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Enraizados: os híbridos glocais Enraizados: os híbridos glocais Dudu de Morro Agudo ApoioPrograma Petrobras Cultural Copyright © 2010 Dudu de Morro Agudo COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfi co CUBICULO ENRAIZADOS: OS HÍBRIDOS GLOCAIS produtor gráfi co SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão CAMILLA SAVOIA CAROLINA CASARIN ITALA MADUELL revisão tipográfi ca CAMILLA SAVOIA D897e Dudu, de Morro Agudo, 1979- Enraizados, os híbridos locais / Dudu de Morro Agudo. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas) Apêndice ISBN 978-85-7820-053-4 1. Dudu, de Morro Agudo, 1979-. 2. Movimento Enraizados (Projeto cultural). 3. Músicos de rap - Brasil - Biografi a. 3. Hip-hop (Cultura popular) - Rio de Janeiro (RJ). 4. Rap (Música) - Rio de Janeiro (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. II. Série. 10-5555. CDD: 927.845 CDU: 929:78.067.26 27.10.10 29.10.10 022285 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 22.440-030 TEL: 21 2529-6974 TELEFAX: 21 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sem- pre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualifi car ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômi- cos e culturais. Faz parte da percepção de que a cul- tura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportu- nidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba- lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ- nicos, profundamente conectados com experiências sociais específi cas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográfi cos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afi rmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem- plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con- tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afi nal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A. Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá- vel dicção proativa e um claro projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no pano- rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria- tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu- ral, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe- tiva ao direito da periferia de contar sua própria história. Heloisa Buarque de Hollanda Agradecimentos Agradecemos a Heloisa Buarque de Hollanda pela opor- tunidade. Aos Enraizados do Mundo, quiçá do Universo, e ao nosso patrocinador maior: Deus, pelo milagre de transformar cada barrigudinho melequento das peri- ferias em grandes homens e mulheres, grandes líderes das quebradas e grandes articuladores da cultura de raiz. Aos amigos e familiares, não precisamos agrade- cer, já que eles existem para nos apoiar mesmo, amigos e parentes são pra essas coisas. É nóis, vagabundo! Sumário 12 Introdução 14 Apresentação 16 Prefácio – por Luiz Carlos Dumontt 20 Cap.01 Antes de tudo Um líder mirim Primeiro contato com a arte Trabalho: como conseguir grana? O rap: como conheci e por que pratiquei Cabeça vazia: ofi cina do diabo 56 Cap.02 Enraizados: como começou? A criação do Movimento Enraizados Portal Enraizados Iniciando projetos Enlaçado pelo Enraizados A imprensa nos descobriu e descobrimos a imprensa 2003: um ano divisor de águas A experiência de mobilizar e entreter O fi m do começo… Ousadia: deixe-me ir, preciso andar… O Neoenraizados Level two 144 Cap.03 Seguindo em frente A arte de criar o inimaginável Ousando em novos territórios Cada um com o seu cada um Nossas superproduções Dinheiro: solução ou mais problemas? Comunicação: passeando entre classes Se não sonhássemos, não sairíamos do lugar Algumas luzes no fi m do túnel Entre trancos e barrancos 226 Cap.04 Estamos só no início Acionando a Rede Enraizados Um elefante branco nas mãos Núcleo de mulheres do Enraizados: uma questão de gênero Mil fi tas acontecendo Articulação internacional O pulo do gato Nossa odisseia pela Europa Voltando para casa 291 Anexo - Movimento Enraizados por Movimento Enraizados (Frases no twitter) 301 Posfácio – por DJ Raffa 302 Imagens: índice e créditos 307 Sobre o autor 12 Introdução A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fi zeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verifi car, e não aceitar tudo que a elas se propõe. — Jean Piaget Meu nome é Flávio Eduardo, no hip-hop me conhecem como Dudu de Morro Agudo ou simplesmente DMA. Nasci em 1979, em Morro Agudo, um bairro pobre e – para alguns – violento da cidade de Nova Iguaçu, na Bai- xada Fluminense do Rio de Janeiro. Sou fi lho de Guilherme, um vidraceiro, que hoje é conhe- cido como Dico por causa de uma de minhas músicas – “Dico Sequela” –, e de Lúcia, uma ex-vendedora de rou- pas que trabalha atualmente como merendeira numa escola do município do Rio de Janeiro. Quando eu nasci, minha mãe queria me colocar o nome de Carlos Eduardo, porque na época passava uma novela e o galã tinha esse nome. Meu pai queria Flávio porque ele queria algum nome que lembrasse o Flamengo, a grande paixão dele. Então ele pensou: Fla, fl a, Flávio, corta o Carlos e deixa o Eduardo, pronto: Flávio Eduardo. Meu pai é o tipo de sujeito que podemos chamar de boê- mio, vive cada dia como se fosse o último de sua vida; por outro lado minha mãe é uma mulher centrada, que tem como maior qualidade a honestidade e dedicou sua vida ao trabalho para me dar uma educação de qualidade. A prova disso é que estudei toda a minha vida em escolas 13 particulares até o momento em que entrei para a facul- dade e não pudemos mais pagar pelos estudos. Eu acho que sou um misto dos dois. Um cara que ama a noite, a vida, mas que tem uma preocupação excessiva com suas responsabilidades. Em toda a minha família, creio que sou a única pessoa que trabalha com arte. A maioria dos meus familiares começou a trabalhar bem cedo, boa parte em trabalhos braçais, e pouquíssimos conseguiram cursar uma universidade. A arte nunca foi bem-vista na minha casa. É comum nas famílias que vivem na periferia as crianças começarem a trabalhar bem cedo, para ajudar em casa ou para ter sua independência fi nan- ceira, e para isso quase sempre param de estudar, repetindo a mesma história de vida de seus paise avós. As escolas públicas de nível fundamental e de nível médio na Baixada Fluminense não têm um ensino muito bom. Na prática eu já sabia, mas resolvi fazer uma pes- quisa e fi quei ainda mais surpreso com o resultado. Des- cobri que das 50 melhores escolas do país 42 são parti- culares e apenas oito são públicas. Analisando a mesma tabela percebi que no estado do Rio de Janeiro estão 18 das 50 melhores escolas de nível médio do país, e des- sas 18, 14 são particulares e apenas quatro são públicas, e das quatro, três são federais e somente uma estadual. Descobri ainda nessa pesquisa que das 18 melhores escolas do nosso estado apenas uma está na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, e é particular. Quer dizer, as pessoas de baixa renda jamais vão conseguir estudar em uma escola dessas. Baseado nisso é fácil entender por que minha mãe fez de tudo para que eu estudasse em escola particular, mas nem por isso tive o melhor ensino. Poucos são os que conseguem quebrar esse ciclo social, mas graças a Deus eu sou um desses. 14 Apresentação Não existe uma fórmula para o sucesso. Mas, para o fracasso, há uma infalível: tentar agradar a todo mundo. — Herbert Bayard Swope Resolvi escrever este livro para contar de forma cronoló- gica a história do Movimento Enraizados. A ideia é focar nas principais atividades, baseado naquilo que vivi e vivo dentro da organização. Apesar de eu tê-lo criado em 1999, o Movimento Enrai- zados é na verdade o refl exo das centenas de pessoas que por ali passam e vivem os mais variados e intensos momentos, dando forma, vida e movimento à organiza- ção. Por isso, pela grande quantidade de histórias boas e interessantes, nem todos puderam entrar nesse livro. O Movimento Enraizados é uma organização complexa que me permitiria abordar diversos eixos, mas decidi enfatizar a Rede Enraizados e seus processos de comu- nicação capazes de agregar pessoas e organizações de todo o mundo para discutir e pensar soluções coletivas para problemas locais, que também podem se tornar soluções globais. Segundo o professor Leonel Azevedo de Aguiar1, em um trecho do artigo “Apropriação das tecnologias de infor- mação e estratégias da ecologia do virtual”, publicado na revista “Rastros”: “Enraizados na rede rizomática: 1 Professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós- Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Comuni- cação pela UFRJ. Jornalista formado pela UFF. 15 simultaneamente, local e global – ação política local e produção cultural global. Movimento hip-hop, aporte glocal para o ciberativismo político.” Por muito tempo a história da organização se confundiu com a minha, por isso os primeiros textos falam um pouco da minha vida até o momento da criação do movimento. Creio que desta forma será mais fácil o entendimento de como tudo começou. A ideia do livro é sintetizar algumas situações e também relatar os acontecimentos de forma objetiva para que o leitor tire suas próprias conclusões e talvez consiga per- ceber neste material, após uma leve refl exão, o ponto chave em que uma intervenção cultural pode mudar o destino da juventude brasileira. Então vamos lá! 16 Prefácio Se houvesse uma única palavra para designar o que sig- nifi ca o Movimento Enraizados em sua máxima ampli- tude, seria difícil escolher termo mais exato que a pala- vra milagre. Uma ação despretensiosa que se desenvolve em um formato de rede-mãe com várias outras redes interliga- das, provenientes de ideias tidas anteriormente como improváveis, descabidas e até mesmo impossíveis de acontecerem em um primeiro momento, isoladamente ou em cadeia, dada a sua origem e o histórico de seus criadores, sem conhecimento prévio de outras formas de mobilizações parecidas, nem conhecimentos acadê- micos, nem tutores, nem padrinhos ricos, nem herança alguma de quaisquer outros agentes de fora ou de den- tro do Movimento. É complicado falar de si próprio, sem deixar transpare- cer aquilo que nos impulsiona de forma defi nitiva para um horizonte desconhecido, desafi ador, porém insti- gador e mola mestra de tudo o que fazemos, a nossa autoestima, nossa força maior; nosso caráter guerreiro, pronto para nos lançar do penhasco e construir as asas no meio do caminho antes que “esborrachemos” de cara no chão; essa força que provém do quase nada e domina toda a nossa alma, mente e corpo e nos possibilita tentar algo novo e inusitado e quase suicida é o que chamamos carinhosamente de militância cultural – interferir local- mente com ações culturais em rede para discutirmos 17 políticas públicas e mudar uma realidade histórica de exclusão sociocultural e econômica em nossas “quebra- das” (bairros). Nas próximas páginas o leitor se deparará com a quebra vigorosa de um paradigma presente em todas as comuni- dades brasileiras e talvez do mundo, o ciclo de repetição a que estamos fadados a viver viciosamente em nossas vidas: se sou de família abastada, também serei abas- tado, mas se sou de família pobre, continua rei pobre e deixarei a minha pobreza de herança para a minha prole. Essa noção está bem consolidada nas famílias de dou- tores, médicos, militares, empresários e, acima de tudo, nas milhares de famílias de operários; sendo que no caso dos operários ou proletários, como queiram cha- mar, há quase que uma infl exibilidade, é quase impossível para um fi lho de um proletário ser um médico, um doutor ou um ofi cial militar, porque o processo de exclusão social seguido de uma forte pressão psicológica nos impulsiona a pensar que as coisas são assim mesmo, que não há nada de mais em repetir a profi ssão do meu pai e não tentar uma medicina ou qualquer outra profi ssão que me faça ascender socialmente é uma praga que comba- temos com treinamento psicológico na nossa escola de militância, o Cefam – Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância, onde nós, por nós mesmos, inter- pretamos as várias mensagens diretas, indiretas e até mesmo subliminares dos vários meios de comunicações que nos rotulam, nos cegam e nos condicionam a pensar que todo esse “esquema social” é a vontade de Deus. Nessas páginas não há a verdade acima de tudo, muito menos todos os fatos que aconteceram na história do Movimento Enraizados, mas apenas um ponto de vista de um dos seus idealizadores e um dos maiores líderes que eu tenho o prazer de conhecer e chamar de meu amigo: DMA, Dudu de Morro Agudo, Flávio Eduardo. Não importa 18 como o conheça, é mais um sobrevivente e um guerreiro dedicado, sempre voluntário para as tarefas mais difí- ceis, líder da F.E. – Forças Especiais desse grande exér- cito que se espalha desde os becos mais escuros e som- brios das favelas até o asfalto, chegando até mesmo às praias da Zona Sul. A clareza de ideias, a multicultura- lidade e principalmente a vivacidade de uma juventude pronta para a guerra social que se desenrola a todo o ins- tante em nossas vidas arrebanha cada vez mais volun- tários, fazendo-nos crescer em número e qualidade em uma taxa de não menos que 500% ao ano, começando com 3 cartas escritas inicialmente para militantes da cultura hip-hop, para a quebra da barreira dos 600.000 acessos únicos mensais em nosso site na Internet. Ganhamos prêmios, status e moral, mas o nosso maior orgulho é ganhar mais um irmão para essa grande famí- lia que chamamos de Enraizados. Alguns nos chamam de loucos fantásticos, bairristas lunáticos ou provin- cianos; nós preferimos nos autodesignar simplesmente de Enraizados; mas a defi nição de fora do movimento que mais nos deixa felizes é a do professor Leonel Aze- vedo, um homem fantástico que nos chama carinhosa- mente de híbridos glocais. Obrigado a todos que nos ajudam das formas possíveis e imagináveis a divulgar, difundir e até mesmo explicar para os outros e para nós mesmos aquilo que fazemoscom tanto amor e afi nco, simplesmente por ser a nossa razão de viver. Amamos nossa arte, nossa cultura e todos os que nos cercam. Boa leitura. Luiz Carlos Dumontt Às 17h22 do dia 23 de abril de 2010. Cap.01 Antes de tudo 22 Um líder mirim A diferença entre um chefe e um líder: um chefe diz, Vá! um líder diz, Vamos! — E. M. Kelly Meus pais sempre trabalharam fora, então eu fi cava sozi- nho desde muito novo, tendo que cuidar dos afazeres de casa, tomar banho, ir para a escola, fazer as lições e fi car no sapatinho até meus pais chegarem, sendo frequente- mente vigiado pelos vizinhos a pedido de minha mãe. Lembro de poucas coisas da minha infância, apenas algu- mas fi caram marcadas na memória, como, por exemplo, o dia em que aprendi a andar de bicicleta. Meu pai tirou as rodinhas auxiliares e me levou pra rua, comecei a peda- lar e quando eu estava me sentindo seguro ele largou o selim. A partir daí começava a me equilibrar sozinho pelas ruas de Morro Agudo. Lembro também do dia em que meu pai me levou para um campo de futebol. Isso me marcou muito porque meu pai era do tipo provedor, apesar de não me levar muito para passear como os pais costumam fazer com os fi lhos, porque a principal preocupação dele era não deixar as coisas faltarem em casa, uma atitude muito comum entre os pais da periferia. Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, até que cheguei na sexta série e comecei a desandar. Em 1990, com apenas 11 anos de idade, gazeteei aula por 23Antes de tudo quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha mãe, que sempre acompanhava minhas presenças na escola através dos carimbos na caderneta escolar, não descon- fi ava das minhas travessuras porque eu mandei fazer um carimbo de presença idêntico ao da escola. Os diretores do Colégio Luiz Silva, o melhor colégio do bairro na época, enviavam bilhetes para minha casa, querendo saber por que eu não estava comparecendo às aulas, mas eu sempre interceptava os bilhetes e falsifi - cava a assinatura da minha mãe, até que um dia envia- ram um telegrama. Foi quando minha mãe descobriu toda a verdade e eu levei a última grande surra da minha vida. A televisão me ensinava a falsifi car documentos. Lem- bro de uma entrevista que vi com um velho estelionatá- rio que dizia: “No Brasil a burocracia dá brecha para a falsifi cação, todo papel que tem um carimbo vira origi- nal.” Eu viajei na ideia do coroa e fi quei pensando onde eu poderia aplicar esse “ensinamento”, até o dia em que fi z na escola. Como deu certo na primeira vez, continuei fazendo até dar errado, e me lasquei. Eu apanhava com frequência, minha mãe não admitia que eu vacilasse, e nesse dia ela me bateu tanto que os vizinhos vieram me socorrer, mas não adiantou, minha mãe colocou todo mundo pra correr e me desceu a por- rada. Lembro de um diálogo entre minha mãe e uma vizi- nha que tentava interceder por mim: — Lúcia, solta ele, você vai machucar o menino! — O fi lho é meu e eu vou educar do meu jeito. Eu paguei um ano de escola pra quê? Pra ele gazetear aula? Ele tá pensando que eu ganho dinheiro onde? Nesse momento eu pensei: “Tô fodido, agora ela vai me matar.” 24 Enraizados: os híbridos glocais Com 11 anos, liderei muitos garotos rumo à reprovação. Depois disso tomei gosto pelos estudos novamente. Em 1992 comecei a estudar informática – minha grande paixão – num curso de Morro Agudo. Ainda não existia o famoso Windows, então eu fazia curso de Digitação, MS-DOS, Word Star e Lótus 123. Meus pais não queriam pagar o curso alegando que eu não terminava nada do que começava, mas eles acabaram cedendo porque se tratava de conhecimento para o meu futuro. Nas aulas de digitação eu treinava digitando um funk famoso da época, cantado por MC Mascote e MC Neném, cujo nome era “Rap da Daniela Perez”. Daniela Perez era atriz, fi lha da autora de telenovelas Glória Perez, e foi assassinada pelo colega de trabalho Guilherme de Pádua no dia 22 de dezembro de 1992. Foi um crime que abalou o Brasil inteiro. Os dois MCs, então, fi zeram essa música em homenagem à atriz e fi caram famosos por causa desse rap, a única música que falava da morte de Daniela autorizada por Glória Perez, que fi cou emocionada com a homenagem. Foi nesse ano que conheci um dos meus melhores ami- gos, o Luciano Gomes – que hoje é policial militar. Ele é como um irmão, mas nossa amizade começou na base da porrada. Ele liderava uma galera no colégio e eu lide- rava outra, até que um dia, por causa de uma garota, a gente se enfrentou. Ele diz que me bateu, mas eu tenho certeza que ganhei a briga. E a fama de vencedor fi cou mesmo pra mim por- que ele faltou as aulas por dois dias após a briga e me deu tempo de contar minha vantagem para todo o colégio. Tem- pos depois a gente começou a se falar e juntamos nossas duas galeras. Ficamos então com mais moral na escola do que os caras da oitava série, que eram nossos inimigos. 25Antes de tudo Eu fazia curso de informática, mas não tinha computa- dor para treinar. Usava o de um amigo — Marcelo Granja — que tinha um TK85, um computador que ligava na televisão, funcionava com Basic e gravava os progra- mas num gravador cassete. É engraçado lembrar dessas parafernálias porque parece que sou muito velho, mas tenho apenas 30 anos. Depois ele ganhou um CP500, um computador muito esquisito, pois o teclado e o moni- tor eram colados, uma peça única. Os pais do Marcelo tinham uma condição fi nanceira legal, provavelmente os de mais grana na rua onde eu morava, então os brinque- dos eletrônicos caros chegavam primeiro na casa dele. Nesta época eu já arrumava revistas e livros de Basic e fazia pequenos programas de computador, mas não conseguia gravar na fi ta cassete. Todos os dias eu perdia tudo o que digitava e refazia novamente no dia seguinte, o que serviu pra eu aprender lógica de programação antes mesmo de estudar a matéria na escola e tomar gosto por ela. Tempos depois um outro amigo ganhou um 386 dos pais. É um grande amigo e se chama Marcio, mas é conhe- cido no bairro como Marcio Periquito, porque ele tem um nariz igual ao do Luciano Huck. A gente troca muita ideia até hoje, ele também é apaixonado por informática e nunca foi apegado a bens materiais, o que permitia que eu estudasse e treinasse no computador dele. A desigualdade social é presente até em Morro Agudo, onde algumas pessoas têm carros importados, casa bonita, condições de colocar o fi lho em boas escolas e cursos, enquanto o outro extremo não tem nem mesmo o que comer e deixa seus fi lhos jogados nas ruas. O que separa essas famílias, geografi camente, é, às vezes, apenas um muro. Eu estava no meio dessas duas reali- dades, conhecendo e transitando de um lado ao outro e colocando essa galera para conversar. 26 Enraizados: os híbridos glocais 27Antes de tudo 28 Enraizados: os híbridos glocais 29Antes de tudo 30 Primeiro contato com a arte Não tocamos para agradar os críticos. Tocamos o que queremos, quando queremos e o quanto quisermos. E temos motivos para tocar. — Bob Marley Em 1993 o funk carioca fi cou muito forte e presente na minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte: fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia muita vergonha. Eu ouvia música desde pequeno, infl uenciado por meu pai, que gostava de Tim Maia, Jorge Ben, Elis Regina, Car- los Alberto, Roberta Miranda. Ele era – e acho que ainda é – apaixonado pela música da Roberta Miranda, mas não sabe cantar nenhuma, só os refrões e alguns pequenos trechos. Fazia questão de “zoar o plantão”fazendo uns sons esquisitos nas partes em que não sabia cantar. Meu pai colocava o som no último volume pros vizinhos ouvirem também. Hoje ainda é assim, e se bobear é ainda pior. No quartinho que ele tem no terraço de casa, 31Antes de tudo construído para guardar as ferramentas, e que hoje é o local em que ele faz alguns trabalhos de artesanato, foi montada uma espécie de rádio comunitária. São alto- falantes pendurados no telhado do terraço, ligados a um rádio velho – porém barulhento –, em que ele põe as músicas antigas pra tocar e agora também o rap da minha rapaziada. O maneiro disso tudo é que ele gosta de rap. Ele e minha avó foram as pessoas que sempre me deram força pra eu fazer rap, mesmo sem saberem exatamente o que era. Com essa idade eu já curtia os bailes funk no clube Vas- quinho de Morro Agudo. Uma época que tinha muita briga, quando quem morava no bairro da Tenda não podia ir pro outro lado da estação de trem porque era o bonde inimigo. Dentro do baile, que supostamente era um local neutro, a porrada era generalizada. Eu era novo, mas estava lá, com os caras mais velhos da minha rua. Era uma maluquice de garotos, a gente ia pro baile pegando carona na porta dos ônibus. Lembro de um camarada chamado Ripe, que apesar de ser novo era o mais alto do grupo. Ele sofreu um acidente quando estava pegando carona na porta do ônibus. O motorista, por pura mal- dade, jogou a lateral do ônibus num caminhão, e um parafuso entrou no braço dele. Era sangue pra todos os lados. Levamos ele em casa, entregamos pra mãe, e depois fomos pro baile. Também lembro de uma vez que fi quei com medo por- que o motorista estava correndo muito e eu pulei do ôni- bus em movimento. Ele estava descendo uma ladeira, a rua era de paralelepípedo, mas tinha muita areia, e quando o ônibus passava subia poeira como naqueles fi lmes antigos de faroeste. Eu ainda não tinha a malícia de pegar carona, então pulei e fi quei parado. Meu corpo foi jogado para a frente e só lembro de descer rolando o morro atrás do ônibus. O mundo ia girando cada vez mais 32 Enraizados: os híbridos glocais rápido, eu colocava a mão na frente para não machucar o rosto, e no fi nal deu tudo certo. Não machuquei o rosto, mas em compensação minha mão fi cou em carne viva, minha roupa toda rasgada, joelhos e cotovelos ralados, e mesmo assim fui curtir o baile. Quando cheguei dentro do Vasquinho fui no banheiro lavar as pernas, os braços e corri para o “trenzinho” dar meus gritos de guerra. Nas brigas dos bailes e do bairro eu sempre me desta- cava porque era bom de porrada. Além disso, os garo- tos da minha idade sentiam certo medo de mim porque eu andava com os caras mais velhos, mais infl uentes. Quando algum moleque da minha idade vacilava era por- rada nele. Eu não costumava praticar as mesmas ati- vidades que os garotos da minha idade, não sabia sol- tar pipa, até jogava bola direitinho, mas não gostava, e só jogava bola de gude porque a molecada toda estava jogando. Eu gostava mesmo era de trocar ideia, escre- ver, desenhar e fazer programas de computador. Ao mesmo tempo em que eu deveria ser educado, res- peitar os mais velhos, eu também tinha que ser respei- tado na rua, senão eu virava “comédia”. Nessa época eu pegava um teclado e um gravador do Marcelo Granja, um microfone com outro camarada, fazia bases de funk e gravava minhas músicas em casa. Foram minhas primei- ras gravações de funk. Eu envolvi até o próprio Marcelo nas gravações, a gente fez uns sons zoando uma mina que era ex-namorada dele. Mostramos a fi ta pra ela, que mostrou pra mãe, e então deu uma confusão danada. Eu tenho certeza que elas gostaram do som, porque fi cou maneiro de verdade, mas a gente falava várias besteiras, e a mãe da menina tinha que impor respeito. No fi nal de 1993 terminei o primeiro grau, e no próximo ano eu daria um passo importante: sairia do colégio onde estudei por toda a minha vida e iria estudar à noite, no 33Antes de tudo centro de Nova Iguaçu. Pra mim isso signifi cava a minha independência. Minha mãe queria que eu estudasse no colégio Iguaçuano, que pertencia à mesma família da minha antiga escola. Eu não concordava porque no Igua- çuano estudavam uns playboys de Nova Iguaçu e nessa época eu já sentia o preconceito e a discriminação que esse pessoal tinha por mim. Nós conversamos e eu convenci minha mãe a me matri- cular num colégio chamado Ceni, pois somente lá tinha o curso que eu queria fazer: tecnologia em processa- mento de dados. Depois que comecei a estudar percebi que o ensino não era muito bom, mas foi a partir dali que dei um rumo na minha vida e comecei a me tornar o cara que sou hoje. Já no primeiro ano conheci o Netinho, que hoje também é policial militar. Ele sempre morou perto da minha casa, mas a gente nunca tinha trocado ideia antes do Ceni. Começamos a vir de ônibus juntos pra casa, até que nos falamos a primeira vez e fi camos logo camaradas. A gente tocava o maior terror no colégio. Ele já era bem funkeiro e me levava pra curtir os bailes em outros lugares da cidade. E eu levava ele para gravar umas músicas comigo. 34 Enraizados: os híbridos glocais 35Antes de tudo 36 Trabalho: como conseguir grana? Sua profi ssão não é aquilo que traz para casa o seu salário. Sua profi ssão é aquilo que foi colocado na Terra para você fazer com tal paixão e tal intensidade que se torna chamamento espiritual. — Vincent Van Gogh Enquanto estudava, já arrumava um trocado instalando som de carro, pois além de informática eu também gos- tava de eletrônica e usava os dois como um meio alter- nativo de conseguir grana. Para os meus pais era difícil pagar meus estudos. Minha mãe trabalhava muito para pagar minha escola e eu não podia exigir mais dela. Aprendi a consertar som de carro com o Mário, pai de um amigo da rua onde moro. Ele ganha a vida consertando aparelhos eletrônicos, e de tanto eu pedir me ensinou essa atividade que já me rendeu uns bons trocados. Mário dizia que som de carro quando para de funcionar quase sempre é problema da saída do próprio som, então eu tinha que trocar o CI (circuito interno). E isso era “batata”: quase sempre era mesmo esse o problema. Ganhei uma grana maneira consertando o rádio dos outros, e a fama ia aumentando, e cada vez chegava mais gente. Meu portão vivia cheio de carros. Com apenas 14 anos já sabia dirigir, era um dos poucos garotos da rua que tinha essa habilidade. Até ensinei outros garotos, 37Antes de tudo como o César, fi lho do cara que me ensinou a conser- tar aparelhos eletrônicos. Quem emprestava o carro era o Marcelo, um cara um pouco mais velho que eu, que morava no fi nal da rua. Meu pai nunca teve carro e até hoje não sabe dirigir, então tive que aprender olhando os outros na rua e pedindo para dar um rolé no carro deles. Para arrumar um dinheiro a mais eu aprendi também a recondicionar alto-falantes, isso também foi o Mário quem me ensinou. Quando as pessoas chegavam à minha casa para instalar um som já vendia o pacote de servi- ços completo. O tempo foi passando e a grana estava fi cando curta com esse esquema de recondicionamento de alto-falantes, então eu e o Netinho decidimos correr atrás de um trabalho de carteira assinada. Compramos o jornal no domingo e fomos atrás das vagas dos clas- sifi cados. Chegamos até uma agência de empregos em Duque de Caxias, que nos mandou fazer uma entrevista na Comercial Lubi Peças, em Nova Iguaçu. Estávamos confi antes, nosso primeiro emprego estava por vir. Na manhã do dia marcado chegamos à loja, que era uma autopeças, fazia calor, mas eu sentia frio na barriga. Nunca tinha passado por aquela situação antes. Tinha muita gente querendo aquela vaga de estágio. Fizemos uma entrevista com uma senhora chamada Sandra, uma morena de cabelos longos e encaracola- dos, que estava grávidade uns sete ou oito meses. Ela era responsável pelo setor de recursos humanos. Fez a entrevista comigo e com o Netinho ao mesmo tempo. Eu fi quei desanimado porque ela conversou muito mais com ele, me fez três perguntas e duas dúzias para ele, que fi cou muito mais confi ante. Surpreendentemente, no outro dia, foi o meu telefone que tocou, quer dizer, o da minha vizinha, pois a gente não tinha telefone em casa. Eu estava contratado, era o meu primeiro emprego. 38 Enraizados: os híbridos glocais Na verdade era um estágio em que eu deveria trabalhar na área de informática, mas me jogaram no setor fi nan- ceiro. Fiquei três meses por lá, até que tive uma discus- são com o dono da empresa. Eu já estava puto da vida porque me tiraram do setor maravilhoso que eu estava trabalhando e me jogaram pra emitir nota fi scal. O rapaz que estava neste setor não dava conta do serviço e era sobrinho de um amigo do meu patrão. No novo setor, além de eu ter que lidar com a pressão dos vendedores, tinha que ir frequentemente trocar cheques por dinheiro na sala do todo-poderoso, que nem sempre estava de bom humor. Eu chegava em casa todo dia muito cansado porque trabalhava e estudava e no trabalho estava um saco. Então parei pra conversar com o meu “coroa”, que me deu um conselho um tanto quanto perigoso para um cara da minha idade. Ele disse: “Filho, não deixe nin- guém tirar onda com a tua cara, principalmente patrão, se tu sentir que ele tá abusando, tu manda logo ele se foder, porque tu não precisa dessa merda de trabalho, aqui em casa a gente dá um jeito, de fome tu não morre. Eu quero é que tu estude.” Eu fi quei com aquilo martelando na cabeça. Ninguém vai tirar onda comigo, se o meu patrão meter uma bronca eu meto duas. Até que um dia subi para trocar um cheque e ele estava de mau humor, eu também não estava em um dos meus melhores dias, e o nosso encontro foi fatal. A vontade dele prevalecia porque era dono da empresa e gostava de pisar nas pessoas, então quando ele ten- tou me humilhar a gente se enfrentou, um garoto de 15 anos batendo boca com um homem de quase 50. Pare- cíamos gladiadores divertindo os funcionários que fi cavam ouvindo através da porta. 