ser executado coletivamente, pois quanto mais empenho 
houvesse mais retorno de divulgação nós teríamos.
2) Gerar renda. O projeto do CD era livre, desde que man-
tivesse sua forma original, isto é, as músicas na ordem e 
a capa. Cada grupo, ou qualquer pessoa, poderia vender 
o CD para gerar renda e, voltando ao objetivo número 
um, divulgar ainda mais os grupos. Quanto mais gente 
envolvida no processo de venda, mais longe as músicas 
chegariam.
3) Propagar as ideias do Movimento Enraizados. Como a 
ideia inicial do Movimento Enraizados era fazer as pes-
soas interagirem, esse projeto cairia como uma luva. 
Dezenas ou centenas de pessoas de várias cidades do 
Brasil, trabalhando coletivamente por um objetivo, sem 
gastar grana. Pelo contrário, ganhando grana.
Eu gravava dez CDs por dia e enviava para um dos grupos 
participantes. Esse, por sua vez, deveria vender os CDs, 
fazer mais cópias no seu estado e divulgar os outros gru-
pos. Era esse o combinado. O valor dos CDs fi cou muito 
78 Enraizados: os híbridos glocais
alto para eu bancar sozinho. Para cortar custos parei de 
fazer as capas na gráfi ca. A ideia era fazer fotocópias 
em preto e branco, mas chegou num ponto que até a 
cópia saía caro. Para piorar ainda mais a situação o meu 
gravador de CD queimou com um mês de uso. 
Apesar de não haver mais como levar o projeto adiante, a 
coletânea dava o que falar pelo Brasil afora, as pessoas 
comentavam que essa era a primeira coletânea nacio-
nal de rap. Para o projeto não parar, pedi ajuda aos meus 
amigos de trabalho, do supermercado Alto da Posse, 
para produzir mais CDs a um custo mínimo.
Na verdade eu só comprava os CDs e tirava cópia das 
capas na empresa. A gente fazia uma verdadeira opera-
ção. Havia apenas uma máquina copiadora no escritório 
para todos os funcionários usarem. A galera se organi-
zava e cada um tirava dez cópias, para eu não ter pro-
blemas depois. Eram uns cinco caras envolvidos no pro-
cesso para a coletânea continuar sendo reproduzida.
Na empresa também havia um gravador de CD, que fi cava 
no servidor. O programador da empresa, responsável 
pelo servidor, é até hoje meu camarada, Luciano Lyrio. 
Ele gravava todos os meus CDs na hora do expediente, 
o que muitas vezes causava lentidão nos terminais. Os 
funcionários pediam que fosse reiniciado o servidor 
pelo menos umas 30 vezes por dia, mas ele só reiniciava 
quando acabava de fazer as cópias. Às vezes os funcio-
nários tinham que esperar vinte minutos até acabar de 
gravar um único CD, só depois eles podiam trabalhar.
Creio que o maior presente que eu ganhei com esse pro-
jeto foi presenciar a coletânea sendo negociada durante 
o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre. Essa 
coletânea verdadeiramente cumpriu seu papel. Nos anos 
seguintes lançamos mais duas coletâneas que fi zeram 
79Enraizados: como começou?
muito sucesso. A “Dudu de Morro Agudo apresenta: A 
Banca”, também nacional, e a “Raiz do hip-hop”, ape-
nas com grupos de Morro Agudo. As coletâneas foram se 
transformando em marca registrada do Movimento Enrai-
zados, e por meio delas o nome da organização começou 
a ser citado com frequência nas periferias do Brasil.
80
Enlaçado pelo 
Enraizados
Temos de aprender a viver todos como irmãos 
ou morreremos todos como loucos.
— Martin Luther King
A cada dia que passava o Portal Enraizados se fi rmava 
como ponto de encontro virtual dos praticantes do hip-
hop no Brasil e um efi caz veículo de comunicação. Nesta 
época, começo de 2001, grande parte dos artistas, mili-
tantes e produtores culturais que praticavam o hip-hop 
faziam seus projetos – CDs, eventos e palestras – com 
o dinheiro do próprio bolso, isto é, do trabalho formal. 
E isso não era um investimento, não havia um retorno 
fi nanceiro, o dinheiro era perdido em sua totalidade pelo 
simples prazer de exercitar o hip-hop.
Com a repercussão da coletânea, muitos convites para 
participar de eventos começaram a aparecer no Rio de 
Janeiro. Lembro que foi nessa época que conheci a Veri-
diana Serpa, da Firma Produções. Ela fazia uns even-
tos no Rio de Janeiro, na Lapa, e também tinha um site 
(http://fi rmaproducoes.com) que divulgava seus traba-
lhos. Ela me ligou um dia e disse:
— Alô, posso falar com o Dudu?
— É ele quem está falando.
— Oi, aqui é a Veridiana, da Firma Produções. Nós 
81Enraizados: como começou?
vamos fazer um evento na Lapa neste fi m de semana e 
queria saber que se você topa tocar lá.
— É evento de quê? Derap?
— É, de rap. Um evento benefi cente.
— Tranquilo, vou ver aqui na agenda e depois te ligo. 
Qual o seu número?
Eu fi quei apavorado, tinha subido no palco apenas uma 
vez e estava com o Wilson Neném, em Barra do Piraí. 
Agora era diferente, eu tinha que fazer um som sozinho, 
na Lapa. Estava realmente entrando para o cenário. 
Dias antes do telefonema da Veridiana, eu havia rece-
bido um e-mail de dois caras, Max e Zulu, que trabalha-
vam no Rio de Janeiro e curtiam hip-hop. Por alguma 
obra do destino eles encontraram o site do Movimento 
Enraizados e enviaram um e-mail querendo trocar algu-
mas ideias.
Liguei para Veridiana confi rmando minha presença e logo 
depois pros caras, convidando-os para ir ao meu show. No 
dia marcado eu estava lá, com o CD de base e dois amigos 
da minha comunidade. E muito medo de cantar. Eu fi cava 
me perguntando: O que eu tô fazendo aqui? Meu telefone 
tocou, era o Max perguntando onde eu estava. Falei que 
estava dentro da Fundição Progresso, e então ele conse-
guiu me encontrar. Estava ele, a noiva e o Zulu. Uma chuva 
inacreditável caiu, era muita chuva, e o evento começou 
a esvaziar. Encontrei a Veridiana, que me apresentou seu 
irmão, Jimmy Luv, que disse gostar do som que eu fazia. 
Foi o primeiro cara desconhecido a elogiar meu trabalho, 
o que me deu forças para continuar.
A rede do Enraizados começava a crescer no Rio de 
Janeiro, já havia Wilson Neném, Max, Zulu, Veridiana, 
Jimmy Luv, e logo depois foram chegando mais pes-
soas. Todo o trabalho de programação e gerência de 
conteú do do Portal Enraizados era feito na minha casa 
82 Enraizados: os híbridos glocais
e no meu trabalho, assim como as ligações. Por causa 
da repercussão do Portal Enraizados, muitas pessoas 
de fora do estado começavam a se comunicar. No Rio de 
Janeiro essa prática começou por causa do evento Mil-
leniun Rap, que aconteceria no Anhembi, em São Paulo, 
e estava sendo divulgado no Portal.
Eu queria muito ir ao evento, mas não tinha dinheiro. 
Todo o meu salário estava comprometido com as dívidas 
de casa. Não tinha esperança de que algo sobrenatural 
pudesse acontecer naquela altura do campeonato, mas 
aconteceu. O Max me ligou:
— E aê, Dudu, você vai no Millenium Rap em São Paulo?
— Não mano, não vou. Tô com uns compromissos aê.
— Ah mano, eu e o Zulu vamos, nós vamos de carro e se 
você quiser pode ir junto com a gente.
— Tudo bem, se rolar de eu ir te ligo ainda hoje. Mas 
caso eu vá, tem vaga para mais um amigo no carro?
— Claro que tem, pode chamar mais um irmão que
tem vaga.
— Então tá tranquilo, vou levantar uma grana aqui 
porque tô meio quebrado.
— Nem esquenta a cabeça Dudu, tu tá comigo, eu banco 
a tua parte.
— Então já é, fi rmou bonde!
Liguei para o Neném e perguntei se ele gostaria de curtir 
um evento em São Paulo, expliquei que iríamos de carro 
com dois camaradas meus, e tudo era de graça. Mas não 
falei que conheci os caras pela internet. O Neném concor-
dou na hora e então marcamos o encontro na via Dutra, 
num posto de gasolina próximo de casa. Fomos todos 
para São Paulo, conversando, cantando e fortalecendo, 
mesmo que inconscientemente, o Movimento Enraiza-
dos. Nos meses que se seguiram mais pessoas se apro-
ximaram do Movimento Enraizados. Eu lidava com isso 
de forma natural, apresentava uns aos outros. Não tinha 
83Enraizados: como começou?
muito a noção do que estava acontecendo, mas gostava 
de estar com meus novos amigos, de apresentar pessoas 
quando eu identifi cava que tinham algo em comum.
Comecei a me surpreender quando passei a receber liga-
ções de outros estados me informando que pessoas do 
hip-hop estavam chegando ao Rio de Janeiro e se era pos-
sível eu dar um suporte, uma atenção para não deixar os 
caras se envolverem com o crime ou algo parecido. Não 
conseguia ver perigo na rapaziada do hip-hop, sempre 
que alguém me procurava pedindo ajuda eu colocava den-
tro de casa, mesmo quando eram desconhecidos. Essa é 
uma característica do hip-hop. Muitas vezes viajei pra 
São Paulo e o tratamento dos caras comigo foi o mesmo.
No fi nal de 2001 o hip-hop começava a ser visto pelo 
poder público como uma ferramenta socioeducativa. 
Parcerias entre o governo e organizações não governa-
mentais eram frequentes. Foi quando surgiu a parce-
ria entre o AfroReggae, o Governo do Estado do Rio de 
Janeiro e a Unesco para ministrar ofi cinas de hip-hop 
em escolas estaduais situadas em áreas de risco, 
no estado do Rio de Janeiro. Recebi a proposta para 
ministrar uma oficina de rap em uma escola no bairro 
Bom Pastor, na cidade de Belford Roxo, no Rio de 
Janeiro. Belford Roxo já foi considerada uma das cida-
des mais violentas do mundo.
Como eu não aprendi a cantar rap na escola, achava que 
seria inviável ter aulas de rap ou de qualquer outro ele-
mento do hip-hop, e fui contrário a isso por muito tempo. 
Mas por fi m aceitei a proposta e fi quei alguns meses na 
escola. Foi quando conheci o DJ DMC, do grupo Baixada 
Brothers, o b. boy Luck, do grupo GBCR, e o grafi teiro 
Chico CH2, da Nação Crew. Assim como eu, todos eram 
ofi cineiros. Bom Pastor era um bairro muito violento, 
dominado pelo Comando Vermelho, mas dias antes de 
84 Enraizados: os híbridos glocais
começarem as ofi cinas o morro foi tomado pelo Terceiro 
Comando. O local era um verdadeiro barril de pólvora. E 
eu estava lá, querendo fazer o meu papel de militante do 
hip-hop, mas minha ofi cina era muito vazia, a molecada 
queria mesmo era fazer aula de DJ, dançar e grafi tar.
Certo dia chegaram dois caras, disseram que gosta-
riam de fazer aula de rap e entraram para minha turma. 
Eles moravam em Brás de Pina, Alfi na e Tokaia. Na ver-
dade, o Alfi na já era MC e queria conhecer mais pessoas 
que cantavam rap. Logo entrou pra família Enraizados. 
Outros Enraizados ministravam ofi cinas em escolas de 
São Gonçalo. Lembro que o b. boy Bolinho dava ofi cina 
de break. Anos depois estava participando de progra-
mas de TV e viajando para países da Europa com uma 
companhia de dança.
As pessoas iam se conhecendo e se enlaçando como 
peças de um grande quebra-cabeças, que com o passar 
do tempo dava forma a uma linda paisagem chamada 
Movimento Enraizados.
86
A imprensa nos 
descobriu e 
descobrimos a 
imprensa
Não há opinião pública,
há opinião publicada.
— Winston Churchill
No dia 26 de novembro de 2001 aparecemos pela pri-
meira vez num jornal, “O São Gonçalo”, e em 2002 está-
vamos tocando em rádios comerciais e principalmente 
rádios comunitárias. O ano de 2002 foi repleto de apre-
sentações artísticas. Nosso nome circulava como nunca 
no cenário hip-hop brasileiro. Com o dinheiro das minhas 
férias fi z mais uma coletânea do Movimento Enraizados: 
“Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”. A Banca, na 
nossa gíria, signifi ca os amigos mais próximos. 
Impulsionado pela venda dos CDs, me reuni com os outros 
camaradas da organização e propus confeccionarmos 
algumas blusas do Enraizados. A ideia era criarmos 
uma sociedade, cada um entraria com uma parte do 
dinheiro e receberia algumas blusas para vender, uma 
porcentagem voltaria para a organização, para fazer-
mos mais blusas, e o restante fi cava com a galera que 
investiu. O objetivo era gerar uma renda complementar, 
pois todos já tinham um trabalho formal, e ainda divul-
gar a organização.
87Enraizados: como começou?
Deu tudo muito certo, vendíamos muitas blusas e dis-
cos, conseguíamos visualizar o Movimento Enraizados 
nas ruas, principalmente nas noites de sexta-feira na 
Lapa. Comecei a fazer algumas viagens para São Paulo, 
fi cava hospedado na casa do Rodrigo Oliveira, o Dime-
nor, primeiro integrante do Movimento Enraizados, e foi 
nessa época que conheci o maranhense Lamartine Silva, 
integrante do grupo de rap Clã Nordestino. Fiquei admi-
rado com seu jeito de falar. Ele tinha o dom, ou a prática, 
da oratória. Logo que nos conhecemos fi camosaté de 
madrugada conversando em uma praça próxima à casa 
do Dimenor. Bebemos e falamos muito, até que começou 
a amanhecer e o Lamartine disse que teria que ir embora. 
Trocamos telefones, ele tinha uma agenda velha, muito 
velha. Anotou meu número no meio da agenda e eu pen-
sei que ele nunca mais iria achar aquela anotação.
Quando menos esperávamos aconteceu o inevitável, a 
gente começou a aparecer nos veículos de comunicação 
convencionais. A ONG Viva Rio tinha um site chamado Viva 
Favela e fi zeram uma matéria bem legal conosco. Lembro 
que eu não tinha muita experiência e eles me ligavam toda 
hora querendo marcar a entrevista. Só podiam fazer no 
horário comercial, mas eu não podia porque trabalhava 
no supermercado. O fotógrafo Walter Mesquita foi até 
minha casa fazer umas fotos. Na época eu morava num 
quarto de 9m², com minha esposa e minha fi lha. 
Achei que ele não acreditaria na minha história. Como 
um cara que vende tanto CD e roupa mora num lugar tão 
pequeno e pobre? Acho que eu também não acredita-
ria. No fi nal de 2002, exatamente no dia 10 de dezem-
bro de 2002, recebi a ligação do Bruno Porto, do jornal “O 
Globo”, querendo saber a opinião do Movimento Enraiza-
dos sobre o crescimento do hip-hop em 2002. Quando a 
matéria saiu na revista Megazine, de “O Globo”, vi o nome 
88 Enraizados: os híbridos glocais
do Movimento Enraizados ao lado de Jorge de Sá (fi lho 
da cantora Sandra de Sá) e Elza Cohen (produtora da tra-
dicional festa Zoeira, que acontecia na Lapa), e percebi 
a importância dessa matéria para a organização, porque 
muitas pessoas em todo o Rio de Janeiro leriam:
O crescimento do hip-hop também pode ser conferido em 
sites dedicados ao tema, como o do Movimento Enrai-
zados (www.enraizados.com.br). “O hip-hop brasileiro 
nunca cresceu tanto como em 2002” – diz o rapper Dudu 
de Morro Agudo, fundador do Movimento Enraizados, da 
Baixada Fluminense.
Nenhum de nós sabia bem o que estava fazendo, cada 
um tinha um motivo próprio para estar na organização. 
Alguns porque gostavam de cantar rap, outros porque 
queriam estar mais próximos e adoravam a bagunça que 
rolava todo fi m de semana, e ainda outros curtiam fi lo-
sofar e discutir sobre os mais variados assuntos. Não 
tínhamos um objetivo claro, éramos jovens que deseja-
vam se divertir e praticar arte. Eu particularmente tinha 
aversão a tudo o que se inclinasse para política partidá-
ria, talvez por isso sempre utilizei o dinheiro das minhas 
férias ou o décimo terceiro salário para realizar as ações 
do Movimento Enraizados. 
Eu era um líder que não sabia muito bem para onde ir, 
apenas seguia o fl uxo e, na maioria das vezes, meu cora-
ção. Ainda em 2002 conheci a Giordana Moreira, e ela 
me chamou para participar de algumas reuniões porque 
queria fazer, em janeiro de 2003, o Fórum Carioca de Hip-Hop, 
levantando algumas propostas para o Fórum Social Mundial. 
Começamos a produzir o Fórum Carioca de Hip-Hop juntos, 
com reuniões que me tiravam do sério, pois não avançavam. 
Sempre tinha um que chegava, fazia a reunião regredir e 
depois ia embora, o que me irritava.
89Enraizados: como começou?
Eu e a Giordana não concordávamos apenas em um 
ponto. Ela queria fazer discussões e mais discussões 
dentro de uma sala de aula e eu queria fazer um evento 
cultural, com música, dança e grafi te. Eu tinha certeza 
que se chamássemos jovens para discutir dentro de uma 
sala de aula não daria certo, teria uma grande evasão, 
mas se mesclássemos com algum divertimento talvez 
pudesse funcionar. 
Chegamos num acordo e nos dias 11 e 12 de janeiro de 
2003 fi zemos o Fórum Carioca de Hip-Hop, no Sesc 
de Nova Iguaçu e no Colégio Rangel Pestana. O jornal 
“Inverta” (PC) cobriu o evento e publicou uma matéria 
falando muito bem. Acho que foi a Giordana quem escre-
veu a matéria. De qualquer maneira, o evento foi real-
mente um sucesso, as discussões foram legais e a parte 
artística fi cou ótima. O ano de 2003 marcou a história do 
Movimento Enraizados. Fizemos um grande esforço para 
trazer a revista “Rap Brasil”, única do gênero no nosso 
país, para fazer uma matéria com os grupos de rap do 
Rio de Janeiro. Conversamos com o Alexandre de Maio e 
ele disse que seria uma revista especial Rio de Janeiro, 
com todos os grupos que conseguíssemos encontrar. Foi 
muito trabalhoso fazer a matéria. Não tínhamos tempo 
e nem dinheiro para dedicar ao Alexandre. Como todos 
trabalhavam, havia um revezamento de horários. Eu 
tentava deixá-lo à vontade, mas não tinha como fi car à 
vontade com o cara da revista “Rap Brasil”. Ainda mais 
quando a grana podia acabar a qualquer momento. 
Fazíamos ligações para marcar com o maior número de 
grupos possível no mesmo lugar, para não gastarmos 
com condução. Eu saía todos os dias de Morro Agudo, ia 
para Vila Valqueire e de lá partia para São João de Meriti, 
onde fi cava o estúdio do DJ Criolo, ponto de encontro 
para as entrevistas. Não aceitava a ideia de que alguns 
90 Enraizados: os híbridos glocais
grupos de rap não conseguiam chegar ao local no horário 
marcado. Se eu conseguia fazer todo esse malabarismo 
e chegava no horário, por que os outros grupos que mui-
tas vezes moravam próximo não conseguiam?
Quando a revista foi publicada o Enraizados fez uma 
festa. No total 38 grupos de rap foram contemplados: 
NRC, Fúria Brasileira, Delano, O Bando, P10, Literarua, 
B32, GBCR, Slow da BF, Força Hip-hop, LC Fidalguia, Nove 
Balas, Kapella, Kwanza, Poder Consciente, Fator Bai-
xada, Rodrigo RG, Criolo, Tropeço, Aliados 021, Mistura 
Racial, Reis, Oeste Selvagem, Última Trombeta, Punho 
Cerrado, Papo Reto, Descendentes da Ralé, Negresoul, 
Consciência e Verdade, Contenção, Família Tiro Verbal, 
Re.Fem, Ciência Rimática, Gás-Pa, Don Negroni, B Negão, 
Inumanos, e nós do Movimento Enraizados. Muitos gru-
pos se desfi zeram menos de um ano depois de publicada 
a revista, mas outros sobrevivem até hoje.
Um fato negativo foram os comentários maldosos que 
fi zeram. Mesmo sendo contemplados com a matéria 
alguns grupos se sentiram prejudicados e tentaram 
espalhar o boato que a gente fazia panela para favore-
cer certos grupos. Mas nós nem tínhamos acesso a isso, 
essa parte era toda com o Alexandre. Ele fazia as per-
guntas e decidia o tamanho da matéria. No começo isso 
me deixou chateado, mas depois percebi que à medida 
que a gente ia crescendo, por mais que tentássemos, 
agradar a todos seria cada vez mais difícil.
A matéria na “Rap Brasil” abriu algumas portas para os 
que participaram da edição, e nos tornamos mais conhe-
cidos em todo o território nacional. Nessa época a gente 
só conseguia ver um lado da imprensa, a parte que falava 
a verdade e nos dava notoriedade. Anos depois, apesar 
de mantermos bons contatos com alguns jornalistas, 
passamos por maus momentos quando uma pessoa que 
91Enraizados: como começou?
se dizia amiga publicou inverdades sobre a organização, 
mostrando o nível do seu profi ssionalismo. Não tivemos 
muitos problemas porque o veículo de comunicação que 
ela trabalhava não atingia um grande número de pes-
soas, mas mesmo assim esse fato serviu para que nós 
aprendêssemos a abrir o olho com a imprensa.
92 Enraizados: os híbridos glocais
93Enraizados: como começou?
96
2003: um ano 
divisor de águas
Sonho que se sonha só 
É só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto
É realidade.
— Raul Seixas
Certamente 2003 foi um ano divisor de águas. Foi nesse 
ano que conhecemos o escritor Alessandro Buzo, bem 
no comecinho da carreira, e conheci também um cara 
superarticulado chamado Fábio ACM. DJ, mantinha 
trabalhos com rádios comunitárias, trabalhava na ONG 
Cemina e fazia um som com o grupo de rap Poetas de 
Ébano. Ele nos convidou para participar do projeto “Hip-
hop na linha de frente contra o tabaco”. 
Este projeto reunia artistas do hip-hop para uma dis-
cussão sobre os riscos dotabaco. Alguns dos parti-
cipantes acharam um pouco estranho, pois a maioria 
fumava, mas fi camos observando para ver aonde aquilo 
ia chegar. A gente assistia a vídeos e ouvia palestras 
com estatísticas informando a quantidade de pessoas 
que morrem vítimas do tabaco em todo o mundo. A ideia 
era refl etirmos sobre o assunto, entender como tudo 
isso funciona e depois escrever e gravar raps alertando 
sobre os perigos do tabaco. 
97Enraizados: como começou?
A metodologia deste projeto deu muito certo. Prova disso 
é que surgiram vários outros com propostas parecidas e 
nós do Movimento Enraizados éramos sempre convida-
dos a participar. Eu participei de um que era sobre sexu-
alidade, a Lisa de outro chamado “Mulheres do hip-hop 
pelo fi m da violência contra a mulher” e por último parti-
cipei junto com o Léo da XIII do projeto “Homens do hip-
hop pela não violência contra as mulheres”. Outro fato 
importante que aconteceu no ano de 2003 foi a visita do 
Clã Nordestino, Preto Ghóez, Lamartine e Nando, para 
nos apresentar o MHHOB (Movimento Hip-Hop Organi-
zado Brasileiro).
Como eu já conhecia o Lamartine, troquei ideias com 
os caras. Reuni alguns participantes do Enraizados, e 
o Preto Ghóez começou a falar. Eu já conhecia alguma 
coisa do MHHOB, talvez por isso tenha sido o único a 
questionar, mas o Ghóez sempre tinha um argumento 
forte para cada questionamento meu. Ninguém do 
Enraizados falava, só balançavam a cabeça, o Lamartine 
às vezes tentava mediar a conversa, mas no fi m rolou, o 
Movimento Enraizados estava fi liado ao MHHOB.
Enquanto o Movimento Enraizados era um grupo total-
mente cultural que se espalhava pelo Brasil, o MHHOB 
era uma organização que discutia políticas públicas 
para a juventude. Todas as organizações que faziam 
parte de MHHOB estavam mais maduras do que nós. 
Eu não me sentia à vontade em ter que me reportar a 
outra pessoa – ou organização – sobre o que aconte-
cia conosco no Rio de Janeiro. Mas o Preto Ghóez me 
tranquilizou dizendo que isso não seria necessário. O 
Enraizados não teria, de maneira alguma, que se mol-
dar ao MHHOB, e sim o MHHOB se adaptar à realidade 
do Movimento Enraizados.
98 Enraizados: os híbridos glocais
As conversas com o MHHOB eram cada vez mais fre-
quentes. Começaram então as viagens para congressos 
nacionais, mas por dois motivos eu nunca ia. Primeiro, 
eu trabalhava no supermercado Alto da Posse todos os 
dias da semana e não poderia faltar; depois, achava um 
saco essas reuniões, seminários e palestras. Eu rece-
bia convites para ir para Porto Alegre, mas sempre me 
esquivava e repassava para outro artista do Movimento 
Enraizados. Por um lado era legal porque a galera come-
çou a andar de avião e a conhecer diferentes estados e 
culturas, e andar de avião não passava nem em sonho na 
cabeça da molecada que morava na periferia.
Era interessante porque quando eles retornavam das 
viagens vinham com novas ideias e até mesmo outro 
vocabulário. Era um costume nos reunirmos sempre que 
alguém chegava de viagem, a gente não fazia relatórios, 
como nos dias de hoje. Naquela época os relatórios eram 
orais, e eu sempre dizia: “Mano, o que fi zeram contigo?” 
Mas era o processo, a galera ia de um jeito e voltava 
de outro. Conheciam gente nova, as ideias eram mais 
maduras e interessantes. Como eu costumava dizer, 
era papo de futuro. Conversava muito por telefone com 
o Preto Ghóez, pedia e dava conselhos. Ele começava a 
entender como funcionava o hip-hop no Rio de Janeiro, 
pelo menos nas partes em que estávamos envolvidos, e 
eu entendia a importância de se discutir políticas públi-
cas para a juventude.
Trabalhava de segunda a sexta, e na própria sexta-feira 
fazia shows. Às vezes fi cava até três dias sem aparecer 
em casa. Minhas músicas começaram a tocar nas rádios 
e os convites para as apresentações eram aos montes, 
mas o dinheiro era sempre zero. Nos eventos eram pagos 
os técnicos de som, o palco, o som, o frete, mas nunca os 
artistas. Por causa da repercussão das minhas músicas 
99Enraizados: como começou?
nas rádios e por meu nome carregar o nome do bairro em 
que moro, os artistas de hip-hop do bairro Morro Agudo 
começaram a se interessar por mim. Foi nessa época 
que o Léo, hoje Léo da XIII, veio, por indicação do meu 
primo Júnior, até minha casa.
O Léo da XIII tentou pelo menos três vezes me encon-
trar, mas nunca conseguia. Até que um dia ele madru-
gou na porta da minha casa. Quando levantei para ir até 
a padaria tomei um susto com o garoto sentado na cal-
çada, em frente ao portão. Eu tinha 22 anos e ele apenas 
uns 13, mas já estava convicto de que queria fazer rap. 
Quando a gente começou a conversar reparei que ele 
tinha algum problema, pois quase não falava. Passava 
boa parte do tempo lá em casa. Eu fazia umas produ-
ções de beat e pedia pra ele escrever as letras. Ele che-
gava à minha casa e fi cava sentado olhando eu produ-
zir, fi cávamos horas em casa sem trocar uma palavra. 
De repente ele levantava e ia embora sem se despedir. 
Com o passar do tempo essas coisas foram mudando, 
eu dizia pra ele que não precisava falar comigo, mas 
tinha que ter educação. Na hora de ir embora ao menos 
deveria acenar quando estivesse no caminho da porta. 
Quando começou a se comunicar efetivamente comigo 
descobri que ele era depressivo porque com 10 anos de 
idade presenciou o irmão dele, de apenas 11, morrer 
atropelado na via Dutra. A mãe e a irmã diziam que ele 
não falava muito, era muito reservado, e que depois do 
hip-hop começou a fi car mais sociável.
100 Enraizados: os híbridos glocais
101Enraizados: como começou?
102
A experiência de 
mobilizar e entreter
Os loucos abrem caminhos que 
logo serão seguidos pelos sábios.
— Carlo Dossi
O poder de mobilização do Movimento Enraizados era 
impressionante, as pessoas queriam estar conosco de 
alguma forma, e ainda hoje é assim. Nossas aparições 
em jornais e revistas eram cada vez mais frequentes. 
Gente de outros estados começava a militar pela orga-
nização. O Dimenor sempre dava entrevistas falando 
do movimento. Muitos coletivos de hip-hop nasciam e 
desapareciam, e nós continuávamos nossa caminhada. 
Foi nessa época que o Pevirguladez começou a fazer o 
evento Ressaca Hip-Hop, em Duque de Caxias, e o legal 
é que ele está até hoje na pista fazendo seus eventos. 
Ele é professor, canta rap, e agora está envolvido em um 
espetáculo de teatro e rap. Sempre esteve ao lado do 
Movimento Enraizados. Quase tudo relacionado ao hip-
hop no Rio de Janeiro tinha alguém do Enraizados envol-
vido de alguma maneira. 
O Léo da XIII me acompanhava em algumas apresenta-
ções pelo Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que ele pegava 
experiência como rapper, me auxiliava nos shows. Um dia 
ele questionou por que eu não fazia um evento de hip-hop 
103Enraizados: como começou?
em Morro Agudo. Eu disse que os eventos de hip-hop não 
costumavam encher, portanto era inviável a gente des-
perdiçar energia numa atividade que não daria certo.
No outro dia eu estava em casa fazendo um som e ele 
chegou:
— Dudu, posso te pedir um favor?
— Claro que pode, fala, o que você quer?
— Eu tô querendo fazer uma festa de aniversário e 
convidar algumas pessoas do hip-hop, gostaria que me 
ajudasse a organizar isso.
— Tudo bem, vamos fazer. Só precisamos ver o local, o 
som e a comida.
A cada semana o Léo da XIII chegava com uma novi-
dade e a festa de aniversário ia tomando uma proporção 
gigantesca. Sempre que ele chegava na minha casa o 
papo era esse:
— Dudu, o salão de festas que eu estava vendo não vai 
rolar mais, mas eu já falei com o Jack e ele liberou o 
espaço do bar para fazermos a festa.
— Tu não acha que essa festa tá fi cando grande demais?
— Não, acho que vai dar tudo certo. Agora você precisa 
falar com o Luisinho da Cerâmica pra ver se ele arruma 
o som.
Luisinho da Cerâmica era um candidato a vereador da 
época.Ele ajudava a molecada a fazer umas ativida-
des no bairro da Cerâmica, mas eu não gostava de pedir 
absolutamente nada a políticos. Só que a festa do mole-
que estaria comprometida se não houvesse o som, então 
liguei para o tal Luisinho.
— Alô!!! Luisinho?
— Sim, quem tá falando?
— Aqui é o Dudu de Morro Agudo!
— Dudu de onde?
104 Enraizados: os híbridos glocais
— Dudu de Morro Agudo, acho que o Jack falou de mim 
pra você. É a respeito de uma festa de hip-hop que eu 
tô querendo fazer no bar dele, e ele disse que você pode 
ajudar com o som.
— Ah! Sim. Lembrei. E quanto é?
— Não sei, é o aluguel de um som que já está lá no bar. 
É um som que fi ca fi xo por lá e ele disse que você já está 
acostumado a alugar.
— Tudo bem, diz pro Jack que está tudo certo e depois 
eu passo lá pra acertar com ele.
Estava tudo certo, o cara não pediu nada em troca, mas 
eu queria que fi casse claro que eu não colocaria nenhuma 
faixa e muito menos falaria o nome dele durante o evento.
— Luisinho, tem um problema, meu parceiro.
— E qual é o problema?
— Esse evento não tem nada a ver com política, não tem 
como a gente vincular o seu nome ao nosso.
— Eu não vejo problema nenhum nisso. Boa sorte com 
o evento de vocês e se possível vou aparecer por lá para 
ver a apresentação.
— Valeu então, obrigado pela moral.
A festa de aniversário do Léo da XIII tinha se transfor-
mado em um evento, e agora teria que haver uma mobi-
lização dos Enraizados para fazer o fl yer, divulgar na 
internet e fazer ligações para convidar a massa do hip-
hop carioca a comparecer em Morro Agudo, ou melhor, 
na Cerâmica. Reunimos os grupos de rap de Morro 
Agudo, Fator Baixada, Dudu de Morro Agudo, Léo da 
XIII e Ultimato à Salvação, e decidimos que o nome do 
evento seria Raiz do Hip-Hop. Por motivos ideológicos, 
mas também por causa do nome Enraizados.
Fiz a arte-fi nal e divulguei na internet, no Portal Enrai-
zados. Passei a arte pros amigos do Alto da Posse e eles 
copiaram centenas de cartazes. O Átomo, o Léo da XIII, o 
Kall e eu colamos os cartazes no bairro inteiro. Do meu 
106 Enraizados: os híbridos glocais
emprego fi z as ligações convidando todos a comparece-
rem. Fui trocar uma ideia com o Jack pra saber se real-
mente estava tudo certo. Ele disse que emprestaria o 
espaço do bar, mas tinha certeza que não daria certo, 
porque um monte de preto junto só podia dar em confu-
são, assim como o funk sempre deu.
Mostrei para ele o quanto eu fi quei chateado com seu 
comentário racista e preconceituoso, mas falei que até 
o fi m da noite a gente conversaria novamente, e talvez 
ele mudasse de opinião. Eu e o Kall chegamos meia hora 
antes do evento começar. Para minha surpresa chega-
ram conosco dez carros de polícia e bombeiros, dizendo 
que haviam recebido uma denúncia anônima delatando 
venda de drogas durante o evento.
Percebi que nosso trabalho estava indo pelo ralo. Não 
sabia com que cara olharia para meus amigos que viriam 
de diferentes partes do Rio de Janeiro para curtir um rap 
e teriam que voltar para casa. O Jack veio saber o que 
estava acontecendo. Assim que soube da denúncia ligou 
para um comandante da polícia e outro “peixe grande” 
dos bombeiros, explicou que era um evento de hip-hop 
dos garotos do bairro e que ele se responsabilizava por 
tudo. Passaram-se cinco minutos e os carros da polícia 
e dos bombeiros dispersaram.
As pessoas começavam a chegar ao evento. Era gente 
de Duque de Caxias, São João de Meriti, Japeri, Bangu, 
Campo Grande, São Gonçalo, Barra do Piraí, Maricá, 
Niterói, Madureira, Petrópolis, Jacarepaguá e muitos 
outros lugares. Alguns não se gostavam, mas estavam 
ali, juntos, e alguns até voltaram a se falar naquela oca-
sião. Isso é uma característica do Movimento Enraiza-
dos, unir até os que não se gostam.
107Enraizados: como começou?
Pessoas que nunca estiveram em Morro Agudo conse-
guiram chegar na Cerâmica, que era bem mais difícil de 
encontrar. Apesar de o bar do Jack ser no centro do bairro, 
o acesso era difícil. A galera da Revista Ocas me ligou per-
guntando como faziam para chegar no evento. O Cacau 
se comprometeu em fazer a fi lmagem. Por coincidência 
naquele dia ele estava na gravação do fi lme “Um ano e 
um dia”, que ele dirigia, e levou toda a equipe, inclusive 
os equipamentos, para ajudar no DVD “Raiz do hip-hop”.