39Antes de tudo Rolaram uns “puta que o pariu” pra cá, uns “fi lho da puta” pra lá, e quando eu já estava cansado de xingar, fui embora. Era quinta-feira de manhã quando aconteceu o bate-boca, e voltei ao trabalho somente no sábado, só pra pegar minhas coisas, mas o patrão já estava calmo e queria que eu continuasse na empresa. Ele ainda elo- giou meu gênio forte, mas eu não quis fi car. Sabia que ali tinha acabado meu respeito por ele e não via como cres- cer profi ssionalmente naquele lugar. Apesar das alternativas que eu tive para ganhar dinheiro, e de ter conseguido emprego logo na primeira tentativa, essa não é a realidade da juventude das periferias do Rio de Janeiro, e quem sabe de todo o Brasil. Paula Martins Salles comenta em sua monografi a “Caminhos de Visi- bilidade para a Juventude da Periferia da Metrópole do Rio de Janeiro”: Os jovens das camadas populares têm oportunidades bastante limitadas de usufruir dessas características juvenis, não só porque precisam começar a trabalhar e construir família mais cedo, mas porque não têm como usufruir um período longo de despreocupação. [p. 9] Tempos depois, quando o Movimento Enraizados produ- ziu o documentário “E o meu direito ao emprego”, perce- bemos que existem diversas juventudes no Brasil, e com- parando a juventude pobre, que vive nas periferias das grande metrópoles, com a de classe média, concluímos que os jovens da periferia não têm as mesmas oportuni- dades de trabalho porque não tiveram a mesma qualidade no ensino. Ainda de acordo com Paula Martins Salles: A juventude é uma construção social historicamente determinada, daí que não se pode pensá-la sem espe- cifi car de qual juventude se está falando. As condições sociais, culturais, políticas e econômicas em que se encontram esses jovens são determinantes para se 40 Enraizados: os híbridos glocais entender e defi nir as experiências juvenis. A situação de desigualdade da sociedade brasileira torna esse recorte ainda mais fundamental. (...) É importante ressaltar que a concepção moderna de juventude (adotada pelo senso comum até os dias de hoje) foi calcada principalmente na experiência dos jovens das classes médias. A esses, foi aberta a pos- sibilidade de se alongar na fase de transição ao mundo do trabalho, visando um maior investimento na sua for- mação profi ssional. Isso signifi cou uma ampliação con- siderável no número de estudantes na sociedade (Corti, 2004). Esse alongamento permitiu a esses jovens um adiamento de todas as marcas de entrada na vida adulta: trabalho, matrimônio e fi lhos. Como essa experiência de postergamento da vida adulta não foi e não é igual para todos os jovens torna-se necessário, ao se falar de juventude, defi nir de que juventude se está falando. [Paula Martins Salles, pags 5 e 9] 42 O rap: como conheci e por que pratiquei Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa é a maior realização. — Ralph Waldo Emerson Assim que acabamos o primeiro grau, o Luciano Gomes foi morar em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Nós já éramos muito amigos nessa época, todo fi m de semana eu ia pra casa dele, e num desses fi ns de semana ele me mostrou uma fi ta cassete com uma música que eu achei bem mais maneira do que o funk carioca, uma fi ta com o rap do Racionais MCs. Creio que esse foi meu primeiro contato com o rap, e gostei na hora. Para mim era tudo muito novo, as músicas duravam mui- tos minutos, eram interessantes e inteligentes, e havia também histórias que falavam daquilo que eu vivia. Nessa época eu começava a refl etir a respeito da minha vida, a respeito da sociedade, começava a analisar o mundo por outro ângulo, e percebi que toda a angústia que eu já sentia era retratada naquelas músicas. A partir daí, eu e o Luciano começamos a escrever algu- mas letras de rap do hip-hop. Digo assim porque no Rio de Janeiro tínhamos que falar desta forma – rap do hip-hop – senão as pessoas achavam que era funk, e o funk já estava totalmente demonizado pela sociedade carioca. 43Antes de tudo Nesse mesmo ano as músicas do Gabriel, o Pensador começaram a tocar nas rádios do Rio de Janeiro. Eu gos- tava da maneira que ele escrevia e comprei o primeiro vinil dele, em que havia as músicas “Tô feliz (matei o pre- sidente)” e “Indecência militar”, que eu gostava muito. Gabriel, o Pensador colaborou para a disseminação do rap e do hip-hop. Muita gente pode até não admitir, mas tem uma galera boa no rap do Rio de Janeiro que come- çou ouvindo o rap do Gabriel, que é um puta letrista. Com minha saída da Lubi Peças fi quei “quebrado”, tinha que arrumar outro emprego. Eu lembrei que meu primo Acácio, que tem o apelido de Junior Baiano, trabalhava num lava-jato, e fui ver se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que um camarada dele tinha um lava- jato no Carmari, um bairro que apesar de ser na cidade de Nova Iguaçu era muito distante de onde eu morava, e que eu poderia arrumar um trabalho por lá. Me passou o endereço e eu fui pedir emprego. Eu já sabia dirigir e isso facilitou na hora da contratação. Chegando ao lava- jato fi quei surpreso porque três caras que moravam na minha rua já trabalhavam lá, falei com o dono e comecei no mesmo dia. O salário era R$15,00 por semana. Não tinha folga, não tinha dinheiro de passagem, não tinha dinheiro pra com- prar almoço, e o salário mínimo na época era R$64,79. Mas eu estava feliz de estar trabalhando lá, era o meu dinheiro, conseguido, literalmente, com o meu suor. Com o passar do tempo eu comecei a rezar pra chover, pois quando chovia a gente não trabalhava. Todos os funcionáriosdo lava-jato se reuniam, pegávamos uns baldes pra batucar e começávamos a cantar samba, eu sempre infi ltrava umas rimas no meio. Mas no outro dia, se fi zesse sol, tinha trabalho em triplo. 44 Enraizados: os híbridos glocais Eu passava muito tempo na rua, e não a achava perigosa. Frequentemente via corpos nas esquinas, muitas vezes de conhecidos e até mesmo de amigos. Era costume os pais levarem as crianças para verem os mortos. Minha mãe nunca me levou, ela morria de medo. Quando as pessoas não morriam assassinadas, eram atropeladas na Dutra e a molecada ia ver, esperando o rabecão chegar pra recolher o corpo. A morte estava banalizada na minha área, a vida não tinha valor, e creio que hoje, por conta de muitos fato- res, é ainda pior. Amigos de infância se mataram. Todo mundo sabe quem são os assassinos, mas ninguém fala nada. A polícia não investiga e fi ca tudo por isso mesmo. Eu fi cava pensando: “Por que a polícia não investiga as mortes que acontecem nas periferias?” Teve um momento, na minha rua, em que todos anda- vam armados, inclusive eu. Um dia minha mãe tomou um susto. Ela achou que eu estava meio estranho, entrava e saía muitas vezes do quarto. Ela esperou eu sair e abriu a porta do meu guarda-roupas, foi mexer nos meus livros e caiu um revólver calibre 38 no seu pé. Nunca vi minha coroa chorar tanto. A arma era do meu tio, disse que ele tinha dado pra eu guardar. Ela acredi- tou na minha versão, porém fi cou com um ódio mortal do meu tio. Como eu tinha o costume de andar com os caras mais velhos, às vezes ouvia o que não devia. Sabia das pes- soas que iriam morrer, dos assaltos que os caras iriam fazer, mas eu estava ali no meio e eles não se importa- vam em falar desses asssuntos perto de mim, fi cavam tranquilos porque sabiam que eu era confi ável. Acho que na época eu tinha ainda 15 anos. E de uma maneira ou 45Antes de tudo de outra eles eram minha referência, eu achava maneiro o que eles faziam, apesar de não fazer igual. E isso é o que acontece com os moleques da minha área até hoje, eles acham que vão ter mais respeito dos outros se eles andarem armados, se roubarem ou praticarem outro delito qualquer. Minha sorte era que a palavra da minha mãe era sobreposta a qualquer outra, então valiam sem- pre os valores que ela me passava. Hoje em dia os valores estão perdidos, e se ninguém intervir para mudar essa realidade, muito garoto ainda vai morrer, porque em Morro Agudo não tem tráfi co de drogas igual ao centro do Rio de Janeiro, onde os bandi- dos passeiam de fuzil na rua. Em Morro Agudo é grupo de extermíno, se as pessoas fumam maconha, cheiram, brigam em baile e roubam, não tem perdão, é morte. Um dia estava saindo de casa, acho que ia pra escola, e dezenas de carros de polícia estavam parados na minha rua, procurando uma galera da área que dias antes tinha roubado um carro-forte. O pessoal do bairro fazia piada dizendo que se alguém chegasse na 56ªdelegacia, Morro Agudo, e dissesse que morava na minha rua, a Turíbio da Silva, fi cava preso. Os policiais diziam que toda a bandi- dagem do bairro morava nessa rua. E tem gente que não entende de onde vinham as inspirações para o rap que eu escrevia. Toda essa história contraditória que eu vivia e testemunhava se transformava em arte através do rap. Ao mesmo tempo que eu estava tão próximo, me afas- tava cada vez mais. Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Dis- tribuidora. O meu tio Humberto trabalha lá e estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época ouvia muito rap, GOG, Thaide, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual. Tudo era na base da fi ta cassete. 46 Enraizados: os híbridos glocais Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, me emprestou uma fi ta do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano, que na época já era o meu irmão, e a partir de então começamos a ouvir somente CXA. Desde 1992 já existia a organização ATCON no Rio de Janeiro, e Gabriel, o Pensador, Def Yuri, TR, Big Richard, entre outros, já estavam no cenário, pensando e discu- tindo o rap carioca. Mas eu e meu irmão estávamos ini- ciando no processo sem ter noção da importância que tinha o movimento hip-hop pra essa galera. Hoje tenho orgulho de dizer que todos esses que citei, com exceção do Gabriel e do DJ Hum, são meus amigos, e que isso é uma honra pra mim. O meu irmão conhecia e gostava de rap bem mais do que eu, e ele sempre tinha as novidades. Mas é importante deixar claro que a gente não tinha noção do que real- mente era o hip-hop, nem mesmo sabíamos que exis- tiam os famosos quatro elementos: rap, break, DJ e gra- fi te. A gente gostava mesmo de rap, de ouvir e escrever algumas coisas, sempre protestos, seguindo a linha dos grupos que já conhecíamos. 47Antes de tudo 48 Cabeça vazia: ofi cina do diabo O Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. — Sigmund Freud O estágio na Petrobras não “virava”, ou seja, não acon- tecia, e por isso eu tinha que arrumar outra parada pra fazer. Foi então que o Serginho me chamou para traba- lhar com ele numa obra, eu seria ajudante de pedreiro. Nunca tinha preparado uma massa em toda a minha vida, mas como eu estava precisando de grana, enca- rei na boa. O Serginho é mais um dos meus amigos que entrou para a Polícia Militar. Em julho de 1995 comecei a estagiar na Petrobras. Eu pegava o trem em Morro Agudo, descia em São Cristóvão e de lá ia andando. Levava cerca de uma hora até chegar no prédio da BR, como o pessoal chamava. Recebia um salário legal, ainda tinha vale-transporte, ticket refeição e quase sempre vinha um dinheiro a mais no pagamento. Foi nessa época que comprei meu primeiro computa- dor. Era um 486DX4-100, top de linha, os famosos Pen- tium nem existiam. Fui aclamado por meus amigos que já tinham computador, agora eu estava no bonde dos caras que tinham computador, e não rolava inveja, eles sabiam que eu merecia ter minha própria máquina, que era um sonho e não um capricho, tanto que fi quei usando 49Antes de tudo o mesmo computador até 2002. Foi nesse computador que produzi muitos beats pra mim, para o Léo da XIII, para o Ultimato à Salvação, e muitos anos depois nele fi z também o Portal Enraizados e outros trabalhos. Nesse ano o Netinho trabalhava no centro do Rio de Janeiro, nós vínhamos juntos de trem, da Central para Morro Agudo, nos divertindo na viagem. Ele vinha na porta, eu na parte de dentro, tinha uma preocupação porque dois amigos da minha rua já caíram do trem, os caras iam em cima porque o trem vivia lotado. No ano seguinte saí da Petrobras e fi quei novamente desempregado. Estava com 17 anos e provavelmente não arrumaria emprego por causa do quartel, então fi quei só estudando e fazendo trabalhos de informática em casa. O tempo livre para esses jovens está relacionado ao desemprego e à falta de oportunidades, portanto suas consequências são bastante diferentes do tempo livre dos jovens mais abastados. [Paula Martins Salles, pag 9] Eu fi z tanta merda esse ano que quase fui preso duas vezes. A primeira foi porque os moleques da minha rua andavam armados e um dia bateram de frente com o carro da polícia. Eles saíram correndo, a polícia atrás deles, e no desespero e sem ter onde se esconder, entra- ram numa casa. A polícia fi cou com medo de entrar e os moleques mandarem bala, então a tia de um deles saiu chorando no portão e disse que a arma era minha. Os policiais foram bater na minha casa, meus pais estavam trabalhando, eu estava em casa, mas não abri a porta porque sabia que eles não poderiam invadir. A rua estava cheia de gente. Eles foram embora, mas as fofoqueiras esperaram noponto de ônibus a minha mãe chegar do trabalho e disseram que a polícia estava me 50 Enraizados: os híbridos glocais procurando porque eu havia roubado o Ciep. Nem pre- ciso dizer que minha mãe quase morreu do coração. Dessa vez eu nem tive culpa. Mas na semana seguinte falsifi quei umas carteiras de um clube aqui da cidade, o Dallas, porque lá tinha uma piscina enorme e a galera da minha rua queria curtir, mas não tínhamos grana pra entrar. A saída era falsifi car as carteiras. Um dos sujeitos que andavam comigo conseguiu uma car- teirinha do clube e me deu pra eu reproduzir. Fiz 12 idên- ticas, mas não deu tempo de fazer os carimbos. Eu disse pra todo mundo não alterar a carteira, mas um dos garo- tos passou uma canetinha em torno da foto para simular o carimbo. Quando nós chegamos no Dallas quem estava na porta olhando as carteirinhas era o dono do clube e o segurança particular dele, que era policial. Quase todas as carteirinhas passaram, mas na última o cara percebeu que era falsifi cada, justamente porque a tinta da caneti- nha manchou. Então sujou pra todo mundo. Eles enquadraram a gente na parede, seguraram nossas carteiras de identidade e chamaram a polícia. O dono do clube perguntou quem tinha feito e respondi dizendo que tinha sido eu. Ele me chamou de estelionatário, disse que minha mãe ia me visitar na cadeia. Lembrei do que havia acontecido na semana anterior e tentei argumentar, mas o cara nem deixava eu abrir a boca. Colocava a pistola 9mm na minha cabeça, perguntava se eu era maluco, se eu sabia quantos anos de cadeia eu iria pegar por isso. Eu, tranquilo, disse: “Nenhum, nós somos todos menores de idade.” Então ele gritou que ia matar todo mundo pra gente deixar de bancar o malandro. Com muita argumen- tação o cara liberou a gente, com a condição de levarmos a pessoa que deu a primeira carteirinha, pois ela seria expulsa do clube. Deixamos nossas identidades com ele como prova de que voltaríamos com o tal sujeito que 51Antes de tudo tinha a original. Assim que saímos do clube chegaram três carros de polícia. A gente estava de bicicleta e corremos muito, meu coração estava a mil por hora. No fi nal tudo deu certo, ninguém foi preso e ninguém morreu. No ano seguinte comecei na Unig, uma universidade parti- cular de Nova Iguaçu. Fiquei por lá uns dois anos, cursava Tecnologia em processamento de dados, mas não conse- guia pagar. Minha mãe estava desempregada, eu também não arrumava mais grana, então tava tudo na conta do meu pai, que não conseguiu segurar. Ele até disse pra eu fi car que ele daria um jeito, mas eu não quis, porque pas- sava por constrangimentos em sala de aula. Quem estava devendo a mensalidade não podia ter acesso à nota e era cobrado dentro de sala, na frente de todos, e isso me envergonhava muito, até que abandonei o curso. 52 Enraizados: os híbridos glocais 53Antes de tudo Cap.02 Enraizados: como começou? Cap.02 Enraizados: como começou? 