Apesar de não lotar como os bailes funk, nosso evento 
fi cou mais cheio do que os eventos de hip-hop que acon-
teciam no Rio de Janeiro, e foi um sucesso absoluto. O 
Jack fi cou visivelmente emocionado, gritando a cada 
movimento do b. boy Bolinho, de São Gonçalo, e a cada 
rima do MC Papo Reto, o apresentador da noite. Sem-
pre que eu apresentava uma nova pessoa que chegava, o 
Jack pagava uma cerveja. Quando o evento terminou ele 
me chamou e propôs fazermos outro, mas ele daria uma 
estrutura melhor. Eu disse que tudo bem, que a gente 
poderia conversar mais pra frente, mas alguns meses 
depois ele morreu.
Depois do sucesso de Raiz do Hip-Hop, o mito de que evento 
de hip-hop no Rio de Janeiro não enchia acabou, e começa-
ram a pipocar eventos do Movimento Enraizados em várias 
partes do Rio de Janeiro, sempre com as mesmas caracte-
rísticas. Saindo do padrão dos acontecimentos de hip-hop 
tradicionais começamos a fazer eventos que uniam o hip-
hop e o futebol, chamados de Boladão, numa alusão à fi sio-
nomia carrancuda que os rappers fazem questão de mos-
trar, que na gíria carioca é “bolado”. 
A gente ia às comunidades e jogava uma partida de fute-
bol com os moradores. Sempre acontecia um bate-papo 
em que as pessoas se integravam e fi cavam sabendo o 
que os outros faziam. O Boladão virou moda no Rio de 
108 Enraizados: os híbridos glocais
Janeiro e em pouco tempo as pessoas nos procuravam 
comunicando que gostariam de fazer uma edição do 
Boladão em sua comunidade. Os moradores se articu-
lavam para conseguir um campo de várzea e uma chur-
rasqueira, nós do Enraizados convocávamos militantes, 
amigos e informávamos o local. No dia todo mundo levava 
um pouco de dinheiro e o evento acontecia o dia inteiro.
110
O fi m do começo...
Quem anda com sábios, sábio será.
— Salomão
Depois de me esquivar de muitas viagens, resolvi viajar 
para alguns estados. Eu estava muito envolvido com o 
MHHOB (Movimento Hip-hop Organizado Brasileiro), mi-
nha experiência com programação web me permitiu 
ocupar o cargo de gerente de comunicação do movi-
mento, por isso falava diversas vezes por dia com o 
Preto Ghóez. E o Movimento Enraizados começava a 
ter um rumo mais sério.
Em junho de 2004 aconteceu em Porto Alegre o 1º Encon-
tro Nacional do MHHOB, em que lideranças de vários 
estados estiveram presentes: Lamartine Silva, Nando 
e Ghóez (MA), Edjales Fama (RO), Gil BV (Piauí), Fabiana 
Menini, Saroba e Amarelo (RS), Mano Brown (SP) e outros. 
A maneira como o MHHOB trabalhava e se articulava para 
conseguir fazer suas reuniões com as lideranças nacio-
nais me surpreendia. Para o Enraizados fazer as brinca-
deiras na Baixada Fluminense era um grande sacrifício. 
Mas fomos aprendendo o caminho das pedras a cada 
minuto, e sempre buscávamos aprender mais. 
O escritor Alessandro Buzo, que tinha uma ligação forte 
com o Movimento Enraizados, nos convidou para o lança-
mento do seu livro “Suburbano convicto”, em São Paulo. 
111Enraizados: como começou?
Por muito tempo ele foi um dos maiores colaboradores do 
Portal Enraizados, e até hoje mantém uma coluna quin-
zenal. Por escrever e participar tanto, recebia os méritos 
de estar com o nome sempre em evidência no Portal. Em 
setembro de 2004, o jornalista André Caramante escre-
veu uma matéria com o Alessandro para a revista do jor-
nal “Agora”. Ele apareceu com a blusa do Enraizados, o 
que fez crescer o nosso nome no estado de São Paulo. 
Com isso percebi que ele não estava brincando na organi-
zação, ali era fechamento pra qualquer parada.
Eu tinhaa missão de atualizar diariamente o Portal 
Enraizados, que sempre foi a porta da organização para 
o mundo. Além de colocar as notícias, ainda deveria 
estar por dentro das novidades em linguagem de pro-
gramação para dar sempre um upgrade no site. Baixei 
muitas apostilas de informática, como a de ASP (Active 
Serve Pages), uma linguagem de programação proprie-
tária, e pedi ajuda ao analista de sistemas da empresa 
em que trabalhava, o Jorge, que sempre foi um cara 
muito gente boa, uma das pessoas mais prestativas que 
já conheci na vida. 
O Jorge me passou mais algumas apostilas, mas disse 
que não sabia muito de programação web, o negócio dele 
era Cobol. Como ele ajudava a todos o tempo inteiro, eu 
passava muito tempo no CPD (Centro de Processamento 
de Dados) trocando ideia com ele e com o meu camarada 
Luciano Lyrio, que sempre permitiam que eu fi casse nos 
computadores da empresa programando e testando 
novas versões do Portal Enraizados.
Eu estudava de tudo para colocar o Portal Enraizados 
entre os portais de hip-hop mais bonitos e acessados 
do Brasil. Programação, design, marketing e técnicas 
de redação. Outros integrantes do Enraizados faziam 
música o tempo inteiro, alguns eram desenhistas e cola-
boravam com seu trabalho, a gente ia vivendo como dava. 
112 Enraizados: os híbridos glocais
O Lamartine me ligava com frequência, a gente conver-
sava e ele me passava responsabilidades. Dizia que o 
Movimento Enraizados era o nome do MHHOB no Rio de 
Janeiro, e eu deveria assumir isso. Eu pensava a respeito 
e achava que não poderia ser tão ruim, e a cada conversa 
com o Lamartine fi cava cada vez mais envolvido.
Além das atribuições que eu já tinha – pai, marido, MC, 
programador e produtor – era necessário ainda apren-
der a fazer projeto, pois descobri que não sabia. Execu-
tava minhas ideias com maestria, mas não conseguia 
enquadrá-las em editais, por exemplo.
A Fabiana Menini, do Instituto Trocando Ideia, de Porto 
Alegre, estava muito próxima do Ghóez, acho que foi ele 
quem nos apresentou. Ele usava muito o telefone dela e 
por isso eu ligava pra Fabiana com frequência, tentando 
falar com Ghóez. A gente se falava tantas vezes por dia 
que eu sabia que fi caríamos amigos. A Fabiana fez algo por 
nós, e por mim particularmente, que jamais esquecerei. 
Um dia perguntei se ela podia me ajudar a fazer um pro-
jeto, eu nunca tinha visto um pronto e não conseguia 
aprender pelas apostilas “Faça você mesmo”. Ela me 
mandou por e-mail um projeto do Trocando Ideia e um 
material com endereço, e-mail e telefone de centenas 
de instituições, do mundo inteiro, que apoiavam e patro-
cinavam projetos iguais ao nosso. Lembro que ela me 
disse para não disponibilizar o material para qualquer 
pessoa, pois aquilo era trabalho de uma vida inteira. 
Fiquei feliz pela confi ança dela, nós ainda nem nos 
conhecíamos pessoalmente. 
Eu tinha certeza que o MHHOB daria certo. Muitas pes-
soas inteligentes estavam comprometidas, era a prá-
tica da revolução que os MCs pregavam em seus raps. O 
Ghóez era o tipo de liderança que a gente não vê nascer 
todos os dias e ele estava do nosso lado, ou nós do lado 
113Enraizados: como começou?
dele, prontos para mudar a estrutura de tudo. Em uma de 
nossas conversas o Ghóez me fez entender a importância 
em estarmos juntos, mas não era eu e ele, e sim todos os 
pretos, pobres, nordestinos, todas as pessoas que eram 
discriminadas de uma maneira ou de outra. Ele dizia:
— Dudu, a gente precisa criar e cuidar das nossas pró-
prias atividades e empreendimentos, da nossa própria 
gente e do nosso dinheiro.
— Eu sei disso. (respondia positivamente, mas não fazia 
ideia de como isso poderia acontecer na prática.)
— Então a gente tem que conversar com um por um, 
com as lideranças.
— É, mas às vezes as lideranças estão muito ocupadas 
cuidando das suas mulheres e fi lhos, deixam a causa 
em stand-by. E a gente não pode nem mesmo criticar 
os caras, porque a gente faz o mesmo quando as coisas 
apertam em casa.
— Eu sei, mas não é disso que eu estou falando.
— E tem mais!
Interrompi o Ghóez e continuei falando de modo eufórico.
— Em minha pouca experiência de vida já percebi que 
onde tem dinheiro tem traição, tem tumulto, tem guerra de 
egos. Onde tem liderança tem gente querendo derrubar.
Nessa época eu era bastante cético, meus pensamen-
tos eram sempre radicais, só conseguia expor em reuni-
ões internas do Enraizados, quando havia três ou quatro 
pessoas. Um dia o Ghóez falou sobre nós do hip-hop ter-
mos nossas próprias roupas, nossa grana deveria circu-
lar entre a gente. Incentivaríamos campanhas para boi-
cotar as empresas racistas e preconceituosas, pois eles 
sobrevivem do nosso dinheiro, nós somos a maioria.
Ele continuava:
— Dudu, imagina tu lançar um disco no Rio de Janeiro 
hoje e daqui a uma semana o disco já estar vendendo 
114 Enraizados: os híbridos glocais
em quase todo o Brasil, nas comunidades que tiverem o 
MHHOB presente?
— Seria muito bom, mas é sonho isso, né?
— É possível. A gente pode criar um mercado indepen-
dente, próprio. Não fi ca pesado pra ninguém e a gente 
ainda fomenta a produção e o consumo dos nossos 
produtos.
— É verdade!
Eu só concordava. Não conseguia entender como isso 
poderia funcionar, mas sempre concordava esperando 
o dia da prática, porque na teoria a gente estava bem 
avançado. Hoje penso que o Ghóez sempre me enxer-
gou como uma grande liderança ligada à tecnologia e ao 
empreendedorismo, mas não ao rap propriamente dito.
No dia 9 de setembro, em uma de minhas ligações diá-
rias para a Fabiana Menini, veio a triste e dura notícia. 
Eu disse:
— Alô Fabiana!! Cê sabe do Ghóez?
— Você não soube, Dudu?
— Não, o que houve?
Eu esperava que ela dissesse qualquer coisa, menos que 
o cara tinha morrido. Isso não era nem a última coisa que 
passava pela minha cabeça. Defi nitivamente isso não 
poderia acontecer. Ela continuou:
— Dudu, eu tentei falar com o Ghóez e fi quei sabendo que 
ele sofreu um acidente de carro, mas não sei de muitos 
detalhes, tenta ligar para os meninos (do Maranhão) e se 
souber de alguma notícia me liga pra informar.
— Tudo bem, Fabi, vou tentar saber com os caras.
Nessa hora o meu telefone celular começou a tocar, uns 
querendo saber e outros querendo informar. O Preto 
Ghóez realmente tinha morrido em um acidente de carro.
115Enraizados: como começou?
116
Ousadia: deixe-me 
ir, preciso andar...
Aos que me perguntam o motivo de minhas viagens,
geralmente lhes respondo que sei bem do que fujo,
mas não o que busco.
— Michel de Montaigne
O ano de 2005 foi um ano de mudanças consideráveis para 
o Movimento Enraizados, e eu também estava disposto 
a mudar. O ano começou com muitas propostas, e uma 
delas foi participar do Trocando Ideia, evento produzido 
pela Fabiana Menini, em São Luís, no Maranhão. Nós do 
Enraizados éramos responsáveis pelas artes-fi nais que 
sairiam na revista “Rap Brasil”, blusas, cartazes e fl yers. 
Eu nunca fui designer, nem sequer fi z curso de Corel Draw 
ou Photoshop, apenas aplicava os ensinamentos que o 
Wilson Neném me passou, com um pouco de criatividade 
que só pode ser coisa de Deus. Também fomos convida-
dos a fi nalizar e atualizar o site do Trocando Ideia. 
Aceitamos, mas eu é que fi caria semanas na frente do com-
putador. Trabalhei pesado e apliquei um pouco daquele 
conhecimento no nosso Portal. Na verdade não sabia muito 
bem o que faria, peguei o projeto do site e comecei a analisar 
os códigos. Como não conseguia começar o trabalho, peguei 
o recurso que a Fabiana Menini havia me adiantado, cerca 
de R$800, e comprei um monte de livros para estudar e fazer 
o site ao mesmo tempo.
117Enraizados: como começou?
Com tudo pronto e aprovado pela diretoria do Trocando 
Ideia, que era apenas a Fabiana, me prepararei para via-
jar pela primeira vez para São Luís. Tive que inventar 
muita história na empresaonde trabalhava, porque eles 
não me liberariam se eu dissesse a verdade e eu decidi-
damente necessitava fazer aquela viagem. Agora havia 
chegado a minha vez. 
No dia de viajar para o Maranhão eu estava muito tenso, 
era a minha primeira viagem de avião. Não tinha dinheiro 
nem para ir ao aeroporto. Lembrei que o Marquinhos, 
irmão do Marcio Periquito, trabalhava em uma agência 
de locação de automóveis, a Localiza, no aeroporto. Fui 
à casa dele e toquei o interfone pronto para fazer um 
pedido quase desesperado:
— Marquinhos, posso falar contigo um minuto,
meu parceiro?
— Quem é?
— É o Dudu.
— Claro, entra aí. O que tá acontecendo?
— Boa noite, meu parceiro. Tô dependendo de sua 
ajuda e se você não puder me ajudar eu não tenho mais 
a quem recorrer.
— Calma, cara, fala o que você precisa, se eu não puder 
resolver talvez um outro amigo possa.
— Você ainda trabalha no aeroporto?
— Sim, trabalho na Localiza. Aquela empresa
que aluga carros.
— É porque eu tô precisando ir para o aeroporto amanhã 
de manhã, mas não tenho o dinheiro da passagem e 
queria ir de carona contigo.
— O que tu vai fazer no aeroporto?
— Vou viajar pro Maranhão, a trabalho.
— Qual o horário do teu voo?
— É 10h, mas eu tenho que chegar às 9h.
— Dudu, tá tranquilo, meu parceiro, mas só tem
um problema.
118 Enraizados: os híbridos glocais
— Fala aí, qual o problema?
— A gente vai chegar lá às 6h da manhã.
— Marquinho, isso não é problema nenhum, o pior seria 
se eu chegasse atrasado.
— Então tá tranquilo, amanhã cedo você brota aqui em 
casa e a gente vai.
— Valeu, camarada, muito obrigado. Tu tá ligado que se 
precisar de qualquer parada, é nós.
Como ele havia afi rmado, chegamos às 6h no aeroporto. 
Fiquei lá sentado, sem saber o que fazer, até que chega-
ram meus camaradas Fábio ACM e Def Yuri. Eles me orien-
taram em todo o processo. Fomos beber cerveja e por 
pouco não perdemos o voo. Eu achei aquilo muito compli-
cado. Check-in, revista, portões, embarque, e certamente 
se eles não estivessem ali eu não conseguiria chegar a 
São Luís sozinho. Para mim tudo era novo. O hotel onde 
nos hospedamos era lindo, tinha uma piscina gigante e 
logo depois da piscina era a areia da praia. A maré subia 
três vezes por dia, em alguns momentos a água do mar 
quase entrava no hotel, em outros o mar sumia, parecia 
um deserto, com algumas piscinas naturais. 
Eu me sentia mal por não poder fi car no sol, na piscina, 
na praia. Havia dito aos meus superiores no trabalho 
que estava doente, como poderia voltar queimado de 
sol? Nessa viagem, além do Fábio ACM e do Def Yuri, 
estavam Alexandre de Maio (SP), Fabiana Menini (RS), 
Nando (MA), Lamartine (MA), Edjales Fama (RO), Saroba 
(RS), Filho (PI), Patrícia (RS), Paulinha (RS), DJ Morce-
gão (AP), DJ Juarez (MA), e vários outros parceiros que 
ainda reencontraria no futuro. Durante o Trocando Ideia, 
houve batalha de break, shows, palestras e reuniões do 
MHHOB, além de uma apresentação do projeto “Hip-hop 
na linha de frente contra o tabaco”, mas depois que o 
Ghóez morreu nada era como antes no MHHOB. 
119Enraizados: como começou?
O ano de 2005 estava apenas começando e eu já tinha 
envolvido o Movimento Enraizados em muitas parcerias. 
Já no dia 14 de janeiro outro integrante do Enraizados 
participaria de um projeto a convite do Fábio ACM, o 
“Hip-hop mandando fechado em saúde e sexualidade”. 
O Fábio não queria que eu fosse, porque eu já havia par-
ticipado do projeto anterior, mas insisti muito e ele aca-
bou liberando. Este projeto foi realizado bem perto da 
minha casa, em Nova Iguaçu, no bairro Tinguá, eu saía do 
trabalho e ia direto.
Eu deveria chegar na sexta-feira pela manhã, assim 
como todos os outros participantes, mas estava no tra-
balho e não poderia inventar outra história uma semana 
depois da viagem para São Luís, seria muita cara de pau 
da minha parte. Tinha comprado uma moto YBR, zero 
quilômetro, e fui com ela para Tinguá. Rolou um bochi-
cho dentro do Movimento Enraizados falando que eu 
tinha comprado a moto com dinheiro da organização. 
Mas quem falou isso estava tão distante que não sabia 
que o Enraizados só me dava lucros de realização pes-
soal. Sentia-me realizado em fazer as atividades, mas 
fi nanceiramente era um prejuízo atrás do outro, nem no 
zero a zero fi cava. Tinha comprado a moto em 36 vezes e 
pagava com o dinheiro da passagem de ônibus. Vendi a 
moto meses depois porque caí umas três vezes.
Chegando na pousada em Tinguá, procurei os amigos. 
Fiquei impressionado com o lugar, era muito especial, 
muito verde, pra onde eu olhasse via árvores, grama e 
cerca. Mais acima, na casa onde comíamos, tinha uma 
piscina. Eu estava começando a curtir esses encontros, 
sempre com piscina e comida da melhor qualidade, mas 
não me encantava muito porque na segunda-feira a vida 
voltava ao normal, e a realidade era triste.
120 Enraizados: os híbridos glocais
Foi nesse dia que conheci o Japão (DF), a gente trocou 
muita ideia e fi camos amigos na hora. Há tempos ele 
cantou no grupo do GOG e a história de vida dele den-
tro do hip-hop é muito importante. Eu não o conhecia, 
fi quei até envergonhado. Apesar de cantar rap há algum 
tempo, só conhecia os grupos que ninguém conhecia, os 
que começaram a cantar comigo e aqueles com quem eu 
tinha um contato via carta ou e-mail. Mas o Japão tam-
bém não me conhecia e fi cou tudo no zero a zero.
Esse projeto foi importante porque eu comecei a pen-
sar sobre a questão de gênero, dar mais valor e atenção 
para as mulheres. Percebi o quanto eu era homofóbico 
e o quanto a maioria das pessoas do hip-hop ainda é. Vi 
que as minas tiravam de letra, mas os caras não. A maio-
ria queria saber se havia algum homossexual dentro do 
hip-hop, mas só apareceram as minas. Se havia algum 
homossexual no dia fi cou quieto, até mesmo por receio. 
Não era medo de apanhar, porque acredito que ninguém 
chegaria a esse ponto, mas a encarnação, as fofocas.
Como era costume em outros projetos do Fábio, a gente 
fez músicas baseadas nos temas propostos. Nenhum 
cara quis fazer música falando de homossexualidade. 
Dias depois o Cacau, do grupo Baixada Brothers, me 
ligou e falou:
— Dudu, vamos fazer um som juntos?
— Claro, meu parceiro, vamos sim.
— Vamos falar de homossexualismo. Vou convidar 
outros caras pra fazer também.
— Por mim tudo bem, cara.
Passaram-se alguns dias e eu não tinha feito a minha 
parte ainda. O Cacau já estava com a base produzida, 
me ligou e perguntou:
121Enraizados: como começou?
— Dudu, a letra da música tá pronta?
— Tá sim, Cacau.
— É que eu tô escrevendo a parte de todos os partici-
pantes pra ver quais se encaixam e colocar em ordem. 
Tem como você me mandar a sua parte agora?
— Claro que tem, mano, me liga daqui a pouco que eu
te falo.
— Tudo bem, daqui a cinco minutos eu te ligo.
— Beleza!
Fiquei doido, peguei papel e caneta e comecei a escrever 
desesperadamente, mas como iria falar de homossexu-
alismo? Resolvi falar para as pessoas não serem precon-
ceituosas, fi z comparações e alusões. Trinta minutos 
depois e o Cacau já tinha me ligado umas dez vezes, ele 
estava me pressionando e eu já estava fi cando irritado. 
Pensei em desistir, mas consegui terminar a letra. Ele 
anotou tudo e depois me ligou.
— Dudu, aqui é o Cacau de novo.
— Eu sei, fala tu!
— Você já viu a parte do Mad no rap que a gente tá 
fazendo?
— Não!
— Esta semana a gente vai gravar e tu vai ver.
— Ficou maneira, Cacau?
— Sim, fi cou muito maneira.
O Mad é um cara que eu conheço há muito tempo, mas 
não lembro quando foi a primeira vez que a gente trocou 
ideia. Sempre foi nosso camarada, mas hoje está bem 
mais próximo do Enraizados. Ele fez parte dos primeiros 
b. boys e MCs do Rio de Janeiro, cantou funk também. 
É polêmico e não se preocupa com o que as pessoas 
falam. O negócio dele é tacar lenha na fogueira. O Mad 
fez a música em primeira pessoa, dando aentender que 
era homossexual. Quando eu ouvi, não sabia o que dizer. 
Achei incrível a atitude e resolvi ligar para ele.
122 Enraizados: os híbridos glocais
— E aí, Mad, tudo bem? Aqui é o Dudu.
— Fala aí, piranha.
— Mano, achei irada a tua letra.
— Pô mano, tu gostou mesmo?
— Sim, cara, gostei muito. Gostei mais ainda da tua 
atitude. Expor sua vida assim, falar da sua homossexua-
lidade numa música.
— Mas espera aí, Dudu, eu não sou homossexual!
— Aaaaaah, é sim!
— Não, não sou não.
Então nós começamos a rir muito! E ele indagou:
— Você faz música dizendo que dá tiro e nem por isso 
é bandido.
— Mas Mad, uma coisa é você dar tiro e outra é dar a 
capital da Coreia do Sul.
Nós rimos mais ainda, um provocando o outro.
Foi uma letra precursora, que se tornou eterna abor-
dando um assunto jamais falado dentro do hip-hop. E 
o mais maneiro é que ele teve a iniciativa que nenhum 
homossexual havia tido, apesar de ele ser heterosse-
xual. Veja a parte do Mad na letra “O julgamento”:
A vida passa, o mundo gira e vê que nada mudou
E vê que o novo pensamento ainda não se formou
A ignorância, o preconceito, sai do escuro e mostra a cara
Sua face é violenta e despreparada
Que vai no fundo da alma e corta a calma
Transforma a luta da igualdade num sonho sem causa
O seu olhar de reprovação me traz indignação 
Torna mais forte a minha posição
Vocês não sabem como é difícil enfrentar 
O julgamento desse seu olhar
Quando não quero que me entenda
Só quero o seu respeito
A opção é minha, eu tenho o meu direito
123Enraizados: como começou?
Deixe-me em paz, deixe-me sorrir ou chorar
Me lambuzar de prazer ou me penalizar
A opção é minha, então vamos por parte
Respeite a minha individualidade
Que movimento é esse que estamos participando
Que agride outros seres humanos
Que porra de cultura é essa que estamos formando
Ao invés de unir estamos segregando
Na semana seguinte, dia 28 de janeiro, eu voava de novo 
para Porto Alegre, para participar do Fórum Social Mun-
dial e do MHHOB Mundi, evento do MHHOB que fazia 
parte do calendário do Fórum. Ainda não me sentia 
seguro em viajar sozinho de avião, por sorte o Def Yuri 
também estava indo para Porto Alegre, fi caríamos na 
casa da Fabiana Menini. A viagem foi tranquila.
Assim que entrei no portão da escola onde a maioria das 
pessoas do MHHOB estavam hospedadas topei com o 
Gilberto Gil, então ministro da Cultura. Na pressa, ele 
apertou a minha mão e foi embora. A galera olhou a cena 
e achou que éramos relacionados, e algumas pessoas 
que nem me conheciam começaram a se chegar.
Como participava ativamente do MHHOB, fui convidado 
para dar palestra sobre Software Livre na mesa “Comu-
nicação popular e cultura hip-hacker” junto com o Cláu-
dio Prado, do Cultura Digital, do Ministério da Cultura, e 
a Fernanda Weiden, criadora do projeto “Software Livre 
mulheres”. Apesar de eu não saber absolutamente nada 
de Software Livre, na época era o cara do MHHOB que 
mais entendia de tecnologia. Estudei um pouco antes de 
viajar e preparei um discurso bem básico e superensaiado.
Participei de todas as discussões, mas não falava muito, 
apenas observava, tentando absorver o máximo do que 
os experientes diziam. Reparei que quando dava uma opi-
nião, uma maioria sempre concordava comigo, e vi que um 
125Enraizados: como começou?
questionamento meu podia mudar algo no rumo da histó-
ria. Mas não questionava muito porque não queria ser o 
centro das atenções. Na verdade, minha vontade era pas-
sar despercebido. Desejava que ninguém fosse à pales-
tra, ou que ela tivesse sido cancelada por algum motivo.
Mas nada disso aconteceu. No dia e na hora marcada, 
cerca de 20 pessoas sentadas em círculo esperavam 
as sábias palavras de Dudu de Morro Agudo, Cláudio 
Prado e Fernanda Weiden. Nunca vou esquecer o que o 
Cláudio Prado fez por mim aquele dia. Como a Fernanda 
não apareceu, ele fez questão que eu falasse primeiro, 
pois certamente se ele começasse não haveria chance 
de eu falar depois.
Meu discurso começou bem técnico, falando das dife-
renças entre o Windows e o Linux. Depois parti para a 
discussão ideológica, e de maneira abrupta terminei a 
longa palestra de dez minutos. Foram os dez minutos 
mais longos da minha vida. As 20 pessoas me olharam 
com cara de espanto, sem acreditar que eu realmente 
tinha terminado a palestra. O Cláudio olhou pra mim e 
disse a todos os presentes:
— A ideia do Software Livre é justamente essa 
que o Dudu acabou de falar, agora eu vou apenas 
complementar.
Ele falou durante duas horas, e eu aprendi bastante 
sobre Software Livre. Depois desse dia estudei muito. 
Precisaria saber a respeito porque as discussões sobre 
os Pontos de Cultura estavam aceleradas e eu era a 
pessoa que participava dos grupos de discussão com 
o Ministério da Cultura, representando o MHHOB. Nas 
reuniões do MHHOB durante o V Fórum Social Mun-
dial falava-se muito sobre a Conferência do MHHOB 
que aconteceria em Teresina, no Piauí, em fevereiro 
daquele mesmo ano.
126 Enraizados: os híbridos glocais
127Enraizados: como começou?
128 Enraizados: os híbridos glocais
Assim que cheguei ao Rio de Janeiro recebi uma ligação 
da Fabiana Menini informando que a Conferência seria 
durante o carnaval, a partir do dia 5 de fevereiro de 2005. 
Eu tinha acabado de chegar e já me preparava para mais 
uma viagem, dessa vez para o Piauí. Eu sabia que as dis-
cussões teriam dois eixos muito importantes: a apro-
vação dos Pontos de Cultura e a institucionalização do 
MHHOB por meio de um braço jurídico chamado Instituto 
Ruas. Minha participação era muito importante nas duas 
discussões. Não viajei sozinho, levei mais dois integran-
tes do Movimento Enraizados, achava importante que 
essa galera estivesse viajando e conhecendo gente nova.
Não poderia imaginar que essa viagem mudaria total-
mente o rumo do Movimento Enraizados no Rio de Janeiro. 
Todos os participantes da Conferência se hospedaram 
em um hotel perto do Centro de Teresina. Era um hotel 
duas estrelas, mas era bem confortável e os funcionários 
muito gentis. Faziam de tudo para nos agradar.
Os trabalhos e reuniões aconteciam no Centro de Refe-
rência do Hip-Hop, na sede da ONG Questão Ideológica, 
também fi liada ao MHHOB, uma escola abandonada que 
foi ocupada por eles. Quando cheguei ao Centro de Refe-
rência do Hip-Hop e vi de perto a organização daqueles 
jovens, fi quei deslumbrado. Não somente com o tama-
nho do local, mas também com os equipamentos que 
eles tinham ali e mais ainda com a administração. A 
média de idade era no máximo 25 anos.
Eu teria que voltar para o Rio antes de terminar a Confe-
rência. Algumas reuniões foram antecipadas para que eu 
participasse. Queria mais informações a respeito da ocu-
pação da escola abandonada. Em Morro Agudo havia uma 
escola estadual abandonada havia mais de quinze anos, 
onde eu jogava bola quando era criança. O Gil BV, um dos 
coordenadores da ONG Questão Ideológica e a pessoa com 
129Enraizados: como começou?
que eu mais tinha contato no Piauí, me contou que eles 
estavam precisando de uma sede e identifi caram aquela 
escola. Organizaram-se e em apenas um dia ocuparam o 
espaço, colocaram luz, água, pintaram, grafi taram tudo e 
ainda começaram as ofi cinas de hip-hop.
A imprensa documentou as atividades, e o governo fez 
um acordo com eles, que permitia que fi cassem durante 
dez anos no local. O Gil BV me disse também que foi 
muito importante o apoio fi nanceiro da Fase, ONG do 
Rio de Janeiro, por meio de um fundo de apoio cha-
mado Saap (Serviço de Análise e Apoio a Projetos). Foi 
o pontapé inicial, quando eles começaram uma nova 
fase em suas vidas.
Uma nova fase também começava na minha vida. Durante 
as reuniões soube que oito Pontos de Cultura poderiam 
ser aprovados para o MHHOB, e um deles iria para o 
Movimento Enraizados. Além disso, as negociações 
com o Instituto Ruas também avançavam.Fui embora 
de Teresina feliz, com uma força renovada, louco para 
chegar ao Rio e compartilhar com os companheiros do 
Movimento Enraizados as novidades. Em breve teríamos 
equipamentos novos para fazer nossas próprias produ-
ções de música, vídeo, e tudo mais que tivéssemos von-
tade e criatividade.
Depois que fui embora muita coisa ainda aconteceu em 
Teresina. A Fabiana Menini saiu do MHHOB. Acho que 
ela não queria, mas talvez tenha sido obrigada a dei-
xar a organização. Isso nunca fi cou muito claro, cada 
um com uma versão diferente da história. Creio que 
foi uma guerra de egos, mas nada podia ser feito. A 
Fabiana integrou o MHHOB a convite de Preto Ghóez, 
e sem ele seria impossível mantê-la na organização. 
Mas a Fabiana continuou com êxito nos seus projetos 
na Trocando Ideia, sua organização.
130
O Neoenraizados
Não estrague aquilo que você tem, desejando o que não tem; 
lembre-se de que o que você agora possui 
um dia já esteve entre as coisas com relação 
às quais você só tinha esperança.
— Epicuro
Eu não parava de pensar no Centro de Referência do Hip-Hop. 
Se aqueles garotos conseguiam ter algo daquele tama-
nho funcionando em Teresina, por que nós não conse-
guiríamos fazer o mesmo em Nova Iguaçu? Fui várias 
vezes ao colégio abandonado pensando o que pode-
ríamos fazer para ocupar o lugar, construir ali a nossa 
sede e colocar os equipamentos do Ponto de Cultura, 
que chegariam a qualquer momento. O local é a quadra 
de um Ciep com mais de 4.000m². O colégio pertence 
ao Governo do Estado do Rio de Janeiro e está até hoje 
murado nos quatro lados. Não há como entrar, não existe 
portão. A diretora da escola, por medo dos adolescentes 
que usavam a quadra para praticar esportes e usar dro-
gas, pediu que murassem o espaço.
Nessa mesma época, o Dinho e o Jack, do grupo de rap 
Fator Baixada, compraram um transmissor FM e mon-
taram uma rádio comunitária no terraço da casa do 
Dinho. Eles tinham um programa diário de rap que era 
sucesso absoluto no bairro. O Kall e o Jack eram os 
131Enraizados: como começou?
apresentadores e o Dinho cuidava da parte técnica. O 
programa era à noite, das 22h à meia-noite, e todos nós 
íamos ver a performance deles. Em pouco tempo eles 
compraram uma linha telefônica e ar-condicionado. Eu 
achava tudo muito legal, as pessoas ligavam querendo 
participar e a gente conseguia brindes para eles sortea-
rem. Aos sábados o programa era de tarde. A gente com-
prava cerveja e fi cávamos bebendo enquanto eles traba-
lhavam. Sempre levávamos algumas pessoas do hip-hop 
para serem entrevistadas aos sábados. Uma vez convi-
damos o Alessandro Buzo, que sempre estava no Rio de 
Janeiro, e fi zemos um churrasco na laje do Dinho. Entre 
uma cerveja e outra o Buzo respondia às perguntas.
No dia 31 de março de 2005 saímos tarde da rádio sem 
saber o que estava acontecendo na cidade de Nova 
Iguaçu. Somente quando acordei no dia seguinte soube 
que 29 pessoas foram brutalmente assassinadas em 
Nova Iguaçu e em Queimados. Meu telefone não parava de 
tocar, eu não sabia o que fazer. Depois descobrimos que 
policiais militares foram os responsáveis pelo assassi-
nato das pessoas, e que nenhuma delas tinha passagem 
pela polícia. Todas as 29 pessoas eram inocentes. Nova 
Iguaçu entrava para a história de uma forma terrível.
No meio desses trágicos acontecimentos chegava a boa 
notícia de que a data de envio dos kits do Ponto de Cul-
tura estava cada vez mais próxima.
Um dia chamei o Léo da XIII e falei:
— Léo, tenta reunir as pessoas que praticam hip-hop 
em Morro Agudo porque eu preciso dar uma informação 
que vai ser importante pra todo mundo.
— Tá bom, que dia eu marco pra eles virem?
— Marca no sábado, dia 30 de abril.
— Tudo bem, vou falar com o pessoal.
132 Enraizados: os híbridos glocais
— Marca no refeitório do Ciep. Eu vou falar com a 
diretora e é certo de ela liberar.
— Tudo bem, deixa comigo.
Falei com a diretora da escola e ela não implicou com a 
reunião, apenas me disse o que repeti pra todo mundo: 
não faz barulho, não faz bagunça, e não quebra nada. 
No dia da reunião fi quei surpreso. Não imaginava que 
tanta gente praticasse hip-hop em Morro Agudo. Tam-
bém fi quei feliz com o empenho do Léo da XIII. Cinquenta 
pessoas apareceram na reunião, que seria a primeira do 
Movimento Enraizados em Morro Agudo.
Há dois anos o Kall, do Fator Baixada, queria me apresen-
tar um cara que morava perto da casa dele. Sempre que 
a gente se encontrava ele lembrava desse camarada e 
dizia que eu precisava conhecê-lo, mas eu não dava muita 
atenção e o Kall nunca trazia o cara. Quando o Léo da XIII 
convocou o Kall para a reunião, ele viu a oportunidade de 
levar o tal camarada que ele tanto queria me apresentar.
Apesar de estar feliz com a quantidade de pessoas pre-
sentes, não demonstrei o sentimento. Apresentei-me, 
pois alguns não me conheciam. Comecei falando um 
pouco sobre a trajetória do Movimento Enraizados até 
aquele momento, e depois da vontade de fi xar a sede da 
organização em Morro Agudo. Mas para isso precisaria da 
ajuda de todos. Falei das últimas viagens que havia feito 
e de tudo que tinha visto. Disse que era possível nós, jun-
tos, construirmos algo sólido em Morro Agudo, com base 
no que a gente sabia fazer de melhor: o hip-hop.