58 A criação do Movimento Enraizados Dou um destino para minha mente e o inconsciente trabalha em cima do caminho que devo seguir! — Israel Ziller Era tímido, não gostava de conversar com muita gente, nem de ser o centro das atenções, e se eu pudesse até preferiria passar despercebido, mas sempre gostei de fi car por dentro das coisas, saber de tudo o que acon- tece, como acontece e por que acontece. Assim que recebi minha carta de alforria do Exército, meu amigo Netinho informou que precisavam de uma pessoa no supermercado em que ele trabalhava. Neguei na hora. Não fazia sentido eu sair da Petrobras Distribui- dora e entrar no supermercado Alto da Posse, um super- mercado de que até então nunca tinha ouvido falar. Porém a necessidade falou mais alto, e eu aceitei. Comecei a trabalhar no mercado no dia 25 de novembro de 1997. Lembro que pensei em fi car somente uns três meses, até eu me estabilizar, por isso aceitei qualquer setor, e caí no de contas a pagar. Meu sonho sempre foi a área de informática e eu havia prometido para mim mesmo que só trabalharia se fosse nesta área, jamais aceitaria outra proposta. Na verdade, eu queria adquirir experiên- cia na carteira e depois voltar para a universidade. 59Enraizados: como começou? Quando me dei conta já estava há um ano no supermer- cado, não era mais tão ligado aos camaradas do meu bairro e fi cava muito na casa do meu irmão, que nessa época morava na Abolição, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi nesse ano que conheci minha primeira namorada, a Shirley, com quem namorei sete meses, o namoro mais longo da minha vida até eu conhecer a Fer- nanda Rocha, minha atual namorada, com quem estou há mais de dois anos. Nesta época eu só ouvia rap, já tinha muitas fi tas cas- sete, então eu e meu irmão, o Luciano Gomes, conhe- cemos o Arariboia, um camarada que sabia tudo de rap, pelo menos bem mais do que a gente. Depois de algumas conversas surgiu o Humildes Pensativos, nosso primeiro grupo de rap. Escrevi muitas letras nessa época, inclu- sive a música “Sacolinha”, que gravei no meu primeiro disco solo, “Rolo compressor”, dez anos depois. O Humildes Pensativos nunca saiu do papel, simples- mente pelo fato de eu não conseguir cantar em público e o meu irmão não conseguir cantar no ritmo. O Arariboia foi preso pouco tempo depois da criação do grupo, o que desandou tudo de vez. Terminei o namoro com a Shirley, me afastei da Abolição e voltei para Morro Agudo. Em 1998, já estava muito envolvido com o rap. Escre- via muitas letras, tinha ido algumas vezes ao show do Racionais MCs (grupo de maior projeção no hip-hop bra- sileiro, chegaram a vender mais de um milhão de cópias do disco “Sobrevivendo no Inferno”), e também conhe- cia a música de alguns grupos de rap que não eram tão populares no meio do hip-hop. Sentia a necessidade de aprender mais sobre essa cultura. Algum tempo depois passei um mês em Barra do Piraí, cidade do interior do Rio de Janeiro, porque minha namorada estava grávida. Lá os dias pareciam mais 60 Enraizados: os híbridos glocais longos, eu tive tempo de refl etir sobre a minha vida e o que aconteceria dali para frente. A minha responsa- bilidade aumentaria, e muito, com a chegada da minha primeira fi lha, a Bia. Lembro que meu cunhado também gostava muito de rap. A gente fi cou amigo logo na primeira conversa, ele é um cara gente boa, molecão, leva a vida “na vaselina”. Ele disse que me apresentaria a um outro camarada que também gostava muito de rap, e que inclusive tinha um grupo chamado 2ª Via, o Wilson Neném, um cara negro, magro, que usava dreadlocks e que media mais ou menos 1,75m. Conheci o Neném, como o chamam em Barra do Piraí, numa manhã ensolarada. Ele nos atendeu com cara de quem tinha acabado de acordar. Nesta época ainda não existia o Dudu de Morro Agudo, eu era o Flávio Eduardo ou o Cabeça, apelido que me colocaram na infância. O Neném tinha uma visão ideológica, fi losofava o tempo inteiro, às vezes muito sonhador, mas eu precisava dessa carga de positividade para ter a ideia de criar o que mais pra frente seria o Movimento Enraizados. Eu já estava de saco cheio de fi car em Barra do Piraí, não tinha o que fazer na cidade. Passava um tempo na casa do Neném conversando sobre rap, ele me mostrando CDs de rap gringo. Lembro que ele me deu um disco do grupo Fugges, e a partir daí eu virei fã da Lauryn Hill. Ele também gostava muito de Thaíde e DJ Hum. Até hoje aprendo muito com ele, nos damos superbem, apesar de nossas personalidades serem bem diferentes. Alguns dias depois o Neném me apresentou o Juninho, que também tinha dreadlocks. Eles pareciam artistas concei- tuados, falavam bem e conheciam muito de música, os dois já eram integrantes de bandas, o Neném como DJ e o Juninho cantando. Eu me sentia feliz em estar com esses 61Enraizados: como começou? novos amigos, então osconvidei para o aniversário da minha namorada. Ela, por sua vez, convidou seus amigos e amigas, mas a galera do rap fi cava no lado B (entre eles) da festa, bebendo cerveja e fazendo rimas. Nesse dia, talvez por causa do álcool, eu improvisei muito bem, e improvisar nunca foi meu forte, minha parada era escrever letras de rap. Mas nesse dia o Neném se conven- ceu de que eu era um bom rimador, e, por causa da minha performance, ele me convidou para integrar o grupo de rap 2ª Via. Quando o convite aconteceu, dentro de um ôni- bus que seguia do bairro de Vila Helena para o centro de Barra do Piraí, eu não acreditei, principalmente porque o Neném me disse que tinha uns contatos na Sony e estava quase tudo certo para gravarmos um disco. Estava cada vez mais eufórico com o rap e o hip-hop, sons que eu começava a entender o fundamento. Andando pelas ruas do centro de Barra do Piraí passei por uma banca de jornal e comprei uma revista de hip-hop cha- mada “Som na Caixa”. Comprei também canetas, lápis, borracha e um caderno pra escrever letras de rap, por- que a inspiração vinha a toda hora. Quando cheguei em casa comecei a folhear a revista e vi algo interessante: o CD que vinha junto, além dos endereços de militantes do hip-hop. Eu pensei em escrever para todos aqueles endereços, mas não sabia o que dizer. Talvez dizer que eu era um cara gente boa, morador de Morro Agudo, no Rio de Janeiro, e que não entendia de rap, mas que gostaria de receber alguns materiais para estudar sobre essa cultura. Isso seria o mais correto, mas achei que as pessoas não dariam atenção a um cara tão sem história dentro do hip-hop como eu. Então decidi escrever outra história, contando que fazia parte de uma organização de hip-hop. Eu precisava arrumar rápido um nome para a tal organização que estava aca- bando de criar. 62 Enraizados: os híbridos glocais Pesquisando na internet encontrei uma frase do Tupac: “Quanto mais escura é a pele, mais profundas são as raí- zes.” Achei a frase muito boa, forte. Lembrei também do Juninho, que sempre falava a palavra enraizado. Era uma espécie de gíria que somente ele usava, não sei bem se isso vem do reggae, mas ele falava essa frase com fre- quência. Eu não tinha mais dúvidas. Fazia parte do Movi- mento Enraizados, uma organização com o objetivo de interligar pessoas que praticam hip-hop em todo o Brasil. Lembro que enviei apenas três cartas, uma para o Dime- nor (Rodrigo de Oliveira), de São Paulo, outra para o Cas- siano Pedra, de João Pessoa, na Paraíba, e por último para o Gil BV, de Teresina, no Piauí. Recebi o retorno do Dimenor e do Cassiano Pedra, que me informaram que enviaram meu endereço para alguns militantes de outros estados do Brasil, e que também gostariam de fazer parte do Movimento Enraizados. Os dois foram os primeiros integrantes da organização que acabava de nascer. Quando recebi as duas primeiras cartas senti uma feli- cidade impossível de descrever. Foi algo que nunca mais senti na vida. Ser valorizado por um trabalho não tem a ver com ego, mas com autoestima. Passaram-se alguns dias e chegaram dezenas de cartas na minha casa. Eu tentava responder a todas, mas com a falta de tempo era inviável retribuir a enorme quantidade de cartas que chegavam. O custo dos correios estava fi cando alto e minha mãe começava a fi car preocupada porque eu não saía mais de casa. Era o tempo todo dedicado ao Movi- mento Enraizados, lendo e respondendo cartas. As histórias que os militantes relatavam eram impres- sionantes, as pessoas queriam falar, se mostrar para mundo, mostrar o seu mundo, suas músicas, suas ideias e pinturas, mas não havia um canal para escoar toda 63Enraizados: como começou? essa arte, essa gana de comunicação. A propagação de endereços, poesias e desenhos foi devida aos fanzi- nes, que eram febre na época. Existiam diversos títulos, em toda carta que eu recebia via um fanzine, às vezes o mesmo em cartas diferentes. Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais pro- priamente da aglutinação da última sílaba da palavra magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Trata- se de uma publicação despretensiosa. Engloba todo o tipo de temas, com especial incidência em histórias em quadrinhos, fi cção científi ca, poesia, música, femi- nismo, em padrões experimentais. No Brasil o termo fanzine é genérico para toda produção independente. Houve uma distinção entre fanzines (feitos por fãs) e produção independente (produção artística inédita), mas a disseminação do termo fanzine fez com que toda a produção independente no Brasil, antes denominada boletim, fosse denominada fanzine. Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/fanzine) Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movi- mento Enraizados, e pode ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo, mutante, assim qualquer defi nição expira rapidamente. 64 Enraizados: os híbridos glocais 65Enraizados: como começou? 66 Enraizados: os híbridos glocais 67Enraizados: como começou? 68 Portal Enraizados Muita gente pequena Em muitos lugares pequenos Fazendo coisas pequenas Mudará a face da Terra — Provérbio Africano Impulsionado por minha difi culdade fi nanceira, resolvi criar uma maneira que evitasse as cartas, foi assim que surgiu a ideia de fazer a versão 1.0 do Portal Enraizados. Por meio das cartas e dos fanzines percebi que meus novos correspondentes tinham necessidade de se comu- nicar e mostrar sua arte para o mundo. Decidi usar minha experiência com programação para criar uma ferramenta que possibilitasse publicar textos, pinturas e músicas dos novos membros do Movimento Enraizados. A ferra- menta ideal seria um site, mas havia um grave problema: eu era formado em uma linguagem de programação que não dava suporte à internet. Teoricamente eu não con- seguiria fazer um site. Além disso, a internet não era tão popular em meados de 1999, quando surgiu esta ideia, e talvez o site não tivesse a utilidade que eu esperava. Mesmo com todos os contras, fazer o site era a única solução prática que estava ao alcance naquele momento. Eu já tinha um computador e minha avó havia com- prado uma linha telefônica com uma extensão até o meu quarto. A questão da internet estava resolvida, mesmo 69Enraizados: como começou? sendo uma internet que quando estava veloz chegava a no máximo 46kbps. Coloquei a mão na massa, baixei apostilas da internet e comecei a estudar HTML para poder construir o site. Aprendi também a editar imagens para produzir algumas coisas gráfi cas, como por exem- plo, o logotipo do Movimento Enraizados. Aliás, fazer o logotipo foi uma força-tarefa. Começou com uma vaga ideia que eu tive do que seria o símbolo que representaria a organização. Pedi, então, ajuda para um amigo que trabalhava na mesma empresa que eu, no departamento pessoal, o Luiz Antônio, um cama- rada que com o passar do tempo se tornou um verda- deiro irmão. Todos os dias a gente parava num bar pra beber umas cervejas e eu fi cava o tempo inteiro falando de Movimento Enraizados e hip-hop. Ele, que curtia mais rock, de tanto fi car ouvindo minhas histórias aca- bou gostando de rap. O Luiz arrumou o desenho que eu comecei a fazer, mas ainda estava muito ruim, longe de ser um logotipo decente. Então liguei para o Neném e pedi ajuda. O Neném, além de rapper, grafi teiro, b. boy e DJ, é ainda um dos melho- res desenhistas que eu conheço. Inclusive foi ele quem me ensinou os primeiros passos no Corel Draw e no Pho- toshop. Já desenhou para marcas como a Redley, a Qix e a Oceano, e hoje ele tem sua própria marca de roupas, a Jah Bless. Ele topou fazer o logo, então enviei pelo cor- reio o esboço que eu e o Luiz criamos. Hoje a gente manda tudo por e-mail e usa algum ser- vidor para baixar depois, mas antigamente era mais difícil. A saída era recorreraos correios e esperar um tempo até a pessoa receber, fazer o trabalho e enviar de volta. Uma semana depois fi cou pronto o logotipo que fi cou famoso no Brasil inteiro, totalmente diferente do esboço que enviamos. 70 Enraizados: os híbridos glocais Assim como surgiram conceitos a respeito do nome Enraizados e da forma de trabalho da organização, não foi diferente com o logotipo. Ele tem alma e concei- tos próprios, não é apenas um desenho, representa as etnias, o modo como trabalhamos nas comunidades: não vejo, não escuto e não falo. Teoricamente. Em menos de um mês eu já sabia bastante de HTML, e coloquei o primeiro site do Movimento Enraizados no ar, com hospedagem e endereço gratuitos. (www.enraiza- dos.cjb.net). Enviei cartas para todos que se correspon- deram comigo e pedi que passassem o endereço do site para outras pessoas, e que também me enviassem tex- tos por meio de cartas ou e-mail para que eu pudesse publicar no site. Como não havia tanta gente com acesso a internet, as cartas continuaram a chegar aos montes, mas eu tinha a vantagem de não ter obrigação de res- ponder a todas, somente publicar no site. O Portal Enraizados foi o primeiro projeto do Movimento Enraizados e está no ar até hoje, no endereço www. enraizados.com.br. Ficava feliz quando comparava as estatísticas iniciais do site, em que havia somente 30 acessos por mês, com as dos meses posteriores, e a cada novo acesso eu vibrava e tentava descobrir quem era. Percebia que a organização dava certo, que as pes- soas estavam aderindo e que realmente o Movimento Enraizados se tornava aquilo que eu havia profetizado nas primeiras cartas. Trabalhar para o desenvolvimento do Movimento Enrai- zados era parte da minha rotina, e a cada dia eu induzia mais pessoas a fazer o mesmo. Meus amigos contribu- íam com a organização sem saber ao certo o que era. Alguns achavam que era um hobby, e que mais cedo ou mais tarde eu desistiria da brincadeira. 72 Iniciando projetos Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito. — Martin Luther King O Movimento Enraizados se comunicava com São Paulo, Paraíba e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro os locais de maior engajamento eram Nova Iguaçu e Barra do Piraí. Cada vez mais pessoas entravam em contato, enviavam músicas e fotografi as. As perguntas sobre os projetos que o Movimento Enraizados realizava no Rio de Janeiro eram frequentes nas cartas, assim como os pedidos para que eu enviasse minhas músicas e as músicas dos outros integrantes. Como o grupo de rap 2ª Via não saía das conversas de fi m de semana que aconteciam na casa do Neném, eu decidi gravar meu primeiro rap sozinho. Havia um programa de computador chamado Hip-hop eJay que servia para fazer bases instrumentais de hip-hop. Fiz algumas para gravar uns raps que havia escrito, mas não conhecia um estúdio, e isso era um problema. Trabalhava comigo no supermercado Alto da Posse um senhor evangélico chamado Edson, que era evolvido com música. Ele tinha muitas composições e estava come- çando a gravar um disco. Perguntei se ele conhecia algum 73Enraizados: como começou? estúdio onde eu pudesse gravar meus raps, e ele me indi- cou um em Campo Grande, bairro que fi ca a quilômetros de distância de onde eu moro, Nova Iguaçu. Mas aceitei ir nesse estúdio, até porque eu não conhecia outro. O senhor Edson se encarregou de marcar a hora para mim no estúdio, me disse o preço, eu juntei o dinheiro e fui com minhas letras debaixo do braço. Quando estava chegando, lembrei que uma das músicas era cheia de palavrões e se o dono do estúdio fosse evangélico poderia haver um constrangimento de ambas as partes, mas graças a Deus não foi o que aconteceu. O cara era super gente boa e até gostou das minhas músicas, que eram quilométricas. Tinha uma com quase dez minutos, seguia o padrão dos raps da época. As músicas que gravei naquela ocasião foram: “Dudu”, “Negra difícil” e “Por quê?”. Gravei as três músicas em duas horas, pois não tinha dinheiro para fi car mais tempo no estúdio, e nem expe- riência para saber se aquilo estava certo ou errado. Eu queria pegar a fi ta K7 gravada com minhas três músicas, colocar no walkman e ir para casa ouvindo-as repetida- mente nas quase duas horas de viagem de volta. Quando cheguei em casa coloquei o som para minha família ouvir. Era tudo muito diferente para eles, ninguém sabia ao certo o que falar. Na música “Dudu” eu cantava em primeira pessoa. Era um bandido que no fi nal da música morria por causa das drogas, do crime na sua comuni- dade e da traição de um amigo. Hoje, quando paro pra refl etir, percebo que essa letra era o refl exo da minha infância. Essa música pode ser ouvida em sua versão original no site da gravadora Trama (http://tramavirtual. uol.com.br/dudu_de_morro_agudo). Rapidamente eu dei um jeito de copiar algumas fi tas e distribuir entre os amigos, principalmente os que tra- balhavam comigo e não acreditavam que era eu mesmo 74 Enraizados: os híbridos glocais quem estava cantando. Cada vez mais empolgado com as músicas, decidi enviar algumas fi tas para rappers de outros estados, e estes, por sua vez, me enviavam as suas para que eu e todos do Enraizados ouvíssemos. Alguns meses depois fui a Barra do Piraí e contei para o Neném que o Movimento Enraizados estava crescendo, e que já existiam algumas pessoas de outros estados fazendo parte dele. Neném não entendia como isso tudo estava acontecendo tão rápido, mas mesmo assim fi cou orgulhoso. Mostrei, então, as músicas que havia gra- vado. Eu sabia que nosso estilo de cantar rap era dife- rente, mas mesmo assim senti que ele se surpreendeu com o que eu havia feito em tão pouco tempo. Naquele momento devolvi a carga de positividade que ele me deu quando o conheci. Toda vez que ele criava algo e me mostrava, parecia que eu tomava uma injeção de ânimo e começava a criar também, até mesmo para além da música. Eu estudava para aperfeiçoar o site, por exem- plo, entre outras atividades. Em nossa primeira conversa institucional gravamos raps num estúdio em Barra do Piraí, muito mais bonito e equi- pado do que aquele em Campo Grande, onde eu havia gra- vado as primeiras músicas. Gravei com o Juninho um rap chamado “O ponto”. O Neném também utilizou o programa Hip-hop eJay para produzir as bases instrumentais. Esse era o único que a gente conhecia e sabia manusear. Quando voltei para Nova Iguaçu enviei as minhas músicas e as do Neném para a galera dos outros estados. Nessa época não dava para colocar as músicas no site porque nas hospedagens gratuitas não havia espaço sufi ciente. Muita gente gostou das nossas músicas. Eu me empol- guei e divulguei que o Movimento Enraizados planejava fazer uma coletânea nacional de rap, e que os interessa- dos deveriam enviar suas músicas por correio ou e-mail. 75Enraizados: como começou? A notícia se alastrou como um rastro de pólvora. Fanzi- nes e rádios comunitárias divulgavam a coletânea, e eu fuzilava e-mails pelo site. Essa foi a primeira vez que o coletivo, pessoas com que eu nunca havia conversado pessoalmente, trabalhava a comunicação alternativa – fanzines, rádios comunitárias e internet – para propa- gar um projeto do Movimento Enraizados. Quase o Bra- sil inteiro sabia da coletânea que faríamos, menos o Rio de Janeiro, por isso decidi procurar alguns grupos de rap da minha cidade. Lembrei que quando vinha de ônibus do centro de Nova Iguaçu para Morro Agudo, via a movimentação de uma galera que aparentemente era do hip-hop num lugar chamado MAB (Federação das Associações de Bairro de Nova Iguaçu). Um dia, quando saímos do trabalho, por volta das 18h, chamei o Netinho para me acompanhar até o local e verifi car se aquelas pessoas eram mesmo do hip-hop, e se eles queriam participarda coletânea. O Neto já estava totalmente envolvido no processo, parti- cipando lado a lado. Chegando lá falei com um rapaz que estava em um quarto mexendo na aparelhagem de som. Conversamos através da grade da janela. Ele estava muito tenso porque dias antes roubaram todo o equipamento de sua organização, a M2HBF (Movimento Hip-Hop da Baixada Fluminense). Apresentei-me como Dudu e disse que fazia parte do Movimento Enraizados, uma organização de hip-hop de Morro Agudo. Para minha surpresa ele fi cou nervoso e disse que não existia organização de hip-hop em Morro Agudo, a única organização de hip-hop que existia na cidade de Nova Iguaçu era a dele, a M2HBF. Mesmo o achando estúpido e mal-educado, tive que con- cordar com o fato. O Movimento Enraizados era uma orga- nização mais virtual do que presencial, e até então eu não 76 Enraizados: os híbridos glocais conhecia qualquer integrante do hip-hop em Nova Iguaçu. Aquele era o meu primeiro contato, e não estava sendo muito bom. Todos os integrantes do Enraizados eram de fora do estado do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu a minha rapaziada nem sabia o que era hip-hop. O rapaz se apresentou como B. Boy Gero, nos mostrou as instalações do MAB e disse que fazia eventos ali den- tro, mas não tinha dinheiro nem para comprar papel higi- ênico. Sugeri fazer alguns eventos de hip-hop e cobrar o valor simbólico de R$1,00 de entrada, somente para comprar os produtos de limpeza, que eram uma neces- sidade. Na época eu procurava eventos de hip-hop como um louco, e se eu pudesse curtir um na cidade certa- mente pagaria R$1,00. Outras pessoas também, só era necessário encontrá-las. Ele discordou fi rmemente de mim e disse que não cobra- ria evento ali de maneira alguma. Realmente o hip-hop tinha dessas coisas, e acho que ainda tem. Você investe do seu bolso, não tem retorno e acha normal. Eu mesmo fi z isso várias vezes, a diferença é que não reclamava. Durante a conversa o B. Boy Gero me apresentou outro camarada que também era MC, a quem tempos depois eu seria apresentado novamente, o SDL, que hoje atende pelo pseudônimo Átomo. Ele era integrante do grupo Ultimato à Salvação, hoje apenas U-SAL, junto com sua esposa, Lisa Castro. Eu e B. Boy Gero não chegamos a um acordo. Já na pri- meira conversa pude perceber que a gente não tinha muito em comum. Continuei, assim, minha procura por outros grupos de rap da cidade. Apesar de respeitar o trabalho e a história dele dentro do hip-hop na Baixada Fluminense, essa foi a primeira e a última vez que a gente conversou por mais de dez minutos. 77Enraizados: como começou? Recebi cartas de muitas pessoas que queriam partici- par do CD. Naquela época era muito difícil gravar, mas mesmo assim chegaram músicas de oito grupos de rap, de seis estados diferentes (PB, SP, MS, TO, RJ e SC). No começo de 2001 instalei um gravador de CD no computa- dor para gravar a coletânea. Comprei os CDs virgens, fi z a arte-fi nal das capas e comecei o processo de gravação dos CDs. Eu não tinha conhecimento de mixagem e mas- terização. Do jeito que as músicas chegavam à minha mão elas entravam no CD. A coletânea tinha três objetivos: 1) Divulgar os grupos de rap. Numa coletânea de oito gru- pos de rap, se um divulgasse o CD na sua cidade, divulgaria a música dos outros sete grupos em lugares a que eles, teoricamente, não teriam acesso. Era um trabalho para ser executado coletivamente, pois quanto mais empenho houvesse mais retorno de divulgação nós teríamos. 2) Gerar renda. O projeto do CD era livre, desde que man- tivesse sua forma original, isto é, as músicas na ordem e a capa. Cada grupo, ou qualquer pessoa, poderia vender o CD para gerar renda e, voltando ao objetivo número um, divulgar ainda mais os grupos. Quanto mais gente envolvida no processo de venda, mais longe as músicas chegariam. 3) Propagar as ideias do Movimento Enraizados. Como a ideia inicial do Movimento Enraizados era fazer as pes- soas interagirem, esse projeto cairia como uma luva. Dezenas ou centenas de pessoas de várias cidades do Brasil, trabalhando coletivamente por um objetivo, sem gastar grana. Pelo contrário, ganhando grana. Eu gravava dez CDs por dia e enviava para um dos grupos participantes. Esse, por sua vez, deveria vender os CDs, fazer mais cópias no seu estado e divulgar os outros gru- pos. Era esse o combinado. O valor dos CDs fi cou muito 78 Enraizados: os híbridos glocais alto para eu bancar sozinho. Para cortar custos parei de fazer as capas na gráfi ca. A ideia era fazer fotocópias em preto e branco, mas chegou num ponto que até a cópia saía caro. Para piorar ainda mais a situação o meu gravador de CD queimou com um mês de uso. Apesar de não haver mais como levar o projeto adiante, a coletânea dava o que falar pelo Brasil afora, as pessoas comentavam que essa era a primeira coletânea nacio- nal de rap. Para o projeto não parar, pedi ajuda aos meus amigos de trabalho, do supermercado Alto da Posse, para produzir mais CDs a um custo mínimo. Na verdade eu só comprava os CDs e tirava cópia das capas na empresa. A gente fazia uma verdadeira opera- ção. Havia apenas uma máquina copiadora no escritório para todos os funcionários usarem. A galera se organi- zava e cada um tirava dez cópias, para eu não ter pro- blemas depois. Eram uns cinco caras envolvidos no pro- cesso para a coletânea continuar sendo reproduzida. Na empresa também havia um gravador de CD, que fi cava no servidor. O programador da empresa, responsável pelo servidor, é até hoje meu camarada, Luciano Lyrio. Ele gravava todos os meus CDs na hora do expediente, o que muitas vezes causava lentidão nos terminais. Os funcionários pediam que fosse reiniciado o servidor pelo menos umas 30 vezes por dia, mas ele só reiniciava quando acabava de fazer as cópias. Às vezes os funcio- nários tinham que esperar vinte minutos até acabar de gravar um único CD, só depois eles podiam trabalhar. Creio que o maior presente que eu ganhei com esse pro- jeto foi presenciar a coletânea sendo negociada durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre. Essa coletânea verdadeiramente cumpriu seu papel. Nos anos seguintes lançamos mais duas coletâneas que fi zeram 79Enraizados: como começou? muito sucesso. A “Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”, também nacional, e a “Raiz do hip-hop”, ape- nas com grupos de Morro Agudo. As coletâneas foram se transformando em marca registrada do Movimento Enrai- zados, e por meio delas o nome da organização começou a ser citado com frequência nas periferias do Brasil. 80 Enlaçado pelo Enraizados Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos. — Martin Luther King A cada dia que passava o Portal Enraizados se fi rmava como ponto de encontro virtual dos praticantes do hip- hop no Brasil e um efi caz veículo de comunicação. Nesta época, começo de 2001, grande parte dos artistas, mili- tantes e produtores culturais que praticavam o hip-hop faziam seus projetos – CDs, eventos e palestras – com o dinheiro do próprio bolso, isto é, do trabalho formal. E isso não era um investimento, não havia um retorno fi nanceiro, o dinheiro era perdido em sua totalidade pelo simples prazer de exercitar o hip-hop. Com a repercussão da coletânea, muitos convites para participar de eventos começaram a aparecer no Rio de Janeiro. Lembro que foi nessa época que conheci a Veri- diana Serpa, da Firma Produções. Ela fazia uns even- tos no Rio de Janeiro, na Lapa, e também tinha um site (http://fi rmaproducoes.com) que divulgava seus traba- lhos. Ela me ligou um dia e disse: — Alô, posso falar com o Dudu? — É ele quem está falando. — Oi, aqui é a Veridiana, da Firma Produções. Nós 81Enraizados: como começou? vamos fazer um evento na Lapa neste fi m de semana e queria saber que se você topa tocar lá. — É evento de quê? Derap? — É, de rap. Um evento benefi cente. — Tranquilo, vou ver aqui na agenda e depois te ligo. Qual o seu número? Eu fi quei apavorado, tinha subido no palco apenas uma vez e estava com o Wilson Neném, em Barra do Piraí. Agora era diferente, eu tinha que fazer um som sozinho, na Lapa. Estava realmente entrando para o cenário. Dias antes do telefonema da Veridiana, eu havia rece- bido um e-mail de dois caras, Max e Zulu, que trabalha- vam no Rio de Janeiro e curtiam hip-hop. Por alguma obra do destino eles encontraram o site do Movimento Enraizados e enviaram um e-mail querendo trocar algu- mas ideias. Liguei para Veridiana confi rmando minha presença e logo depois pros caras, convidando-os para ir ao meu show. No dia marcado eu estava lá, com o CD de base e dois amigos da minha comunidade. E muito medo de cantar. Eu fi cava me perguntando: O que eu tô fazendo aqui? Meu telefone tocou, era o Max perguntando onde eu estava. Falei que estava dentro da Fundição Progresso, e então ele conse- guiu me encontrar. Estava ele, a noiva e o Zulu. Uma chuva inacreditável caiu, era muita chuva, e o evento começou a esvaziar. Encontrei a Veridiana, que me apresentou seu irmão, Jimmy Luv, que disse gostar do som que eu fazia. Foi o primeiro cara desconhecido a elogiar meu trabalho, o que me deu forças para continuar. A rede do Enraizados começava a crescer no Rio de Janeiro, já havia Wilson Neném, Max, Zulu, Veridiana, Jimmy Luv, e logo depois foram chegando mais pes- soas. Todo o trabalho de programação e gerência de conteú do do Portal Enraizados era feito na minha casa 82 Enraizados: os híbridos glocais e no meu trabalho, assim como as ligações. Por causa da repercussão do Portal Enraizados, muitas pessoas de fora do estado começavam a se comunicar. No Rio de Janeiro essa prática começou por causa do evento Mil- leniun Rap, que aconteceria no Anhembi, em São Paulo, e estava sendo divulgado no Portal. Eu queria muito ir ao evento, mas não tinha dinheiro. Todo o meu salário estava comprometido com as dívidas de casa. Não tinha esperança de que algo sobrenatural pudesse acontecer naquela altura do campeonato, mas aconteceu. O Max me ligou: — E aê, Dudu, você vai no Millenium Rap em São Paulo? — Não mano, não vou. Tô com uns compromissos aê. — Ah mano, eu e o Zulu vamos, nós vamos de carro e se você quiser pode ir junto com a gente. — Tudo bem, se rolar de eu ir te ligo ainda hoje. Mas caso eu vá, tem vaga para mais um amigo no carro? — Claro que tem, pode chamar mais um irmão que tem vaga. — Então tá tranquilo, vou levantar uma grana aqui porque tô meio quebrado. — Nem esquenta a cabeça Dudu, tu tá comigo, eu banco a tua parte. — Então já é, fi rmou bonde! Liguei para o Neném e perguntei se ele gostaria de curtir um evento em São Paulo, expliquei que iríamos de carro com dois camaradas meus, e tudo era de graça. Mas não falei que conheci os caras pela internet. O Neném concor- dou na hora e então marcamos o encontro na via Dutra, num posto de gasolina próximo de casa. Fomos todos para São Paulo, conversando, cantando e fortalecendo, mesmo que inconscientemente, o Movimento Enraiza- dos. Nos meses que se seguiram mais pessoas se apro- ximaram do Movimento Enraizados. Eu lidava com isso de forma natural, apresentava uns aos outros. Não tinha 83Enraizados: como começou? muito a noção do que estava acontecendo, mas gostava de estar com meus novos amigos, de apresentar pessoas quando eu identifi cava que tinham algo em comum. Comecei a me surpreender quando passei a receber liga- ções de outros estados me informando que pessoas do hip-hop estavam chegando ao Rio de Janeiro e se era pos- sível eu dar um suporte, uma atenção para não deixar os caras se envolverem com o crime ou algo parecido. Não conseguia ver perigo na rapaziada do hip-hop, sempre que alguém me procurava pedindo ajuda eu colocava den- tro de casa, mesmo quando eram desconhecidos. Essa é uma característica do hip-hop. Muitas vezes viajei pra São Paulo e o tratamento dos caras comigo foi o mesmo. No fi nal de 2001 o hip-hop começava a ser visto pelo poder público como uma ferramenta socioeducativa. Parcerias entre o governo e organizações não governa- mentais eram frequentes. Foi quando surgiu a parce- ria entre o AfroReggae, o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Unesco para ministrar ofi cinas de hip-hop em escolas estaduais situadas em áreas de risco, no estado do Rio de Janeiro. Recebi a proposta para ministrar uma oficina de rap em uma escola no bairro Bom Pastor, na cidade de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Belford Roxo já foi considerada uma das cida- des mais violentas do mundo. Como eu não aprendi a cantar rap na escola, achava que seria inviável ter aulas de rap ou de qualquer outro ele- mento do hip-hop, e fui contrário a isso por muito tempo. Mas por fi m aceitei a proposta e fi quei alguns meses na escola. Foi quando conheci o DJ DMC, do grupo Baixada Brothers, o b. boy Luck, do grupo GBCR, e o grafi teiro Chico CH2, da Nação Crew. Assim como eu, todos eram ofi cineiros. Bom Pastor era um bairro muito violento, dominado pelo Comando Vermelho, mas dias antes de 84 Enraizados: os híbridos glocais começarem as ofi cinas o morro foi tomado pelo Terceiro Comando. O local era um verdadeiro barril de pólvora. E eu estava lá, querendo fazer o meu papel de militante do hip-hop, mas minha ofi cina era muito vazia, a molecada queria mesmo era fazer aula de DJ, dançar e grafi tar. Certo dia chegaram dois caras, disseram que gosta- riam de fazer aula de rap e entraram para minha turma. Eles moravam em Brás de Pina, Alfi na e Tokaia. Na ver- dade, o Alfi na já era MC e queria conhecer mais pessoas que cantavam rap. Logo entrou pra família Enraizados. Outros Enraizados ministravam ofi cinas em escolas de São Gonçalo. Lembro que o b. boy Bolinho dava ofi cina de break. Anos depois estava participando de progra- mas de TV e viajando para países da Europa com uma companhia de dança. As pessoas iam se conhecendo e se enlaçando como peças de um grande quebra-cabeças, que com o passar do tempo dava forma a uma linda paisagem chamada Movimento Enraizados. 