Lembro que todos, sem exceção, me olharam como se o 
que eu falasse naquele momento fosse impossível. Cer-
tamente se eu não tivesse visto o Centro de Referência 
do Hip-Hop, em Teresina, e alguém me contasse que era 
possível fazer algo parecido, eu encararia a pessoa com 
133Enraizados: como começou?
o mesmo olhar. Mas quando eu comecei a falar do Ponto 
de Cultura, dos equipamentos que usaríamos gratuita-
mente, e o que poderíamos fazer com aquilo, todos fi ca-
ram animados. Mesmo sem saber o que era o Ponto de 
Cultura e como isso poderia chegar a Morro Agudo.
Por participar das atividades do MHHOB, aprendi a orga-
nizar a reunião e a minha palestra. Um dos tópicos era 
a criação de um zine, um meio de comunicação nosso, 
criado e alimentado por nós. Fizemos um rápido concurso 
para saber qual seria o nome do zine, e ganhou “Voz Peri-
férica”, sugerido pelo Short, um grafi teiro que mora no 
bairro Nova Era e é liderança da Gorgonoyde Crew. Quando 
acabou a reunião o Kall me apresentou o camarada dele, 
Luiz Carlos, que era ator e havia gostado da organização.
Das 50 pessoas presentes na reunião, 49 faziam parte 
da cultura hip-hop. Apenas o Luiz Carlos, hoje conhecido 
como Luiz Carlos Dumontt, era do teatro. Todos foram 
embora muito animados e comprometidos em lutar 
comigo por Morro Agudo, aproveitando o que o Movi-
mento Enraizados já havia conseguido e querendo abrir 
novos horizontes. Mas todos tinham emprego e família, 
e a evasão foi inevitável.
Para ocupar a quadra da escola era necessário fazer 
tudo como manda o fi gurino. A realidade em Nova Iguaçu 
é bem diferente da de Teresina. Se nós ocupássemos a 
quadra, a vida dos meninos e meninas poderia estar em 
risco. Em Morro Agudo a polícia ou os bandidos facil-
mente confundem ocupação com invasão.
Sendo assim, dias depois apresentei um documento para 
a diretora do Ciep, solicitando a quadra. Havia argumen-
tos bem sinceros no ofício que redigi. Ela me deu espe-
rança e pediu que eu entregasse o documento na coorde-
nadoria. Até hoje aguardo um retorno que nunca chegou.
134 Enraizados: os híbridos glocais
As atividades artísticas não paravam. Minha casa de qua-
tro cômodos era o nosso home estúdio, o lugar onde pro-
duzíamos os beats. O computador fi cava no meu quarto 
e quando a rapaziada chegava minha esposa e minhas 
fi lhas tinham que ir para a casa da minha mãe. Um dia o 
Léo da XIII estava comigo em casa, produzindo beats para 
o grupo Ultimato à Salvação, quando recebi uma ligação 
do Luiz Carlos Dumontt. Ele queria trocar algumas ideias, 
tinha pensado algumas coisas para o movimento.Fiquei um pouco preocupado. Eu sempre tomava as ini-
ciativas dentro da organização e chamava os camara-
das para colocar em prática. Esse cara que nem era do 
hip-hop já estava pensando coisas para o Movimento 
Enraizados. Esperei ele chegar pra ver o que realmente 
queria. Quando ele chegou eu e Léo estávamos com um 
teclado da Cássio muito usado, tentando captar melo-
dias para colocar no beat. O Dumontt olhou aquilo e nem 
falou o que ele tinha vindo fazer, simplesmente disse:
— Vocês estão precisando de um teclado?
— Não, não precisamos, não. Esse aqui dá pra usar.
— É que eu tenho um teclado lá em casa que não estou 
usando.
— Ah! Se você não está usando então acho que vai 
servir pra nós, mesmo porque esse aqui não é nosso.
— Espera um pouco que eu vou lá buscar.
— Tudo bem, a gente espera.
Ele saiu da minha casa e depois de meia hora estava de 
volta, carregando nos ombros um teclado da Yamaha 
gigante, supercaro, que eu nem sabia como ligava. O Léo 
da XIII nem piscava, olhando para o equipamento. Acho 
que ele pensou: “Se com esse teclado todo ruim a gente 
faz um som maneiro, imagina com esse jumbo!” Acaba-
mos de usar o teclado e fomos devolver para o Dumontt. 
Ele disse que o teclado tinha mais utilidade com a gente, 
135Enraizados: como começou?
era uma doação para o Movimento Enraizados. Aceitei 
na hora. Acho que o Movimento Enraizados, antes deste 
dia, nunca tinha ganhado nada.
Eu e o Dumontt começamos a conversar, ele queria saber 
mais sobre o Movimento Enraizados, sobre a história da 
organização, e eu queria saber mais sobre ele. Quem 
era ele? Expliquei tudo sobre o Movimento Enraizados e 
disse que era a hora de construir uma história em Morro 
Agudo. Eu cresci ouvindo que o lugar onde nasci e fui 
criado é amaldiçoado, que nada de bom sai desse lugar, 
e isso faz com que as pessoas fi quem com autoestima 
baixa. Isso mexeu comigo durante muito tempo, mas me 
fez ter mais força para fi ncar aqui minhas raízes.
Apesar de estar totalmente envolvido com a questão dos 
Pontos de Cultura do Ministério da Cultura, ainda não 
me sentia à vontade pra conversar com políticos. Mas 
já na primeira conversa o Dumontt tentou me mostrar a 
importância da articulação política. Hoje conversando 
com os Enraizados, a gente sempre bate nessa tecla: 
“Se estiver longe da política, será mais fácil os políticos 
mal intencionados enganarem você e sua comunidade.” 
Eu e Dumontt conversávamos bastante, mas eu não 
podia imaginar que nossa amizade fosse durar mais do 
que as outras. A gente não tinha muito em comum, e até 
hoje não temos, e parece que esse é o nosso segredo. 
Não imaginava que aprenderia tanto e fi caria tanto 
tempo, literalmente, do lado desse cara. Eu nunca fui 
religioso, mas tenho certeza que algo sobrenatural fez 
com que eu e Dumontt nos conhecêssemos especifi ca-
mente naquele momento. Tudo o que a gente passou do 
momento que nos conhecemos até hoje foi literalmente 
guiado por Deus.
136 Enraizados: os híbridos glocais
137Enraizados: como começou?
138
Level two
Não há mais que dois tipos de pessoas:
 as determinadas e as indeterminadas.
As primeiras sabem aonde vão chegar; 
as outras nem sabem onde estão.
— Marina Pechlivanis
Depois daquela primeira reunião no Ciep, o Dumontt foi 
o único que me procurou. Sem contar, claro, os que já 
estavam enraizados, como o Léo da XIII, o Kall, a Lisa e o 
Átomo. Eu sabia que não poderia dar muito espaço entre 
uma reunião e outra. Os garotos não compareceriam. 
Era união para não evasão. A partir dessa ideia surgiu o 
evento Encontrão, em que lançaríamos o nosso zine, o 
“Voz Periférica”. Além disso, era um evento para trocar 
ideia, conhecer gente nova, trocar CDs e fazer tudo que 
desse vontade. O objetivo era compartilhar.
O Léo da XIII era, como ele mesmo se intitulou, o aproxi-
mador. Chamou artistas e militantes para participarem 
do Encontrão. O primeiro evento aconteceu no dia 28 de 
julho de 2005, e compareceram aproximadamente 20 
pessoas. Pegamos emprestada uma tenda de plástico 
com o meu tio Humberto, uma caixa de som muito antiga 
com o Moisés, fi lho do dono da pizzaria Cyntia, fi zemos 
uma parceria com a Webnetwork (a empresa de um amigo 
que estudou comigo na faculdade, que disponibilizava 
139Enraizados: como começou?
internet a cabo em Morro Agudo), ligamos a internet e a 
caixa de som no meu computador, um Pentium 100 com 
o monitor quase queimado, e fi zemos a festa.
Cantamos e distribuímos a primeira edição do zine “Voz 
Periférica”. Disponibilizamos muitas revistas “Rap Bra-
sil”. O Alexandre de Maio enviava às vezes alguns exem-
plares pra nós, era difícil encontrar revistas de hip-hop 
nas bancas de jornal de Nova Iguaçu. O evento come-
çou às 14h e terminou depois das 21h. No dia seguinte o 
Dumontt havia marcado uma reunião com o secretário de 
Cultura de Nova Iguaçu, que na época era o Roberto Lara. 
A maioria dos garotos que estava no Encontrão compare-
ceu à reunião, que ainda contava com a presença do coor-
denador de Igualdade Racial, Geraldo Magela.
O secretário perguntou o que nós precisávamos e que-
ríamos. Sempre que acontecia uma reunião desse tipo 
com a galera do hip-hop, era unânime o pedido de apoio 
para a realização de eventos de rap, ou dinheiro para 
gravação de discos. Mas nós queríamos levantar uma 
discussão a respeito de um fundo para a cultura em 
Nova Iguaçu, e que essa grana fosse liberada por meio 
de editais para os grupos culturais da cidade.
O Dumontt ainda complementou e disse que o mais 
importante era uma formação para os grupos cultu-
rais aprenderem a fazer projetos. Se os editais um dia 
saíssem, a maioria dos grupos não saberia como pre-
encher os formulários. Todos, inclusive nós, precisáva-
mos aprender a fazer projetos, captar recursos e pres-
tar contas. O Roberto Lara disse que batalharia por nós, 
mas logo foi exonerado do cargo.
Tudo que acontecia com o Movimento Enraizados, em 
Morro Agudo, era disponibilizado no Portal Enraizados, e 
por isso o Encontrão, mesmo sendo um evento pequeno 
140 Enraizados: os híbridos glocais
e sem qualquer estrutura ou recurso fi nanceiro, come-
çava a ganhar projeção nacional. As discussões com o 
poder público também chamavam a atenção dos Enrai-
zados de outros estados. Rapidamente o Dumontt 
inseria o Enraizados em algumas atividades em Morro 
Agudo, enquanto eu o levava para conhecer os eventos e 
os meus camaradas do hip-hop carioca.
No mês seguinte fi zemos a segunda edição do Encon-
trão, desta vez com mais de 50 participantes. Além 
da galera de Morro Agudo, compareceram pessoas da 
Ilha do Governador e de Duque de Caxias. Nessa época 
conhecemos o cordelista Jota Rodrigues, que mora em 
Morro Agudo há mais de trinta anos. O Kall foi até a sua 
casa para fazer uma matéria para o “Voz Periférica”. 
Enquanto isso o Léo da XIII se envolvia num encontro 
de Pontos de Cultura, na Leopoldina, centro do Rio de 
Janeiro, e eu acompanhava reuniões que a prefeitura 
fazia nas comunidades. Eles traziam arquitetos para 
conversar com as lideranças do bairro e nos prometeram 
construir uma casa do hip-hop em Morro Agudo. 
Também participei, junto com o Dumontt, de mais uma 
reunião com a diretora do Ciep 117, para tentar resolver 
de uma vez por todas a questão da ocupação da quadra. 
Neste dia ela levou um deputado que deu a entender 
que tinha o poder de liberar a quadra para nós ocupar-
mos. Tudo me pareceu um jogo político-partidário, em 
que a conversa mansa dele insinuava que não teríamos 
liberdade de trabalhar do nosso jeito. Meu lado radical 
falou mais alto e fomos embora sem fechar qualquer 
acordo, continuando nas ruas do bairro. Foi quando 
entendi o que o Antônio Carlos Magalhães queria dizer 
com a frase “A ocasião faz o aliado”. Mas com a gente 
não funcionava dessa forma.
141Enraizados: como começou?
O Encontrão não parava de crescer, a terceira ediçãofoi bem maior do que a segunda. Conversando durante 
o evento, decidimos que nos encontraríamos uma vez 
por semana. Como não tínhamos sede, nossos encon-
tros seriam na praça, no centro de Morro Agudo. Nossas 
reuniões semanais eram engraçadas, o Dumontt trazia 
dinâmicas de grupo para fazermos durante o encontro. 
Cerca de 20 pessoas participavam da reunião. Durante 
as dinâmicas a gente se abraçava, e as pessoas que pas-
savam na rua não entendiam o que estávamos fazendo 
ali. Acho que só o Dumontt sabia, ele trazia os ensina-
mentos do teatro e aplicava no Enraizados. Em uma de 
nossas reuniões, o Átomo, que é evangélico, disse:
— O pessoal da minha rua vai passar e me ver aqui na praça 
e vão dizer que depois que eu virei crente fi quei maluco.
Com o sucesso do Encontrão e a publicação das fotogra-
fi as no Portal Enraizados, recebíamos muitos e-mails 
e telefonemas de grupos de rap que queriam se apre-
sentar no evento. Mas eu não permitiria que as pes-
soas viessem de outros estados para participar de um 
evento que nem microfone tinha. O Dumontt disse que 
era quase impossível conseguir um palco a uma semana 
do evento, mas tentaria uma articulação com algumas 
pessoas da prefeitura que talvez desse certo.
Os Enraizados de outros estados estavam decididos 
que viriam para Morro Agudo, mas mesmo assim eu 
não divulguei. Na sexta-feira, um dia antes do evento, 
ainda não tínhamos confi rmação do palco. A calma do 
Dumontt me incomodava. Às 22h ele recebeu uma liga-
ção, era o pessoal da prefeitura confi rmando o palco 
do nosso evento, mas eles não tinham o som. Tínhamos 
outro problema nas mãos.
142 Enraizados: os híbridos glocais
Na madrugada de sexta para sábado o palco foi mon-
tado, e quando os moradores acordaram se depararam 
com uma verdadeira espaçonave na porta de suas casas. 
Como não havíamos divulgado o evento, os moradores não 
sabiam para que era aquele palco gigantesco, e as crian-
ças na mesma hora o usaram como parque de diversões.
Começamos a fazer uns contatos para arrumar o som. Eu 
sabia que o Chico, pai do Dinho, DJ do grupo Fator Bai-
xada, tinha uma aparelhagem, então fomos até a casa 
dele para conversar. O Chico é muito gente fi na e topou 
na hora, cobrou bem baratinho pra nós. Os moradores 
do bairro de fato não conheciam a cultura hip-hop, então 
tentamos trazer os quatro elementos. Convidamos os 
grafi teiros Tihkin (Penha) e Kajaman (Duque de Caxias) 
para participarem do evento conosco. 
A ideia inicial era grafi tar o muro de algumas casas da rua, 
mas os moradores não aceitavam de jeito nenhum. A solu-
ção foi comprar um tapume para grafi tar. No dia, o César, 
fi lho do cara que me ensinou a consertar rádio, cedeu a 
parede do bar dele para o Kajaman grafi tar. Quando os 
outros moradores viram o resultado quiseram liberar os 
muros para o grafi te, mas não dava mais tempo.
O Alessandro Buzo veio de São Paulo para apresentar 
o evento. Para cantar, além do casting do Movimento 
Enraizados (Dudu de Morro Agudo, Fator Baixada, Ulti-
mato à Salvação e Léo da XIII), vieram Os Guerreiros e 
Hórus, ambos de São Paulo, além de alguns grupos do 
Rio de Janeiro. Mesmo sem entender o que era o hip-
hop, os moradores da minha rua queriam se vestir e fi car 
iguais a nós. Toda hora aparecia uma touca ou um boné 
de lado, em crianças, jovens, adultos e idosos. A força do 
Enraizados estava ali, materializada.
Cap.03
Seguindo em frente
Cap.03
Seguindo em frente
146
A arte de criar o 
inimaginável
Ainda não houve homem de gênio extraordinário 
sem algo de louco.
— Sêneca 
Eu e o Dumontt começávamos a trocar ideia todos os 
dias da semana. O Dumontt representava intelectual-
mente todas as atividades que o Movimento Enraizados 
executava. A cada dia ele me apresentava planos mira-
bolantes para serem executados a longo prazo no Enrai-
zados. Eram dezenas de ideias que talvez eu só fosse 
pensar uns trinta anos depois.
Aos poucos ele contava sua história de vida, e a gente 
começou a se identifi car. Ele cresceu gago, mas tão gago 
que não conseguia se comunicar. Sua infância foi dentro 
de casa, lendo centenas de livros e vendo TV. Destacava-
se na escola, foi o primeiro da família a ingressar na uni-
versidade. Antes de se formar já dava aulas de matemá-
tica. Para conseguir uma bolsa na faculdade entrou para 
o grupo de teatro, e a partir daí sua vida mudou.
Logo depois entrou na Cia. Encena – companhia de tea-
tro – e se descobriu ator. Conseguiu controlar aquilo que 
o perturbava desde pequeno: a gagueira. Iniciou a facul-
dade de cinema. A Cia. Encena era um movimento cultu-
ral, enquanto Dumontt queria institucionalizar tornando-
a uma associação, outros integrantes preferiam montar 
147Seguindo em frente
uma produtora, o que motivou um racha. Quando a Asso-
ciação Cia. Encena estava com os documentos em dia, era 
ele quem “carregava o piano”. Depois de grandes decep-
ções e uma dívida de seis mil reais, a gente se conheceu.
Eu estava diante de um gênio, não tinha dúvidas. Sempre 
o chamei de meu guru. Difi cilmente ele toma decisões de 
forma lógica, por mais que tudo indique que aquele não 
é o caminho, se ele achar que é, a gente vai conferir. Em 
uma de nossas conversas me contou que quando parti-
cipou da reunião no Ciep sua vontade era ajudar aqueles 
garotos durante um tempo, e depois seguir seu caminho. 
Mas foi se envolvendo com o passar do tempo, e a cada 
minuto estava mais comprometido com o Enraizados, 
até que não conseguiu mais ir embora.
Eu e Dumontt nos reuníamos no bar Continental, sempre 
após os encontros do Movimento Enraizados na praça 
de Morro Agudo. Quando tínhamos dinheiro, o que não 
era comum, bebíamos umas cervejas enquanto pen-
sávamos nas estratégias que usaríamos nos próximos 
meses. Em uma dessas conversas surgiu a ideia de mar-
carmos a cidade com nosso logotipo. Resolvemos grafi -
tar a cidade e depois fazer blusas do Movimento Enrai-
zados para colocar na rua. Além de nos dar visibilidade 
geraria uma renda extra para a organização. Outra estra-
tégia era continuar compartilhando poder com os garo-
tos, sempre os enviando para participar das atividades 
para as quais nós do Enraizados éramos convidados.
Ficamos uns três meses fazendo encontros na Praça de 
Morro Agudo, até que um dia uma senhora passou de 
carro, viu nossa situação, chamou o Dumontt e ofereceu 
a varanda da casa dela para nos reunirmos. Acho que ela 
fi cou com pena da gente ou achou perigoso fi carmos ali, e 
a partir de então passamos a nos reunir na casa dela. Seu 
nome é Rosinha, uma senhora muito boa, que nos ajuda 
bastante, e por isso foi apelidada de Mãe do Enraizados.
148 Enraizados: os híbridos glocais
O Dumontt conceituou e organizou o modo como tra-
balharíamos, chamou de Rede Enraizados e defi niu 
como essa rede funcionaria dali pra frente. Foi quando 
Dumontt participou, em dezembro de 2005, da I Con-
ferência Nacional de Cultura, em Brasília. Chegando lá 
conheceu pessoas de diversas instituições. Nós sabí-
amos que trabalhávamos em rede, mas neste dia o 
Dumontt me ligou e disse:
— Filhote, estou aqui em Brasília com muitas institui-
ções que trabalham com hip-hop e juventude. Posso 
convidar eles pra entrar na Rede Enraizados?
Eu sem saber muito bem do que ele estava falando, 
concordei:
— Pode sim, cara! Claro que pode.
Formava-se naquele momento a Rede Enraizados, com 
seis instituições. A partir de fevereiro de 2006 nos reu-
níamos uma vez por semana, à noite, já que todo mundo 
trabalhava. A Rosinha não se importava com a nossa 
presença. A gente chegava e já ia sentando na varanda 
da casa dela, falando alto, mostrando as rimas e dando 
os informes. Nosso nome já era bastante comentado 
em Nova Iguaçu, tanto pelos grupos culturais como 
pelos políticos. 
Ficamos sabendo que Nova Iguaçu sediaria o Fórum 
Mundial de Educação, no fi m do mês de março. O 
Dumontt sugeriu quenos inscrevêssemos em uma ativi-
dade autogestionada. Ele articulou com a escola muni-
cipal Ivonete dos Santos Alvez, e levamos cerca de 50 
crianças, mais professores e diretores da escola.
Dez Enraizados estavam empenhados, por meio do pro-
jeto “A escola é mais hip-hop”, em mostrar ofi cinas, 
palestras, bate-papo e debates sobre quanto o hip-hop 
149Seguindo em frente
pode contribuir para a formação de cidadãos que respei-
tam qualquer tipo de diversidade e, acima de tudo, como 
essa cultura já está integrada à educação.
Preparamos uma palestra em que eu contei a história 
do hip-hop mundial e nacional, o Dumontt falou sobre 
o Movimento Enraizados, o Léo da XIII, o Kall e o Átomo 
sobre o rap – a literatura da periferia –, e o Short falou 
sobre o grafi te. As crianças estavam quase dormindo e 
as diretoras começaram a reclamar. Explicamos que a 
palestra não era para as crianças, e sim para os adultos. 
A parte das crianças seria a próxima: o hip-hop na prática.
Nossa intenção era levar o hip-hop para as escolas. Terí-
amos primeiro que convencer os adultos, as diretoras, 
e depois as crianças. Quando começamos as atividades 
com as crianças, primeiro trabalhamos com a ofi cina 
de rap. Usamos uma metodologia simples. Fizemos um 
grande círculo em que todos podiam se ver. Os partici-
pantes falavam frases e a gente ia escrevendo no qua-
dro negro. Os rappers tinham a missão de fazer com que 
as frases rimassem. Construímos uma música coletiva, 
inclusive com direito a refrão, mas sempre com conexão 
lógica entre os fatos.
No fi nal, nós, rappers, selecionamos uma base instru-
mental e começamos a musicar com a ajuda de todos 
os presentes. O ponto alto da ofi cina foi o ensaio, que 
durou mais de meia hora. Todos aprenderam a música 
em menos de dez minutos, mas gostaram tanto que não 
queriam parar de cantar:
A escola é mais hip-hop
A escola é mais hip-hop, pode crer 
Lá é o lugar aonde eu vou para aprender 
Inclusão social, pode crer 
A escola é o lugar aonde eu vou para aprender 
150 Enraizados: os híbridos glocais
Vou à escola para aprender, já sei ler e escrever 
Mas por causa da miséria também vou para comer 
E quando crescer quero ter uma profi ssão 
Para poder trabalhar e formar um novo cidadão 
Ser um escrivão para andar de carrão 
Ter inteligência e ser mais um na inclusão 
E hoje tô no Fórum Mundial da Educação 
Usando o hip-hop para a transformação 
A escola é mais hip-hop, pode crer 
Lá é o lugar aonde eu vou para aprender 
Inclusão social, pode crer 
A escola é o lugar aonde eu vou para aprender 
Em seguida os b. boys ensinaram para as crianças 
alguns passos de break e evoluímos até chegar a uma 
coreografi a. Os adultos não resistiram e também entra-
ram na dança. Pessoas de outras salas quiseram par-
ticipar de nossas atividades, mas a sala de aula já não 
suportava tanta gente.
Com a missão cumprida, fomos comemorar. Quando 
abria a primeira cerveja em casa, o telefone do Dumontt 
tocou. Era o Paulô, um grande camarada nosso, que tra-
balhava na articulação política da prefeitura de Nova 
Iguaçu, dizendo que por causa da repercussão da nossa 
atividade no Fórum o prefeito Lindberg Farias gostaria 
que fôssemos até o Sesc, onde acontecia uma palestra 
sobre segurança pública, e falássemos da nossa experi-
ência com o projeto.
O Paulô pediu que um carro da prefeitura fosse nos 
buscar. Fui para o Sesc como estava vestido: uma ber-
muda de basquete, a blusa Black Panters do Movimento 
Enraizados, calçando Havaianas. Alías, todos os Enrai-
zados estavam com a blusa Black Panters. Causáva-
mos espanto por onde passávamos. Vi ali a oportuni-
dade de falar algumas verdades em público. Participar 
151Seguindo em frente
dessa palestra custava uma grana, e quem era professor 
pagava um pouco menos. Como eu não era professor e 
não tinha dinheiro, teria fatalmente que fi car de fora da 
discussão, mas minha oportunidade chegara e eu não 
poderia deixá-la passar entre meus dedos.
Esperamos o anúncio dos organizadores, que não 
sabiam a hora certa de nos deixar falar. Em uma mistura 
de pressa e nervosismo nos anunciaram antes da hora 
prevista. Então entramos, nove Enraizados uniformiza-
dos, prontos para falar uma verdade que nem todos que-
riam ouvir. Lembro que na plateia havia muitos profes-
sores e que a maioria morava na cidade de Nova Iguaçu. 
Conviviam diariamente com problemáticas ligadas a 
todo o tipo de violência, dentro e fora da escola.
A primeira coisa que fi zemos quando pegamos o micro-
fone foi desconstruir o que os palestrantes diziam. Eles 
não moravam em Nova Iguaçu, não caminharam pelas 
ruas violentas da cidade. Nenhum deles poderia falar 
com legitimidade como é viver em Nova Iguaçu. Passa-
mos o discurso para as pessoas que estavam na pla-
teia, aquele evento não deveria ser uma palestra em que 
cinco pessoas falam e 150 ouvem. Aquilo deveria ser uma 
troca, em que todos falavam e ouviam, todos aprendiam 
juntos e desse modo buscariam soluções efetivas para 
os problemas, uns com a experiência de vida e outros 
com o saber da academia.
Logo depois mostramos que as crianças entendiam o que 
é desigualdade social e recitamos a letra da música “A 
escola é mais hip-hop”. Todos fi caram perplexos quando 
dissemos que grande parte das frases foi feita por crian-
ças entre 5 e 10 anos. Cantamos a música juntos, diver-
sas vezes. A mesa foi esvaziando e ninguém mais quis 
falar. Depois disso foi só festa, todos os presentes que-
riam saber mais sobre o Movimento Enraizados, de onde 
152 Enraizados: os híbridos glocais
éramos e como poderíamos fazer uma parceria com as 
escolas. O prefeito Lindberg Farias veio nos agradecer e 
nos apresentou alguns políticos ligados à educação.
Ficamos em evidência na cidade e fomos convidados a 
apresentar a música “A escola é mais hip-hop”, junto 
com os alunos do colégio Ivonete dos Santos Alves, 
durante a posse dos diretores das escolas municipais 
de Nova Iguaçu, que aconteceria no colégio Monteiro 
Lobato, no centro de Nova Iguaçu. O Dumontt ligou pra 
escola Ivonete dos Santos Alves e falou com as direto-
ras, que permitiram a apresentação dos alunos no dia 
30 de março. Um dia antes o Léo da XIII foi até a escola 
ensaiar com a criançada, todos estavam com a música 
na ponta da língua.
No dia da posse havia mais de 1.000 pessoas no colégio 
Monteiro Lobato, mas a quantidade de gente não aba-
lou as crianças. Todos estavam eufóricos e cantavam a 
música o tempo inteiro. O Léo da XIII e o Faminto, res-
ponsáveis pelas crianças naquele dia, envelheceram 
três anos em uma hora. A apresentação foi uma festa. A 
acústica do lugar era horrível e acho que ninguém enten-
deu nada, mas era impossível passar despercebida a 
felicidade estampada no rosto de cada criança.
156
Ousando em novos 
territórios
As riquezas deste mundo pertencem, com efeito, 
àqueles que têm a ousadia de proclamar-se seus donos.
— Georges Duhamel
Em abril de 2006, aconteceria a primeira edição do 
evento Teia, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. O Teia 
reuniu os Pontos de Cultura participantes do Programa 
Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura 
Viva, do Ministério da Cultura. O MHHOB estava organi-
zando o Espaço Preto Ghóez, que aconteceria durante o 
Teia. Todos os integrantes do MHHOB no Brasil enviaram 
representantes para as reuniões que aconteceriam em 
paralelo ao evento, e a principal pauta das reuniões era a 
discussão sobre os Pontos de Cultura, que estavam mais 
próximos de virar realidade para nós.
Alguns ônibus levariam os integrantes dos Pontos de 
Cultura para São Paulo, mas eu e Dumontt não pudemos 
ir porque era dia de semana e horário comercial. O Gil BV 
(Teresina-PI) me ligou dizendo que o ônibus passaria às 
9h na rodovia Presidente Dutra para buscar os integran-
tes do Movimento Enraizados. Porém não havia ninguém 
para ir, muitos eram menores de idade,outros estuda-
vam e trabalhavam. Rapidamente liguei para o Léo da 
XIII e disse que tinha uma missão pra ele. No Enraizados, 
quando há uma missão, é impossível dizer não. 
157Seguindo em frente
O Léo saiu de casa às 8h30 e o ônibus só passou às 11h 
da manhã. Ele tinha apenas dez centavos na carteira e 
ia pela primeira vez para São Paulo, encontrar pessoas 
que nem conhecia. Para piorar a situação, o motorista 
do ônibus levou o Léo para o hotel errado, largou ele 
lá e foi embora. Quando foi fazer o chek-in não havia 
reserva em seu nome. Eu acompanhava tudo por tele-
fone, ligando para o Gil BV e para o Lamartine, mas eles 
não tinham notícias do Léo.
Por sorte o Léo vestia uma blusa do Movimento Enrai-
zados e a Mary Monteiro, do Núcleo Cultural do América 
Futebol Clube, em Juscelino, no Rio de Janeiro, começou 
a conversar com ele pra saber mais a respeito da orga-
nização que tanto ouvira falar. Durante a conversa o Léo 
disse que o ônibus o havia deixado no hotel errado, e ele 
precisava ir para outro hotel, na rua Augusta. Mary tam-
bém estava indo para lá de táxi e ofereceu uma carona. 
Quando chegou ao hotel, todos o procuravam. Final-
mente me ligaram, informando que ele estava bem.
Dois dias depois fui para São Paulo participar do evento. 
Quando cheguei ao hotel onde Léo da XIII estava, todos 
falavam maravilhas dele. Faltavam adjetivos para defi nir 
sua atuação na Teia. 
Rolaram até algumas piadas por causa do seu excesso 
de vontade de cantar rap. Diziam que ele ajudava todo 
mundo, mas não podia ouvir um cara martelando um 
prego na madeira, porque se ouvisse o barulho tum, tum, 
tum, já começava a rimar.
Muitos passaram pelo Espaço Preto Ghóez, e o Enraiza-
dos SP estava bem representado pelo Rodrigo Dimenor, 
presente com sua esposa e fi lho, pelo Terno e, é claro, 
pelo Alessandro Buzo, que daria uma palestra. Outras 
personalidades das periferias brasileiras estiveram ali, 
158 Enraizados: os híbridos glocais
marcando presença. Os escritores Sérgio Vaz e Dinha, e 
muitos integrantes do MHHOB, como Adonias Luz (jor-
nal “Estação Hip-hop”), Lamartine, Gil BV, Robson Codó, 
Saroba e Jackson.
Nas reuniões do MHHOB fi quei sabendo que os kits dos 
Pontos de Cultura estavam no Parque Ibirapuera, e que 
a gente já poderia levar dali os equipamentos. O Movi-
mento Enraizados era um dos contemplados para rece-
ber o kit dos Pontos de Cultura. Apesar de não ter onde 
colocar os equipamentos, eu queria levá-los para Nova 
Iguaçu de qualquer maneira naquele dia. 
A gente se reunia, conversava, tentava imaginar alguma 
solução, mas nada era possível. O Gil BV disse que tal-
vez pudéssemos colocar os equipamentos no ônibus 
que ia para o Nordeste, e quando ele passasse por Morro 
Agudo a gente pegaria, mas não deu certo. Tentei con-
tratar uma empresa para pegar o material no Ibirapuera 
e entregar em Morro Agudo, mas o valor que a transpor-
tadora cobrava era muito alto, cerca de R$800, um valor 
inviável de a gente arrumar.
Liguei para o Dumontt, que era o cara que realizava o 
impossível. Ele disse que era pra eu arrumar uma trans-
portadora e quando a mercadoria chegasse ao Rio de 
Janeiro ele dava um jeito de pagar. Tentei de todas as 
formas, mas não consegui. Fomos pra casa com as mãos 
abanando e com a promessa de que o Ministério da Cul-
tura entregaria os equipamentos em Morro Agudo no 
máximo em quinze dias.
Eu sabia que os equipamentos do MHHOB do Piauí che-
gariam com certeza. A articulação da organização local 
com o Ministério da Cultura era muito grande, e o Cen-
tro de Referência do Hip-Hop seria o lugar onde have-
ria, entre outras, uma formação de metarreciclagem 
159Seguindo em frente
(reaproveitamento de computadores velhos) do MinC. 
Eu não tinha tanta certeza de que o nosso chegaria, por 
isso queria trazer embaixo do braço. Quando vi a quan-
tidade de caixas, recuei e só tive a opção de esperar os 
dias que o MinC pediu. 
O kit do Ponto de Cultura era composto por um computa-
dor multimídia, um terminal burro (sem HD), uma fi lma-
dora handcam da Sony, uma máquina fotográfi ca digital, 
um MD portátil, um microfone lapela, uma impressora 
jato de tinta, uma impressora a laser, um scanner, uma 
mesa de som de seis canais, um amplifi cador, dois kits 
de três microfones e cabos de rede. Imagina um bando 
de garotos que produziam com apenas um computador 
Pentium 100 e um teclado velho emprestado com todo 
esse equipamento nas mãos?
Voltando para Nova Iguaçu contamos as novidades aos 
nossos camaradas. Eles fi caram felizes, mas não fi ze-
ram nenhum estardalhaço. Esses equipamentos já esta-
vam para chegar há tanto tempo que ninguém mais acre-
ditava no envio.
160
Cada um com o seu 
cada um
Políticos: somos parceiros, não somos aliados.
— Luiz Carlos Dumontt
A Mary Monteiro nos chamou para fazer uma entrevista 
na Rádio Tropical Solimões. A missão fi cou por conta do 
Léo da XIII, que já a conhecia e que liderou o bonde rumo 
à rádio. Foram com ele o Elison, o Short, o Faminto e a 
Kelly. Ficaram realizados, pois a maioria nunca tinha 
dado entrevista. Nossa vida continuava como sem-
pre. Alguns em seus trabalhos convencionais, família 
e estudos. Outros sem emprego. Mas todos correndo 
pelo hip-hop e, consequentemente, pelo Movimento 
Enraizados. Um mês depois, um repórter do jornal “O 
Dia”, Helvio Lessa, nos procurou querendo fazer uma 
matéria para o caderno Baixada. Eu queria marcar em 
um fi m de semana, mas ele marcou numa quarta-feira, 
às 14h. Eu pedi que pelo menos fosse na casa da Rosi-
nha, e ele concordou. Liguei para todos os companhei-
ros do Movimento Enraizados avisando dia e local da 
entrevista. Quando saí do trabalho fui direto para casa 
– tinha o costume de parar em uma padaria para beber 
umas cervejas – separar os materiais do Movimento 
Enraizados para apresentar ao Helvio.
161Seguindo em frente
No dia da entrevista compareceram, além de mim, Léo 
da XIII, Kall, Velho, Lisa, Átomo, Short, Suellen Casticini 
e mais dois garotos que resolveram entrar para a organi-
zação no dia da fotografi a para o jornal e depois nunca 
mais apareceram. O Helvio fez uma matéria ampla, saí-
ram quatro páginas falando de nós. Foi um ótimo pre-
sente para nossas mães, o jornal saiu no dia 14 de maio 
de 2006, domingo de Dia das Mães. Nesse dia acordei 
cedo e fui direto para a banca comprar o jornal. Quando 
vi a matéria, fi quei muito feliz porque não sabia que apa-
receríamos em tantas páginas. Além da organização, 
cada pessoa envolvida ganhou visibilidade, o Short com 
o grafi te, o Ultimato à Salvação com seu rap de crente, 
o Kall com o Fator Baixada e eu, liderando o movimento.