86 A imprensa nos descobriu e descobrimos a imprensa Não há opinião pública, há opinião publicada. — Winston Churchill No dia 26 de novembro de 2001 aparecemos pela pri- meira vez num jornal, “O São Gonçalo”, e em 2002 está- vamos tocando em rádios comerciais e principalmente rádios comunitárias. O ano de 2002 foi repleto de apre- sentações artísticas. Nosso nome circulava como nunca no cenário hip-hop brasileiro. Com o dinheiro das minhas férias fi z mais uma coletânea do Movimento Enraizados: “Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”. A Banca, na nossa gíria, signifi ca os amigos mais próximos. Impulsionado pela venda dos CDs, me reuni com os outros camaradas da organização e propus confeccionarmos algumas blusas do Enraizados. A ideia era criarmos uma sociedade, cada um entraria com uma parte do dinheiro e receberia algumas blusas para vender, uma porcentagem voltaria para a organização, para fazer- mos mais blusas, e o restante fi cava com a galera que investiu. O objetivo era gerar uma renda complementar, pois todos já tinham um trabalho formal, e ainda divul- gar a organização. 87Enraizados: como começou? Deu tudo muito certo, vendíamos muitas blusas e dis- cos, conseguíamos visualizar o Movimento Enraizados nas ruas, principalmente nas noites de sexta-feira na Lapa. Comecei a fazer algumas viagens para São Paulo, fi cava hospedado na casa do Rodrigo Oliveira, o Dime- nor, primeiro integrante do Movimento Enraizados, e foi nessa época que conheci o maranhense Lamartine Silva, integrante do grupo de rap Clã Nordestino. Fiquei admi- rado com seu jeito de falar. Ele tinha o dom, ou a prática, da oratória. Logo que nos conhecemos fi camosaté de madrugada conversando em uma praça próxima à casa do Dimenor. Bebemos e falamos muito, até que começou a amanhecer e o Lamartine disse que teria que ir embora. Trocamos telefones, ele tinha uma agenda velha, muito velha. Anotou meu número no meio da agenda e eu pen- sei que ele nunca mais iria achar aquela anotação. Quando menos esperávamos aconteceu o inevitável, a gente começou a aparecer nos veículos de comunicação convencionais. A ONG Viva Rio tinha um site chamado Viva Favela e fi zeram uma matéria bem legal conosco. Lembro que eu não tinha muita experiência e eles me ligavam toda hora querendo marcar a entrevista. Só podiam fazer no horário comercial, mas eu não podia porque trabalhava no supermercado. O fotógrafo Walter Mesquita foi até minha casa fazer umas fotos. Na época eu morava num quarto de 9m², com minha esposa e minha fi lha. Achei que ele não acreditaria na minha história. Como um cara que vende tanto CD e roupa mora num lugar tão pequeno e pobre? Acho que eu também não acredita- ria. No fi nal de 2002, exatamente no dia 10 de dezem- bro de 2002, recebi a ligação do Bruno Porto, do jornal “O Globo”, querendo saber a opinião do Movimento Enraiza- dos sobre o crescimento do hip-hop em 2002. Quando a matéria saiu na revista Megazine, de “O Globo”, vi o nome 88 Enraizados: os híbridos glocais do Movimento Enraizados ao lado de Jorge de Sá (fi lho da cantora Sandra de Sá) e Elza Cohen (produtora da tra- dicional festa Zoeira, que acontecia na Lapa), e percebi a importância dessa matéria para a organização, porque muitas pessoas em todo o Rio de Janeiro leriam: O crescimento do hip-hop também pode ser conferido em sites dedicados ao tema, como o do Movimento Enrai- zados (www.enraizados.com.br). “O hip-hop brasileiro nunca cresceu tanto como em 2002” – diz o rapper Dudu de Morro Agudo, fundador do Movimento Enraizados, da Baixada Fluminense. Nenhum de nós sabia bem o que estava fazendo, cada um tinha um motivo próprio para estar na organização. Alguns porque gostavam de cantar rap, outros porque queriam estar mais próximos e adoravam a bagunça que rolava todo fi m de semana, e ainda outros curtiam fi lo- sofar e discutir sobre os mais variados assuntos. Não tínhamos um objetivo claro, éramos jovens que deseja- vam se divertir e praticar arte. Eu particularmente tinha aversão a tudo o que se inclinasse para política partidá- ria, talvez por isso sempre utilizei o dinheiro das minhas férias ou o décimo terceiro salário para realizar as ações do Movimento Enraizados. Eu era um líder que não sabia muito bem para onde ir, apenas seguia o fl uxo e, na maioria das vezes, meu cora- ção. Ainda em 2002 conheci a Giordana Moreira, e ela me chamou para participar de algumas reuniões porque queria fazer, em janeiro de 2003, o Fórum Carioca de Hip-Hop, levantando algumas propostas para o Fórum Social Mundial. Começamos a produzir o Fórum Carioca de Hip-Hop juntos, com reuniões que me tiravam do sério, pois não avançavam. Sempre tinha um que chegava, fazia a reunião regredir e depois ia embora, o que me irritava. 89Enraizados: como começou? Eu e a Giordana não concordávamos apenas em um ponto. Ela queria fazer discussões e mais discussões dentro de uma sala de aula e eu queria fazer um evento cultural, com música, dança e grafi te. Eu tinha certeza que se chamássemos jovens para discutir dentro de uma sala de aula não daria certo, teria uma grande evasão, mas se mesclássemos com algum divertimento talvez pudesse funcionar. Chegamos num acordo e nos dias 11 e 12 de janeiro de 2003 fi zemos o Fórum Carioca de Hip-Hop, no Sesc de Nova Iguaçu e no Colégio Rangel Pestana. O jornal “Inverta” (PC) cobriu o evento e publicou uma matéria falando muito bem. Acho que foi a Giordana quem escre- veu a matéria. De qualquer maneira, o evento foi real- mente um sucesso, as discussões foram legais e a parte artística fi cou ótima. O ano de 2003 marcou a história do Movimento Enraizados. Fizemos um grande esforço para trazer a revista “Rap Brasil”, única do gênero no nosso país, para fazer uma matéria com os grupos de rap do Rio de Janeiro. Conversamos com o Alexandre de Maio e ele disse que seria uma revista especial Rio de Janeiro, com todos os grupos que conseguíssemos encontrar. Foi muito trabalhoso fazer a matéria. Não tínhamos tempo e nem dinheiro para dedicar ao Alexandre. Como todos trabalhavam, havia um revezamento de horários. Eu tentava deixá-lo à vontade, mas não tinha como fi car à vontade com o cara da revista “Rap Brasil”. Ainda mais quando a grana podia acabar a qualquer momento. Fazíamos ligações para marcar com o maior número de grupos possível no mesmo lugar, para não gastarmos com condução. Eu saía todos os dias de Morro Agudo, ia para Vila Valqueire e de lá partia para São João de Meriti, onde fi cava o estúdio do DJ Criolo, ponto de encontro para as entrevistas. Não aceitava a ideia de que alguns 90 Enraizados: os híbridos glocais grupos de rap não conseguiam chegar ao local no horário marcado. Se eu conseguia fazer todo esse malabarismo e chegava no horário, por que os outros grupos que mui- tas vezes moravam próximo não conseguiam? Quando a revista foi publicada o Enraizados fez uma festa. No total 38 grupos de rap foram contemplados: NRC, Fúria Brasileira, Delano, O Bando, P10, Literarua, B32, GBCR, Slow da BF, Força Hip-hop, LC Fidalguia, Nove Balas, Kapella, Kwanza, Poder Consciente, Fator Bai- xada, Rodrigo RG, Criolo, Tropeço, Aliados 021, Mistura Racial, Reis, Oeste Selvagem, Última Trombeta, Punho Cerrado, Papo Reto, Descendentes da Ralé, Negresoul, Consciência e Verdade, Contenção, Família Tiro Verbal, Re.Fem, Ciência Rimática, Gás-Pa, Don Negroni, B Negão, Inumanos, e nós do Movimento Enraizados. Muitos gru- pos se desfi zeram menos de um ano depois de publicada a revista, mas outros sobrevivem até hoje. Um fato negativo foram os comentários maldosos que fi zeram. Mesmo sendo contemplados com a matéria alguns grupos se sentiram prejudicados e tentaram espalhar o boato que a gente fazia panela para favore- cer certos grupos. Mas nós nem tínhamos acesso a isso, essa parte era toda com o Alexandre. Ele fazia as per- guntas e decidia o tamanho da matéria. No começo isso me deixou chateado, mas depois percebi que à medida que a gente ia crescendo, por mais que tentássemos, agradar a todos seria cada vez mais difícil. A matéria na “Rap Brasil” abriu algumas portas para os que participaram da edição, e nos tornamos mais conhe- cidos em todo o território nacional. Nessa época a gente só conseguia ver um lado da imprensa, a parte que falava a verdade e nos dava notoriedade. Anos depois, apesar de mantermos bons contatos com alguns jornalistas, passamos por maus momentos quando uma pessoa que 91Enraizados: como começou? se dizia amiga publicou inverdades sobre a organização, mostrando o nível do seu profi ssionalismo. Não tivemos muitos problemas porque o veículo de comunicação que ela trabalhava não atingia um grande número de pes- soas, mas mesmo assim esse fato serviu para que nós aprendêssemos a abrir o olho com a imprensa. 92 Enraizados: os híbridos glocais 93Enraizados: como começou? 96 2003: um ano divisor de águas Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto É realidade. — Raul Seixas Certamente 2003 foi um ano divisor de águas. Foi nesse ano que conhecemos o escritor Alessandro Buzo, bem no comecinho da carreira, e conheci também um cara superarticulado chamado Fábio ACM. DJ, mantinha trabalhos com rádios comunitárias, trabalhava na ONG Cemina e fazia um som com o grupo de rap Poetas de Ébano. Ele nos convidou para participar do projeto “Hip- hop na linha de frente contra o tabaco”. Este projeto reunia artistas do hip-hop para uma dis- cussão sobre os riscos dotabaco. Alguns dos parti- cipantes acharam um pouco estranho, pois a maioria fumava, mas fi camos observando para ver aonde aquilo ia chegar. A gente assistia a vídeos e ouvia palestras com estatísticas informando a quantidade de pessoas que morrem vítimas do tabaco em todo o mundo. A ideia era refl etirmos sobre o assunto, entender como tudo isso funciona e depois escrever e gravar raps alertando sobre os perigos do tabaco. 97Enraizados: como começou? A metodologia deste projeto deu muito certo. Prova disso é que surgiram vários outros com propostas parecidas e nós do Movimento Enraizados éramos sempre convida- dos a participar. Eu participei de um que era sobre sexu- alidade, a Lisa de outro chamado “Mulheres do hip-hop pelo fi m da violência contra a mulher” e por último parti- cipei junto com o Léo da XIII do projeto “Homens do hip- hop pela não violência contra as mulheres”. Outro fato importante que aconteceu no ano de 2003 foi a visita do Clã Nordestino, Preto Ghóez, Lamartine e Nando, para nos apresentar o MHHOB (Movimento Hip-Hop Organi- zado Brasileiro). Como eu já conhecia o Lamartine, troquei ideias com os caras. Reuni alguns participantes do Enraizados, e o Preto Ghóez começou a falar. Eu já conhecia alguma coisa do MHHOB, talvez por isso tenha sido o único a questionar, mas o Ghóez sempre tinha um argumento forte para cada questionamento meu. Ninguém do Enraizados falava, só balançavam a cabeça, o Lamartine às vezes tentava mediar a conversa, mas no fi m rolou, o Movimento Enraizados estava fi liado ao MHHOB. Enquanto o Movimento Enraizados era um grupo total- mente cultural que se espalhava pelo Brasil, o MHHOB era uma organização que discutia políticas públicas para a juventude. Todas as organizações que faziam parte de MHHOB estavam mais maduras do que nós. Eu não me sentia à vontade em ter que me reportar a outra pessoa – ou organização – sobre o que aconte- cia conosco no Rio de Janeiro. Mas o Preto Ghóez me tranquilizou dizendo que isso não seria necessário. O Enraizados não teria, de maneira alguma, que se mol- dar ao MHHOB, e sim o MHHOB se adaptar à realidade do Movimento Enraizados. 98 Enraizados: os híbridos glocais As conversas com o MHHOB eram cada vez mais fre- quentes. Começaram então as viagens para congressos nacionais, mas por dois motivos eu nunca ia. Primeiro, eu trabalhava no supermercado Alto da Posse todos os dias da semana e não poderia faltar; depois, achava um saco essas reuniões, seminários e palestras. Eu rece- bia convites para ir para Porto Alegre, mas sempre me esquivava e repassava para outro artista do Movimento Enraizados. Por um lado era legal porque a galera come- çou a andar de avião e a conhecer diferentes estados e culturas, e andar de avião não passava nem em sonho na cabeça da molecada que morava na periferia. Era interessante porque quando eles retornavam das viagens vinham com novas ideias e até mesmo outro vocabulário. Era um costume nos reunirmos sempre que alguém chegava de viagem, a gente não fazia relatórios, como nos dias de hoje. Naquela época os relatórios eram orais, e eu sempre dizia: “Mano, o que fi zeram contigo?” Mas era o processo, a galera ia de um jeito e voltava de outro. Conheciam gente nova, as ideias eram mais maduras e interessantes. Como eu costumava dizer, era papo de futuro. Conversava muito por telefone com o Preto Ghóez, pedia e dava conselhos. Ele começava a entender como funcionava o hip-hop no Rio de Janeiro, pelo menos nas partes em que estávamos envolvidos, e eu entendia a importância de se discutir políticas públi- cas para a juventude. Trabalhava de segunda a sexta, e na própria sexta-feira fazia shows. Às vezes fi cava até três dias sem aparecer em casa. Minhas músicas começaram a tocar nas rádios e os convites para as apresentações eram aos montes, mas o dinheiro era sempre zero. Nos eventos eram pagos os técnicos de som, o palco, o som, o frete, mas nunca os artistas. Por causa da repercussão das minhas músicas 99Enraizados: como começou? nas rádios e por meu nome carregar o nome do bairro em que moro, os artistas de hip-hop do bairro Morro Agudo começaram a se interessar por mim. Foi nessa época que o Léo, hoje Léo da XIII, veio, por indicação do meu primo Júnior, até minha casa. O Léo da XIII tentou pelo menos três vezes me encon- trar, mas nunca conseguia. Até que um dia ele madru- gou na porta da minha casa. Quando levantei para ir até a padaria tomei um susto com o garoto sentado na cal- çada, em frente ao portão. Eu tinha 22 anos e ele apenas uns 13, mas já estava convicto de que queria fazer rap. Quando a gente começou a conversar reparei que ele tinha algum problema, pois quase não falava. Passava boa parte do tempo lá em casa. Eu fazia umas produ- ções de beat e pedia pra ele escrever as letras. Ele che- gava à minha casa e fi cava sentado olhando eu produ- zir, fi cávamos horas em casa sem trocar uma palavra. De repente ele levantava e ia embora sem se despedir. Com o passar do tempo essas coisas foram mudando, eu dizia pra ele que não precisava falar comigo, mas tinha que ter educação. Na hora de ir embora ao menos deveria acenar quando estivesse no caminho da porta. Quando começou a se comunicar efetivamente comigo descobri que ele era depressivo porque com 10 anos de idade presenciou o irmão dele, de apenas 11, morrer atropelado na via Dutra. A mãe e a irmã diziam que ele não falava muito, era muito reservado, e que depois do hip-hop começou a fi car mais sociável. 100 Enraizados: os híbridos glocais 101Enraizados: como começou? 102 A experiência de mobilizar e entreter Os loucos abrem caminhos que logo serão seguidos pelos sábios. — Carlo Dossi O poder de mobilização do Movimento Enraizados era impressionante, as pessoas queriam estar conosco de alguma forma, e ainda hoje é assim. Nossas aparições em jornais e revistas eram cada vez mais frequentes. Gente de outros estados começava a militar pela orga- nização. O Dimenor sempre dava entrevistas falando do movimento. Muitos coletivos de hip-hop nasciam e desapareciam, e nós continuávamos nossa caminhada. Foi nessa época que o Pevirguladez começou a fazer o evento Ressaca Hip-Hop, em Duque de Caxias, e o legal é que ele está até hoje na pista fazendo seus eventos. Ele é professor, canta rap, e agora está envolvido em um espetáculo de teatro e rap. Sempre esteve ao lado do Movimento Enraizados. Quase tudo relacionado ao hip- hop no Rio de Janeiro tinha alguém do Enraizados envol- vido de alguma maneira. O Léo da XIII me acompanhava em algumas apresenta- ções pelo Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que ele pegava experiência como rapper, me auxiliava nos shows. Um dia ele questionou por que eu não fazia um evento de hip-hop 103Enraizados: como começou? em Morro Agudo. Eu disse que os eventos de hip-hop não costumavam encher, portanto era inviável a gente des- perdiçar energia numa atividade que não daria certo. No outro dia eu estava em casa fazendo um som e ele chegou: — Dudu, posso te pedir um favor? — Claro que pode, fala, o que você quer? — Eu tô querendo fazer uma festa de aniversário e convidar algumas pessoas do hip-hop, gostaria que me ajudasse a organizar isso. — Tudo bem, vamos fazer. Só precisamos ver o local, o som e a comida. A cada semana o Léo da XIII chegava com uma novi- dade e a festa de aniversário ia tomando uma proporção gigantesca. Sempre que ele chegava na minha casa o papo era esse: — Dudu, o salão de festas que eu estava vendo não vai rolar mais, mas eu já falei com o Jack e ele liberou o espaço do bar para fazermos a festa. — Tu não acha que essa festa tá fi cando grande demais? — Não, acho que vai dar tudo certo. Agora você precisa falar com o Luisinho da Cerâmica pra ver se ele arruma o som. Luisinho da Cerâmica era um candidato a vereador da época.Ele ajudava a molecada a fazer umas ativida- des no bairro da Cerâmica, mas eu não gostava de pedir absolutamente nada a políticos. Só que a festa do mole- que estaria comprometida se não houvesse o som, então liguei para o tal Luisinho. — Alô!!! Luisinho? — Sim, quem tá falando? — Aqui é o Dudu de Morro Agudo! — Dudu de onde? 104 Enraizados: os híbridos glocais — Dudu de Morro Agudo, acho que o Jack falou de mim pra você. É a respeito de uma festa de hip-hop que eu tô querendo fazer no bar dele, e ele disse que você pode ajudar com o som. — Ah! Sim. Lembrei. E quanto é? — Não sei, é o aluguel de um som que já está lá no bar. É um som que fi ca fi xo por lá e ele disse que você já está acostumado a alugar. — Tudo bem, diz pro Jack que está tudo certo e depois eu passo lá pra acertar com ele. Estava tudo certo, o cara não pediu nada em troca, mas eu queria que fi casse claro que eu não colocaria nenhuma faixa e muito menos falaria o nome dele durante o evento. — Luisinho, tem um problema, meu parceiro. — E qual é o problema? — Esse evento não tem nada a ver com política, não tem como a gente vincular o seu nome ao nosso. — Eu não vejo problema nenhum nisso. Boa sorte com o evento de vocês e se possível vou aparecer por lá para ver a apresentação. — Valeu então, obrigado pela moral. A festa de aniversário do Léo da XIII tinha se transfor- mado em um evento, e agora teria que haver uma mobi- lização dos Enraizados para fazer o fl yer, divulgar na internet e fazer ligações para convidar a massa do hip- hop carioca a comparecer em Morro Agudo, ou melhor, na Cerâmica. Reunimos os grupos de rap de Morro Agudo, Fator Baixada, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII e Ultimato à Salvação, e decidimos que o nome do evento seria Raiz do Hip-Hop. Por motivos ideológicos, mas também por causa do nome Enraizados. Fiz a arte-fi nal e divulguei na internet, no Portal Enrai- zados. Passei a arte pros amigos do Alto da Posse e eles copiaram centenas de cartazes. O Átomo, o Léo da XIII, o Kall e eu colamos os cartazes no bairro inteiro. Do meu 106 Enraizados: os híbridos glocais emprego fi z as ligações convidando todos a comparece- rem. Fui trocar uma ideia com o Jack pra saber se real- mente estava tudo certo. Ele disse que emprestaria o espaço do bar, mas tinha certeza que não daria certo, porque um monte de preto junto só podia dar em confu- são, assim como o funk sempre deu. Mostrei para ele o quanto eu fi quei chateado com seu comentário racista e preconceituoso, mas falei que até o fi m da noite a gente conversaria novamente, e talvez ele mudasse de opinião. Eu e o Kall chegamos meia hora antes do evento começar. Para minha surpresa chega- ram conosco dez carros de polícia e bombeiros, dizendo que haviam recebido uma denúncia anônima delatando venda de drogas durante o evento. Percebi que nosso trabalho estava indo pelo ralo. Não sabia com que cara olharia para meus amigos que viriam de diferentes partes do Rio de Janeiro para curtir um rap e teriam que voltar para casa. O Jack veio saber o que estava acontecendo. Assim que soube da denúncia ligou para um comandante da polícia e outro “peixe grande” dos bombeiros, explicou que era um evento de hip-hop dos garotos do bairro e que ele se responsabilizava por tudo. Passaram-se cinco minutos e os carros da polícia e dos bombeiros dispersaram. As pessoas começavam a chegar ao evento. Era gente de Duque de Caxias, São João de Meriti, Japeri, Bangu, Campo Grande, São Gonçalo, Barra do Piraí, Maricá, Niterói, Madureira, Petrópolis, Jacarepaguá e muitos outros lugares. Alguns não se gostavam, mas estavam ali, juntos, e alguns até voltaram a se falar naquela oca- sião. Isso é uma característica do Movimento Enraiza- dos, unir até os que não se gostam. 107Enraizados: como começou? Pessoas que nunca estiveram em Morro Agudo conse- guiram chegar na Cerâmica, que era bem mais difícil de encontrar. Apesar de o bar do Jack ser no centro do bairro, o acesso era difícil. A galera da Revista Ocas me ligou per- guntando como faziam para chegar no evento. O Cacau se comprometeu em fazer a fi lmagem. Por coincidência naquele dia ele estava na gravação do fi lme “Um ano e um dia”, que ele dirigia, e levou toda a equipe, inclusive os equipamentos, para ajudar no DVD “Raiz do hip-hop”. Apesar de não lotar como os bailes funk, nosso evento fi cou mais cheio do que os eventos de hip-hop que acon- teciam no Rio de Janeiro, e foi um sucesso absoluto. O Jack fi cou visivelmente emocionado, gritando a cada movimento do b. boy Bolinho, de São Gonçalo, e a cada rima do MC Papo Reto, o apresentador da noite. Sem- pre que eu apresentava uma nova pessoa que chegava, o Jack pagava uma cerveja. Quando o evento terminou ele me chamou e propôs fazermos outro, mas ele daria uma estrutura melhor. Eu disse que tudo bem, que a gente poderia conversar mais pra frente, mas alguns meses depois ele morreu. Depois do sucesso de Raiz do Hip-Hop, o mito de que evento de hip-hop no Rio de Janeiro não enchia acabou, e começa- ram a pipocar eventos do Movimento Enraizados em várias partes do Rio de Janeiro, sempre com as mesmas caracte- rísticas. Saindo do padrão dos acontecimentos de hip-hop tradicionais começamos a fazer eventos que uniam o hip- hop e o futebol, chamados de Boladão, numa alusão à fi sio- nomia carrancuda que os rappers fazem questão de mos- trar, que na gíria carioca é “bolado”. A gente ia às comunidades e jogava uma partida de fute- bol com os moradores. Sempre acontecia um bate-papo em que as pessoas se integravam e fi cavam sabendo o que os outros faziam. O Boladão virou moda no Rio de 108 Enraizados: os híbridos glocais Janeiro e em pouco tempo as pessoas nos procuravam comunicando que gostariam de fazer uma edição do Boladão em sua comunidade. Os moradores se articu- lavam para conseguir um campo de várzea e uma chur- rasqueira, nós do Enraizados convocávamos militantes, amigos e informávamos o local. No dia todo mundo levava um pouco de dinheiro e o evento acontecia o dia inteiro. 110 O fi m do começo... Quem anda com sábios, sábio será. — Salomão Depois de me esquivar de muitas viagens, resolvi viajar para alguns estados. Eu estava muito envolvido com o MHHOB (Movimento Hip-hop Organizado Brasileiro), mi- nha experiência com programação web me permitiu ocupar o cargo de gerente de comunicação do movi- mento, por isso falava diversas vezes por dia com o Preto Ghóez. E o Movimento Enraizados começava a ter um rumo mais sério. Em junho de 2004 aconteceu em Porto Alegre o 1º Encon- tro Nacional do MHHOB, em que lideranças de vários estados estiveram presentes: Lamartine Silva, Nando e Ghóez (MA), Edjales Fama (RO), Gil BV (Piauí), Fabiana Menini, Saroba e Amarelo (RS), Mano Brown (SP) e outros. A maneira como o MHHOB trabalhava e se articulava para conseguir fazer suas reuniões com as lideranças nacio- nais me surpreendia. Para o Enraizados fazer as brinca- deiras na Baixada Fluminense era um grande sacrifício. Mas fomos aprendendo o caminho das pedras a cada minuto, e sempre buscávamos aprender mais. O escritor Alessandro Buzo, que tinha uma ligação forte com o Movimento Enraizados, nos convidou para o lança- mento do seu livro “Suburbano convicto”, em São Paulo. 111Enraizados: como começou? Por muito tempo ele foi um dos maiores colaboradores do Portal Enraizados, e até hoje mantém uma coluna quin- zenal. Por escrever e participar tanto, recebia os méritos de estar com o nome sempre em evidência no Portal. Em setembro de 2004, o jornalista André Caramante escre- veu uma matéria com o Alessandro para a revista do jor- nal “Agora”. Ele apareceu com a blusa do Enraizados, o que fez crescer o nosso nome no estado de São Paulo. Com isso percebi que ele não estava brincando na organi- zação, ali era fechamento pra qualquer parada. Eu tinhaa missão de atualizar diariamente o Portal Enraizados, que sempre foi a porta da organização para o mundo. Além de colocar as notícias, ainda deveria estar por dentro das novidades em linguagem de pro- gramação para dar sempre um upgrade no site. Baixei muitas apostilas de informática, como a de ASP (Active Serve Pages), uma linguagem de programação proprie- tária, e pedi ajuda ao analista de sistemas da empresa em que trabalhava, o Jorge, que sempre foi um cara muito gente boa, uma das pessoas mais prestativas que já conheci na vida. O Jorge me passou mais algumas apostilas, mas disse que não sabia muito de programação web, o negócio dele era Cobol. Como ele ajudava a todos o tempo inteiro, eu passava muito tempo no CPD (Centro de Processamento de Dados) trocando ideia com ele e com o meu camarada Luciano Lyrio, que sempre permitiam que eu fi casse nos computadores da empresa programando e testando novas versões do Portal Enraizados. Eu estudava de tudo para colocar o Portal Enraizados entre os portais de hip-hop mais bonitos e acessados do Brasil. Programação, design, marketing e técnicas de redação. Outros integrantes do Enraizados faziam música o tempo inteiro, alguns eram desenhistas e cola- boravam com seu trabalho, a gente ia vivendo como dava. 112 Enraizados: os híbridos glocais O Lamartine me ligava com frequência, a gente conver- sava e ele me passava responsabilidades. Dizia que o Movimento Enraizados era o nome do MHHOB no Rio de Janeiro, e eu deveria assumir isso. Eu pensava a respeito e achava que não poderia ser tão ruim, e a cada conversa com o Lamartine fi cava cada vez mais envolvido. Além das atribuições que eu já tinha – pai, marido, MC, programador e produtor – era necessário ainda apren- der a fazer projeto, pois descobri que não sabia. Execu- tava minhas ideias com maestria, mas não conseguia enquadrá-las em editais, por exemplo. A Fabiana Menini, do Instituto Trocando Ideia, de Porto Alegre, estava muito próxima do Ghóez, acho que foi ele quem nos apresentou. Ele usava muito o telefone dela e por isso eu ligava pra Fabiana com frequência, tentando falar com Ghóez. A gente se falava tantas vezes por dia que eu sabia que fi caríamos amigos. A Fabiana fez algo por nós, e por mim particularmente, que jamais esquecerei. Um dia perguntei se ela podia me ajudar a fazer um pro- jeto, eu nunca tinha visto um pronto e não conseguia aprender pelas apostilas “Faça você mesmo”. Ela me mandou por e-mail um projeto do Trocando Ideia e um material com endereço, e-mail e telefone de centenas de instituições, do mundo inteiro, que apoiavam e patro- cinavam projetos iguais ao nosso. Lembro que ela me disse para não disponibilizar o material para qualquer pessoa, pois aquilo era trabalho de uma vida inteira. Fiquei feliz pela confi ança dela, nós ainda nem nos conhecíamos pessoalmente. Eu tinha certeza que o MHHOB daria certo. Muitas pes- soas inteligentes estavam comprometidas, era a prá- tica da revolução que os MCs pregavam em seus raps. O Ghóez era o tipo de liderança que a gente não vê nascer todos os dias e ele estava do nosso lado, ou nós do lado 113Enraizados: como começou? dele, prontos para mudar a estrutura de tudo. Em uma de nossas conversas o Ghóez me fez entender a importância em estarmos juntos, mas não era eu e ele, e sim todos os pretos, pobres, nordestinos, todas as pessoas que eram discriminadas de uma maneira ou de outra. Ele dizia: — Dudu, a gente precisa criar e cuidar das nossas pró- prias atividades e empreendimentos, da nossa própria gente e do nosso dinheiro. — Eu sei disso. (respondia positivamente, mas não fazia ideia de como isso poderia acontecer na prática.) — Então a gente tem que conversar com um por um, com as lideranças. — É, mas às vezes as lideranças estão muito ocupadas cuidando das suas mulheres e fi lhos, deixam a causa em stand-by. E a gente não pode nem mesmo criticar os caras, porque a gente faz o mesmo quando as coisas apertam em casa. — Eu sei, mas não é disso que eu estou falando. — E tem mais! Interrompi o Ghóez e continuei falando de modo eufórico. — Em minha pouca experiência de vida já percebi que onde tem dinheiro tem traição, tem tumulto, tem guerra de egos. Onde tem liderança tem gente querendo derrubar. Nessa época eu era bastante cético, meus pensamen- tos eram sempre radicais, só conseguia expor em reuni- ões internas do Enraizados, quando havia três ou quatro pessoas. Um dia o Ghóez falou sobre nós do hip-hop ter- mos nossas próprias roupas, nossa grana deveria circu- lar entre a gente. Incentivaríamos campanhas para boi- cotar as empresas racistas e preconceituosas, pois eles sobrevivem do nosso dinheiro, nós somos a maioria. Ele continuava: — Dudu, imagina tu lançar um disco no Rio de Janeiro hoje e daqui a uma semana o disco já estar vendendo 114 Enraizados: os híbridos glocais em quase todo o Brasil, nas comunidades que tiverem o MHHOB presente? — Seria muito bom, mas é sonho isso, né? — É possível. A gente pode criar um mercado indepen- dente, próprio. Não fi ca pesado pra ninguém e a gente ainda fomenta a produção e o consumo dos nossos produtos. — É verdade! Eu só concordava. Não conseguia entender como isso poderia funcionar, mas sempre concordava esperando o dia da prática, porque na teoria a gente estava bem avançado. Hoje penso que o Ghóez sempre me enxer- gou como uma grande liderança ligada à tecnologia e ao empreendedorismo, mas não ao rap propriamente dito. No dia 9 de setembro, em uma de minhas ligações diá- rias para a Fabiana Menini, veio a triste e dura notícia. Eu disse: — Alô Fabiana!! Cê sabe do Ghóez? — Você não soube, Dudu? — Não, o que houve? Eu esperava que ela dissesse qualquer coisa, menos que o cara tinha morrido. Isso não era nem a última coisa que passava pela minha cabeça. Defi nitivamente isso não poderia acontecer. Ela continuou: — Dudu, eu tentei falar com o Ghóez e fi quei sabendo que ele sofreu um acidente de carro, mas não sei de muitos detalhes, tenta ligar para os meninos (do Maranhão) e se souber de alguma notícia me liga pra informar. — Tudo bem, Fabi, vou tentar saber com os caras. Nessa hora o meu telefone celular começou a tocar, uns querendo saber e outros querendo informar. O Preto Ghóez realmente tinha morrido em um acidente de carro. 