Quando cheguei em casa entrei no quarto da minha mãe 
e coloquei o jornal em cima de sua cama. Ela fi cou toda 
boba quando viu a matéria, e nossa autoestima foi nas 
nuvens. O título era: “O som do pensamento. Cultura 
hip-hop se consolida em Nova Iguaçu e faz intercâmbio 
internacional.” Na época o intercâmbio internacional, e 
até mesmo o nacional, era feito somente de modo vir-
tual. Nós não imaginávamos que os primeiros intercâm-
bios internacionais presenciais aconteceriam apenas 
três anos depois. Um trecho da matéria:
O hip-hop de Nova Iguaçu está rompendo fronteiras atra-
vés do Movimento Enraizados. Depois de começar timi-
damente com um site, idealizado pelo rapper Dudu de 
Morro Agudo há sete anos, o projeto já tem no currículo a 
produção de dois CDs coletâneas de artistas nacionais e 
um só com grupos de Morro Agudo, onde tudo começou.
O intercâmbio com adeptos do ritmo nos quatro cantos 
do mundo está consolidado. Agora o grupo da Baixada 
troca fi gurinhas com rappers do Japão, Angola e Moçam-
bique – inclusive produzindo CDs de grupos africanos 
e exportando projetos. A página na internet está com a 
marca de 80 mil acessos por mês.
162 Enraizados: os híbridos glocais
Para completar o ciclo de conquistas,a sede defi ni-
tiva dos Enraizados está em fase de negociação com o 
governo do estado. Equipamento como ilha de edição de 
vídeo e câmera digital chegam na próxima semana, atra-
vés de convênio com o Ministério da Cultura.
Realmente tínhamos retomado o contato para con-
seguir ocupar a quadra do Ciep, mas o Dumontt achou 
melhor começarmos tudo novamente. Fizemos outro 
ofício e fomos direto ao governo do Estado, mas a bata-
lha estava apenas recomeçando. Os equipamentos do 
Ponto de Cultura deveriam chegar na outra semana. Na 
verdade, toda semana eu ouvia essa desculpa do pes-
soal do MinC, mas aguardava porque não tinha muito o 
que fazer. Estávamos confi antes, em alguns estados os 
equipamentos realmente chegavam, e isso nos animava.
Não foi o que aconteceu com o MHHOB do Rio Grande 
do Sul. O governo prometeu enviar o equipamento deles, 
mas não o fez. Eles se reuniram e ocuparam o prédio 
do Ministério da Cultura, passaram a noite nas salas, 
os militantes levaram suas famílias. No dia seguinte as 
lideranças nacionais do MHHOB me ligaram para infor-
mar o que estava acontecendo. As opiniões estavam 
divididas, alguns achavam correto, outros que eles esta-
vam sendo extremistas. Eu achava que eles estavam 
certos. Para acalmar os ânimos, algumas pessoas do 
MHHOB e outras do Ministério da Cultura pediram per-
missão para enviar o equipamento do Ponto de Cultura 
do Movimento Enraizados para o Rio Grande do Sul, em 
seguida enviariam os equipamentos de outro Ponto de 
Cultura para nós. Enviaram, então, nosso equipamento 
para o Sul e os militantes saíram do prédio do MinC.
Nossa popularidade aumentava e o portal estava entre 
os mais acessados, não só dentro dos sites de hip-hop. 
Muitos convites chegavam e a ideia de descentralizar 
163Seguindo em frente
o poder da organização dava certo. Léo da XIII, Elison e 
Scooby representavam o Enraizados em alguns eventos 
de dança e de rap na cidade. O grafi teiro Short dava conti-
nuidade à ideia de marcar a cidade com o nosso logotipo e 
nos representava participando de eventos e dando ofi ci-
nas de grafi te. As reuniões fi cavam cada vez mais cheias.
Em junho de 2006 fomos convidados pela Mary Monteiro 
para fazermos um quadro dentro do programa do Amé-
rica na Tropical Solimões, uma rádio AM. Entrevistáva-
mos uma pessoa e dávamos informes sobre nosas ati-
vidades. As pessoas que entrevistávamos eram sempre 
do nosso meio, primeiro foi o Short, depois o rapper Kall, 
e em seguida o Léo da XIII. Um dia o Lamartine (São Luís 
- MA), quando era Conselheiro Nacional de Juventude, 
veio ao Rio de Janeiro com o cineasta francês Lahzari e 
os entrevistamos também. O Lamartine falou de modo 
muito interessante sobre o movimento hip-hop:
Eu queria deixar um recado para as pessoas que não 
conhecem o movimento hip-hop. 
É um movimento que hoje trabalha na perspectiva de anu-
lar o analfabetismo, anular a violência, inclusive eu estava 
conversando com a ministra – Matilde Ribeiro – que é 
necessário uma ação para prever a mortalidade juvenil 
negra e essa ação em Nova Iguaçu não nasce simplesmente 
com vocês ouvindo uma pessoa que veio da França e outra 
pessoa que veio do Maranhão e dizer o seguinte: “É, os 
caras estão certos, o hip-hop realmente resgata.”
Vocês têm uma forma de ajudar, as autoridades aqui 
têm que se sensibilizar e colar com o movimento hip-
hop, não do Maranhão, não de Porto Alegre, mas com o 
movimento hip-hop de Nova Iguaçu. É o movimento hip-
hop de Nova Iguaçu que está discutindo políticas públi-
cas, que está ocupando os espaços públicos para fazer 
essas mudanças, esse movimento se chama Enraizados 
166 Enraizados: os híbridos glocais
No Brasil inteiro a gente vê organizações fazendo polí-
tica pública, exercendo o papel do estado sem espaço 
físico, e aqui não é muito diferente. É a forma de aju-
dar, a forma de mudar, de dar oportunidade de o jovem 
mudar a realidade de analfabetismo, tráfi co, drogas, 
desemprego e violência em Nova Iguaçu. A juventude 
não confi a em partido, não confi a em político, é porque 
normalmente essas instâncias usam a juventude como 
massa de manobra, para dar voto, como coisas des-
cartáveis, mas, a partir do momento que você coloca 
a juventude como ator principal do seu processo de 
mudança, esse processo de mudança vem, e um exem-
plo disso é o Movimento Enraizados em Nova Iguaçu.
Cerca de três meses se passaram e nossos equipamen-
tos não chegaram. Eu liguei para o Aldo Rebelo, que me 
ligou para informar que nossos equipamentos iriam para 
o Sul, e perguntei o motivo por que nossos equipamentos 
ainda não tinham chegado.Ele disse que havia acontecido 
um imprevisto, mas que tudo estava sendo resolvido e 
quando nós menos esperássemos os equipamentos che-
gariam. Eu disse:
— Aldo, eu sou bastante tolerante, inclusive sou 
considerado o diplomata do MHHOB, mas se esse equi-
pamento não chegar aqui até amanhã, o que os meninos 
do MHHOB do Sul fi zeram vai parecer brincadeira de 
criança perto do que nós vamos fazer no Rio de Janeiro.
— Dudu, fi ca calmo que as coisas vão se resolver, não 
tem como o equipamento chegar amanhã porque ele 
está na Bahia.
— Aldo, amanhã a gente conversa.
Desliguei o telefone e em seguida liguei para o Dumontt. 
Contei o que tinha acontecido, falei da conversa com o 
Aldo e disse que tinha certeza que esse equipamento 
não chegaria no dia seguinte. E se eles só funcionam na 
pressão, então nós pressionaríamos. O Dumontt deu a 
167Seguindo em frente
ideia de enchermos um ônibus de grafi teiros, MCs, b. 
boys e rappers, além dos militantes do Enraizados e par-
tir para o edifício Gustavo Capanema, situado na rua da 
Imprensa, no centro do Rio de Janeiro. Enquanto os b. 
boys faziam uma roda de break no saguão do prédio, nós 
ocuparíamos uma das salas e fi caríamos lá até que nos-
sos equipamentos chegassem, grafi tando uma parede 
por hora, ou até a polícia nos prender.
Eu adorei a ideia. Começamos as articulações para con-
seguir o ônibus, mas misteriosamente todos os equipa-
mentos chegaram à minha casa no dia seguinte, frus-
trando as quase 40 pessoas que ocupariam o Capanema. 
Era tanta caixa que não cabia dentro da minha casa, e nós 
nem tínhamos ainda um lugar para colocar os equipamen-
tos. Mas aprendi com o Dumontt a não encarar isso como 
um problema, e sim como um desafi o. A partir de agora 
tínhamos o desafi o de conseguir um local para instalar o 
Ponto de Cultura Fome de Livro, na Quebrada-RJ.
168 Enraizados: os híbridos glocais
169Seguindo em frente
170
Nossas 
superproduções
Quando você não sabe o que está fazendo, 
e o que está fazendo é o melhor,
isto é inspiração.
— Robert Bresson
Quando o equipamento chegou eu estava no trabalho, 
vi somente quando cheguei em casa. Comecei a abrir 
as caixas, quando olhei a câmera de vídeo e a máquina 
fotográfi ca digital liguei para o Dumontt e pedi que 
viesse até minha casa. A única câmera que tínhamos 
era uma Samsung de 1.3 megapixels, que eu havia 
comprado havia alguns meses para o Enraizados. O 
Dumontt saía pela rua fotografando tudo o que estava 
à sua volta. Ele disse que quando estudava cinema 
tinha escrito uns roteiros, mas não tinha fi lmadora, e 
os roteiros ainda estavam na casa dele.
Quando ele chegou mostrei a fi lmadora. Hoje sei que 
era apenas uma handcam, mas na época, apesar de não 
conhecer, achava que era a melhor fi lmadora do mundo. 
Na realidade, era a melhor do mundo porque era a que 
nós tínhamos. Falei para o Dumontt levar a fi lmadora e 
o manual – até hoje a gente não gosta de ler manual – 
aprender a utilizar a câmera e ensinar para os garotos 
do Enraizados. Dumontt saiu de casa com a fi lmadora e 
a máquina fotográfi ca parecendo uma criança que aca-
bara de ganhar um brinquedo novo.
171Seguindo em frente
Algumas pessoas da Cia. Encena começavam a partici-
par mais ativamente do Movimento Enraizados,como 
Gil Torres, Samuel Azevedo, Nadir, Eliel e Suelen Cas-
ticini. Todos são atores, mas a Gil Torres foi a única 
que conseguiu uma projeção maior. Ela participou de 
“Cidade dos homens” – uma série de teledramaturgia 
exibida pela Rede Globo durante quatro temporadas 
– em um dos episódios que mais gostei, mas não con-
seguia me lembrar dela. Por sorte eu gravei este pro-
grama e pude conferir a Gil, que teve uma participação 
enorme. Ela era professora de história do Acerola, per-
sonagem do Douglas Silva. Fiquei superorgulhoso.
O zine “Voz Periférica” era um sucesso. Começamos a 
fazer ofi cinas para produzir o zine. A matéria de capa se 
chamaria matéria rimada. Primeiro a gente identifi cava 
um problema no bairro e depois falávamos a respeito. 
Uma pessoa redigia e os rappers faziam com que as 
frases rimassem. Fizemos um bem interessante sobre 
o rio Botas.
O Rio Botas é um rio brasileiro que banha o estado do 
Rio de Janeiro. É muito prejudicado pela quantidade de 
resíduos tais como entulhos, galhadas e lixo domiciliar 
que constantemente são removidos. Nasce na APA de 
Gericinó-Mendanha, localizada na cidade de Nova Iguaçu 
e tem aproximadamente 20km de extensão, passando 
pelo bairro de Comendador Soares, mais conhecido 
como Morro Agudo. Deságua no rio Iguaçu no bairro de 
São Vicente, em Belford Roxo. Seus principais afl uentes 
são os rios Maxambomba e o Rio das Velhas.
(Fonte: Wikipedia)
Rapensando as bostas que botas no Rio Botas
Brota bosta no rio Botas! Não, não brota, jogam!
Jogam até carro, onde deveriam brotar fl ores
Rio Botas com bosta, quem gosta?
Acho que ninguém, mas se quiser a gente bate uma aposta
172 Enraizados: os híbridos glocais
Se a gente bota no Botas, o Botas também bota na gente
Prova disso são as enchentes, inclusive a garota apren-
deu a nadar na enchente
Quando ela passa, o pé atola na fossa, é difícil
Não é como a bossa de Tom e Vinicius
Na verdade, as crianças de Morro Agudo
Nadam no rio como peixinho barrigudo
É a alegria dessa gente, que nasce desse afl uente
Que vive contente com a droga da enchente
Nem a dengue quer fi car no Botas porque gosta de 
água limpa
Brotam ratos no meio das mazelas dos detritos que lá 
jogam
Sujeiras e nojeiras são coisas que me incomodam
O Botas te devolve tudo aquilo que nele botas
Viram as costas e enchentes tomas pelas costas
Nas olimpíadas do Botas existem várias modalidades
Lançamento de lixo à distância e outras atividades
Levantamento de móveis e nado sincronizado
Enquanto o povo se diverte com o Pan, a periferia sofre 
por outro lado
Corpos aparecem no Botas, isso é um grande mistério
Pois além de outras atividades o Botas também é 
cemitério
Como se fosse um sonho, tipo “De volta à lagoa Azul”
Ops! É só mais uma vala negra em Nova Iguaçu
Essa realidade não deveria ser vista só pelos povos
E sim por aqueles em que as comunidades votam
Quem é responsável por este chulé?
Vossas excelências, por favor ponham essa bota no pé.
Autores: Paulô, Gil Torres, Suellen Casticine, Dudu de 
Morro Agudo, Anderson Cravo, Dumontt, Léo da XIII, Lisa 
Castro, Átomo e Short.
No dia 19 de julho estávamos novamente nas páginas do 
jornal “O Dia”, dessa vez por causa da chegada dos equi-
pamentos do Ponto de Cultura.
173Seguindo em frente
Filmes e coletânea hip-hop em Nova Iguaçu
No Morro Agudo, em Nova Iguaçu, jovens que se uniam 
desde 1999 para gravar suas músicas ampliaram seus 
projetos com a chegada do kit do MinC. O grupo Enraiza-
dos, ligado ao Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro 
(MHHOB), não ganhou a antena, mas conseguiu conexão 
banda larga (ADSL) com outra parceria.
Eles usam Software Livre e atendem a cerca de 60 ado-
lescentes e jovens. Estão em produção a segunda cole-
tânea “Raiz do hip-hop” e dois documentários, sobre gra-
videz na adolescência e alcoolismo. “São problemas que 
afetam diretamente as pessoas daqui”, explica o rapper 
Dudu de Morro Agudo, 27 anos, fundador do grupo.
O CD terá tiragem inicial de mil cópias e será vendido na 
comunidade e pela internet. Os documentários serão 
prensados em DVD e VCD e distribuídos para os mora-
dores. “Também haverá sessões gratuitas no Ponto de 
Cultura”, planeja Dudu.
Marlon Mendes, jornal “O Dia”, 19 de julho de 2006 
Mais convites chegavam e a gente literalmente não 
parava de trabalhar. Fomos convidados para um evento 
no Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova 
Iguaçu, e fi zemos uma festa. A gente incentivava e a 
galera movimentava o zine entrevistando moradores 
e denunciando problemas graves da cidade. Cópias do 
zine sempre circulavam pela prefeitura. Eu e Átomo par-
ticipamos de um programa de rap na rádio Novos Rumos, 
em Queimados (cidade vizinha a Nova Iguaçu).
O Léo da XIII criou um evento chamado “Banca de frees-
tyle”, em que reunia MCs na porta de sua casa, uma espé-
cie de miniencontrão. Participávamos de muitas ativida-
des ao mesmo tempo. Eu já não conseguia me dedicar 
ao trabalho formal, e o escritório onde trabalhava era na 
174 Enraizados: os híbridos glocais
verdade uma extensão do Enraizados, mesmo no horário 
comercial. Só conseguia pensar nas atividades da orga-
nização, onde a galera estava naquele momento e o que 
estava fazendo.
O Dumontt dizia que precisávamos dedicar mais tempo 
ao Movimento Enraizados. Se acreditávamos mesmo no 
que fazíamos, tínhamos de nos sustentar desse traba-
lho. Eu concordava com ele, mas não conseguia me des-
ligar do trabalho porque o dinheiro, apesar de ser pouco, 
era certo, e eu tinha uma família que dependia desse 
dinheiro. O Alessandro Buzo havia passado pela mesma 
situação que eu. Nós conversávamos diariamente pelo 
telefone e o assunto era sempre sobre a vontade de 
podermos nos dedicar de modo integral àquilo que real-
mente gostamos de fazer.
No dia 14 de setembro de 2006, Ítalo Lopes, o Ita, como 
era conhecido no hip-hop, foi assassinado em Mesquita 
por policiais do 20º Batalhão, enquanto participava de 
uma festa. O crime revoltou militantes do hip-hop e dos 
direitos humanos. Na semana seguinte ao crime fomos 
convidados para uma manifestação em Mesquita, em 
um bar onde aconteciam eventos de rock, ali eu vi que 
estavam todos unidos por uma mesma causa: a vida.
Numa das reuniões do Movimento Enraizados, o Du montt, 
portando a handcam do Ponto de Cultura, criara mais 
uma metodologia. Eu estava em São Paulo fazendo umas 
articulações com o Alessandro Buzo, e não participei 
dessa reunião. A metodologia era a seguinte:
01) O Dumontt dividiu o grupo em dois e pediu que cada 
um criasse uma história;
02) E que cada grupo contasse a sua história para o 
outro grupo;
03) Em seguida pediu que os grupos se unissem e 
juntassem as histórias;
175Seguindo em frente
04) Depois que cada um adotasse
um personagem da história;
05) E por último avisou que naquele momento iriam gravar.
Entre 9h e 12h eles criaram a história e gravaram. Tudo 
foi improvisado. Não havia roteiro, fi gurino e nem mesmo 
atores, mas o resultado foi surpreendente. A autoestima 
da galera ia nas nuvens. Quando cheguei de viagem, 
peguei as fi tas e editei. O detalhe é que eu nunca havia 
editado um fi lme na minha vida, mas a necessidade 
me forçava a tentar. O suporte do MinC não viera nem 
mesmo para montar o equipamento. E como tudo era em 
Software Livre, a difi culdade era ainda maior.
Quando o fi lme fi cou pronto, disponibilizamos um DVD na 
reunião de sábado e pedimos que todos vissem o fi lme 
até o sábado seguinte. Era mais uma estratégia para 
que eles fi cassem juntos durante a semana. No sábado 
seguinte foram muitos comentários, eu conseguia ver o 
brilho no olho de cada um. Eles estavam felizes, com a 
autoestima em alta.
Durante a reunião decidimos fazer mais um Encontrão. 
Dessa vez o alvo seria a praça de Morro Agudo, que 
estava muito feia. Os feirantes ocupavam a praça com 
caixas e barracas, que lá permaneciam durante toda 
a semana.Havia um muro cinza de aproximadamente 
cinco metros, era uma coisa horrível, inclusive fi zemos 
uma matéria rimada falando da praça. Se liga:
A praça é nossa
Praça é uma coisa que não tem perto da minha casa
Aqui em Morro Agudo não se vê nem com
telescópio da Nasa
Se procurar na Baixada talvez encontre alguma
Mas se juntar todas elas, acho que não dá uma
Na Zona Sul vi gangorra e escorrega
176 Enraizados: os híbridos glocais
Mas aqui em Nova Iguaçu só tem viela e beco
Na praça dos grã-fi nos tem quiosque, cê pode crer
E as biroscas de Morro Agudo atrapalham nosso lazer
Político vai, político volta, com promessa que revolta
Mas pra pisar em Morro Agudo tem que vir com escolta
Quem destrói a praça não merece ser chamado de animal
Porque os bichinhos não destroem seu habitat natural
O galante perde a inspiração pra dizer que ama
Como o aposentado perdeu seu assento e o
tabuleiro de dama
Enquanto os pela-sacos vêm quebrando tudo
O Enraizados revitaliza a praça de Morro Agudo
Não é praça Mauá, Quinze e nem Onze
Aqui não tem chafariz e nem escultura de bronze
A comunidade divide lugar com a sujeira
Pois a praça parece hotel de mendigo e depósito de feira
Urinas em praça transbordam em metros cúbicos
A praça que era nossa agora é banheiro público
Isso não é rebeldia e nem pirraça
Porém só vamos nos calar no dia em que tivermos 
verdadeiras praças
Autores: Movimento Enraizados – Núcleo Morro Agudo
A ideia desta vez era fazermos um Encontrão de grafi te, 
para dar um colorido naquele muro cinza e trazer alegria 
para o lugar. Ligamos para o Helvio Lessa, do jornal “O 
Dia”, e informamos que faríamos o evento. Ele colocou 
uma nota na capa do jornal e publicou a seguinte maté-
ria, de uma página:
Hip-hop e muito mais
Evento vai reunir o melhor da cultura popular
na praça de Morro Agudo
O Movimento Enraizados de Nova Iguaçu, que promove a 
cultura hip-hop, vai realizar no próximo sábado a 5ª edi-
ção do Encontrão Cultural. O evento acontece a partir 
das 14h na Praça de Morro Agudo, e vai reunir jovens de 
177Seguindo em frente
várias partes do estado para praticar, aprender e ensi-
nar culturas populares, além dos quatro elementos do 
hip-hop (rap, DJ, break e grafi te), para jovens moradores 
da comunidade.
O evento vai pegar uma carona no projeto Cinema nos 
Bairros, que acontece na praça aos sábados, quando 
será projetado um fi lme no meio da rua, além de exibição 
de clipes de rap nacional e um longa-metragem.
O Movimento Enraizados mantém um portal de hip-hop 
(www.enraizados.com.br), um dos maiores do gênero na 
América Latina, passando dos 300 mil acessos mensais.
Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 24 de setembro de 2006
Toda a correria para fazer o Encontrão já tinha sido feita. 
Como as nossas reuniões estavam cada vez mais cheias, 
e pela primeira vez o número de homens e mulheres era 
próximo, dividimos bem as tarefas. A Rosinha cedeu a 
cozinha da casa dela para que nós fi zéssemos a comida 
para a equipe que trabalharia no evento. Mas a uma 
semana do evento ainda não tínhamos o principal mate-
rial: o spray. Foi aí que descobrimos que havia um grupo 
novo no bairro: o Amigos do Enraizados. Liderados pelo 
Paulô, vários moradores nos ajudaram doando uma lata 
de spray. Assim conseguimos uma quantidade conside-
rável de spray, só não sabíamos que os sprays doados 
não eram apropriados para o grafi te.
No dia do evento, quando os grafi teiros chegaram (Short, 
Dante, Kajaman e Tihkin), a gente apresentou as tintas 
que havíamos recebido como doação dos moradores. 
Eles nos olharam com uma cara de quem não acredi-
tava no que estava acontecendo. Eu perguntei qual era 
o problema e eles informaram o tamanho do problema. 
Tentamos trocar as tintas em algumas lojas de material 
de construção do bairro, mas não conseguimos. Como 
todos os grafi teiros haviam trazido tinta, eles mistura-
ram as tintas boas com as ruins e começaram o trabalho.
178 Enraizados: os híbridos glocais
Os moradores paravam para olhar. Ficavam dezenas de 
minutos parados, somente observando, alguns fi caram 
horas. Outros não resistiam e perguntavam.
— Quem é que está fazendo isso aí?
— Somos nós do Movimento Enraizados.
— É da prefeitura?
— Não, é o Movimento Enraizados.
— Mas quem tá dando o dinheiro?
— É o Movimento Enraizados!
— Vocês estão gastando o dinheiro de vocês pra fazer 
isso aí? Vocês são malucos.
— Por quê? Tá feio?
— Não, está muito bonito, mas isso é trabalho para a 
prefeitura fazer.
Dezenas de pessoas vestindo a nossa blusa. Eu comen-
tava com o Dumontt que a ideia tinha sido boa. Quase 
sempre a gente cruzava com alguém vestindo a blusa, e 
nem sempre a gente conhecia a pessoa. O tempo inteiro 
chegava gente ao evento. A chuva ameaçava cair, mas 
São Pedro a segurava lá em cima. O grupo de rap Família 
MDG, de Itaboraí, e o grupo O Bando, de Irajá, estiveram 
presentes, sem contar, é claro, o Ultimato à Salvação, 
Fator Baixada, Léo da XIII, eu e Marcio RC.
Quando começou a anoitecer as pessoas chegaram 
para assistir ao fi lme que passaria. Mas, para frustra-
ção geral, a empresa que traria o telão não apareceu 
em Morro Agudo. Dezenas de pessoas fi caram frustra-
das, homens e mulheres, crianças, adultos e idosos. Eu 
sabia que havia pessoas ali que nunca tinham pisado 
no cinema. Quando questionamos sobre o cinema, a 
empresa respondeu que a prefeitura estava devendo, e 
por isso eles decidiram não ir.
Naquele dia eu disse pro Dumontt que a gente, de uma 
vez por todas, não poderia mais depender de ninguém, 
deveríamos ter nossos próprios equipamentos para 
179Seguindo em frente
fazer as atividades, e ele concordou. Para compensar 
o furo, começamos a rimar. Muitos shows acontece-
ram, os b. boys dançavam na praça, no chão, enquanto 
a gente rimava. Até hoje, 2010, a praça de Morro Agudo 
está grafi tada. A tinta está meio fraquinha, porque não 
era de qualidade, mas está bem melhor do que era antes 
da nossa interferência.
180 Enraizados: os híbridos glocais
181Seguindo em frente
182
Dinheiro: solução ou 
mais problemas?
É de uso dizer-se que o dinheiro é a raiz de todos os males. 
A afi rmação vale também para a falta de dinheiro.
— Samuel Butler
Algumas pessoas do Enraizados tinham trabalhos for-
mais, até mesmo para sustentar suas famílias, mas 
outros não tinham renda, apesar de já pensarem em 
construir sua própria família. 
Eu e Dumontt, há tempos, havíamos conseguido a bolsa 
Agente Cultura Viva, do governo federal, para os partici-
pantes do Enraizados que se encaixavam no perfi l. Nossa 
ideia era que pudessem ganhar dinheiro com a arte deles. 
Surgiram então algumas oportunidades de dar aula no 
Polo Esportivo e Cultural do América Futebol Clube, onde 
o Elison e o Léo da XIII dariam aulas e seriam remunerados.
Nessa época, acho que por causa das bolsas, nos-
sas reuniões de sábado beiravam umas 100 pessoas. 
O Dumontt sempre aparecia com uma dinâmica nova. 
No início era bem divertido, o pessoal do hip-hop não 
conhecia dinâmicas de grupo porque era uma prática 
mais comum no teatro. Tinha uma dinâmica, das palmas, 
que todo mundo pedia pra fazer, toda semana a gente 
fazia essa dinâmica.
183Seguindo em frente
Apesar de a maioria dos participantes praticar um dos 
quatro elementos do hip-hop, havia muitas pessoas que 
nem gostavam de hip-hop, mas estavam lá para ganhar 
os R$150 mensais do governo. E eu não imaginava que 
essas bolsas trariam tantos problemas. As pessoas que 
frequentavam o Movimento Enraizados antes da bolsa 
pararam de frequentar assim que conseguiram o auxi-
lio. Outros que não estavam no perfi l continuavam indo 
mesmo sem bolsa. Alguns que nunca participaram dos 
encontros começaram a ir por causa da bolsa e nunca 
mais pararam. Outros ainda receberam a bolsa e nunca 
pisaram nas reuniões. Sempre que tinha dinheiro envol-
vido dava confusão. Um pensava que era mais malandro 
que o outro e no final todo mundo se enrolava.
Antes das ofi cinas no América começarem, o Dumontt 
conversou com o Elison e o Léo da XIII, explicou que eles 
não poderiam fazer feio porque o nome do Enraizados 
estava em jogo. Mas algumas semanas depois os garo-
tos começaram a chegar atrasados, e depois a faltar. Um 
dia o Dumontt chegou lá sem avisar, e nenhum dos dois 
tinha ido trabalhar. Quando o Dumontt perguntou, eles 
tentaram mentir, mas não havia como mentir naquela 
altura do campeonato, porque o próprio Dumontt deu 
aula no lugar deles. Depois de um tempo preferimos 
interromper as ofi cinas no América e todo mundo fi cou 
sem dinheiro novamente. O que nos deixava sem enten-
der a situação era que de uma hora pra outra os garo-
tos deixaram de nos ver como aliados que lutavam pela 
mesma causa e passaram a nos enxergar como empre-
gadores. Aí o caldo entornou de vez. 
Certa vez o Dumontt foi à prefeitura falar com a Maria 
Antônia, primeira-dama e coordenadora do programa 
Bairro Escola, a respeito do nosso problema de espaço. 
A prefeitura havia prometido alugar um espaço para 
184 Enraizados: os híbridos glocais
nós instalarmos o Ponto de Cultura, mas por questões 
burocráticas dependíamos da liberação do procurador. 
Mas ninguém achava o tal procurador, e a Maria Antô-
nia simplesmente não quis receber o Dumontt. Ele fez 
um ofício e entregou no gabinete do prefeito. Voltou pra 
Morro Agudo e lá encontrou o Samuel Azevedo e o Short. 
Pegaram a fi lmadora e a máquina fotográfi ca do Ponto 
de Cultura e partiram novamente pra prefeitura. Entra-
ram na procuradoria e o Dumontt orientou os Enraiza-
dos a fi lmarem todo lugar que ele apontasse. O Dumontt 
falava: “Filma ali ó, aqui ninguém trabalha, esse aqui tá 
no Orkut e aquele no MSN!”
Segundo o Dumontt foi uma correria danada na prefei-
tura, e resolveram atendê-lo, pelo menos para dar uma 
desculpa. O Dumontt fez outro ofício e entregou no gabi-
nete do prefeito para explicar por que fez tudo aquilo. O 
prefeito pediu uma reunião com a Maria Antônia e com 
o procurador-geral. Acabou que eles não alugaram o 
espaço e a gente continuou sem ter onde colocar os equi-
pamentos, que continuavam na minha casa, alguns ainda 
dentro das caixas. Todo o recurso necessário para as ati-
vidades do Enraizados saíam do meu bolso ou do bolso do 
Dumontt, sendo que meu salário era a metade do dele e 
eu tinha dois fi lhos para criar. Eu sabia que a gente pre-
cisava de um lugar como sede, mas essa parceria com a 
prefeitura não aconteceu, e o processo com o governo do 
estado para ocupar a quadra do Ciep 117 não andava.
Apesar de alguns atritos com a prefeitura a gente tinha 
uma boa relação com o pessoal da articulação política, 
o Toninho, o Cláudio Jorge e o Paulô, que sempre que 
podiam nos ajudavam. O Dumontt me chamou para con-
versar e falou que precisávamos alugar pelo menos uma 
sala para receber as pessoas, fazer nossos projetos, 
ter um endereço de verdade. Eu concordava, mas tinha 
185Seguindo em frente
muito medo de não conseguir grana para honrar nossos 
compromissos, afi nal todo aluguel tem contrato de no 
mínimo um ano.
Ele já tinha visto uma sala no centro de Morro Agudo. O 
aluguel era R$160 e a gente ainda teria que pagar uma taxa 
de R$20 da água, isso sem contar com a conta de luz. No 
mínimo, teríamos um custo de R$200 por mês. O Dumontt 
me chamava de conservador, eu dizia que trabalhava com 
a realidade. No fi m ele me convenceu a alugar o local, 
mas eu ainda morria de medo de ter que tirar dinheiro da 
minha família pra pagar aluguel do Enraizados.
Era difícil aceitar uma organização em que quase 
100 pessoas participam mas quando o laço apertava 
somente meia dúzia aparecia pra ajudar. Eu e Dumontt 
conversávamos muito sobre esse assunto. A gente preci-
sava prezar pela qualidade, e não pela quantidade. Base-
ado neste princípio o Dumontt propôs criarmos o Cefam 
(Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância), 
um grupo de estudos que se reuniria semanalmente.
Estava entrando o mês de novembro e os convites para 
participarmos de eventos não paravam de chegar. Pro-
postas de parcerias eram aos montes. Fizemos ofi cina 
de grafi te na Casa das Meninas (instituição benefi cente 
Brasil-Itália, situada na Cerâmica, bairro vizinho a Morro 
Agudo); participamos da organização do Bingo Dançante, 
produzido pelo Roger Craum; estivemos no Cortejo Cul-
tural dos Pontos de Cultura, na Cinelândia; participamos 
da Semana da Consciência Negra de Nova Iguaçu; do Dia 
da Bíblia, na Alerj, além de outras atividades.
Recebi uma homenagem do América Futebol Clube, 
como personalidade negra jovem. Nem preciso falar que 
fi quei todo bobo. Primeira homenagem da minha vida. 
E quem entregou o troféu foi o senhor Edevair, pai do 
186 Enraizados: os híbridos glocais
Romário. Algumas semanas antes a Claudia Perluxo e 
o Edu, diretores da ONG Casa de Anyê, nos convidaram 
para participar do seminário “Música pra que serve?”, 
em que faríamos a fi lmagem e a edição de um vídeo ins-
titucional. Nossa participação no seminário aumentava 
a cada dia. Estivemos presentes na fi lmagem, na mesa 
de palestra, na produção, na curadoria e ainda editamos 
e produzimos um DVD triplo, com todo o seminário. Tudo 
feito em Software Livre.
Paralelo ao seminário, a gente produzia a sexta edição 
do Encontrão, em que pela primeira vez fecharíamos 
cinco ruas no centro de Morro Agudo e misturaríamos os 
grupos de pagode locais com o nosso hip-hop. Por causa 
da visibilidade do Portal Enraizados e do crescimento 
estrondoso da Rede Enraizados, muitas pessoas liga-
vam querendo participar dos nossos eventos, mas infe-
lizmente não tínhamos estrutura para alojar todos. 
Cada um que viesse deveria arcar as despesas, como 
foi o caso dos Realistas NPN, que vieram com um ôni-
bus com 40 pessoas de Belo Horizonte (MG) no dia do 6º 
Encontrão, 25 de novembro de 2006. Eles chegaram pela 
manhã e fomos todos para o Ciep 117, onde aconteceria o 
seminário, que na verdade foi uma espécie de bate-papo 
em que as pessoas trocaram ideias e falaram de suas 
experiências de vida. Nesse dia conhecemos o Ice Band, 
que contou a história mais chocante. Se envolveu com o 
crime, tomou vários tiros e, segundo ele, foi resgatado 
pelo hip-hop.
O Ice Band comentou que as mães das crianças do seu 
bairro diziam aos fi lhos que se eles não as respeitassem 
ou enveredassem pelo caminho do crime fi cariam como 
ele, com um olho de vidro, manco de uma perna e com 
várias cicatrizes no corpo. Ele dizia que o crime servia pelo 
menos pra isso: ele servia de exemplo para as crianças 
187Seguindo em frente
não entrarem na vida errada. Neste dia fazia muito calor, 
acho que uns 45 graus. Os mineiros estavam desespe-
rados, nós também, mas não falávamos nada para não 
assustar ainda mais nossos amigos. Todos procuravam 
uma sombra para escapar do sol, mas o calor castigava.
O dono do bar Continental, bar onde eu e Dumontt pará-
vamos com frequência para beber umas cervejas, fi cava 
em frente ao palco e vendeu bastante cerveja. Ele tam-
bém colaborou conosco, liberou todo o estoque de 
água mineral para nossa equipe e nossos convidados. 
Conversamos com os grupos que se apresentariam no 
evento, expondo nossa vontade de gravar os shows e 
produzir um CD e um DVD para divulgar o trabalho artís-
tico e gerar renda, mas para isso precisaríamos da libe-
ração das músicas para comércio. Argumentamos que 
todas as músicas que iríamos cantar ali, naquele evento, 
estavam disponíveis para download gratuito na internet, 
mas a maioria do nosso público-alvo, pessoas da peri-
feria, não tinha acesso à nossa música justamente por 
isso. A ideia era a gente disponibilizar as músicas para 
download nos camelôs. O argumento foi forte, sincero, e 
todos concordaram. 
Quando o CD e o DVD “6º Encontrão ao vivo” fi cou pronto, 
enviamos para todos os envolvidos no projeto,disponi-
bilizamos as músicas na internet e fomos para as ruas 
negociar com os camelôs. Nossa ideia era dar a matriz 
para os camelôs, que fariam as cópias, e de cada CD ou 
DVD que eles vendessem voltaria um real para a organiza-
ção. Eles toparam e no começo até que devolviam parte 
da grana, que não era muita. Mas nem todos os grupos 
que participaram do projeto fi zeram o mesmo. A inicia-
tiva deu parcialmente certo. Os CDs e DVDs se alastraram 
por bancas de camelô do Rio de Janeiro. Inclusive a Lisa 
Castro, do Ultimato à Salvação, foi reconhecida na rua por 
188 Enraizados: os híbridos glocais
causa do DVD. E essa pessoa comprou o DVD em Bangu, 
Zona Oeste do Rio de Janeiro. Participaram da coletânea 
os grupos Re.Fem (Duque de Caxias), Ultimato à Salva-
ção (Nova Iguaçu), Léo da XIII (Nova Iguaçu), Família MDG 
(Itaboraí), Missionários do Rap (Belo Horizonte), Realis-
tas NPN (Belo Horizonte), Wiza (Rio das Ostras), Marcio 
RC (Nova Iguaçu), RDF (Belo Horizonte), Sindicato do Rap 
(Belo Horizonte), ainda outros. 
Quando fechamos contrato e alugamos nosso primeiro 
espaço, o Dumontt convenceu a proprietária e nós não 
precisamos de um fi ador. Um escritório de 10m² onde 
muita gente importante passaria no próximo ano, e a 
gente nem imaginava. Eu, Dumontt, Léo da XIII, Guará 
e Short pintamos a sala e fi zemos a mudança. Monta-
mos todos os equipamentos do Ponto de Cultura. Nem 
sei como coloquei aquilo tudo pra funcionar. Meu com-
putador e o do Dumontt foram pro escritório também. O 
Dumontt alugou um apartamento ao lado da sala, ele era 
o nosso segurança. No mês seguinte eu e Dumontt deci-
dimos deixar nossos empregos para nos dedicarmos em 
tempo integral ao Movimento Enraizados. No dia 20 de 
dezembro de 2006 eu e Dumontt pedimos demissão dos 
nossos empregos formais.
190
Comunicação: 
passeando entre 
classes
Ao começar o meu próprio negócio, 
descobri que você pode ter a maior ideia do mundo. 
Mas não vai chegar a lugar nenhum 
se não conseguir vendê-la às outras pessoas.
— Roger von Oech
No fi m de 2006 fi zemos uma festa na casa da Rosinha 
e entregamos os certifi cados dos Agentes Cultura Viva 
que resistiram fortemente até o fi m do projeto. Para a 
nossa felicidade fi cou uma menina chamada Patrícia 
Ximango, que entrou para o Enraizados a convite do Léo 
da XIII e continuou mesmo depois do auxílio do governo 
ter acabado. Ninguém imaginava que a Patrícia fi caria 
no projeto. Ela era roqueira, não suportava rap, chegava 
às reuniões toda vestida de preto, com piercings e tudo 
mais. Quem diria que dois anos mais tarde ela trabalha-
ria conosco como auxiliar administrativa.
A cada ano a organização crescia mais. O Dumontt dizia 
que crescíamos uns 500%. A Rede Enraizados estava 
em dez estados com instituições e nos 27 estados com 
artistas e pessoas que nos procuravam querendo ajuda, 
espaço e atenção. Nós nos autoanalisávamos sempre 
para entender o que realmente éramos. Tudo acontecia 
rápido demais. Eu e Dumontt trabalhávamos como men-
tores, fi nanciadores e carregadores. Fazíamos o traba-
lho intelectual e braçal. 
191Seguindo em frente
Nosso portal beirava os 600 mil acessos mensais. Deze-
nas de pessoas no bairro falavam o tempo inteiro de 
nós. Tínhamos força política na cidade e conhecíamos 
pessoas do Brasil inteiro, além das que moravam em 
outros países. Mas não sabíamos nos defi nir bem, éra-
mos mutantes. 
Oferecíamos atenção às pessoas que nos procuravam e 
espaço no Portal Enraizados. Uma de nossas caracterís-
ticas era tratar todos de forma igual, não importava se 
o cara era famoso ou anônimo, o espaço era o mesmo. 
E isso a gente mantém até hoje, é uma identidade. Nós 
tínhamos muitos contatos. A gente tinha o hábito de 
compartilhar de tudo, e começamos a compartilhar os 
contatos também, apresentar pessoas, fazer com que 
gente que podia se ajudar se conhecesse conforme a 
necessidade de cada um. 
Com isso a Rede Enraizados crescia ainda mais. Até hoje 
utilizamos todas as ferramentas gratuitas de comunica-
ção da internet para particar a Cyber Militância, e ensai-
návamos os outros a fazer isso também. A partir daí, 
universitários, tanto alunos como professores, nos pro-
curavam para entender como tudo funcionava. Quando 
nós contávamos de forma simples e objetiva, a reação 
deles era de espanto.
O ano de 2007 nos preparava uma grande surpresa. Além 
de militantes e artistas do hip-hop do Brasil inteiro, a 
gente também teria mais próximo pessoas e organiza-
ções bastante infl uentes, que nos ajudariam a encarar 
a nova fase da nossa vida. Bem no início do ano, eu e 
Dumontt conhecemos o Aercio, da Fase. Um dia ele ligou 
e marcou uma conversa. Fomos ao encontro dele num 
bar em Nova Iguaçu. Lembro que eu e Dumontt demos 
uma mancada, pedimos uma cerveja mas o cara não 
bebia. Todos bebemos água.
192 Enraizados: os híbridos glocais
Não lembro muito bem para que o Aercio marcou a reu-
nião, mas sei que a gente queria se aproximar da Fase 
porque diziam que ela ajudava as organizações que 
estavam começando. Eu acho que ele nos fez um convite 
para participarmos de um projeto de juventude chamado 
“Derechos e direitos”, que aconteceria durante dois dias 
na Cáritas, em Nova Iguaçu. Participaram deste projeto, 
além de nós dois, a Gil Torres e o Eliel Garcia.
Nesse primeiro projeto encontramos alguns amigos 
que já trabalhavam com hip-hop. A galera do Setor BF, 
organização de hip-hop de Mesquita, liderada por Mad, 
Sebá e Nego Joe, que já eram nossos amigos. Conhece-
mos também outros jovens, que não trabalhavam com 
hip-hop, mas com circo, mobilização comunitária, tinha 
também um pessoal de São João de Meriti que mexia 
com griot, além de alguns jovens que não eram tão orga-
nizados, mas já exerciam uma atividade de liderança em 
sua comunidade.
Depois deste projeto com a Fase o Movimento Enrai-
zados passou a direcionar mais as atividades. A gente 
entendeu o que signifi cava exigir direitos e o que signifi -
cava direitos humanos. A partir de então tudo o que faze-
mos tem como base a exigibilidade de direitos humanos, 
e utilizamos a nossa arte como ferramenta.
A população de Morro Agudo já conseguia enxergar o 
Movimento Enraizados como uma organização de juven-
tude do bairro. Eles não sabiam de onde vínhamos, nem 
onde estávamos, parecíamos fantasmas que sumiam, 
de repente apareciam para balançar o bairro, depois 
desapareciam novamente e deixavam como marca uma 
mudança signifi cativa. Como muitos estudiosos, jornalis-
tas e representantes de organizações sociais e culturais 
começavam a frequentar Morro Agudo para conhecer os 
meninos que mobilizavam pessoas no Brasil inteiro, os 
comerciantes tentavam dar informações sobre nós.
193Seguindo em frente
Os visitantes perguntavam:
— Você conhece os Enraizados?
— Sim, conheço.
— Onde é a sede deles?
— Ah! Isso eu não sei, senta ali na praça que daqui a 
pouco passa um deles por aqui, com uma camisa que 
tem um desenho igual ao daquela pintura que tem lá na 
praça, é só você prestar atenção.
— Tudo bem, obrigado.
— De nada.
Quando a gente passava os comerciantes comentavam.
— Ei, rapazinho!!!
— Ôpa, fala aí!
— Apareceu um pessoal do jornal aqui procurando 
vocês e eu falei pra eles que vocês de vez em quando 
passam ali na praça. Ele conseguiu achar vocês?
— Sim, conseguiu. Obrigado!
— De nada.
Era tudo muito divertido. Eu pensava que isso só acon-
teceria num futuro bem distante, mas já era a nossa 
realidade. Além disso, outro acontecimento anormal no 
bairro era a presença de pessoas de outros países. Nós 
começamos a receber a visita de pessoas de diversos 
países, como a Audrey, da França, que veio nos conhecer 
e mostrar sua arte. Ela trabalha numa organização cha-
mada Meninos de Rua, na França.
O ano de 2006 foi certamente um ano de muitas ativi-
dades, em que nos dividíamos para conseguir dar conta 
de tantos compromissos.Mas em 2007, como já tínha-
mos um escritório, começamos a receber visitas de 
pessoas importantes. 
O Dumontt mais uma vez tinha razão, era fundamental 
termos um lugar para receber as pessoas.
194 Enraizados: os híbridos glocais
195Seguindo em frente
Em meados de fevereiro de 2007 conhecemos algumas 
pessoas que trabalhavam numa nova secretaria da pre-
feitura de Nova Iguaçu, a Secretaria de Valorização da 
Vida e Prevenção da Violência. Conhecemos o Tiago 
Borba e conversamos com ele sobre a quadra do Ciep 
117. A gente não desistia da ideia de ocupar aquele lugar. 
O Tiago foi conosco até Morro Agudo conhecer o local. 
Pulamos o muro e entramos na quadra. Ele fi cou impres-
sionado. Também não entendia como um local daquele 
tamanho poderia estar sem utilidade, ao mesmo tempo 
que a comunidade não tinha equipamento público para 
prática de esporte e cultura.
Eu, nessa época, não acreditava mais que existissem 
pessoas de bom coração. O Dumontt acreditava menos 
ainda, mas a gente reparou que o Tiago era diferente. O 
cara tinha um ar de sinceridade, de positividade. Nessa 
época também conhecemos o Luiz Eduardo Soares, 
antropólogo e cientista político brasileiro, que era o 
secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violên-
cia da prefeitura de Nova Iguaçu. Ele ligou e marcou uma 
conversa conosco, em nosso escritório. Queria conver-
sar, começaria a atuar na cidade e gostaria de conhecer 
as organizações culturais e de juventude.
Lembro que no dia marcado, meia hora antes do horário, 
ele ligou para o Dumontt e avisou que se atrasaria um 
pouco. O Dumontt comentou comigo que havia gostado 
da atitude dele, nós estávamos acostumados a pes-
soas que marcavam, chegavam atrasadas e nem sequer 
pediam desculpas. Conversamos algumas horas com o 
Luiz Eduardo e percebemos que as pessoas que traba-
lhavam com ele tinham essa mesma energia positiva. 
Ele nos tratou de igual para igual, assim como as outras 
pessoas que passaram por ali. A diferença é que ele 
nunca foi embora, está até hoje de olho na gente.
196 Enraizados: os híbridos glocais
Luiz Eduardo disse que talvez alguns amigos pudessem 
nos ajudar, mas que não podia prometer nada. Entraria 
em contato com eles e, se houvesse uma resposta posi-
tiva, nos comunicaria. Ficamos ansiosos pela resposta 
durante algum tempo. Enquanto aguardávamos o con-
tato do Luiz Eduardo, as reuniões abertas realizadas 
aos sábados na casa da Rosinha deram lugar ao Cefam 
(Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância). 
Conversamos com os meninos e meninas que partici-
pavam das reuniões convencionais e explicamos o que 
era o Cefam. Dissemos que iríamos estudar, conversar e 
compartilhar tudo o que a gente aprendia com os nossos 
irmãos, família e amigos, além de identifi car a violação 
de direitos em nosso bairro e colocar em prática a exigi-
bilidade de direitos humanos. Cerca de 15 pessoas topa-
ram participar e todo sábado estavam presentes.
Sempre com um ar meio profético, o Dumontt me per-
guntou o que era importante a gente fazer para evitar 
que as pessoas se afastassem das reuniões do Cefam. 
Eu disse que seria legal a gente passar uns fi lmes, mas 
lembrei que não tínhamos televisão e nem DVD. Ele res-
pondeu: “Vamos comprar esses equipamentos, eles 
são necessários. Depois a gente marca as sessões de 
cinema uma vez por mês.” Eu concordei, mas lembrei a 
ele que não tínhamos dinheiro nem para pagar o aluguel 
do escritório. Ele disse simplesmente que a gente com-
praria o equipamento porque era necessário.
Fazíamos muita dinâmica, como nas reuniões conven-
cionais. O Dumontt preparava o material para a aula de 
um sábado e eu preparava a do sábado seguinte. Junto 
com o Átomo, selecionamos os temas que seriam abor-
dados ao longo do ano. Uma das dinâmicas deu resultado 
muito positivo. Li a cópia de um livro de dinâmicas pro-
curando algo que pudesse fazer nas reuniões de sábado. 
197Seguindo em frente
Achei uma que era perfeita, mas precisava de algumas 
modifi cações. Pesquisei o nome de diversas lideranças 
negras brasileiras, confesso que da grande maioria eu 
nunca tinha ouvido falar. Coloquei o nome delas numa 
folha de caderno.
No sábado cada participante do Cefam escolheria um 
nome, e eu colocaria o nome do participante ao lado do 
nome escolhido. Uns escolheram o nome mais engra-
çado, outros nomes parecidos com os deles, mas a mis-
são era pesquisar sobre o nome escolhido, fazer um 
estudo e no sábado seguinte dar uma aula para os outros 
companheiros sobre quem era a liderança sobre a qual 
eles pesquisaram. Eu e Dumontt também participamos. 
Eu pesquisei Milton Santos e o Dumontt, Luiz Gama.
O resultado foi surpreendente. Para pesquisar, os parti-
cipantes do Cefam passaram a semana inteira no escri-
tório do Enraizados, usando os computadores. Depois de 
pronta, a pesquisa foi para o Portal Enraizados. O exér-
cito do Cefam era formado por: Dudu de Morro Agudo, 
Dumontt, Átomo, Willian Robson, Rafael, Mailini, Lisa 
Castro, Sidélia Cantuária, Eliel Garcia, Barraquinha, UR 
Clau, Marcela, Patrícia Ximango e Léo da XIII.
198
Se não 
sonhássemos, não 
sairíamos do lugar
Há dois tipos de pessoas no mundo:
os realistas e os sonhadores. 
Os realistas sabem onde estão indo; 
os sonhadores já estiveram lá.
— Robert Orben
Até então não tínhamos atrasado nem um mês de alu-
guel, mas era sempre por pouco. Às vezes um dia antes 
do vencimento a gente não tinha nem um real em caixa. 
Como um milagre recebíamos uma ligação, era alguém 
querendo contratar uma apresentação minha, mas a pes-
soa só poderia pagar 200 reais, que era justamente o valor 
que precisávamos para quitar o aluguel daquele mês.
As coisas foram apertando de tal forma que às vezes eu 
e Dumontt dividíamos um miojo na hora do almoço e na 
janta eu ia pra casa da minha mãe e ele pra avó dele. Eu e 
Dumontt não sabíamos fazer projetos, tínhamos apenas 
alguma ideia. Numa época um pouco melhor, tínhamos 
dois mil reais em caixa. O Dumontt me chamou pra con-
versar e falou sobre a importância de termos uma for-
mação em produção cultural. Disse que havia um curso 
no centro do Rio de Janeiro que estava com uma turma 
quase formada. Eu concordei, se era necessário deve-
ríamos fazer. Achei que nós dois faríamos o curso, pois 
acreditava que custava no máximo uns 200 reais. Quando 
199Seguindo em frente
ele disse que o valor do curso era justamente todo o 
dinheiro que tínhamos em caixa, entrei em desespero. 
Logo agora que estávamos conseguindo dar uma respi-
rada, íamos voltar ao zero novamente. Ele ainda pediu 
que eu fi zesse o curso e depois passasse o conheci-
mento. Como o Dumontt é bem mais paciente para ensi-
nar do que eu, fez o curso e nos ensinou o que aprendeu. 
Logo depois conseguimos aprovar um projeto na Peace 
Child. Era o projeto de um jornal temático chamado “Voz 
Periférica”. Uma continuação, ou evolução, do zine “Voz 
Periférica”. Seriam três edições com o objetivo de des-
mistifi car a linguagem jurídica das leis que estabelecem 
nossos direitos. Uma edição falando sobre o ECA (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente), outra sobre os Direi-
tos do Consumidor e por último uma abordando partes 
da Constituição Brasileira.
A ideia era que somente os meninos fi zessem o jornal, 
sem que eu e Dumontt interferíssemos. Antes mesmo de 
escrever o projeto chamamos Patrícia Ximango, Léo da 
XIII, Short, Willian Robson e Lisa, que assumiram o pro-
jeto. A Patrícia Ximango era a coordenadora, o que pra nós 
era engrandecedor. A gente começava a entender que o 
Movimento Enraizados tinha como base o hip-hop, mas 
ia ainda além dele. Até os dias de hoje, a gente presenteia 
com o jornal as pessoas que nos visitam, e levamos tam-
bém para as escolas e seminários de que participamos.
O ano de 2007 foi um ano de altos e baixos para o Enrai-
zados. Quando a gente estava novamente em baixa, ten-
tando escreveralguns projetos, o Dumontt entrou no site 
do Governo Federal e viu que o edital para o Prêmio Cultura 
Viva estava aberto. Ele inscreveu a Rede Enraizados, mas 
não acreditava que pudéssemos ganhar. Ele passou dias 
e noites preenchendo dezenas de formulários, juntando 
e enviando documentos, enquanto eu me ocupava com a 
200 Enraizados: os híbridos glocais
organização. Pelo menos uma vez na semana ele falava do 
prêmio, eu concordava e procurava dar uma força pra ele 
continuar, afi nal estava muito confi ante. Meses depois ele 
me disse: “Dudu, estamos entre os 200 selecionados.” E 
eu disse: “Parabéns!!!”, mas não botava muita fé. A gente 
estava entre as duzentas iniciativas. Pô, duzentas é muita 
coisa! Mas o Dumontt continuava na empreitada.
Algumas semanas depois: “Dudu, a gente está entre as 
cinquenta iniciativas.” E eu, como sempre: “Parabéns! 
Agora vai, hein!” E o Dumontt preenchendo mais for-
mulários, pedindo para eu ler os textos, dar opiniões e 
ajudar a procurar umas fotografi as. Mais algumas sema-
nas se passaram e ele veio: “Dudu, tu não vai acreditar, 
fi lhote.” E eu: “Fala tu, o que tá pegando?” E ele: “Esta-
mos entre os dez!” Aí eu já fi quei preocupado. Entre 
quase 2.000 iniciativas, nós estávamos entre as dez. Eu 
comecei a ver uma luz no fi m do túnel. 
Algumas semanas:
— Dudu, reúne o pessoal porque a gente está entre os 
três. Agora é à vera. Ruim de tudo a gente tá com 10.000 
reais no bolso e dá fazer melhorias na organização.
— Como assim entre os três?
— Lembra do Prêmio Cultura Viva?
— Sim, lembro.
— Então, a gente está entre os três primeiros lugares e 
na próxima semana vai vir um avaliador nos visitar, pra 
ver se o que a gente escreveu no edital é verdade.
Eu estava meio desnorteado com a notícia, mas disse:
— Tá tranquilo, vou reunir a galera.
A gente não tinha um centavo em caixa, mas era neces-
sário alugar um carro pra mostrar a comunidade pro cara, 
ele tinha que ver como era o nosso dia a dia no bairro. 
Alugamos o carro com o cartão de crédito. Liguei para a 
201Seguindo em frente
nossa galera, e no dia estavam todos presentes no horá-
rio marcado, mas o avaliador chegou muitas horas atra-
sado e o Dumontt cobrou isso dele o tempo inteiro.
Algumas pessoas do Enraizados disseram para seus 
patrões que chegariam um pouco atrasadas no traba-
lho para poderem estar presentes na avaliação, mas não 
puderam participar por causa do atraso do avaliador. Ele 
se apresentou como Alan Arrais, um produtor indepen-
dente, contratado pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pes-
quisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) para 
fazer a avaliação.
Ele começou a fazer algumas perguntas técnicas a res-
peito da organização para o Dumontt e para mim, mais 
para o Dumontt. Depois ele começou a perguntar a res-
peito dos participantes, e o Dumontt respondeu:
— Por que você não pergunta pra eles?
O Alan perguntou se realmente podia, porque nas outras 
organizações avaliadas era sempre uma pessoa que 
falava por todo mundo. Enquanto ele conversava com 
a galera, eu e Dumontt tentávamos resolver a questão 
do aluguel e outros assuntos pendentes que envolviam 
o dinheiro que a gente não tinha. O Alan também fi cou 
impressionado com o protagonismo feminino presente 
no Enraizados, e eu nem havia percebido isso. Neste dia 
estavam Lisa Castro, Suellen Casticini, Mailine, Marcela 
e Patrícia Ximango, e o Alan trocou altas ideias com elas.
O melhor ainda estava por vir. A galera foi embora e nós 
tínhamos que levar o Alan para dar uma volta pelo bairro 
e mostrar que éramos articulados com o poder público. 
A ideia era levarmos ele até o Paulô, que era da articu-
lação política da prefeitura. O Paulô já era Enraizados 
até os ossos, a pessoa mais indicada para conversar 
com o Alan e falar bem de nós. Mas o universo conspi-
rava a nosso favor e nos três quilômetros que separavam 
202 Enraizados: os híbridos glocais
o nosso escritório do local onde o Paulô nos esperava, 
havia dezenas de pessoas que falavam conosco na rua, 
nos cumprimentavam o tempo inteiro, paravam o carro 
que nós estávamos para contar uma história, pediam 
ajuda, muitas estavam com nossas blusas e isso com 
certeza mexeu com a cabeça dele.
Quando chegamos ao Paulô foi tudo como deveria ser, 
mas não combinamos nada com ele. Dissemos apenas 
que viria um camarada avaliar o Movimento Enraizados 
para um prêmio que estávamos concorrendo, e o Paulô 
fez bonito. Para fechar com chave de ouro levamos o Alan 
até o Aércio, da Fase, para mostrar que tínhamos arti-
culação com outras organizações também. Já era noite 
e o Aércio estava no colégio Monteiro Lobato, nesse dia 
aconteceria uma reunião da Fase por lá.
Quando o Alan começou a conversar com o Aércio a 
nosso respeito, fi quei perto observando suas respostas 
e não conseguia entender por que ele falava sobre nós 
como se o que fi zéssemos fosse algo sem importância. 
Tive essa impressão no início, mas o Aércio sabia muito 
bem o que estava fazendo e terminou de modo genial 
usando uma ótima frase de efeito. O Alan perguntou a 
ele: “O que você acha do trabalho deles?” E o Aércio: “Eu 
não vejo nada de mais, a Fase já faz um trabalho pare-
cido há algum tempo...”
Eu não conseguia acreditar que ele estava tirando o foco 
de nós. Até que, minutos depois, usou a tal frase de efeito:
— Mas tem uma coisa que me intriga nisso tudo. A Fase 
trabalha com um orçamento parecido com o de uma 
prefeitura de pequeno/médio porte e tem muitos funcio-
nários, o que torna possível realizar um projeto desses, 
porém o Dudu e o Dumontt, junto com os outros Enrai-
zados, não têm um tostão e executam perfeitamente a 
Rede Enraizados, com maestria. Como eles fazem tudo 
isso sem dinheiro, eu juro que não sei.
203Seguindo em frente
Nessa hora o olho do Alan brilhou e eu abri um sorriso 
enorme. Depois disso levamos o Alan na estação de 
trem de Nova Iguaçu, e ele foi embora. Após essa mis-
são nossa vida voltava ao normal, na incessante busca 
pelo dinheiro para pagar o aluguel. O dinheiro não apa-
recia, mas continuávamos nas páginas do jornal “O 
Dia”, graças ao desempenho do Portal Enraizados, que 
ultrapassara a marca de 600.000 acessos mensais, e 
nossas atividades. O projeto Enraizadinhos, uma cole-
ção do Movimento Enraizados voltada para o público 
infantil, com dezenas de personagens usados em dese-
nhos animados, cadernos, roupas, foi idealizado pelo 
Dumontt e materializado nos papéis pelo Willian Rob-
son, um ótimo desenhista. O CD e o DVD “Sexto Encon-
trão ao vivo” estavam na boca do povo. E nossas produ-
ções audiovisuais, tendo como carro-chefe os fi lmes no 
formato Contra Cinema – um fi lme feito no mesmo dia, 
por amadores, sem atores, roteiro, fi gurino, cenário, 
apenas com ideias – e o documentário sobre o primeiro 
emprego, dirigido pelo Dumontt.
Mais uma matéria no jornal “O Dia”:
Cultura negra on-line
Oito anos depois de o Movimento Enraizados começar 
timidamente, em Morro Agudo, a divulgar o hip-hop e 
culturas afi ns, como o grafi te e o break, a página na 
internet do grupo de Nova Iguaçu (www.enraizados.com.
br) ganhou impulso e hoje ostenta a marca de 600 mil 
acessos mensais.
No rastro do sucesso, as conquistas do grupo encabe-
çado pelo rapper Dudu de Morro Agudo incluem vários 
CDs independentes e um DVD ao vivo, produzidos no 
estúdio de edição de vídeo obtido através de convênio 
feito com o Ministério da Cultura.
204 Enraizados: os híbridos glocais
Na lista de realizações para este ano, destacam-se a 
produção de três documentários feitos pela câmera digi-
tal obtida no pacote do governo federal e a publicação 
de uma história em quadrinhos, na qual os personagens 
foram criados nos moldes da cultura hip-hop.
“São conquistas que estamos obtendo com muita luta 
da nossa comunidade. Aprendemos que o mais impor-
tante no momento é mostrar o trabalho dessa galera da 
periferia. Por isso,não nos incomodamos se os CDs vão 
ser pirateados ou se vão baixar na internet”, disse Dudu 
de Morro Agudo.
O Movimento Enraizados é uma organização que tem como 
objetivo principal identifi car, capacitar e orientar artistas 
e militantes para o ativismo cultural. “Somos organizados 
em uma rede presente em quatro continentes. Estamos 
na Colômbia, Portugal, Espanha, Finlândia, França, Bél-
gica, Angola, Moçambique e Japão”, contou Dudu.
No site, os rapazes do Enraizados expõem pensamentos, 
atividades e mandam para o mundo músicas de jovens 
que não têm acesso à mídia. Através do Centro de Estudo 
de Ativismo e Militância (Cefam), os jovens da comu-
nidade participam ativamente da vida política, social e 
cultural da cidade.
Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 20 de maio de 2007
Foram quatro páginas de jornal. Sempre que estáva-
mos nos jornais nossa autoestima ia nas nuvens, por 
isso quisemos várias pessoas nas fotografi as. Dessa vez 
estávamos eu, Jack, Nadir, Átomo, Kall, Faminto, Rafael, 
Barraquinha, Erivelton, Elicarlos, Dumontt, Short, 
Samuel, Willian Robson, Lisa Castro e Ur Clau.
As reuniões do Cefam esquentavam, os questionamentos 
eram frequentes. Numa das reuniões surgiu o assunto da 
necessidade de uma rádio comunitária para tocar nossas 
músicas (a maioria dos participantes era MC) e propagar 
205Seguindo em frente
nossas mensagens no bairro. A galera participava efetiva-
mente das atividades da organização. Visitávamos outras 
organizações do bairro, como a escolinha de futebol do 
Ouro Preto, onde o Cefam foi conversar com a criançada, 
que adorou, pois chegamos com muitos doces. O Cefam 
também se preparava para produzir o sétimo Encontrão.
Sem que perdêssemos o fôlego, na semana seguinte já 
aconteceria o sétimo Encontrão. O Dumontt, como sem-
pre, fez toda a articulação para conseguirmos palco e 
som, eu articulei com os artistas para se apresentarem. 
Além dos artistas do nosso casting – Dudu de Morro 
Agudo, Léo da XIII, Ultimato à Salvação, Fator Baixada e 
Poetas da BF –participariam do evento o rapper Kapella, 
de Mesquita, e a banda Nego Kapor, do Maranhão.
A nossa rede funcionava perfeitamente, estiveram pre-
sentes Enraizados de Rio das Ostras, São Gonçalo, Belo 
Horizonte, Itaboraí, Rio de Janeiro (Santa Teresa e Jaca-
repaguá), Duque de Caxias, São João de Meriti, Queima-
dos, Japeri e de muitos bairros de Nova Iguaçu. A LUB 
(Liga Urbana de Basquete) estava cobrindo o evento, o 
que para nós foi uma honra.
206 Enraizados: os híbridos glocais
207Seguindo em frente
208
Algumas luzes no 
fi m do túnel
Não há maior prova de ignorância do que acreditar 
que o inexplicável é impossível.
— S. Bilard
Como a maioria dos participantes do Movimento Enrai-
zados eram rappers, eles sentiam a necessidade de um 
meio de comunicação que divulgasse nossos eventos, 
tocasse as músicas e interagisse com a nossa comu-
nidade. Mas a gente não tinha grana para comprar um 
transmissor FM pra montar a própria rádio, e nem que-
ríamos. A gente não conseguiria a concessão do governo 
e a Polícia Federal estava fechando muitas rádios comu-
nitárias no Brasil inteiro.
Então a gente soube que o Dinho, DJ do Fator Baixada, 
estava trabalhando numa rádio comunitária chamada 
Atitude FM, que era nova no bairro. Fomos até ele tentar 
um horário para nosso programa de rap. Dinho cedeu a 
faixa das 22h à meia-noite, de segunda a sexta-feira. Aí 
começaram alguns problemas, pois a maioria das pes-
soas que deu a ideia de montar a rádio eram as mesmas 
que não queriam dedicar parte do seu tempo para fazer 
o programa. Entramos num acordo e cada dia da semana 
ia alguém para a rádio, que fi cava a dez quilômetros de 
distância do centro de Morro Agudo. Todos nós íamos de 
bicicleta e às vezes alguns iam a pé.
209Seguindo em frente
Não tínhamos muita experiência, mas o Dinho nos ensi-
nou. Levávamos de boa o programa, com muita música 
e notícias sobre as atividades do Enraizados. A equipe 
que trabalhava na rádio era Dumontt, Kall, Léo da XIII, 
eu, Lisa Castro e Átomo.
Com o tempo percebemos que os integrantes do Enraizados 
que pediram a rádio não ouviam o programa. Começamos, 
então, a pedir que eles ligassem para a rádio todos os dias e 
pedissem também para seus amigos ligarem. Não era justo 
que nós seis fi cássemos até meia-noite na rua, passando 
por lugares perigosos e correndo até mesmo risco de vida, 
e eles que estavam em casa não contribuíssem de alguma 
forma para valorizar nosso trabalho. Éramos uma equipe, e 
deveríamos trabalhar como tal.
Continuávamos a fazer pequenas apresentações em 
troca de 200 reais pra pagar o aluguel e continuar com 
nossas atividades. Os gringos continuavam nos visi-
tando, cada vez mais frequentemente. Certa vez o Luiz 
Eduardo Soares trouxe para nos conhecer alguns repre-
sentantes do BID (Banco Interamericano de Desenvolvi-
mento), e dias depois da organização Room to Ritch. Eu 
brincava com o Dumontt dizendo que se o pessoal do BID 
desse uma ajudinha eu pararia de comer miojo, que já 
estava me fazendo mal.
Mas as semanas seguintes reservavam boas notícias e 
um pouco de paz. Certo dia, eu e Dumontt estávamos tra-
balhando no escritório, eu ia almoçar na casa da minha 
mãe e ele passaria mais tarde na casa de sua avó. Já não 
tínhamos grana para o miojo. Fui andando para a casa da 
minha mãe pensando que tipo de trabalho poderíamos 
fazer para descolar uma grana. Mas a única forma que 
a gente conseguia arrumar dinheiro era fazendo shows. 
Eu pensei em fazer fi lmagens e edições, mas as pessoas 
não pagavam. Pensei também em ofi cinas culturais, mas 
210 Enraizados: os híbridos glocais
fazer ofi cina cultural na periferia cobrando mensalidade 
é tempo perdido, a galera também não tem dinheiro.
Chegando em casa, bem desiludido porque não tinha 
conseguido pensar em nada, recebi a seguinte mensa-
gem do Dumontt no meu celular (usamos o programa 
Cool SMS, que envia mensagens gratuitamente para 
celular através da internet): “Dudu, consegui comprar o 
miojo. Ah!!! O Luiz Eduardo conseguiu aquele apoio pra 
gente, acho que são cinco mil euros, nosso cineclube tá 
garantido.” Eu demorei a entender a mensagem. Como 
assim conseguiu o apoio? Eu não tinha como ligar pra 
ele, mas queria saber dessa notícia. 
Comi metade da comida e voltei correndo para o escri-
tório. Ele me contou a história toda, disse que a gente 
tinha que fazer uma espécie de proposta, mas metade 
do caminho já estava andado. Nós íamos continuar 
comendo miojo, mas agora teríamos um cineclube, e 
isso era o máximo. Compramos um projetor, um sistema 
de som que também servia para fazermos nossas fes-
tas, e uma fi lmadora Mini DV da Sony, modelo PD170, que 
a gente nem sabia usar, mas era a mesma que o Cacau, 
do grupo Baixada Brothers, usou para fi lmar o evento 
Raiz do Hip-Hop, três anos antes.
Dias depois recebemos a visita de um senhor chamado 
Robson Aguiar, coordenador social do projeto de tele-
centros da RITS (Rede de Informações para o Terceiro 
Setor) em parceria com a Petrobras. Ele nos procurou 
porque queria instalar um telecentro na cidade de Nova 
Iguaçu e havia recebido boas indicações de nós. Gosta-
ria que nós administrássemos o telecentro, mas antes 
faria uma visita e depois traria um representante da 
Petrobras para visitar o local também.
211Seguindo em frente
Quando o Robson começou a falar dos equipamentos 
do telecentro, das atividades que deveríamos realizar 
para dar acesso à comunidade, fi camos animados. Mas 
quando ele disse que haveria uma grana para duas pes-
soas trabalharem no telecentro durante um ano, gos-
tamos mais ainda.O ditado, porém, já dizia: “Alegria de 
pobre dura pouco.” Ele condenou nosso escritório por 
causa do difícil acesso. Nós teríamos que conseguir 
um novo local para instalar o telecentro, e não tínha-
mos muito tempo. Depois desse susto ele nos deu uma 
boa notícia. Tinhauma verba pra fazer obra e adaptar o 
local para receber o telecentro.
Assim que o Robson foi embora eu e Dumontt saímos 
pelas ruas de Morro Agudo procurando um novo local 
para instalar o Movimento Enraizados. Nossa sede seria 
no mesmo lugar do telecentro. Vimos dois lugares. O pri-
meiro era uma pequena loja no centro do bairro, mas o 
aluguel estava além da nossa realidade, cerca de R$800 
por mês, mais documentação e fi ador. O outro local 
também era inacessível porque era num prédio e o alu-
guel era alto. Vimos uma casa, mas a proprietária criou 
empecilhos porque era para um projeto sociocultural.
Ficamos andando de um lado para o outro, sem sucesso, 
até que vimos uma placa de aluga-se. Atravessamos a 
rua e olhamos através da grade, o lugar era enorme. O 
Dumontt queria ligar para ver o preço, mas como esse 
lugar também era no centro, e a primeira lojinha que a 
gente viu custava R$800, quanto seria o aluguel deste 
lugar enorme? Ficamos parados em frente ao local 
durante alguns minutos, um olhando para a cara do 
outro e para a placa de aluga-se e decidimos que liga-
ríamos somente por curiosidade. Para nossa surpresa 
o aluguel era R$1.000. Ficamos animados por uns dez 
segundos, quando lembramos que sofremos durante um 
212 Enraizados: os híbridos glocais
ano pra pagar os R$200 de aluguel do nosso escritório. 
Havia os salários do telecentro, que somavam R$1.000, 
mas nós continuaríamos a comer miojo.
A gente se enganava dizendo que tudo daria certo, que o 
dinheiro seria sufi ciente pra pagar o aluguel. O telecen-
tro viria com um recurso para as obras e o local era tão 
grande que poderíamos fazer nossos eventos, vender 
nossos produtos e serviços pra levantar uma grana. Como 
faltava pouco tempo para o Robson voltar com o pessoal 
da Petrobras para avaliar o local, ligamos para a imobiliá-
ria, por sorte era a mesma do outro escritório, e dissemos 
que estávamos interessados naquele imóvel. No mesmo 
dia entramos para ver a estrutura de perto. Além do que 
havíamos conseguido ver através das grades, havia ainda 
uma outra parte coberta que era enorme. Defi nitivamente 
aquele lugar deveria ser nosso. Fechamos acordo e arran-
jamos de pagar uma semana depois.
Passou-se quase um mês e o Robson não aparecia. Nem 
sozinho e muito menos com o avaliador da Petrobras. A 
proprietária do lugar onde alugaríamos estava nos pres-
sionando, dizia que havia outras pessoas interessadas no 
local. A gente sabia que era mentira dela, mas fi zemos o 
jogo, demos algumas desculpas, sempre afi rmando que 
alugaríamos o imóvel. O Robson apareceu e nos deu a pior 
notícia dos últimos anos. Por motivos políticos – eu diria 
politicagem – o telecentro não viria para as nossas mãos, 
mas para um outro bairro de Nova Iguaçu, onde inclusive 
já existiam alguns telecentros. Nós realmente acreditá-
vamos no Robson, ele estava sendo sincero, e agora nós 
estávamos bastante encrencados.
Dentre as dezenas de pessoas que passavam pelo nosso 
escritório, recebemos a Helena Aragão, do site Over-
mundo, que trabalhava, na época, com o Hermano Viana. 
Ela ouviu falar de nós em algum lugar e veio nos visitar. 
213Seguindo em frente
Já estávamos com a história do Movimento Enraizados 
ensaiada de tanto que a gente contava. Ela fi cou bem 
próxima, e sem saber entrou pra rede. Falava bastante 
de nós, até que um dia comentou com algum jornalista 
da revista “Carta Capital”. Quando recebi a ligação da 
Renata Carraro, da “Carta Capital”, estava muito ocu-
pado tentando resolver os problemas do novo espaço 
e não pude dar atenção a ela. Na segunda vez que ela 
ligou estava ainda mais ocupado, mas não pude deixar 
de atendê-la. Ela queria saber sobre o CD e o DVD “Sexto 
Encontrão ao vivo”. Contei toda a história pra ela e fi ca-
mos mais de uma hora no telefone.
No mês de outubro saiu uma matéria especial na revista 
“Carta Capital” n.º 464.
O hip-hop sobrevive
Do Alto do Pascoal para o Morro Agudo. É ali, no maior 
bairro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Rio de 
Janeiro, que outra rede articulada em torno do hip-hop 
mostra sinais de vigor econômico. Flávio Eduardo da 
Silva Assis, o Dudu de Morro Agudo, é uma das lideran-
ças do Movimento Enraizados, cujo chamariz é o portal 
www.enraizados.com.br, com uma loja virtual e 600 mil 
acessos por mês.
Tudo começou em 1999. “O site era para divulgar a 
música, não tinha o objetivo de renda”, explica o rapper. 
Mas os contatos foram crescendo, gente do Brasil inteiro 
começou a acessar, e hoje o Movimento Enraizados tem 
fi liados em 16 estados. Depois que se juntou ao Movi-
mento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB), Dudu 
percebeu que era preciso discutir políticas públicas para 
a juventude e pensar em melhorias para a comunidade.
“Agora vamos criar um espaço cultural com loja, biblio-
teca, telecentro, cinema.”
214 Enraizados: os híbridos glocais
215Seguindo em frente
218 Enraizados: os híbridos glocais
O Enraizados tem um esquema de CDs e DVDs. A última 
coletânea, “6º Encontrão”, foi toda editada em Software 
Livre. Com o objetivo de popularizar o trabalho, as matri-
zes são repassadas para os artistas e camelôs. Nas ban-
cas montadas na rua, cada produto é vendido a 5 reais, 
dos quais 1 real deve retornar para o Enraizados na forma 
de pagamento de uma licença (Creative Commons), o que 
rende cerca de 35 reais semanais. Já os artistas podem 
reproduzir as matrizes e vender pelo preço que desejarem.
Viver do hip-hop ainda é para poucos, mas a experiência 
como a do Recife e a de Nova Iguaçu mostram uma força 
econômica embrionária que pode revelar novos elemen-
tos desse movimento cultural.
Bernardete Toneto, Jaqueline Lemos e Renata Carraro, 
“Carta Capital” n.º 464,
3 de outubro de 2007
Sem ter de onde tirar grana, fomos procurar nosso anjo 
da guarda, Luiz Eduardo Soares.
Nessa época, a Semuv (Secretaria de Valorização da 
Vida e Prevenção da Violência) estava implantando um 
projeto na cidade de Nova Iguaçu que acompanhávamos 
de perto por se tratar de um trabalho com a juventude 
da cidade. Conversamos com o Luiz Eduardo e fecha-
mos uma espécie de consultoria, dávamos palestras e 
ofi cinas, e recebíamos uma grana. Assim, depois de um 
tempo, conseguimos alugar o imóvel.
Batizamos o lugar de Espaço Enraizados. Já estávamos 
acostumados a trabalhar triplicado no mês de novem-
bro, e em 2007 não seria diferente. Por não ter mais 
trabalho formal eu viajava bastante, principalmente no 
mês de novembro. Fui a São Paulo para dar uma pales-
tra no seminário Conhecimento e Cultura Livres e de lá 
voei para o II Congresso Nacional do MHHOB, em Porto 
219Seguindo em frente
Velho. O Dumontt estava a caminho da Argentina para 
participar do projeto “Derechos e direitos” da Fase. O 
Dumontt nunca tinha viajado de avião, e foi logo pra fora 
do país. Ele fi cou algum tempo sem aparecer em Morro 
Agudo, pulava de um estado para o outro. O combinado 
foi Dumontt ir direto de Buenos Aires para Porto Velho, 
onde fi caríamos até o dia 7 de novembro.
No Congresso Nacional do MHHOB as discussões eram 
sobre a aprovação dos novos Pontos de Cultura, for-
mação em produção cultural e institucionalização do 
MHHOB. Como éramos a organização do MHHOB que 
mais crescera nos últimos anos, e a mais bem apare-
lhada, fi cou estabelecido que a nova sede nacional do 
MHHOB seria no Espaço Enraizados, em Morro Agudo, 
e que o Dumontt cuidaria da administração do Instituto 
Ruas, enquanto eu seria o presidente. Estiveram presen-
tes no congresso, entre outros, Saroba (Porto Alegre-
RS), Jackson (Porto Alegre-RS), Léo Cabral (Brasília-DF/
Fortaleza-CE), Lamartine Silva (São Luís-MA), Augusto 
(Rio Branco-AC), Dumontt (Nova Iguaçu-RJ), Dudu de 
Morro Agudo (Nova Iguaçu-RJ), Edjales Fama (Porto 
Velho-RO), Branco (Macapá-AP), Morcegão (Belém-PA) e 
Edi Rock (São Paulo-SP). O Américo Córdola que viria a 
ser nomeado secretárioda Identidade e da Diversidade 
Cultural, também participou.
De Porto Velho o Dumontt voou para Belo Horizonte, 
onde estava acontecendo o Teia, o maior encontro da 
diversidade cultural no Brasil, que durou até o dia 11 
de novembro. Quando cheguei de Porto Velho recebi a 
notícia de que estava solteiro, minha esposa havia me 
deixado. Eram tantas as atividades que nem tive tempo 
de sofrer, deixei pra chorar em dezembro ou janeiro, 
meses menos turbulentos.
220
Entre trancos e 
barrancos
O homem consequente crê no destino; 
o volúvel, no azar.
— Benjamin Disraeli
Isso não foi legal: parte 1
Havia um camarada chamado Valdemar, meu vizinho, 
que sempre me emprestava o carro dele para eu fazer 
uns corres pro Enraizados. Era uma Fiat Uno ano 1989, 
mas muito conservada. Certa vez, no fi nal do dia, alguns 
amigos que foram conhecer o Espaço Enraizados convi-
daram a mim e ao Dumontt para uma festa. Entre eles 
estavam Viviane Torres, Natanael, Thiago e sua noiva, e 
outras pessoas que não conhecia bem.
O Dumontt não queria ir, mas eu insisti. Havia muito 
tempo que a gente não saía pra se divertir, era trabalho 
o tempo inteiro. Mesmo contra a vontade ele nos acom-
panhou. Algumas pessoas foram no carro comigo, eu 
estava com o carro do Valdemar seguindo o do Thiago. A 
100 metros da festa olhei para o lado, tinha umas cinco 
mulheres sentadas na calçada bebendo cerveja, quando 
o carro do Thiago freou por causa de um quebra-molas.
As pessoas gritaram tentando me alertar, mas já era 
tarde demais. Quando percebi já estava afundado 
na traseira do Celta zero quilômetro. Graças a Deus 
221Seguindo em frente
ninguém se machucou, mas o prejuízo foi enorme. Eu 
estava a no máximo uns 40 quilômetros por hora, mas 
o barulho e o estrago foram tão grandes que eu parecia 
estar em alta velocidade. E o prejuízo não foi somente 
material. O Dumontt havia me orientado a não ir à festa 
e eu insisti para irmos. 
Além disso tinha a Fiat Uno que meu amigo me confi ava 
para trabalho e eu usei para ir a uma festa. Esse carro 
signifi cava bem mais que uma Fiat Uno 89 pra ele, difi -
cilmente tirava o carro da garagem pra passear, mas 
todo domingo colocava o carro na calçada, em frente à 
sua casa, ligava o som e lavava o carro, mesmo quando 
já estava limpo. Nem os fi lhos podiam dirigir aquele 
carro e ele havia me confi ado uma cópia da chave. Essa 
era uma das muitas coisas ruins que aconteceriam nos 
próximos meses.
Coisas boas: parte 1
No dia 14 de novembro o grafi teiro Dante liderava a Bai-
xada Crew para grafi tar o Espaço Enraizados. No dia 15 
aconteceria um cortejo cultural para dar abertura à Jor-
nada Cultural, evento que aconteceria no Espaço Enrai-
zados em que participariam dezenas de pessoas de paí-
ses diferentes.
Eu e Dumontt acompanhávamos todo o processo de 
perto. No dia 14 à noite, eu tive uma apresentação no 
centro de Nova Iguaçu, da qual saí às três horas da 
madrugada, tendo a missão de ir ao aeroporto buscar o 
Alessandro Buzo, que a convite do Aercio também parti-
ciparia da Jornada Cultural.
No dia 15, além do cortejo cultural, eu fi z uma apresen-
tação no Circo Voador pra levantar um dinheiro. O Léo 
da XIII foi comigo, mas rapidamente voltamos para o 
222 Enraizados: os híbridos glocais
Espaço Enraizados, onde estavam dezenas de pessoas 
de vários países, como Alemanha, Uruguai, Paraguai e 
Argentina. Era o primeiro evento no Espaço Enraizados, 
e já um evento internacional.
No dia 16 eu tive outra apresentação no Sesc de Nova 
Iguaçu, e no dia seguinte a Coordenadoria de Igualdade 
Racial nos fez uma homenagem. Colocaram uma fotogra-
fi a minha na via Light. Por causa disso meu telefone tocou 
o dia inteiro, eram os amigos nos parabenizando. Com um 
descanso de dois dias antes da próxima viagem, aprovei-
tamos que o Buzo estava no Rio e fomos curtir uma praia.
Isso não foi legal: parte 2
No dia 20 de novembro tinha uma atividade em Forta-
leza, a convite da Ação Educativa, ONG de São Paulo, em 
que eu participaria de uma mesa e faria uma palestra. 
Aproveitei que estaria por lá e contactei a Rede Enraiza-
dos no Nordeste para saber se haveria algum evento por 
lá nas datas em que eu estivesse, pois gostaria de fazer 
apresentações. 
Fiquei muito animado com o retorno da galera. Muitos 
eventos de rap estavam rolando naquele mês e eu havia 
fechado três apresentações.
No dia da viagem saí de casa bem cedo. O aeroporto é 
distante da cidade onde moro e a rodovia Presidente 
Dutra costuma engarrafar. Eu poderia ter problemas 
com o horário. Mesmo com todos os cuidados que tomei, 
a van que me levava para o aeroporto bateu, mas de uma 
forma que fechou a rodovia e não havia como qualquer 
outro carro passar por ali.
A batida foi tão violenta que eu estava na parte de trás 
da van e fui projetado para a parte da frente, ao lado do 
motorista. Por sorte ninguém se machucou, mas todos 
223Seguindo em frente
fi caram bastante abalados. Inclusive o motorista, que 
não sabia explicar ao certo o que havia acontecido. O aci-
dente foi num lugar sem ruas paralelas. Andei quilôme-
tros para tentar achar um táxi ou qualquer outra condu-
ção que me levasse até o aeroporto. Depois de bastante 
tempo caminhando encontrei um taxista que me levou o 
mais rápido que pôde, porém nem o mais rápido taxista 
do mundo faria com que eu não perdesse aquele voo.
Coisas boas: parte 2
O pessoal da Fase ligou marcando uma reunião para o 
dia 11 de dezembro. Pediram para levarmos um projeto, 
eles tinham um recurso do Serviço de Análise e Assesso-
ria a Projetos (Saap). Comecei imediatamente a escrever 
o projeto do Cefam.
Isso não foi legal: parte 3
Estava escrevendo o projeto em casa quando meu tele-
fone tocou. Como eu tinha me separado há pouco tempo, 
o único móvel que tinha na minha casa era a mesa do 
computador, que fi cava embaixo da janela do quarto. 
Meu telefone celular, que estava na sala carregando, 
começou a tocar, mas como estava mal-humorado não 
quis atender. 
Poucos minutos depois me chamaram no portão, mas 
eu também não quis atender. Até que minha tia me disse 
que era meu primo Júnior Baiano quem estava cha-
mando. Pensei que pudesse ser algo importante, pois 
difi cilmente ele ia na minha casa. Fui atender e aprovei-
tei pra ver quem estava me ligando. Meu primo não que-
ria nada importante, e nem era relevante a ligação que 
recebi. Quando voltei pra casa, a janela do quarto tinha 
caído em cima da cadeira que eu estava trabalhando. 
Decididamente a urucubaca estava solta pro meu lado.
224 Enraizados: os híbridos glocais
Coisas boas: parte 3
Como nada de grave aconteceu, terminei o projeto e 
fomos para a Fase entregá-lo. Para nossa surpresa, 
lá encontramos alguns companheiros de caminhada, 
outras organizações de juventude que também foram 
convidadas. Estávamos entre os três primeiros lugares 
do Prêmio Cultura Viva 2007 e no dia 18 de dezembro 
seria a entrega do prêmio, em Brasília. Só lá saberíamos 
nossa colocação. 
Como eu era uma espécie de porta-voz do Enraizados, 
o Dumontt queria que eu fosse pra Brasília. Mas, além 
dos problemas pessoais que tinha pra resolver, achei 
justo que ele fosse. Todo o processo começou por 
causa de sua persistência. E eu estava meio receoso 
com os fatos estranhos que estavam acontecendo, era 
capaz até de o avião cair.
No dia 18 de dezembro o Dumontt me ligou, superemo-
cionado, dizendo que nossa iniciativa havia ganhado 
o primeiro lugar do Prêmio Cultura Viva, mais de 30 mil 
reais. Minhas pernas tremiam, eu suava frio e dava pulos 
de alegria, fi quei eufórico com a notícia. De uma vez por 
todas, entre trancos e barrancos, fechamos o ano de 
2007 com chave de ouro.
Cap.04
Estamos só no início
Cap.04
Estamos
228
Acionando a Rede 
Enraizados
O mundo se divide em duas espécies de pessoas: 
aquelas que querem falar com você 
e aquelas com as quais você quer falar.— Thomaz Souto Corrêa
O ano de 2008 começou com boas expectativas para a 
organização: nova sede, Prêmio Cultura Viva e o projeto 
do Cefam aprovado. Abrimos inscrições para o Cefam, 
mas apenas 12 pessoas poderiam participar, sem contar 
comigo e com o Dumontt. 
Inscreveram-se Guará, Binho, Júnior, Léo da XIII, Suellen 
Casticini, Ualax, Lisa Castro, Átomo, UR Clau, Marcela, 
Kadu e Kall.
A Rede Enraizados funcionava a todo vapor. Precisáva-
mos comprar uns equipamentos, e acionamos a rede. O 
Big Dáblio, morador do Capão Redondo, em São Paulo, 
trabalha numa loja de equipamentos eletrônicos e fez 
um preço camarada. Fui até São Paulo comprar com ele.
Na mesma época, o Jackson Brum, de Porto Alegre, 
acionou a Rede Enraizados para realizar um projeto 
chamado “Seis direções”, patrocinado pela Petrobras e 
pela Funarte. A ideia era grafi tar painéis de 100m² em 
seis cidades, partindo de Porto Alegre (RS) e passando 
por Florianópolis (SC), Curitiba (PR), São Paulo (SP), Nova 
229Estamos só no início
Iguaçu (RJ), fi nalizando em Belo Horizonte (MG). Quatro 
grafi teiros locais seriam convidados para interagir com 
os outros seis que vinham com o projeto. 
Por meio da Rede Enraizados o Jackson conseguiu os 
contatos que não tinha em algumas cidades, e o Movi-
mento Enraizados foi responsável pela produção do pro-
jeto em Nova Iguaçu. Convidamos os grafi teiros Dante e 
Tihkin e a grafi teira Anarkia para participarem do pro-
jeto. O Jackson chamou o grafi teiro Ments, mas por pro-
blemas pessoais ele não pôde participar. 
Fechamos uma parceria com a SuperVia e nos dias 26, 
27 e 28 de janeiro grafi tamos o muro da estação de trem 
de Comendador Soares. Este projeto mudou a cara do 
bairro. As pessoas comentavam que quando passavam 
de trem para ir pro trabalho, de madrugada, os grafi tes 
transmitiam alegria. Realmente era algo bom.
Transformávamos o Espaço Enraizados, que antes era 
uma ofi cina de carros, em uma opção cultural para a 
cidade. A intenção era colocarmos, além do escritório, 
uma loja para escoar nossos produtos e de parceiros, 
uma lanchonete, uma biblioteca e um estúdio audiovi-
sual. Queríamos inaugurar o Espaço Enraizados o mais 
rápido possível, por isso precisávamos de voluntários 
para as obras não pararem. As articulações eram diárias.
Estávamos saindo de um espaço de aproximadamente 
10m² e indo para um de 350m². Tínhamos que adminis-
trar os recursos de modo que conseguíssemos equipar 
o novo espaço e pagar as obrigações mensais, como 
conta de luz e telefone. O Dumontt trabalhava incessan-
temente em suas articulações, e eu correndo como um 
louco nas minhas.
Em meio desse turbilhão de acontecimentos, recebemos 
a ligação do Écio Salles, um amigo de longa data em quem 
sempre confi ei bastante. Ele me comunicou que estava 
230 Enraizados: os híbridos glocais
trabalhando na secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, a 
convite do novo secretário de Cultura, o Marcus Vinícius 
Faustini, e gostaria de marcar uma reunião conosco. 
Andávamos distantes da Secretaria de Cultura, porque a 
relação com os últimos secretários não havia sido muito 
boa. Numa das reuniões de coordenação eu e Dumontt 
decidimos conversar com Écio e Faustini. Mas estava 
claro que era apenas porque o Écio pedia. Se desse 
algum problema, era deles a responsabilidade.
Foi justamente isso que falamos com o Écio, que assu-
miu total responsabilidade por já conhecer o Faustini e 
confi ar nele. Até hoje não tivemos problemas com eles. 
Pelo contrário, temos uma relação bastante transpa-
rente. Não só na Secretaria de Cultura, mas no dia a dia.
Convidamos muitas pessoas para participarem da inau-
guração do Espaço Enraizados, que aconteceu no dia 5 
de abril de 2008. Nosso convite era um cartão-postal 
que mostrava a localização do Espaço Enraizados via 
satélite. Eu fui ao correio e enviei um deles para meu 
endereço para registrar o dia, que foi perfeito. Mili-
tantes, universitários, políticos, empresários e, o mais 
importante, a população de Morro Agudo estavam lá, 
marcando presença.
Nossa loja funcionava com muito movimento.
As pessoas não conseguiam acreditar no que viam. 
Aquele espaço enorme, todo grafi tado, equipado, tocando 
rap, no centro de Morro Agudo, era todo nosso, da peri-
feria. Os Enraizados que vieram de outros estados reno-
varam suas esperanças, como o Terno e o Alessandro 
Buzo, do Enraizados-SP, que viram como era possível 
fazer o mesmo nas suas comunidades.
231Estamos só no início
Dentre as centenas de pessoas que passaram pelo 
Espaço Enraizados naquele dia, faço questão de citar 
o nome de algumas: Lindberg Farias, prefeito de Nova 
Iguaçu (RJ); Juana Nunes, mobilização e articulação de 
redes sociais do Ministério da Cultura (DF); Écio Salles, 
subsecretário de Cultura de Nova Iguaçu, com sua famí-
lia; Vladimir Palmeira, líder da passeata dos 100 mil con-
tra a ditadura militar, em 1968 (RJ); Cida Diogo, deputada 
federal (RJ); Tiago Borba, subsecretário de Valorização da 
Vida e Prevenção da Violência (RJ); Edson, do Cefet (RJ); 
Elicarlos (Japeri-RJ); Def Yuri, do Viva Rio (RJ); Alessandro 
Buzo (Itaim Paulista-SP); Marilda Borges (SP); Pêvirgula-
dez (Duque de Caxias-RJ); Pinah (Santa Teresa-RJ); Trutty 
(SP); Andressa Leite (Méier-RJ); Bruno Thomassin e Jane 
Thomassin (São Gonçalo-RJ); Numa Ciro (Santa Teresa-
RJ); Mirian Juvino (RJ); Terno e sua esposa, Enraizados-
SP (Parque Bristol-SP); Re.Fem (Duque de Caxias-RJ); 
Luciano Lyrio (Nova Iguaçu-RJ); Erivelton (Nova Iguaçu-
RJ); Jota Rodrigues, cordelista e xilogravador (Nova 
Iguaçu-RJ); e Dante (Mesquita-RJ).
E não poderia deixar de falar dos militantes e ativistas 
da comunidade: Dico, Short, Samuel, Suellen Casticini, 
Júnior, Guará, Kadu, Ualax, Léo da XIII, Kall, Átomo, Lisa 
Castro, Gil Torres, UR Clau e Marcela. Começamos cedo 
com a festa, que foi até altas horas da noite com shows de 
rap e apresentação do cordelista Jota Rodrigues, e termi-
nou com uma roda de samba, no melhor estilo periferia.
234 Enraizados: os híbridos glocais
235Estamos só no início
236
Um elefante branco 
nas mãos
O que separa as pessoas que alcançam seus objetivos 
das pessoas que não está diretamente relacionado 
com a habilidade de saber pedir ajuda na hora certa.
— Donald Keough
Dias depois da inauguração abrimos o Espaço Enrai-
zados para a comunidade. Usávamos o cineclube para 
exibir o campeonato carioca, por isso pessoas que não 
conheciam a cultura hip-hop passaram a frequentar 
o espaço por causa do futebol. Fizemos as exibições 
durante alguns meses, mas paramos porque alguns 
estavam abusando e o local era para ser familiar.
Estávamos muito bem equipados, mas também com 
muitas dívidas. Precisávamos de maneiras diferentes de 
obter recursos. Chamei alguns produtores de evento pra 
conversar. Além dos eventos de hip-hop queríamos fazer 
também outros tipos, dando opção para a comunidade 
curtir e conhecer a organização. A loja também era uma 
boa opção para gerar renda. Como tínhamos uma loja 
virtual, pensamos em integrar com a presencial. 
Falei com alguns artistas da Rede Enraizados e ofereci 
a loja para escoar seus produtos. Seria venda através de 
consignação, uma espécie de comércio solidário, para 
237Estamos só no início
nosso dinheiro circular entre nós. Fizemos uma faixa 
com programação fi xa do Espaço Enraizados, que come-
çava às terças-feiras.
Terça-feira
Mistureba: sarau de poesias num misto de músicos 
populares, rappers e poetas.
Quarta-feira
Samba de mesa: samba de mesa que começou com
o grupo Refl exo do Batuque e depois abriu para outros 
grupos de samba da comunidade.
Quinta-feira
Cineclube Enraizados: exibição de documentários
de curta e longa-metragens.
Sexta-feira
Charm soul black: o melhor do hip-hop internacional,
do charm e do soul.
Sábado
Raiz do hip-hop: o melhor do hip-hop nacional.
Domingo
Futebol no telão: a partir das 16h,fi nal do Cariocão.
A programação era permanente, além das atividades que 
aconteciam durante a semana. Alguém sempre queria 
fazer uma ofi cina, apresentação ou workshop no espaço. 
Emprestávamos toda a estrutura do Espaço Enraizados 
e não cobrávamos nem um real, o que fazemos até hoje. 
Estávamos confiantes de que com essa programa-
ção, e uma forte divulgação no bairro, a comuni-
dade abraçaria a ideia, e todos os nossos problemas 
estariam resolvidos.
Então o que parecia o paraíso se tranformou no nosso 
inferno particular. 
238 Enraizados: os híbridos glocais
Nossos pequenos problemas tomaram uma proporção 
gigantesca, uma enorme dívida se acumulava e a gente 
estava com aquele elefante branco nas mãos, sem saber 
o que fazer. Continuávamos a receber muitos convites e 
a participar das atividades dos parceiros, como o Favela 
Toma Conta, projeto realizado pela Suburbano Convicto, 
organização do Alessandro Buzo, fi liada a Rede Enraiza-
dos em São Paulo; apresentações para o Graal, projeto 
da Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Vio-
lência; o Dia da Abolição, projeto da Coordenadoria de 
Igualdade Racial; além dos encontros da Fase.
O Mistureba nunca se fi rmou enquanto evento. Con-
vidamos alguns músicos e poetas da cidade, mas eles 
não compareceram durante três semanas consecuti-
vas. Justamente na semana que não fi zemos o evento, 
eles começaram a ligar, querendo participar. O mesmo 
aconteceu com o Samba Enraizados e o Charm, só que 
no Samba e no Charm quem não aparecia era o público. 
Mais uma vez, na semana que decidimos parar com o 
evento o público bateu na porta, mas infelizmente não 
podíamos continuar com eventos que davam preju-
ízo. Enquanto de um lado as coisas iam mal, de outro o 
Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Mili-
tância) fazia muitos progressos. 
Uma epidemia de dengue assolava a cidade de Nova 
Iguaçu. Acionamos escolas particulares e públicas, 
associações de moradores e líderes comunitários para 
articularmos uma ação para mobilizar os moradores 
do bairro contra a dengue. Concluímos que a melhor 
forma seria uma passeata com as crianças das escolas 
públicas e particulares do bairro, distribuindo folhetos 
informativos, esbanjando a alegria da criançada e cha-
mando a atenção da população. Enquanto nos articulá-
vamos com as outras organizações para conversar com 
239Estamos só no início
as escolas, trabalhávamos em outros eixos. Estávamos 
empenhados em identifi car violações de direitos em 
nossa comunidade. 
Nós, do Cefam, começamos a nos reunir com mais frequ-
ência. Identifi camos que o direito de ir e vir dos morado-
res do bairro era violado tanto pelos comerciantes, que 
utilizavam as calçadas para expor seus produtos, como 
pelos motoristas, que estacionavam os carros em cima 
da calçada, o que inviabilizava a locomoção dos pedes-
tres. Eles tinham que disputar as ruas com os carros 
em alta velocidade, correndo risco de vida. No dia 10 de 
maio de 2008, eu, Lisa Castro, Léo da XIII, Guará e Júnior 
fomos para rua e fi zemos o documentário “Cefam: pelo 
direito de ir e vir”, em que entrevistamos alguns morado-
res que mostraram a sua revolta com a situação e fl agra-
mos algumas violações. 
Algumas semanas depois, esperávamos de cinco a oito 
escolas para a passeata contra a dengue, com cerca de 
50 alunos cada uma. Mas não sabíamos que havia uma 
espécie de rixa entre elas. Somente uma escola apare-
ceu, com seis alunos, o que causou grande decepção. 
O Dumontt resolveu adiar a passeata. Quando todos 
já tinham concordado que adiar seria a melhor opção 
naquele momento, chegou uma escola com quase 100 
crianças, carregando faixas, cartazes e folhetos. Fize-
mos a passeata, fi lmando todo o processo e encantando 
os lugares por onde passávamos.
Fizemos um documentário com as imagens captadas 
nesse dia chamado “Cefam: na luta contra a dengue”. O 
retorno da comunidade foi muito positivo. Distribuímos 
100 DVDs com o documentário, o exibimos no cineclube, 
e conseguimos centenas de acessos no Youtube.
240 Enraizados: os híbridos glocais
241Estamos só no início
242
Núcleo de mulheres 
do Enraizados: uma 
questão de gênero
Há dois tipos de pessoas: 
as que fazem as coisas e as que fi cam com os louros. 
Procure fi car no primeiro grupo: 
há menos competição lá. 
— Indira Gandhi
As meninas do Enraizados sempre me cobravam pelo fato 
de o Enraizados ser uma organização machista. Eu não 
tinha muito pra onde correr, minha explicação era sem-
pre a mesma: “Eu não posso criar um núcleo de mulheres 
porque eu sou homem, vocês têm que se organizar para 
tomar conta e ocupar o espaço de vocês na organização.”
A Lisa Castro já era bastante atuante no Enraizados, mas 
sozinha realmente era difícil conseguir muita coisa. Em 
2008, a Janaina Oliveira, mais conhecida no cenário hip-
hop como Re.Fem, começou a se aproximar do Movimento 
Enraizados, apesar de eu já a conhecer havia uns cinco anos 
e ela sempre participar das atividades da organização.
A Lisa Castro e a Re.Fem fazem parte de um projeto 
chamado “Rap de saia”. Elas se juntaram e idealiza-
ram o evento Donas da Arte, cuja primeira edição foi 
no dia 31 de maio de 2008. Nesse dia circularam deze-
nas de mulheres pelo Espaço Enraizados, participando 
de diversas atividades. Eu, Átomo, Dumontt e Guará 
somente carregávamos o pesado.
243Estamos só no início
O Donas da Arte nasceu para dar visibilidade à arte das 
mulheres, especialmente as de Nova Iguaçu, de qualquer 
faixa etária. O importante era ter um dom. O evento deu 
visibilidade pro trabalho dessas mulheres, permitindo 
que outras pessoas da comunidade admirassem suas 
artes, elevando a autoestima da mulherada. Aconteceram 
sete edições do Donas da Arte, que hoje se transformou 
no Núcleo de Mulheres do Movimento Enraizados, lide-
rado por Janaina Oliveira (Re.Fem) e Lisa Castro. A ideia é 
inserir discussões sobre a questão de gênero no dia a dia 
das pessoas que fazem parte da Rede Enraizados.
Financeiramente o Espaço Enraizados ia mal das pernas, 
mas socialmente estava indo muito bem. A partir de junho 
fechávamos as portas da organização para nos dedi-
car somente a escrever projetos. O simples fato de abrir 
o Espaço Enraizados gerava custos altos, por isso eu e 
Dumontt decidimos deixar os portões fechados enquanto 
nos dedicávamos à elaboração de projetos. Nessa época 
já havíamos nos comprometido com a Fase para fazer um 
encontro de juventude no Espaço, que rolou num astral 
superlegal. Participaram organizações de juventude que 
não eram necessariamente de hip-hop, como a Rede Funk 
Social, a Pastoral da Juventude, a Arte Jovem, os jovens 
griots, Anticinema e Com Causa.
Eu me sentia realizado toda vez que uma pessoa nova 
conhecia nossa sede, por isso organizei um churrasco no 
dia 28 de junho e convidei uma galera da Rede Enraiza-
dos no Rio de Janeiro. 
Como sempre, vieram pessoas de diversas partes do 
estado, mas algumas nunca haviam estado em Morro 
Agudo e marcaram presença nesse encontro. O DJ LP, 
o Eddi MC, que levou seu fi lho e a rapper Jamile, o que 
aumentou mais um pouco nossa rede. Compareceram 
também um pessoal novo de Mesquita e Campo Grande 
245Estamos só no início
que queriam conhecer o espaço, e os amigos de sempre: 
Mad, Nelinha, Pêvirguladez, Pinah, Slow da BF e Re.Fem, 
sem contar com os residentes e minha família – minha 
mãe e minhas tias que fi caram cuidando do rango.
A galera se identifi cou bastante com a biblioteca, muitas 
pessoas fi caram lendo durante o evento, que terminou 
às 22h com apresentações de rap de quase todos os que 
estavam presentes. A convite do secretário de cultura 
de Nova Iguaçu, Marcus Vinícius Faustini, participamos 
da Conferência de Cultura de Nova Iguaçu. Dividi a mesa 
com o próprio secretário e com a Ivana Bentes, diretora 
da Escola de Comunicação da UFRJ. Apesar de essa não 
ser nossaprimeira atuação numa Conferência de Cultura, 
sempre fomos bastante ativos na vida política da cidade, 
era a primeira vez na mesa com pessoas dessa infl uência.
246
Mil fi tas 
acontecendo
Quem não é contra nós é por nós.
— Marcos 9:40
Eu e Dumontt estudávamos muito para poder sair 
daquela situação fi nanceiramente incômoda. Estáva-
mos endividados com cartões de crédito e cheque espe-
cial, e até pegávamos dinheiro emprestado com nossos 
familiares para arcar com os compromissos do Movi-
mento Enraizados.
O Dumontt sinalizava que o caminho para sairmos dessa 
crise seriam os editais públicos, eu aceitava sua ideia, 
mas mesmo assim insistia em abrir espaço para even-
tos. Foi quando surgiu a ideia de fazermos o evento 
“Hip-hop (+)”, que durou até dezembro, contabilizando 
24 edições que aconteciam toda semana. Passaram pelo 
“Hip-hop (+)” os rappers Léo da XIII, Ultimato à Salvação, 
Poetas da BF, Fator Baixada, Realidade, Dudu de Morro 
Agudo, Marcio RC, BDO MCs, K.A.S, Estilhaço, Marcelo 
Comuna, Slow da BF, Wr Soul, DJ Pica Pau, Dom Black, 
Pêvirguladez e Sagat. Fizemos também algumas edições 
especiais como a do Encontrão e a de b. boys.
O “Hip-hop (+)” era um evento de produção coletiva. O 
artista era convidado, ou entrava em contato com a 
organização para fazer uma apresentação, e entrava 
247Estamos só no início
na programação do mês, que começou às sextas-fei-
ras. Fechávamos quatro artistas por mês, um para cada 
sexta-feira. O Movimento Enraizados se comprometia 
em fazer 10.000 fl yers com a programação mensal, o que 
daria 2.000 fl yers para cada artista e mais 2.000 fl yers 
para a organização divulgar.
Era o mesmo princípio das coletâneas. Se cada artista 
divulgasse seu próprio evento, estaria também divulgando o 
evento dos outros artistas. Além disso, a organização entre-
vistava o artista na semana do show e publicava a entre-
vista no Portal Enraizados, o que aumentava a rotatividade 
de matérias do portal. Fazíamos ainda e-fl yers que divulgá-
vamos na internet através de sites de relacionamento e do 
newsletter com mais de 60.000 e-mails válidos cadastra-
dos. A produção do dia fi cava por conta dos artistas.
Às vezes dava um desânimo muito grande, pois havia 
eventos em que ia apenas uma pessoa. Com o tempo 
percebemos que isso dependia muito do comprome-
timento de cada artista na divulgação e na produção 
do seu evento. Nem mesmo o mau tempo era capaz de 
impedir a realização de um “Hip-hop (+)”. Em paralelo 
aos eventos de rap a gente emprestava o espaço para 
grupos organizados e artistas da cidade. Foi como acon-
teceu o Fórum de Juventude Negra e a apresentação 
artística do Roberto Lara (músico e ex-secretário de 
Cultura de Nova Iguaçu), que trouxe um outro público da 
comunidade para dentro do Espaço Enraizados. Tenta-
mos também inserir o forró como opção. Era um evento 
que estava dando certo. As pessoas curtiam o lugar, o 
público do forró consumia as roupas de hip-hop, e come-
çamos a enxergar uma luz no fi m do túnel, mas infeliz-
mente o produtor do evento vacilou.
No terceiro dia de evento, quando o local deveria se fi r-
mar como o ponto de forró do bairro, o produtor não apa-
receu com o grupo e nem deu satisfação. Depois desse 
248 Enraizados: os híbridos glocais
dia foi um furo atrás do outro, até que numa noite o grupo 
que se apresentou cantava músicas pornográfi cas. Foi a 
gota d’ água. Terminamos o evento na hora e as últimas 
moedas do Enraizados se foram.
O Bruno Thomassin, cineasta francês, e sua esposa, 
Jane Thomassin, amigos de muitos anos, são pessoas 
envolvidas na minha vida, tanto pessoal quanto pro-
fi ssional, se é que conseguimos separar uma da outra. 
Quando os conheci, não lembro bem o ano, estávamos 
num bar em São Gonçalo, o Bruno fazia uma fi lmagem 
para uns camaradas dele que eu também conhecia, e 
nesse dia tive um embate ideológico com a Jane, mas 
logo depois já éramos grandes amigos.
Dia 8 de agosto foi a minha apresentação no evento “Hip-
hop (+)”. Muitas pessoas estiveram presentes, foi ines-
quecível. O Bruno fez um vídeo com depoimentos dos 
meus amigos e família. Fico emocionado toda vez que 
vejo. Neste dia até mesmo a primeira-dama, Maria Antô-
nia, esteve presente com sua mãe e fi lho, e num rápido 
bate-papo ela me informou que o edital para o Projovem 
Adolescente seria aberto em breve, e ela achava que a 
gente tinha o perfi l para executar o projeto. Como essa 
área não era minha especialidade, disse que falaria com 
o Dumontt. O Dumontt achou legal e começou a tra-
balhar no projeto do Projovem Adolescente, dentre as 
dezenas de outros que estávamos escrevendo.
Fomos convidados a participar de uma reunião que acon-
teceria em Brasília no dia 11 de setembro, em que se dis-
cutiria como seria a execução do Prêmio Cultura Hip-Hop 
– Edição Preto Ghóez, uma espécie de consultoria do 
governo com instituições nacionais e de referência den-
tro do hip-hop. O governo daria apenas uma passagem e 
diária, mas era necessário que o Dumontt também esti-
vesse presente. Começamos uma busca louca por outra 
249Estamos só no início
passagem, contactamos dezenas de pessoas, até que um 
dia ligamos para a Fase e eles atenderam o nosso pedido, 
conscientes de que era uma ação importante para a orga-
nização. Estavam na reunião o Nino Brown, o Fama, o Gil 
BV, o GOG, a Fabiana Menini, entre outros.
250
Articulação 
internacional
O auge do sucesso é o luxo de dar a si mesmo 
tempo para fazer o que se quer.
— Leontyne Price
A Escola de Música Eletrônica, uma organização sediada 
no bairro da Cerâmica, em Nova Iguaçu, estava com pla-
nos de fazer um curso de DJ, mas queriam ensinar com 
aparelhagem profi ssional e com ênfase no hip-hop, e 
vieram nos procurar. Queriam que nós assumíssemos 
a ofi cina na sede deles. Chamamos o DJ Soneca, da 
Cidade Alta, para ministrar as aulas.
Nessa mesma época, a Ana Massa, uma mineira gente 
fi na que estudava na França e estava no Rio de Janeiro 
fazendo uma pesquisa com grupos de jovens que traba-
lhavam com hip-hop, apareceu num sábado, dia da reu-
nião do Cefam, para nos pedir para acompanhar nossas 
atividades. Ela havia começado a fazer uma pesquisa com 
uma organização francesa chamada Talent et Develop-
ment e agora planejava fazer o mesmo no Rio de Janeiro.
Ana disse que havia passado por algumas organizações 
no Rio de Janeiro, mas não tivera sucesso. Na conversa 
com ela, estávamos eu, o Dumontt, o Kall, o Átomo e o UR 
Clau. O Dumontt não viu problemas em ela acompanhar 
as atividades, e inclusive orientou que acompanhasse o 
DJ Soneca na Escola de Música Eletrônica. Era lá o local 
251Estamos só no início
onde ela poderia ter mais sucesso nas pesquisas, porque 
além da ofi cina de DJ daríamos formação de ativismo e 
militância, um pequeno braço do Cefam no bairro vizinho.
Avisei que não poderia levá-la e apanhá-la todos os dias 
na Escola de Música Eletrônica. Meu tempo estava curto. 
Eu levaria naquele dia e depois ela teria que ir sozinha. 
Usei um termo típico de Minas Gerais para explicar onde 
era o lugar que iríamos naquele momento: “É logo ali.”
Andamos cerca de três quilômetros e a Ana já estava 
desistindo quando falei que realmente estava chegando. 
Acho que depois desse dia ela nunca mais foi a pé do 
Espaço Enraizados até a Escola de Música Eletrônica. 
A Ana estava toda semana conosco, e com o tempo ela 
começou a ir direto para a Escola de Música Eletrônica. 
Foi inevitável que entrasse para a rede também. Fez 
amizade com o DJ Soneca e com os alunos do curso, que 
também gostavam muito dela.
O Ecio Salles me convidou para participar do seminário 
Antídoto, em São Paulo. Este seminário é uma parceria 
entre o Grupo Cultural AfroReggae e o Itaú Cultural. Eu 
faria parte de um projeto chamado “Onda cidadã”, de 
que já havia participado no Rio de Janeiro. Esse ano o 
“Onda cidadã” estava inserido no Antídoto,para gerar 
um conteúdo mais informal e jovem.
Eu saí do Rio de Janeiro pensando que o evento não seria 
muito interessante, o que resultaria em textos com crí-
ticas bastante negativas da minha parte. Mas fi quei 
surpreso com a qualidade do projeto, com a riqueza de 
informações e com as maravilhosas e inspiradoras his-
tórias de vida que os participantes compartilhavam com 
o público, formado em sua maioria por universitários e 
estudiosos da área de ciências sociais – o que me deixou 
muito insatisfeito. Na minha opinião, o público deveria 
ser formado também por líderes comunitários.
252 Enraizados: os híbridos glocais
Foi nesse dia que ouvi falar do país Burkina Faso. Senti-
me um grande ignorante por não conhecer a história do 
país. Fiquei mais surpreso ainda com a história de vida 
do líder Koudbi Koala. Assisti ao documentário “Sete 
dias em Burkina”, de Carlinhos Antunes e Marcio Wer-
neck, em que contam parte da história de Koudbi.
Quando saí da sede do Itaú Cultural fui abordado por uma 
menina, estudante da UFRJ, que conhecia a mim e a his-
tória do Movimento Enraizados. Sua professora estava 
fazendo um estudo sobre nós, inclusive já havia nos feito 
algumas visitas. Começamos a conversar e falei do meu 
interesse pelo documentário que acabara de ver, ela 
disse que conhecia o Carlinhos Antunes e que poderia 
me apresentar a ele. Concordei na hora e fomos até ele.
Eu e Carlinhos trocamos algumas ideias. Contei um 
pouco sobre o Movimento Enraizados e ele me disse que 
estaria no Rio de Janeiro na semana seguinte. Se qui-
séssemos, poderíamos articular uma sessão do fi lme 
em Morro Agudo. Achei o máximo, na mesma hora liguei 
para o Dumontt, que adorou a ideia.
Quando cheguei ao Rio, fui rapidamente convidando 
alguns amigos para estarem presentes no dia da exibi-
ção do fi lme. Ainda teriam a oportunidade de conversar 
com o próprio Koudbi Koala, Carlinhos Antunes e Marcio 
Werneck. Foi um dia realmente construtivo. Participa-
ram do encontro eu, Dumontt, Bruno Thomassin, Cacau 
Amaral, Átomo, Re.Fem e Lisa Castro. 
Nossas conversas passaram pelo festival de cinema 
de Burkina Faso, o Fespaco, por técnicas de gravação, 
equipamentos, curiosidades sobre o país, entre outras 
coisas. Quando Koudbi e os outros que o acompanha-
vam foram embora, fi camos conversando eu, a Re.Fem, 
o Bruno Thomassim, o Cacau e o Dumontt e eu falei com 
253Estamos só no início
o pessoal do meu interesse em fazer um documentário 
sobre o hip-hop, mas não queria fazer um fi lme clichê, 
sem história ou com história repetida, eu queria algo 
novo. Apresentei então a proposta do fi lme “Mães do 
hip-hop”. A ideia de fazer esse fi lme surgiu a partir de 
uma conversa que tive com a doutora Numa Ciro, que na 
época fazia sua tese de doutorado. Ela me fez várias per-
guntas, uma delas a respeito do que minha mãe achava 
da minha trajetória no rap, e eu não soube responder. 
Fui dormir com a ideia na cabeça e sonhei com o fi lme. 
Acordei com ele quase pronto, inclusive já defi nidas as 
pessoas que participariam da produção. Todos fi caram 
interessados na empreitada. A conversa sobre o assunto 
durou alguns meses.
Três dias depois da visita de Koudbi Koala, recebemos 
aproximadamente 40 chilenos, de Santiago. Foram 
conhecer o Espaço Enraizados junto com a Fase. Faziam 
parte do projeto “Derechos e direitos”, e esse intercâm-
bio era muito importante para nós. Eles passaram tam-
bém pelo Setor BF, em Mesquita, e depois foram noutra 
favela do Rio de Janeiro. Demos uma volta com eles pelo 
bairro, os levamos na praça de Morro Agudo, na estação 
de trem, na farmácia, e depois fomos almoçar. 
Como de praxe, contamos a história do Movimento 
Enraizados. 
Muitos fi caram impressionados com a nossa estrutura, 
disseram que nossa vida era um sonho. Principalmente 
o Zerta e o José, que pensavam em morar no Brasil por-
que as coisas aqui pareciam mais fáceis para o hip-hop. 
Eu avisei que não era bem assim, quando tivesse um 
tempo eu contaria toda a trajetória do hip-hop, e como 
nós havíamos conseguido o que temos. Depois dessa 
correria fomos para Cabo Frio, para um encontro 
254 Enraizados: os híbridos glocais
internacional organizado pela Fase, em que cerca de 
200 jovens dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, 
Paraguai e Uruguai) mais o Chile participariam, durante 
quatro dias, de uma série de debates, painéis e ofi cinas, 
com o foco na exigibilidade de direitos. Além de parti-
cipar do evento a gente aproveitava para fazer nossas 
articulações e aumentar a Rede Enraizados.
Fomos apenas eu e Dumontt para Cabo Frio, porque já 
estávamos envolvidos com o projeto. Os militantes do 
Enraizados (Kall, Lisa Castro, Átomo e UR Clau) assumi-
ram o controle e fi zeram sozinhos o evento “Hip-hop (+)” 
no Espaço Enraizados, sem a nossa presença, o que na 
época não era comum. Hoje em dia as coisas já são bem 
diferentes, e o evento bombou.
Tudo estava legal, as ligações com a imprensa conti-
nuavam fi rmes. Estávamos trilhando um caminho de 
sucesso, articulações com o governo, com a imprensa, 
com a iniciativa privada e com a sociedade civil. Come-
çamos a pensar na possibilidade das articulações inter-
nacionais presenciais, mas dessa vez nós é que iríamos 
para outros países. Ainda não sabíamos como, mas já 
estava decidido que iríamos. E quando a gente decide 
uma coisa, ela acontece. 
Em uma conversa entre a Ana Massa e o Dumont, surgiu 
a ideia de fazer um projeto de intercâmbio virtual entre o 
Movimento Enraizados e a organização francesa Talent 
et Developement. O intercâmbio consistia em fazer uma 
música e um vídeo coletivos. A metodologia era simples. 
Escolheríamos juntos um tema, faríamos o beat no Bra-
sil e enviaríamos para os franceses. Todo o processo de 
produção da letra da música seria gravado e depois o 
Bruno Thomassin faria um fi lme.
255Estamos só no início
Na hora de executar, utilizamos uma metodologia dife-
rente da organização francesa. Decidimos que o Léo da 
XIII, que é da segunda geração de MCs do Movimento 
Enraizados, faria uma ofi cina de rap com dois meninos 
da terceira geração, o Kadu e o Júnior. Eles escreveriam 
juntos e o Léo também participaria da música.
Foi o Léo quem fez o beat. Fiquei muito feliz e orgulhoso. 
Vi que o cara que começou me vendo produzir música 
tinha evoluído e até me ensinava a usar alguns softwa-
res. Ele evoluiu também na maneira de escrever e cantar 
rap. Alguns garotos começavam a cantar infl uenciados 
por ele. O Léo tem uma maneira peculiar de ensinar a 
fazer rap, parece que ele semeia uma semente no cora-
ção da galera e muitos nunca mais param de cantar.
A organização francesa trabalhou de modo totalmente 
diferente. Eles se reuniram num grupo de 15 pessoas e 
conversaram sobre o Brasil, o que eles conheciam do 
Brasil. Depois fariam um rap em cima do tema escolhido. 
O tema do rap era “As nossas cidades”, Nova Iguaçu e 
Blanc Mesnil. Retrataríamos os problemas sociais e 
depois faríamos uma comparação entre as duas cidades 
e os dois países.
258
O pulo do gato
Qualquer homem pode alcançar o êxito 
se dirigir seus pensamentos numa direção 
e insistir neles, até que aconteça alguma coisa.
— Thomas Edison
Apesar de continuarmos no osso, sem dinheiro e cheios 
de dívidas, ainda assim executávamos vários projetos 
simultaneamente. Era bom fazer isso. Toda vez que eu 
pensava que perdi dez anos da minha vida trabalhando 
em algo de que não gostava, me empenhava mais nos tra-
balhos dentro da organização, mesmo que não ganhasse 
dinheiro com isso, mas chega um ponto que fi ca inviável 
e o dinheiro tem que vir de algum lugar. Somente no fi nal 
de 2008 as notícias boas começaram a chegar. Durante o 
ano pulverizamos cerca de dez projetos, para vários luga-
res, e, por incrível que pareça, aprovamos os dez. Nosso 
investimento em conhecimento começava a dar retorno.
Dentre os projetosaprovados estavam o Projovem Ado-
lescente (Ministério de Desenvolvimento e Assistência 
Social), a Biblioteca Enraizados (Casa da Moeda do Bra-
sil), ambos executados durante o ano de 2009; Festival 
de Hip-Hop VIII Encontrão (Fundo Municipal de Cultura), 
executado no início de 2010; o fi lme “Round one Morro 
Agudo X Comendador Soares” (Fundo Municipal de Cul-
tura); o Pontão de Cultura Digital (Ministério da Cultura) 
259Estamos só no início
e o Pontinho de Cultura (Prefeitura de Nova Iguaçu), rea-
lizados em 2010. Além dos outros projetos que executa-
mos sem recurso fi nanceiro.
Em dezembro começamos a contratar os funcionários 
que trabalhariam no Projovem Adolescente e na Biblio-
teca Enraizados. Como não queríamos qualquer pessoa 
trabalhando para nós, eu Dumontt começamos a trazer 
pessoas próximas e depois contratamos aquelas que 
tinham um perfi l parecido com o da organização. Fize-
mos imersão em que explicávamos o projeto que seria 
executado e falávamos sobre a organização. O projeto 
deveria se integrar à organização, não iríamos somente 
executar o projeto, nós viveríamos o projeto. De novo 
crescemos absurdamente.
A cada ano era mais difícil para nós, eu e Dumontt, traçar 
as metas, as atividades nos atropelavam, mas sempre 
fazíamos um esforço para colocar nossos pensamentos 
em sintonia. Fazíamos uma análise do ano que passara 
e defi níamos as metas para o seguinte, mesmo sabendo 
que iríamos bem além daquilo, era somente para ter uma 
direção. A organização que devia dinheiro a todo mundo 
conseguiu pagar todas as contas e ainda contratou 40 
pessoas durante o ano. A experiência de lidar com pes-
soas era nova pra mim, e se o Dumontt não estivesse à 
frente eu certamente não conseguiria. 
Conhecer pessoas é muito bom, mas lidar com elas no 
dia a dia é algo muito difícil que, sinceramente, não me 
agrada. Por exemplo, não gosto de falar duas vezes a 
mesma coisa, acho que quando as pessoas sabem de 
suas obrigações a cobrança é desnecessária. Mas esse 
pensamento só funciona na minha cabeça, o mundo real 
é diferente. É administrar, acompanhar, cobrar, elogiar, 
chamar a atenção e muitas outras coisas que têm que 
ser feitas a todo momento.
260 Enraizados: os híbridos glocais
O Dumontt tem o prazer, e o dom, de desenvolver algu-
mas atividades que eu não consigo, não gosto e não 
tenho vontade de aprender. Já eu gosto de fazer outras 
coisas que ele também não tem a mínima intenção de 
aprender. Acho que esse é o segredo de a gente traba-
lhar juntos há tanto tempo, alimentando a organização. 
Além da confi ança que temos um no outro.
Para executar o Projovem Adolescente, a equipe deve-
ria atrair os adolescentes para as atividades oferecidas 
pelo Movimento Enraizados. Eles deveriam ter entre 15 
e 17 anos, serem moradores do bairro e benefi ciários 
do Bolsa Família (programa social do Governo Federal). 
Como tínhamos que executar o projeto em dois polos, 
nos bairros Morro Agudo e Austin, tivemos que alugar 
outro espaço em Austin, maior do que o de Morro Agudo 
e com uma piscina enorme.
A gente fazia de tudo para atrair os adolescentes. Eu 
mesmo fi z apresentações no Espaço Enraizados e em 
outros lugares onde havia meninos e meninas com o 
perfi l do projeto. Até mesmo as ofi cinas que seriam exe-
cutadas deveriam chamar a atenção dos adolescentes. 
Decidimos colocar ofi cinas de DJ, ministrada pelo DJ 
Soneca, de cinema, Bruno Thomassin, de rap, pelo Léo 
da XIII , e de jornalismo, pela Flávia Ferreira. 
No mês de abril começamos as fi lmagens para o fi lme 
“Mães do hip-hop”. Foi uma correria louca, grava-
mos tudo e editamos em um mês. A equipe – Dumontt, 
Re.Fem, Cacau Amaral, Bruno Thomassin, Felipe Fer-
reira e eu – adorava trabalhar nesse projeto. Marcáva-
mos as gravações com antecedência, pra não pegar as 
mães de surpresa, e elas arrumavam uns comes e bebes 
pra gente. Toda fi lmagem tinha comidinha pra galera.
261Estamos só no início
Cada um tinha uma função específi ca nas fi lmagens. O 
Bruno era responsável pela fotografi a, a Re.Fem e eu 
estávamos na direção e no roteiro, o Cacau como auxi-
liar de fotografi a, Felipe Ferreira técnico de som e o 
Dumontt na produção. No meio do projeto o Dumontt já 
estava na fotografi a e eu e a Re.Fem captando o som. No 
fi nal éramos eu e Re.Fem dirigindo a edição, e o Bruno 
editando. Foi um processo cansativo, mas muito impor-
tante. O fi lme pronto fi cou maravilhoso. O Bruno ainda 
legendou para francês.
Além de pegar pesado no fi lme “Mães do hip-hop”, o 
Bruno Thomassin ainda fazia da ofi cina de cinema uma 
das que os adolescentes mais gostavam. Lembro que o 
Bruno fi cou um pouco inseguro na hora de aceitar o con-
vite para dar a ofi cina. Como ele é francês, achou que 
o idioma pudesse prejudicar o entendimento das aulas, 
mas o Bruno é o francês mais carioca que eu já conheci. 
Um fato legal que aconteceu durante a ofi cina de cinema 
foi a TV Brasil fazer uma matéria com o Bruno justa-
mente porque o ano de 2009 foi o ano da França no Bra-
sil. Todo francês que eles conheciam eram cheios da 
grana e faziam um trabalho bem burocrático. O Bruno 
seria um contraponto, um francês que trabalhava na 
periferia da periferia.
O Bruno preferiu fazer a matéria no Espaço de Aus-
tin, assim os adolescentes poderiam ver a semelhança 
entre os equipamentos da TV e os que eles usavam nas 
ofi cinas, além das técnicas, que eram as mesmas que 
eles aprendiam na ofi cina. A garotada achou o máximo. 
Enquanto os profi ssionais faziam a matéria para a TV 
Brasil, eles faziam a matéria para a TV Enraizados e 
ainda tiraravam dúvidas com a galera da televisão.
262 Enraizados: os híbridos glocais
Outra ofi cina que no início eu achei que os adolescentes 
não iriam aderir era a de jornalismo, mas eles se interes-
saram bastante e essa foi uma das mais frequentadas, 
com menos evasão. Parecia um sonho, por causa do Pro-
jovem Adolescente cada vez mais gente frequentava o 
Movimento Enraizados, e aos poucos essas pessoas se 
envolviam também com a organização.
263Estamos só no início
264
Nossa odisseia
pela Europa
Viajar é descobrir que todas as pessoas estão erradas 
a respeito dos outros países.
— Aldous Huxley
Desde que meu disco fi cou pronto, em abril de 2008, eu 
tinha planos de fazer o lançamento fora do país. A nossa 
rede já tinha uma grande articulação com países como 
Colômbia, Chile, Portugal, Finlândia, Estados Unidos, 
Japão, França, Alemanha, Espanha, México, Angola, 
Moçambique e Argentina, mas não sabíamos se estáva-
mos preparados para essa nova odisseia.
Eu, o Dumontt e o Kall fazíamos um curso de inglês no 
Brasas de Nova Iguaçu, um dos melhores, conseguimos 
bolsas de estudo através de uma articulação. Nós já sabí-
amos que precisávamos dominar outros idiomas para 
diminuir cada vez mais o contato com os intermediários. 
Quando a Ana Massa se despediu de nós, lembro que ela 
fez uma cara de que nunca mais nos veríamos, e eu disse: 
“Tchau, Ana, a gente se vê na França.” Ela achou engra-
çado o que eu disse e começou a rir. Eu então usei a céle-
bre frase do Racionais MCs: “Pode rir, mas não desacre-
dita, não!” Ela falou que botava fé, e rimos juntos.
265Estamos só no início
Até que um dia o DJ Soneca chegou ao Espaço Enraizados, 
acho que isso em fevereiro ou março de 2009, dizendo que 
estava a fi m de ir para a França, tinha contatos por lá. Lem-
bro como se fosse hoje, num dia ensolarado, ele chegou 
meio desastrado querendo falar comigo:
— Dudu, cê tá ocupado?
— Não, fala aí!
— Cara, tô com uns contatos na França. O que tu acha 
de irmos pra lá?
— Acho legal, por quê? Você quer ir?
— Sim, quero!
— Então vamos!
Ele começou a rir, e eu também. Até que o surpreendi: 
“Eu tô falando sério. Tá a fi m de ir? Ele deu uma gague-
jada e respondeu:
—Claro que tô, mas como vamos?
E eu disse:
— Essa parte você deixa comigo.
Ele voltou para darofi cina de DJ e eu fui conversar com 
o Dumontt a respeito da viagem que estava decidido a 
fazer. O Dumontt estava ocupado com a prestação de 
contas do Projovem e não deu muita atenção quando falei 
com ele a primeira vez, somente concordou como se eu 
estivesse dizendo pra ele que nós íamos no bairro vizinho. 
Perguntou para quando eu estava planejando a viagem, 
respondi que não sabia ainda, o mais rápido possível.
Lembrei que o Gil BV, do Piauí, havia conseguido passa-
gens aéreas para a França através do edital do Programa 
de Intercâmbio e Difusão Cultural, do Ministério da Cul-
tura. Entrei no site para ver o edital, baixei e no mesmo 
instante comecei a escrever o projeto, antes mesmo de 
acionar a Rede Enraizados na França pra saber a possi-
bilidade de irmos em maio, como o edital sugeria.
266 Enraizados: os híbridos glocais
A ideia era fazer um intercâmbio presencial do projeto 
Iguaçu-Mensil, dando ofi cinas, palestras, workshops, 
shows e produzindo um evento em parceria com a organi-
zação Talent et Developement. Como a equipe que traba-
lhava comigo no meu disco, DJ Soneca e Léo da XIII, tam-
bém estava envolvida no projeto de intercâmbio virtual 
Iguaçu-Mensil, era tranquilo levá-los para dar continui-
dade ao projeto, promovendo um intercâmbio presencial.
Quando boa parte do argumento já estava preparado, 
comuniquei ao Bruno Thomassin, que é francês, estava 
envolvido na primeira parte do projeto e também iria 
para a França em maio, que estávamos escrevendo um 
projeto para viajar para lá, e que eu pretendia fazer uns 
shows além do projeto Iguaçu-Mesnil e gostaria de con-
tar com ele para me ajudar na articulação e para quebrar 
a barreira do idioma. Ele, como sempre, topou na hora. 
Depois de acertado com o Bruno, liguei para Ana e contei 
a novidade. Ela fi cou muito feliz, disse que nos ajudaria 
em Paris e começou a articular com a Talent et Develope-
ment para que nossa passagem por lá fosse produtiva.
O Bruno, por sua vez, conversava com a Rute – sua amiga, 
que trabalha numa associação chamada MJC, na cidade 
de Nancy – sobre a possibilidade de fechar shows por lá. 
Ela disse que tentaria arranjar, mas já era quase certo de 
nós tocarmos em maio na MJC. Se nós fôssemos pode-
ríamos fi car num apartamento da MJC exclusivo para os 
artistas que se apresentam. Terminei de lapidar o pro-
jeto e enviamos para o Ministério da Cultura. 
Fui falar novamente com o Dumontt que já havia man-
dado o projeto, ele perguntou se eu precisava de alguma 
ajuda, estava muito envolvido com a prestação de con-
tas do Projovem Adolescente e com a faculdade, quase 
não tinha tempo. Eu pedi que, se desse, seria bom ele 
267Estamos só no início
ajudar na articulação política. Pouco tempo depois 
recebi a notícia de que o projeto estava aprovado. Todos 
deveriam providenciar o passaporte e os outros docu-
mentos solicitados.
O Dumontt e o Léo da XIII resolveram esse problema rápido, 
eu ainda precisava do certifi cado de reservista. Fui na 
Junta Militar dar entrada no documento e só depois bus-
quei o passaporte. A situação do Soneca era pior do que 
a minha. Ele não havia se recadastrado na Receita Fede-
ral e seu CPF estava inválido. Por pouco ele não conseguiu 
resolver essa pendência a tempo de viajar.
Quando estava tudo certo com o governo, comuniquei ao 
Dumontt que compraria nossas passagens. Ele pergun-
tou em que dia iríamos, eu disse dia 31 de maio. Ele se 
assustou, a data da viagem estava muito próxima, e per-
guntou quanto tempo fi caríamos na França. Quando eu 
respondi trinta e cinco dias, ele se assustou novamente. 
Era muito tempo fora. O Projovem consumia muito o 
nosso tempo. Além disso, ele cursava administração na 
UFRRJ, como poderia fi car 35 dias longe da universidade?
De qualquer modo, Dumontt disse que tentaria resolver, 
inclusive pediu que eu comprasse as passagens. Em cima 
da hora a Rute confi rmou um show na MJC no dia 29 de 
maio, comprei a passagem para dia 25. Quando o Dumontt 
comunicou aos professores que fi caria fora da faculdade 
por mais de 30 dias porque iria pra França, todos libera-
ram, pediram inclusive presentinhos, mas disseram que 
ele deveria estudar. Voltaria em época de provas.
Soube que o governo francês mandava de volta todos 
os brasileiros que chegavam a Paris. Liguei novamente 
para a agência onde eu havia comprado a passagem e a 
atendente me orientou a fazer um seguro para cada pes-
soa que fosse viajar comigo. Pesquisei na internet e vi 
268 Enraizados: os híbridos glocais
que realmente o governo francês solicitava o seguro, um 
documento da prefeitura da cidade onde fi caríamos, a 
reserva num hotel e um cartão de crédito internacional.
Eu fi quei preocupado, como pagaria o seguro? A gente 
não tinha grana pra isso. Liguei para o Ministério da Cul-
tura e perguntei se poderia pagar o seguro com dinheiro 
do governo. Eles responderam que sim, esta condição 
estava inclusive no edital. Fizemos os seguros, falei com 
a Rute e com a Ana sobre a possibilidade de conseguirem 
a carta da prefeitura, e fui ao banco pedir ao meu gerente 
um cartão internacional.
Graças a Deus estava tudo dando certo, até que a irmã 
do Léo da XIII foi até o Espaço Enraizados saber sobre 
a viagem. Ela me questionou, fez muitas perguntas, 
estava preocupada com o irmão. Eu tentei acalmá-
la, disse que apesar de o Léo já ter 22 anos estava sob 
minha responsabilidade. Eu jamais deixaria ele passar 
difi culdade. Essa era uma oportunidade única pra ele. 
Então eu disse: “Tem certeza que você quer privar ele 
disso?” Ela disse que não e pediu pra eu cuidar dele. 
Sabia que o Léo fi caria irritado quando eu contasse que 
a irmã dele estivera no Espaço Enraizados. Pedi que ela 
mesmo contasse e explicase que só falou comigo porque 
estava preocupada. Esteve lá para saber mais, já que ele 
não falava em casa.
Preparamos muito material para a viagem à França. 
Além de várias cópias do meu disco, levamos muitas 
blusas do Enraizados. Mas esperávamos maior retorno 
do fi lme “Mães do hip-hop”, que estava pronto e com 
legendas em francês. Então no dia 25 de maio nós quatro 
fomos pela primeira vez para a França, sendo que para o 
Léo da XIII e o Soneca era ainda mais emocionante, era a 
primeira vez que os dois viajavam de avião.
269Estamos só no início
Quando chegamos ao aeroporto Charles de Gaulle, em 
Paris, a Ana Massa nos esperava, junto com a Anne, que 
é advogada. Se houvesse algum problema na imigração 
a Anne resolveria, era o que nós esperávamos que ela 
fi zesse. Foi ela também quem nos levou para a estação 
de trem Gare de l’Est. Passaríamos os primeiros 14 dias 
em Nancy, cidade que fi ca a uma hora e meia de Paris, 
onde a Rute estava articulando alguns shows para nós.
Todas as pessoas que conhecemos em Nancy são ami-
gas do Bruno e da Jane Thomassin. Nos primeiros dois 
dias passeamos pela cidade, conhecemos o centro his-
tórico, fomos a um restaurante árabe, fi zemos compras 
no supermercado, até que chegou o dia do show na MJC, 
29 de maio. O combinado foi que faríamos a apresenta-
ção e depois o fi lme “Mães do hip-hop” seria exibido. O 
Bruno me apresentou ao Henry, um senegalês, de apro-
ximadamente 1,80m, que toca pandeiro com maestria, e 
eu o convidei pra participar do meu show. 
A ideia era o Henry entrar tocando pandeiro no meio da 
música “Não presto”. Ensaiamos algumas vezes, em 
nenhuma deu certo, mas mesmo assim decidi colocá-lo 
no show. Na hora que cantávamos a segunda parte da 
música, o Soneca parou o beat e o Henry entrou tocando 
o pandeiro. Eu continuei rimando, foi emocionante, 
nunca tinha experimentado fazer algo assim nas minhas 
apresentações. O público foi à loucura, realmente foi 
muito emocionante.
Quando fomos assistir ao fi lme “Mães do hip-hop”, em 
vez de olhar pra tela fi quei reparando na reação das pes-
soas para sentir se o fi lme passava a mensagem que que-ríamos. Quando terminou, as pessoas vieram nos cumpri-
mentar, e reparei que somente depois de assistir ao fi lme 
elas haviam entendido a proposta do Movimento Enraiza-
dos. O fi lme cumpria o seu papel até mesmo noutro país.
270 Enraizados: os híbridos glocais
Depois que cantei não vendi muitos discos, mas logo 
que o fi lme acabou a galera comprou uns discos e até 
autografei alguns. O bom era que o disco, que custava 
R$6 no Brasil, era vendido por €6 na França. Depois que 
cumprimos a agenda do show, o Bruno nos levou para 
conhecer um casal de amigos, Hiogy e Vivane, e suas 
fi lhas Mimi e Fujiko. 
Dias depois conhecemos o Poeta, um ótimo músico, que 
faz parte de algumas bandas da cidade e nos convidou 
para fazer uma participação num show do Atomic Kids, 
uma banda de rock liderada por ele, que faz umas inter-
venções com rap. No dia 31 de maio quando acordamos, 
alguém ligou para o Bruno perguntando se os amigos 
brasileiros já haviam chegado. Ele respondeu que sim e 
perguntou o motivo da pergunta. O interlocutor explicou 
que um avião da Air France que saiu do Rio de Janeiro 
com destino a Paris havia caído no oceano. O Bruno 
disse que nós já estávamos na França há alguns dias, e 
desligou o telefone.
Quando ele me contou o que havia acontecido lembrei 
que nós estaríamos nesse voo, a sorte é que a Rute tinha 
confi rmado o show do dia 29 de maio, por isso comprei 
a passagem para o dia 26, e não para o dia 31, como já 
estava defi nido. Deu-me uma sensação ruim. Contei 
para o Dumontt e o Léo, ambos não fi caram muito preo-
cupados, mas quando contei para o Soneca, ele não con-
seguia acreditar que pudesse ser verdade.
Nossa passagem por Nancy estava sendo muito mar-
cante. A vontade e a disponibilidade de conhecer uma 
nova cultura nos dava a oportunidade de participar de 
atividades que víamos apenas em fi lmes, como, por 
exemplo, um piquenique. Fizemos várias amizades em 
Nancy e gostamos muito de ter passado por lá, mas no 
dia 9 de junho tínhamos que ir para Paris começar o pro-
jeto com a Talent et Developement. 
271Estamos só no início
A Ana Massa foi para a casa de um amigo e nos empres-
tou seu apartamento, que é superpequeno, mas aco-
modou cinco adultos (eu, Soneca, Dumontt, Léo da XIII 
e Bruno) por mais quatorze dias. Além de fazer a articu-
lação e produzir várias atividades de que participamos, 
a Ana, a Anne e a Bettina nos proporcionaram momen-
tos únicos. Fazer um piquenique no canal de Lurc, outro 
piquenique em frente ao museu do Louvre, depois ir ao 
Louvre, passear pelas margens do rio Sena, fazer um 
show num Squat e, é claro, conhecer a torre Eiffel.
Na primeira vez que estivemos em Blanc Mesnil conhe-
cemos a sede da Talent et Developement, uma sala na 
sede de outra organização do governo chamada La Mai-
son des Tilleuls. Neste dia somente vimos o local, Mar-
camos a ofi cina de DJ, a apresentação do fi lme “Iguaçu-
Mesnil” (sobre o intercâmbio virtual), e um rápido 
bate-papo com a juventude local. No início a Ana fi cou 
um pouco preocupada. Ela não poderia nos acompanhar 
no dia a dia, tinha que trabalhar. Nos ensinou a andar de 
metrô e de trem, e a partir daí começamos a transitar 
sozinhos pelas ruas de Paris.
No dia 13 de junho começaram as gravações de rap nos 
estúdios da Talent et Developement. A Ana e a Anne ten-
taram organizar um pouco a ordem da gravação, mas 
eram muitos meninos e todos queriam gravar conosco. A 
gente chegou no estúdio e começou a escrever as letras 
de rap. O Léo da XIII queria fazer som com todo mundo, 
eu ia na energia dele e as músicas saíam muito boas. 
Funcionava mais ou menos assim: a gente chegava às 
10h, cinco garotos e garotas queriam gravar conosco. 
Escolhíamos um tema; o Léo fazia 16 linhas, eu fazia 16 
linhas e os garotos franceses deveriam fazer também 
as 16 linhas, mas eles não tinham esse padrão, o que 
difi cultava bastante. Depois das letras escritas a gente 
272 Enraizados: os híbridos glocais
273Estamos só no início
274 Enraizados: os híbridos glocais
275Estamos só no início
276 Enraizados: os híbridos glocais
gravava, sem mesmo ter decorado a letra. E após a gra-
vação, começávamos a escrever outra letra pra gravar 
com outro cara.
Fizemos o som “Respeito”, com uma garota chamada La 
Peste, que fi cou muito bom, na letra, no beat e na levada. 
A música está no Portal Enraizados (www.enraizados.
com.br) disponível para download.
Respeito
Léo da XIII
Com maior respeito tá ligado parceiro, direto do Rio 
de Janeiro, Léo da XIII e Dudu de Morro Agudo, tâmo 
envolvido aqui na Europa com a La Peste, se liga
como é que é.
Eu não gosto de quem leva e traz meu nome,
falar de mim pelas costas,
isso é coisa de quem não é sujeito homem
passando fome, sonhando com a Cherokee
tem uma Preta do lado,
mas quer tá casado com a Kelly Key
Super rimador, MC, direto da favela
história e fi cção emociona quem vive de novela
a vida é bela né truta e curte mais quem tem
não quem acorda com o galo cantando e pega o trem
vai vendo bem, isso daqui não é viagem
é Léo da XIII no mic com a trilha inspirada no Sabotage
em alta voltagem, nem por isso de gloc
não sou perfeito, meu defeito fez meu hip-hop
não por ibope, por amor, assim é verdadeiro
visão artística no mundo, quem não quer dinheiro?
nem pagodeiro, nem roqueiro, nem superstar
apenas um moleque pele parda que veio pra fi car
Enquanto o sol brilhar e a lua aparecer
enquanto o dom permanecer, meu rap te envolver
277Estamos só no início
eu vou, e não importa onde eu vou vagabundo
não sou o dono da verdade. Filho do dono do mundo
Dudu de Morro Agudo
Eu vi oportunidade onde ninguém encontrava
porque eu passei pela cidade que ninguém habitava
eu encarei o leão de frente e ninguém acreditava
que eu sairia de pé, enquanto ele se arrasava
sou vencedor e já provei mais de uma vez
porque eu driblei o terror e acenei pra vocês
o neguinho conquistou, o inimigo é freguês
a favela tá atuando e dispensando os dublês
sou da Baixada, cria da periferia
que cria melodia e realiza um sonho por dia.
Geral dizia: - Esses malucos são quente!
A mente tá carregada, são mais de trinta no pente
e consequentemente poesia vira prosa
o rap sai da gente a cento e vinte no corsa
a gente está contente e minha vida é a prova
de que a gente é que cava a nossa própria cova.
Essa letra foi feita como uma espécie de desabafo, para 
mostrar pras pessoas que dá pra virar o jogo. É uma letra 
que se relaciona com superação, por mais que você faça 
correto, nunca vai agradar a todos. Sempre haverá uma 
âncora querendo te levar pra baixo ou te deixar estag-
nado em algum lugar. A saída é seguir o seu caminho, 
fazer aquilo que você acredita, realizar sonhos, essa é 
a meta. Se você hoje está por baixo e estão pisando em 
você, não desista. A roda da vida gira o tempo todo, e 
mais cedo ou mais tarde você vai estar em cima. É como 
a história do Enraizados ou de vários brasileiros.
Eu me sentia muito bem na França. Desde que cheguei 
sempre fui muito bem tratado e as pessoas se esfor-
çavam para poder ajudar e agradar. Talvez fosse por-
que já tivéssemos amizade com algumas pessoas, ou 
278 Enraizados: os híbridos glocais
simplesmente por sermos estrangeiros, as pessoas 
queriam estar sempre perto de nós. Ali eu percebi que 
nada é igual a um intercâmbio presencial. Eles nos leva-
vam pra almoçar, arrumaram um show para fazermos no 
estádio de Blanc Mesnil, trouxeram beats para gravar-
mos. Além da troca de ideias, a parte mais legal.
O DJ Plays deu um mixer que custa R$3.000 para o DJ 
Soneca horas depois de o conhecer, a Bettina – que é 
argentina e trabalha num restaurante dentro do museu 
do Louvre – conseguiu que nós entrássemos de graça 
no museu e ainda arrumou uma comidinha pra nós no 
restaurante onde trabalhava, a Anne conseguiu comida 
e passagem de metrô para nós durante vinte e um dias.
Eu e Dumontt éramos os piores alunosno curso de inglês, 
porque estávamos sempre envolvidos com alguma ati-
vidade do Enraizados e não tínhamos muito tempo para 
nos dedicar aos estudos. Mas foi justamente o nosso 
inglês que aguentou a barra na França. Era uma salada 
de idiomas incrível. A Bettina falava espanhol e francês, 
a Ana português e francês, a gente falava inglês e portu-
guês e, como diz o Dumontt, no fi nal de tudo o que salvou 
mesmo foi a linguagem de sinais.
Uma vez demos uma volta pelo bairro 212, e conhecemos 
uma organização muito legal, onde passamos o fi lme 
“Mães do hip-hop” para várias crianças. A intenção era 
exibir o fi lme para adolescentes, mas naquela região 
existe uma rixa entre bairros e os adolescentes não apa-
receram, somente as crianças assistiram. Na hora do 
bate-papo, muitos deles nem prestaram atenção, mas 
alguns , especialmente duas meninas chamadas Fanta, 
que fi zeram várias perguntas como essa: “Como vocês 
dizem que são pobres e têm casas tão bonitas?” E a 
gente respondia: “Nossa casa está em obras há mais 
de 20 anos.” Elas riam e faziam outra pergunta ainda 
mais engraçada, até que chegaram à pergunta que elas 
279Estamos só no início
queriam fazer desde o começo. Apontando para o Léo 
da XIII disseram: “Vamos fazer uma pergunta anônima. 
Ele é casado?” Todo mundo riu, elas tinham uns 8 anos 
de idade. Como o Léo é pequeno, elas achavam que ele 
era criança e se encantaram com ele, que respondeu o 
seguinte:“Sim, sou casado e tenho uma fi lha quase da 
tua idade.” Nesse momento todo mundo riu ainda mais.
Nossa passagem pela França era intensa, a gente quase 
não dormia. Pegamos uma época boa, no verão, onde o 
sol nascia às 5h e só ia embora às 22h, então quando 
dava 22h achávamos que ainda eram 18h, e entrávamos 
pela madrugada até perceber que o sol estava nascendo 
novamente. O fuso horário nos deixou malucos. Sem-
pre que dava ligávamos para o Espaço Enraizados para 
saber como estavam as coisas por lá sem nós. Sabia que 
quando chegássemos ao Brasil trabalharíamos em tri-
plo. Não sei como o Dumontt faria as provas na facul-
dade. Ele sequer havia encostado a mão nos livros, nos 
35 dias que passamos na França.
Eu ligava com frequência para a minha família, que es-
tava bastante preocupada com todos nós desde que o 
avião da Air France caiu, no dia 31 de maio. No mês de ju-
nho um monte de aviões caiu pelo mundo afora. Toda vez 
que passava esse tipo de notícia na televisão fi cavam 
bem apreensivos na minha casa. Sempre que eu e o Léo 
ligávamos para o Brasil falávamos também com nossas 
mulheres, ele com sua esposa, a Kelly, e eu com a minha 
namorada, a Fernanda Rocha.
Tinha dias que o Léo fi cava pensativo num canto, outros 
ele nem saía da cama. Achei que ele estava entrando em 
depressão, pensei que pudesse ser saudades da mulher 
e da família. Convidei ele pra fazer uma letra de rap para 
as nossas mulheres. Escrevemos, então, a letra abaixo, 
“Pras pretas”, que teve a participação de Hallima e Amel, 
cantoras francesas de R&B.
282 Enraizados: os híbridos glocais
Pras Pretas
Léo da XIII
Difícil imaginar como seria
um cara como eu se eu não encontrasse um dia
alguém como você, preciso te dizer
Preta, “mó” saudade de você
eu preciso te escrever, sei lá, desabafar
entre palavras, só uma pode me confortar
te amo, é você que eu clamo
quando eu deito na cama é você que eu chamo
lembro quando a gente se encontrou pela primeira vez
um beijo seu arrancando a minha timidez
no seu olhar enxerguei o começo de uma nova vida
passo contigo na rua, “as mina” duvida
”- O que esse cara tem? Ela é demais pra você!”
quer saber, sou romântico sim também curto lazer
vinte quatro horas de prazer, eu e você minha Preta
te declaro amor eterno através dessa letra
Hallima e Amel 
La femme de sa vie
Cette fl amme qui n’fait que d’agrandir
Fonder une famille
Finir ensemble réunies
« Saodadje » ma promise x 2
Carinho, Carinho
Notre enfant sera mon cado
Dudu de Morro Agudo
Cê sabe que eu te amo né preta, nem preciso falar
Se a gente conta nossa história eles vão duvidar
às vezes eu não tinha um “din” pra “nós” se divertir
e você ainda conseguia me fazer sorrir
eu boladão, travado, cheio dos esquemas
e você lado a lado resolvendo tudo quanto é problema
tem gente que ainda duvida do nosso amor
283Estamos só no início
mas um dia eles aprendem, cê vai ver,
o tempo é professor
sorte grande pra dois amantes
o destino garante e a gente segue adiante
constante, no fl uxo que a vida levar
sem luxo, só tendo o bastante pra gente se amar
você é a Preta mais linda que já se ouviu falar
as outras se contentem com o segundo lugar
porque amar faz mais sentido com você
pode esperar porque tem muita coisa boa pra gente viver.
Essa letra fi cou muito boa também, tem uma energia 
especial e de lá da França mesmo a gente já disponibili-
zou na internet. As garotas do rap no Brasil adoraram o 
nosso som. Mas a letra que eu mais gostei de fazer foi a 
de “Reencontro”, que eu fi z com a Amel. Parecia que eu 
estava em transe quando escrevi. Consegui passar para 
o papel tudo o que estava sentindo lá:
Reencontro
Dudu de Morro Agudo
Não importa o idioma e nem mesmo importa o país
O que importa é quem a gente ama e o que faz a gente feliz
Amor à primeira vista são amizades que a gente conquista
E a cada dia que eu passo em Blanc Mesnil,
cresce mais a minha lista
Quando rolar o “hasta la vista”
meu coração vai partir ao meio
e quando eu voltar ao Brasil ele vai se refazer, eu creio,
tem gente que dá valor a coisas que não têm valor
e não dá o mínimo valor às amizades que conquistou
Cê entende? É um lance meio espiritual
É bem mais do que a cor da pele, vai além do material
284 Enraizados: os híbridos glocais
Isso não sai no jornal, você nunca vai ver na TV
E a playboyzada por mais que estude,
eles nunca vão aprender
Que foi um grande prazer conhecer e estar com você
Periferia é periferia, provei na fonte mais uma vez
Parecia que eu sentia a energia que iria rolar aqui
Consegui achar semelhanças entre Morro Agudo e 
Blanc Mesnil
Enquanto estivemos na França, passamos por quatro 
casas, a última foi a casa de Chong e Marie Pierre. Eles 
são ótima gente. Viveram no Brasil tempos atrás, o Bruno 
falou que o Chong foi o engenheiro-chefe que fez a linha 
do trem ou do metrô do Rio de Janeiro. O Chong quis nos 
agradar de todas as formas. Abriu os melhores vinhos e 
champanhes, inclusive teve uma história muito engra-
çada, pois a gente não conhecia esse tipo de bebidas. 
Um dia o Chong abriu uma garrafa de champanhe que 
não sei qual é o nome, só sei que era bem famosa, por-
que ele fez uma propaganda enorme antes de abrir a gar-
rafa, colocou na mesa junto com algumas comidas fi nas 
e um vinho também muito fi no. Tinha todo um ritual pra 
comer o que no Brasil a gente chamaria de “tira-gosto”.
Toda casa em que o Léo da XIII chegava ele se tornava 
o xodó da família, e na casa do Chong não foi diferente. 
A Marie Pierre sempre tentava agradar o Léo de alguma 
forma. Ele sempre tinha que estar na mesa conosco 
senão tínhamos que ir buscá-lo. Eu não queria beber o 
champanhe, mas o Chong fez tanto comercial da bebida 
que não pude recusar, ele poderia fi car triste comigo. 
Quando ele encheu a minha taça, bebi e fi z uma cara 
como se aquele champanhe fosse a melhor coisa que 
eu já tinha bebido em toda a minha vida. Ele nem preci-
sou perguntar o que eu tinha achado, só pela minha fei-
ção deduziu a resposta. Ao encher a taça do Léo da XIII, 
285Estamos só no início
foi sensacional, o Léo bebeu, a cara que ele fez foi a de 
quem estava bebendo água. O Chong então perguntou o 
que ele tinha achado da bebida. O Léo respondeu: “É né? 
Boazinha.” E novamente fez cara de que estava bebendo 
uma coisa qualquer, tipo um refrigerante Simba. Foi o 
limite pra todo mundo mudar de assunto antes que o 
Chong tivesse um troço. 
Depois que exibimos o fi lme “Mãesdo hip-hop” na pre-
feitura de Blanc Mesnil nosso último compromisso era 
produzir e participar da Festa das Associações, o que 
foi enriquecedor para todos nós, uma produção nossa 
com a Talent et Developement. Depois que terminamos 
tudo o que tínhamos planejado voltamos pro Brasil, o 
Bruno e a Jane Thomassin fi cariam na França por mais 
alguns meses.
288
Voltando para casa
Cada pequena vitória tem de ser celebrada.
— Lucília Diniz
Quando chegamos ao Brasil, encontramos o Espaço 
Enraizados totalmente mudado. O que eu e Dumontt 
tínhamos defi nido foi mudado sem que nos comunicas-
sem. Teríamos que arrumar a casa. Já havia convites 
para participarmos de projetos de parceiros e ainda 
deveríamos produzir a “Mostra Cultural Enraizados”, 
nossa contrapartida para o Governo Federal referente 
à viagem pra França.
A “Mostra Cultural Enraizados” foi no dia 26 de setem-
bro de 2009. Aconteceram as seguintes atividades: 
mostra de resultados do projeto de intercâmbio Iguaçu-
Mesnil; apresentação de Capoeira com o instrutor do 
Projovem Adolescente; tenda estilizada de fotografi a; 
lançamento dos livros “Poesia revoltada”, de Écio Sal-
les, “Acorda hip-hop”, DJ TR, com direito a palestra e 
debate; exibição do fi lme “Iguaçu-Mesnil”; exposi-
ção de fotografi as do projeto Iguaçu-Mesnil; inaugu-
ração da Biblioteca Enraizados; teatro e show de rap 
com os grupos do casting da organização. Cerca de 500 
pessoas passaram pelo Espaço Enraizados durante a 
“Mostra Cultural Enraizados”.
289Estamos só no início
No dia 15 de novembro de 2009, eu e Dumontt fomos para 
Santiago, no Chile, participar do projeto Muro Por La Paz, 
a convite do amigo da Rede Enraizados no Chile, Zerta 
Rapper, que visitou o Espaço Enraizados em outubro de 
2008. Lá encontramos o Dante, grafi teiro de Mesquita 
(RJ), conhecemos os grafi teiros de Macaé, Muk e Ric, que 
entraram pra Rede Enraizados, e também reencontramos 
muitos grafi teiros do Rio Grande do Sul que participaram 
do projeto “Seis direções”, em janeiro de 2008.
Esse evento no Chile materializava bem a nossa Rede Era 
através dos nossos pontos que a galera se comunicava e 
se conhecia, a gente colaborava de alguma forma e colo-
cava as pessoas em contato. Quando voltamos do Chile 
continuávamos com a missão de participar de projetos 
parceiros, e então logo no comecinho de dezembro par-
ticipamos do Fórum de Mídias Livres, na Ufes, em Vitó-
ria, e da Universidade das Quebradas, na UFRJ, no Rio 
de Janeiro. Atualmente, executamos o Pontão de Cultura 
Digital, o Projovem Adolescente, o Pontinho de Cultura, a 
Biblioteca Enraizados, o Telecentro Comunitário e o fi lme 
“Round One: Morro Agudo X Comendador Soares”.
Temos também projetos de comunicação que envolvem 
a Revista Enraizados. Estamos reformulando o Portal 
Enraizados, a Rádio Comunitária e online, e criamos 
um núcleo de comunicação para mostrar de modo mais 
efi ciente a evolução de cada projeto e os passos da 
organização. Faremos mais cópias do meu disco “Rolo 
compressor”, que esgotou. Prensaremos o DVD do fi lme 
“Mães do hip-hop” com legendas em português, inglês, 
espanhol e francês.
Contamos com um quadro de excelentes profi ssionais, 
que já conhecemos há muito tempo, que agora traba-
lham conosco. Alexandre de Maio (“Rap Brasil”, “Folha 
de S.Paulo” e “Revista Raça”), Bruno Thomassin (La 
290 Enraizados: os híbridos glocais
Casa Loka), Simone, Re.Fem, Léo da XIII, Lisa Castro, 
além de todas as outras pessoas que são extremamente 
importantes para um bom desempenho da organização. 
Este livro termina aqui, mas vamos aguardar a segunda 
parte em 2020. Nossa história não tem fi m!
Anexo 
Movimento Enraizados por
Movimento Enraizados
(Frases no twitter)
292
Augusto (Rio Branco – AC)
O Enraizados é família de caboclo! Enraizados é poder 
contar com a rede que te socorre em qualquer lugar do 
país onde exista um computador conectado, seja no 
âmago da fl oresta ou no meio do fi m do mundo.
Verídico (Boca do Rio/Salvador – BA)
O Enraizados se concentra na ideia de que podemos mudar 
de lugar, mas nossas raízes sempre serão as mesmas. 
GOG (Ceilândia - DF)
Enraizados é o sentimento de transformação arraigado 
nas comunidades do Rio de Janeiro e nas periferias do 
planeta se faz atuante.
J3 (Vitória-ES)
O Enraizados é mais uma iniciativa louvável que surgiu 
para fortalecer o hip-hop no Brasil, divulgando a grande 
variedade de talentos da cena nacional e facilitando o 
nosso intercâmbio.
Lamartine Silva (São Luiz – MA)
Enraizados é a cadeia de comunicação que nasce no 
Rio, se espalha pelo Brasil e como uma peste benigna se 
alastra pelo mundão, pregando não a inclusão, mas uma 
forte e necessária revolução, em que a cultura e a arte 
sejam o instrumento de solução.
Jéssica Balbino (Juiz de Fora – MG)
Enraizados é a raiz da cultura nos becos e vielas do Rio 
de Janeiro. É arte enraizada no coração dos brasileiros!
Gil BV (Teresina-PI)
A frase “Nunca deixe de sonhar” foi seguida pelo 
Enraizados ao pé da letra. Acompanhei toda a luta na 
293Anexo
construção do que é hoje o maior espaço de cultura 
digital e alternativa do Rio de Janeiro. 
Janaina Oliveira (Parada Angélica/Duque de Caxias - RJ)
Enraizados é uma rede de pessoas que acreditam na 
transformação social por meio da cultura e amam 
construir parte da história hip-hop no Brasil.
O Átomo [U-SAL] (Morro Agudo/Nova Iguaçu - RJ)
Lembro da minha adolescência ociosa, das confusões 
em que me meti. Entre mortos e feridos, cá estou, graças 
a Deus. Ah se houvesse um quilombo como o Enraizados!
Jana Guinond (Tijuca/Rio de Janeiro - RJ)
Enraizados é um espaço para refl exões que rompe a bar-
reira do som, do racismo, da invisibilidade e o principal: 
conquista o mundo.
Samuel Azevedo (Miguel Couto/Nova Iguaçu - RJ)
Enraizados é um campo de batalha mitológica, onde 
nos faz expurgar a metástase da alma e enxergar o rival 
cometer harakiri. Um ótimo anticoagulante cerebral.
Numa Ciro (Santa Teresa/Rio de Janeiro – RJ)
Enraizados é o macete loko puxado pelo rap de raiz 
de Dudu de Morro Agudo, que faz da sua autobiogra-
fi a uma rede que tece, por meio da arte, a história dos 
seus contemporâneos. 
Pêvirguladez (Duque de Caxias - RJ)
Ser “Enraizados” é usar suas origens, seu habitat e sua 
cultura para reordenar a sociedade, mostrando que a 
“revolução” parte do nosso interior, e não do exterior.
MC Marechal (Niterói - RJ)
Enraizados é plantio de futuro... Um só caminho...
294 Enraizados: os híbridos glocais
Adriana Facina (Santa Rosa/Niterói - RJ)
O Enraizados é a vitória da fé no trabalho criativo e a 
certeza de que a revolução que construirá um outro 
mundo virá das periferias.
Luiz Eduardo Soares (Rio de Janeiro - RJ)
Enraizados são lunáticos maravilhosos numa salinha 
apertada em Nova Iguaçu conversando com o planeta e 
evocando os deuses da paz e da justiça.
Big Richard (Rio Comprido/Rio de Janeiro - RJ)
Enraizadamente o Enraizados subverte a ordem e 
reconstrói a autoestima dos carenciados, reconectando 
de Sul a Sul a esperança. É tudo nosso!
Hannah Lima (Flamengo- RJ)
Enraizados é algo que brota da terra e se expande 
em direção ao universo. Raízes fi ncadas e mentes em 
expansão criativa.
Marcus Vinícius Faustini
(Santa Teresa/Rio de Janeiro - RJ)
Os Enraizados são um bando de botocudos!!!
Alexandre Taurus (Petrópolis/Natal - RN)
Enraizados é um movimento cultural democrático que 
despertou em mim uma forma de escrever que vai além 
do rap. Transparência e amor pelo hip-hop.
Edjales Fama (Porto Velho-RO)
O Movimento Enraizados é uma inovação no conceito 
de rede sociais. Ultilizando a internet como meio para 
essa inovação, consegue articular informação, políticas 
públicas, cultura, arte, comércio justo e etc. sempre em 
uma linguagem acessível e jovem.
295Anexo
Débora Bós e Silva (Bento Gonçalves-RS)
O Enraizados é um movimento que se preocupa com seus 
membros,busca fazer atividades de cunho social utilizando 
estratégias como a informação e a cultura, de forma a 
mostrar que a participação popular pode se dar por diversos 
meios, possibilitando uma transformação na sociedade.
Fabiana Menini (Porto Alegre – RS)
Conheço o Enraizados, acredito no Enraizados e tenho 
certeza da força e do poder de transformação deste 
grupo, que de sua comunidade muda o mundo.
Noise Dee (Menino Deus/Porto Alegre - RS)
Enraizados é ser forte. Ter o conhecimento como 
alicerce e capacidade de reação. É lutar pela essência e 
mudar esse mundão.
Dimenor (Parque Bristol/São Paulo – SP)
O Enraizados e o hip-hop chegaram para romper barreiras 
e contrariar o que o sistema burguês impõe. O Enraizados 
é o sucesso de uma vida de vitórias, estudos e amizades.
Alessandro Buzo (Itaim Paulista/São Paulo - SP)
Enraizados é você ser do hip-hop e pensar grande. 
Se fosse pra pensar pequeno era melhor curtir axé! 
Enraizados é ser líder!
Jurandir Fernandes (São Paulo – SP)
O Movimento Enraizados é como uma grande árvore 
onde cada galho representa uma história, atitude, 
opinião, respeito e humildade.
MC Taike (Palmas - TO)
Enraizados é a gente poder ajudar a nossa comu-
nidade com o pouco de conhecimento que cada um 
possui na mente.
296 Enraizados: os híbridos glocais
Zerta Rapper (Peñalolen/Santiago – Chile)
Son un ejemplo para los jóvenes que sueñan con cambiar 
su país, porque en sus proyectos si logran benefi cios 
colectivos e integradores.
São um exemplo para os jovens que sonham em mudar 
seu país, porque seus projetos produzem benefícios 
coletivos e integradores.
Bruno Thomassin (Galo Branco/São Gonçalo - RJ/
Nancy - França)
Enraizados é coletivo de hip-hop, grupo de rap militante, 
rede de autoajuda, Centro de Cultura Alternativa, Pon-
tão de Cultura, Biblioteca Comunitária... O Enraizados 
cresce na busca de uma sociedade mais justa onde cada 
um tenha o seu lugar.
MC Kabron (Peñañolen/Santiago – Chile)
Movimientos como el de Enraizados son fundamentales 
en Lationamerica, ya que generan instancias de partici-
pacion juvenil, en el ambito del arte y porsupuesto social.
Ojala el modelo de Enraizados se pueda copiar en muchos 
otros paises del cono sur un afectuoso, saludo desde Chile 
hermanos mios de parte del Mc Kabron, Felix Bezares. 
Movimentos como o Enraizados são fundamentais na Amé-
rica Latina, pois geram instâncias de participação juvenil no 
âmbito artístico e, claro, social. Tomara que o modelo seja 
adotado em muitos outros países da região. Saudações 
afetuosas do Chile, irmãos, do Mc Kabron, Felix Bezares.
Ana Massa (Paris - França/Belo Horizonte - MG)
Tive o prazer de conhecer o Movimento Enraizados, 
em 2008, em Morro Agudo. Encontrei portas abertas e 
pessoas inteligentes e comprometidas com uma verda-
deira transformação social. Em 2009, estivemos juntos 
297Anexo
na França, quando o Movimento Enraizados fez prova 
do seu profi ssionalismo, transformando a experiência 
em Nova Iguaçu em uma contribuição generosa para 
a refl exão e a mobilização dos manos, dos frères de 
Blanc Mesnil. É o Movimento Enraizados fazendo rede, 
articulando jovens e trabalhando para um mundo onde 
as relações sejam mais justas e igualitárias. 
Edilasio (Cazenga / Luanda - Angola)
Enraizados é um espaço de interação cultural mais 
voltado ao hip-hop, onde podemos dar nossas opiniões, 
e que nos faz sentir jovens de personalidade fi rme.
Ecio Salles (Olaria / RJ)
Enraizados é um abalo sísmico que propõe o ritmo da 
dança e mistura os ingredientes; é gente junta, movi-
mento de cardume, melodia de enxame.
Letícia Almeida (Copacabana / RJ)
Enraizados é protagonismo revolucionário, resistência, 
criatividade, coragem, uma linda estória de amor.
Célio Turino (DF)
Enraizados é a cultura brasileira sendo escrita por quem a faz. 
Def Yuri (RJ)
Enraizados é ser integrado. É se ver enquanto parte de 
uma fonte que integra percepções e ações em prol da 
transformação em comum.
Queen Odara (RJ)
Enraizados redireciona futuros dando novo sentido
às vidas!!!
301
Posfácio
Conheci pessoalmente o Dudu de Morro Agudo em janei-
ro de 2010, apesar de já conhecer o trabalho do Enraiza-
dos há muito tempo. Quando tivemos a chance de con-
versar um pouco logo vi que tínhamos muito em comum. 
O respeito por suas ideias veio de imediato e o convite 
para dar um workshop e conhecer o Enraizados foi ma-
ravilhoso. Logo em seguida, estimulado pela cineas ta 
Re.Fem, o convidei para se apresentar no 4º Festival de 
Hip-Hop do Cerrado, em Brasília. 
A minha maior impressão sobre o Dudu não foi a apre-
sentação maravilhosa que ele fez, mas a humildade que 
ele teve de, antes e depois do seu show, andar no meio 
de um público de mais de 15.000 pessoas só para sen-
tir o calor humano das pessoas presentes e descobrir 
novos motivos para seguir em frente. É impossível não 
gostar do Dudu. Esse cara humilde, sincero, verdadeiro, 
idealista e, acima de tudo, um visionário.
DJ Raffa
(Brasília - DF) 
Imagens: índice 
e créditos
P.26-27 Dudu de Morro Agudo na 3ª série, com 8 anos
foto: Acervo pessoal
P.28 Dudu de Morro Agudo na formatura do 1º grau, com os amigos 
Luciano Gomes à esquerda e Márcio ao centro
foto: Acervo pessoal
P.29 Dudu de Morro Agudo na Comercial Lubi Peças, aos 14 anos, 
quando trabalhava no setor fi nanceiro
foto: Acervo pessoal
P.34 Dudu de Morro Agudo em seu aniversário de 18 anos, com os 
amigos Luciano Gomes, Fernandinho e Bruno
foto: Acervo pessoal
P.35 Dudu de Morro Agudo na discoteca “Must”, em Nova Iguaçu, 
com Fernandinho
foto: Acervo pessoal
P.41 Dudu de Morro Agudo com os colegas de trabalho do Lava 
Jato, no bairro Camari, em Nova Iguaçu
foto: Acervo pessoal
P.47 Dudu de Morro Agudo na rua de casa com os amigos Fábio, 
Alex Pneu e Fernandinho
foto: Acervo pessoal
P.52-53 Na Petrobras Distribuidora, onde fazia estágio
foto: Acervo pessoal
P.54-55 Dudu de Morro Agudo com os primos Wilson e Felipe e o 
amigo Dedé Barbosa na festa que fazia na rua de casa
foto: Acervo pessoal
P.64-65 O amigo desenhista e rapper Wilson Nenem
foto: Dudu de Morro Agudo
P.66-67 Rodrigo Dimenor
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.71 Portal Enraizados
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.79 Grafi te do Enraizados no bairro Jardim Nova Era, 
em Nova Iguaçu
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.85 Matéria no Jornal O São Gonçalo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.92-93 Matéria na revista Megazine, do Jornal O Globo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.94 Matéria na revista do SESC de Nova Iguaçu
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.95 Capa da Revista Rap Brasil
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.100 Alessandro Buzo e Dudu de Morro Agudo durante o 
lançamento do livro Suburbano Convicto, no Itaim Paulista, 
em São Paulo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.101 Léo da XIII
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.105 Lisa Castro e Átomo, do grupo U-SAL, durante 
apresentação no evento Raiz do Hip-Hop, no bairro 
Cerâmica, em Nova Iguaçu, em maio de 2004
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.109 Matéria com Alessandro Buzo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.115 Def Yuri, Dudu de Morro Agudo e Fábio ACM dentro do avião 
rumo a Porto Alegre
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.124 Ministro Gilberto Gil durante o Fórum Social Mundial, 
em 2005
foto: Dudu de Morro Agudo
P.126 Dudu de Morro Agudo e Claudio Prado dando palestra 
durante o Fórum Social Mundial, em 2005
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.127 Estúdio do Centro de Referência do Hip-Hop, em Teresina, 
no Piauí
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.136-137 Participantes da primeira reunião do Movimento Enraizados 
em Morro Agudo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.143 Grafi teiro Tihkin durante o 4º Encontrão, em Morro Agudo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.153 Os Enraizados durante o Fórum Mundial de Educação, em 
Nova Iguaçu
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.154-155 Matéria na Revista Rap Brasil
foto: Acervo MovimentoEnraizados
P.164-165 Matéria no Jornal O Dia
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.168-169 O rapper maranhense Lamartine Silva e o cineatra francês 
Lahzari durante entrevista no quadro Janela do Enraizados, 
na Rádio Trocipal Solimões, em Nova Iguaçu
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.180 Taffarel, Aércio, Sebá, Kapella, Dudu de Morro Agudo e Joe 
durante tributo ao mano Ita, em Mesquita (RJ)
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.181 Luiz Carlos Dumontt com as crianças do bairro Nova Era
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.189 Homenagem do governo do Estado do Rio de Janeiro ao 
Movimento Enraizados
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.194 Dudu de Morro Agudo e Tiago Borba na quadra do CIEP 117
fotógrafo: Luiz Carlos Dumontt
P.206 Galera do Enraizados com as crianças do bairro Ouro Preto
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.207 Galera do Enraizados assistindo ao fi lme “E o meu direito 
ao emprego?”
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.214-215 Primeira fotografi a do Espaço Enraizados
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.216-217 Matéria na Carta Capital
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.225 Encontro de juventude na FASE
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.232 Prefeito Lindberg Farias e Luiz Carlos Dumontt durante a 
inauguração do Espaço Enraizados, em abril de 2008
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.233 Terno (Enraizados SP), Big W e Dudu de Morro Agudo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.234-235 Alessandro Buzo, Átomo, Kall Gomes e Lisa Castro
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.240-241 Luiz Carlos Dumontt fi lmando a passeata contra a dengue, 
em Morro Agudo
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.244 Re.Fem, Lisa Castro e Marcela (Dona da Arte)
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.249 Américo Córdola, Edjales Fama, Dudu de Morro Agudo 
e Luiz Carlos Dumontt durante reunião sobre o Prêmio 
Cultura Hip-Hop, em Brasília
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.256-257 Dudu de Morro Agudo contando a história do Movimento 
Enraizados para jovens que vieram do Chile para conhecer 
a organização
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.263 Equipe do Projovem Adolescente, em 2009
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.272-273 Luiz Carlos Dumontt, Hyogi, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII 
e DJ Soneca, em Nancy, na França
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.274-275 Dudu de Morro Agudo mostrando o cartaz do seu show nas 
ruas de Paris, na França
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.280-281 DJ Soneca, Dudu de Morro Agudo e Léo da XIII durante show 
em um Squat, em Paris, na França
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.286-287 Léo da XIII, Bruno Thomassim (ao fundo), Chon, Marie 
Pierre, Jane Thomassim, Dudu de Morro Agudo e Luiz Carlos 
Dumontt na casa do Chon, em Medon, na França
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.290 Dudu de Morro Agudo, em Santiago, no Chile, durante o 
evento Hip-Hop Por La paz, que entrou para o Guinness Book
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.298-299 Galera do Enraizados durante o Oitavo Encontrão
foto: Acervo Movimento Enraizados
P.306 Dudu de Morro Agudo
foto: Alexandre de Maio
Sobre o autor
Dudu de Morro Agudo começou com 14 anos de idade 
na cultura hip-hop. A identifi cação imediata com a lin-
guagem da periferia, as lutas de classe, a discrimina-
ção social e racial tão cantada nos raps o ajudaram a 
construir uma consciência crítica e cidadã, retirando-o 
da margem social para que pudesse ajudar outros ado-
lescentes que, assim como ele, também tinham um his-
tórico de exclusão cultural. A sua eloquência de líder 
colocou-o cara a cara com aquilo que consideramos o 
primeiro milagre do Enraizados: transformar três cartas 
escritas a mão livre em uma rede de articulação multi-
cultural e intercontinental.
A Rede Enraizados não foi criada nem inventada, foi des-
coberta, aprimorada e maximizada sob a inconfundível 
liderança desse “preto de conceito”, que consegue unir a 
liderança juvenil, a articulação artística, a coordenação 
de projetos e a amizade à vida prática. Do Rio Branco a 
Poá, de São Luís ao Rio de Janeiro. Se militância e supe-
ração têm nome, pode chamá-lo de DMA.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Imprinta Express em novembro de 2010.
Todos os recursos foram empenhados para identifi car e
obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados.
Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total 
desinformação ou por erro de identifi cação do próprio 
contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder 
os créditos aos verdadeiros titulares.

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