115Enraizados: como começou? 116 Ousadia: deixe-me ir, preciso andar... Aos que me perguntam o motivo de minhas viagens, geralmente lhes respondo que sei bem do que fujo, mas não o que busco. — Michel de Montaigne O ano de 2005 foi um ano de mudanças consideráveis para o Movimento Enraizados, e eu também estava disposto a mudar. O ano começou com muitas propostas, e uma delas foi participar do Trocando Ideia, evento produzido pela Fabiana Menini, em São Luís, no Maranhão. Nós do Enraizados éramos responsáveis pelas artes-fi nais que sairiam na revista “Rap Brasil”, blusas, cartazes e fl yers. Eu nunca fui designer, nem sequer fi z curso de Corel Draw ou Photoshop, apenas aplicava os ensinamentos que o Wilson Neném me passou, com um pouco de criatividade que só pode ser coisa de Deus. Também fomos convida- dos a fi nalizar e atualizar o site do Trocando Ideia. Aceitamos, mas eu é que fi caria semanas na frente do com- putador. Trabalhei pesado e apliquei um pouco daquele conhecimento no nosso Portal. Na verdade não sabia muito bem o que faria, peguei o projeto do site e comecei a analisar os códigos. Como não conseguia começar o trabalho, peguei o recurso que a Fabiana Menini havia me adiantado, cerca de R$800, e comprei um monte de livros para estudar e fazer o site ao mesmo tempo. 117Enraizados: como começou? Com tudo pronto e aprovado pela diretoria do Trocando Ideia, que era apenas a Fabiana, me prepararei para via- jar pela primeira vez para São Luís. Tive que inventar muita história na empresaonde trabalhava, porque eles não me liberariam se eu dissesse a verdade e eu decidi- damente necessitava fazer aquela viagem. Agora havia chegado a minha vez. No dia de viajar para o Maranhão eu estava muito tenso, era a minha primeira viagem de avião. Não tinha dinheiro nem para ir ao aeroporto. Lembrei que o Marquinhos, irmão do Marcio Periquito, trabalhava em uma agência de locação de automóveis, a Localiza, no aeroporto. Fui à casa dele e toquei o interfone pronto para fazer um pedido quase desesperado: — Marquinhos, posso falar contigo um minuto, meu parceiro? — Quem é? — É o Dudu. — Claro, entra aí. O que tá acontecendo? — Boa noite, meu parceiro. Tô dependendo de sua ajuda e se você não puder me ajudar eu não tenho mais a quem recorrer. — Calma, cara, fala o que você precisa, se eu não puder resolver talvez um outro amigo possa. — Você ainda trabalha no aeroporto? — Sim, trabalho na Localiza. Aquela empresa que aluga carros. — É porque eu tô precisando ir para o aeroporto amanhã de manhã, mas não tenho o dinheiro da passagem e queria ir de carona contigo. — O que tu vai fazer no aeroporto? — Vou viajar pro Maranhão, a trabalho. — Qual o horário do teu voo? — É 10h, mas eu tenho que chegar às 9h. — Dudu, tá tranquilo, meu parceiro, mas só tem um problema. 118 Enraizados: os híbridos glocais — Fala aí, qual o problema? — A gente vai chegar lá às 6h da manhã. — Marquinho, isso não é problema nenhum, o pior seria se eu chegasse atrasado. — Então tá tranquilo, amanhã cedo você brota aqui em casa e a gente vai. — Valeu, camarada, muito obrigado. Tu tá ligado que se precisar de qualquer parada, é nós. Como ele havia afi rmado, chegamos às 6h no aeroporto. Fiquei lá sentado, sem saber o que fazer, até que chega- ram meus camaradas Fábio ACM e Def Yuri. Eles me orien- taram em todo o processo. Fomos beber cerveja e por pouco não perdemos o voo. Eu achei aquilo muito compli- cado. Check-in, revista, portões, embarque, e certamente se eles não estivessem ali eu não conseguiria chegar a São Luís sozinho. Para mim tudo era novo. O hotel onde nos hospedamos era lindo, tinha uma piscina gigante e logo depois da piscina era a areia da praia. A maré subia três vezes por dia, em alguns momentos a água do mar quase entrava no hotel, em outros o mar sumia, parecia um deserto, com algumas piscinas naturais. Eu me sentia mal por não poder fi car no sol, na piscina, na praia. Havia dito aos meus superiores no trabalho que estava doente, como poderia voltar queimado de sol? Nessa viagem, além do Fábio ACM e do Def Yuri, estavam Alexandre de Maio (SP), Fabiana Menini (RS), Nando (MA), Lamartine (MA), Edjales Fama (RO), Saroba (RS), Filho (PI), Patrícia (RS), Paulinha (RS), DJ Morce- gão (AP), DJ Juarez (MA), e vários outros parceiros que ainda reencontraria no futuro. Durante o Trocando Ideia, houve batalha de break, shows, palestras e reuniões do MHHOB, além de uma apresentação do projeto “Hip-hop na linha de frente contra o tabaco”, mas depois que o Ghóez morreu nada era como antes no MHHOB. 119Enraizados: como começou? O ano de 2005 estava apenas começando e eu já tinha envolvido o Movimento Enraizados em muitas parcerias. Já no dia 14 de janeiro outro integrante do Enraizados participaria de um projeto a convite do Fábio ACM, o “Hip-hop mandando fechado em saúde e sexualidade”. O Fábio não queria que eu fosse, porque eu já havia par- ticipado do projeto anterior, mas insisti muito e ele aca- bou liberando. Este projeto foi realizado bem perto da minha casa, em Nova Iguaçu, no bairro Tinguá, eu saía do trabalho e ia direto. Eu deveria chegar na sexta-feira pela manhã, assim como todos os outros participantes, mas estava no tra- balho e não poderia inventar outra história uma semana depois da viagem para São Luís, seria muita cara de pau da minha parte. Tinha comprado uma moto YBR, zero quilômetro, e fui com ela para Tinguá. Rolou um bochi- cho dentro do Movimento Enraizados falando que eu tinha comprado a moto com dinheiro da organização. Mas quem falou isso estava tão distante que não sabia que o Enraizados só me dava lucros de realização pes- soal. Sentia-me realizado em fazer as atividades, mas fi nanceiramente era um prejuízo atrás do outro, nem no zero a zero fi cava. Tinha comprado a moto em 36 vezes e pagava com o dinheiro da passagem de ônibus. Vendi a moto meses depois porque caí umas três vezes. Chegando na pousada em Tinguá, procurei os amigos. Fiquei impressionado com o lugar, era muito especial, muito verde, pra onde eu olhasse via árvores, grama e cerca. Mais acima, na casa onde comíamos, tinha uma piscina. Eu estava começando a curtir esses encontros, sempre com piscina e comida da melhor qualidade, mas não me encantava muito porque na segunda-feira a vida voltava ao normal, e a realidade era triste. 120 Enraizados: os híbridos glocais Foi nesse dia que conheci o Japão (DF), a gente trocou muita ideia e fi camos amigos na hora. Há tempos ele cantou no grupo do GOG e a história de vida dele den- tro do hip-hop é muito importante. Eu não o conhecia, fi quei até envergonhado. Apesar de cantar rap há algum tempo, só conhecia os grupos que ninguém conhecia, os que começaram a cantar comigo e aqueles com quem eu tinha um contato via carta ou e-mail. Mas o Japão tam- bém não me conhecia e fi cou tudo no zero a zero. Esse projeto foi importante porque eu comecei a pen- sar sobre a questão de gênero, dar mais valor e atenção para as mulheres. Percebi o quanto eu era homofóbico e o quanto a maioria das pessoas do hip-hop ainda é. Vi que as minas tiravam de letra, mas os caras não. A maio- ria queria saber se havia algum homossexual dentro do hip-hop, mas só apareceram as minas. Se havia algum homossexual no dia fi cou quieto, até mesmo por receio. Não era medo de apanhar, porque acredito que ninguém chegaria a esse ponto, mas a encarnação, as fofocas. Como era costume em outros projetos do Fábio, a gente fez músicas baseadas nos temas propostos. Nenhum cara quis fazer música falando de homossexualidade. Dias depois o Cacau, do grupo Baixada Brothers, me ligou e falou: — Dudu, vamos fazer um som juntos? — Claro, meu parceiro, vamos sim. — Vamos falar de homossexualismo. Vou convidar outros caras pra fazer também. — Por mim tudo bem, cara. Passaram-se alguns dias e eu não tinha feito a minha parte ainda. O Cacau já estava com a base produzida, me ligou e perguntou: 121Enraizados: como começou? — Dudu, a letra da música tá pronta? — Tá sim, Cacau. — É que eu tô escrevendo a parte de todos os partici- pantes pra ver quais se encaixam e colocar em ordem. Tem como você me mandar a sua parte agora? — Claro que tem, mano, me liga daqui a pouco que eu te falo. — Tudo bem, daqui a cinco minutos eu te ligo. — Beleza! Fiquei doido, peguei papel e caneta e comecei a escrever desesperadamente, mas como iria falar de homossexu- alismo? Resolvi falar para as pessoas não serem precon- ceituosas, fi z comparações e alusões. Trinta minutos depois e o Cacau já tinha me ligado umas dez vezes, ele estava me pressionando e eu já estava fi cando irritado. Pensei em desistir, mas consegui terminar a letra. Ele anotou tudo e depois me ligou. — Dudu, aqui é o Cacau de novo. — Eu sei, fala tu! — Você já viu a parte do Mad no rap que a gente tá fazendo? — Não! — Esta semana a gente vai gravar e tu vai ver. — Ficou maneira, Cacau? — Sim, fi cou muito maneira. O Mad é um cara que eu conheço há muito tempo, mas não lembro quando foi a primeira vez que a gente trocou ideia. Sempre foi nosso camarada, mas hoje está bem mais próximo do Enraizados. Ele fez parte dos primeiros b. boys e MCs do Rio de Janeiro, cantou funk também. É polêmico e não se preocupa com o que as pessoas falam. O negócio dele é tacar lenha na fogueira. O Mad fez a música em primeira pessoa, dando aentender que era homossexual. Quando eu ouvi, não sabia o que dizer. Achei incrível a atitude e resolvi ligar para ele. 122 Enraizados: os híbridos glocais — E aí, Mad, tudo bem? Aqui é o Dudu. — Fala aí, piranha. — Mano, achei irada a tua letra. — Pô mano, tu gostou mesmo? — Sim, cara, gostei muito. Gostei mais ainda da tua atitude. Expor sua vida assim, falar da sua homossexua- lidade numa música. — Mas espera aí, Dudu, eu não sou homossexual! — Aaaaaah, é sim! — Não, não sou não. Então nós começamos a rir muito! E ele indagou: — Você faz música dizendo que dá tiro e nem por isso é bandido. — Mas Mad, uma coisa é você dar tiro e outra é dar a capital da Coreia do Sul. Nós rimos mais ainda, um provocando o outro. Foi uma letra precursora, que se tornou eterna abor- dando um assunto jamais falado dentro do hip-hop. E o mais maneiro é que ele teve a iniciativa que nenhum homossexual havia tido, apesar de ele ser heterosse- xual. Veja a parte do Mad na letra “O julgamento”: A vida passa, o mundo gira e vê que nada mudou E vê que o novo pensamento ainda não se formou A ignorância, o preconceito, sai do escuro e mostra a cara Sua face é violenta e despreparada Que vai no fundo da alma e corta a calma Transforma a luta da igualdade num sonho sem causa O seu olhar de reprovação me traz indignação Torna mais forte a minha posição Vocês não sabem como é difícil enfrentar O julgamento desse seu olhar Quando não quero que me entenda Só quero o seu respeito A opção é minha, eu tenho o meu direito 123Enraizados: como começou? Deixe-me em paz, deixe-me sorrir ou chorar Me lambuzar de prazer ou me penalizar A opção é minha, então vamos por parte Respeite a minha individualidade Que movimento é esse que estamos participando Que agride outros seres humanos Que porra de cultura é essa que estamos formando Ao invés de unir estamos segregando Na semana seguinte, dia 28 de janeiro, eu voava de novo para Porto Alegre, para participar do Fórum Social Mun- dial e do MHHOB Mundi, evento do MHHOB que fazia parte do calendário do Fórum. Ainda não me sentia seguro em viajar sozinho de avião, por sorte o Def Yuri também estava indo para Porto Alegre, fi caríamos na casa da Fabiana Menini. A viagem foi tranquila. Assim que entrei no portão da escola onde a maioria das pessoas do MHHOB estavam hospedadas topei com o Gilberto Gil, então ministro da Cultura. Na pressa, ele apertou a minha mão e foi embora. A galera olhou a cena e achou que éramos relacionados, e algumas pessoas que nem me conheciam começaram a se chegar. Como participava ativamente do MHHOB, fui convidado para dar palestra sobre Software Livre na mesa “Comu- nicação popular e cultura hip-hacker” junto com o Cláu- dio Prado, do Cultura Digital, do Ministério da Cultura, e a Fernanda Weiden, criadora do projeto “Software Livre mulheres”. Apesar de eu não saber absolutamente nada de Software Livre, na época era o cara do MHHOB que mais entendia de tecnologia. Estudei um pouco antes de viajar e preparei um discurso bem básico e superensaiado. Participei de todas as discussões, mas não falava muito, apenas observava, tentando absorver o máximo do que os experientes diziam. Reparei que quando dava uma opi- nião, uma maioria sempre concordava comigo, e vi que um 125Enraizados: como começou? questionamento meu podia mudar algo no rumo da histó- ria. Mas não questionava muito porque não queria ser o centro das atenções. Na verdade, minha vontade era pas- sar despercebido. Desejava que ninguém fosse à pales- tra, ou que ela tivesse sido cancelada por algum motivo. Mas nada disso aconteceu. No dia e na hora marcada, cerca de 20 pessoas sentadas em círculo esperavam as sábias palavras de Dudu de Morro Agudo, Cláudio Prado e Fernanda Weiden. Nunca vou esquecer o que o Cláudio Prado fez por mim aquele dia. Como a Fernanda não apareceu, ele fez questão que eu falasse primeiro, pois certamente se ele começasse não haveria chance de eu falar depois. Meu discurso começou bem técnico, falando das dife- renças entre o Windows e o Linux. Depois parti para a discussão ideológica, e de maneira abrupta terminei a longa palestra de dez minutos. Foram os dez minutos mais longos da minha vida. As 20 pessoas me olharam com cara de espanto, sem acreditar que eu realmente tinha terminado a palestra. O Cláudio olhou pra mim e disse a todos os presentes: — A ideia do Software Livre é justamente essa que o Dudu acabou de falar, agora eu vou apenas complementar. Ele falou durante duas horas, e eu aprendi bastante sobre Software Livre. Depois desse dia estudei muito. Precisaria saber a respeito porque as discussões sobre os Pontos de Cultura estavam aceleradas e eu era a pessoa que participava dos grupos de discussão com o Ministério da Cultura, representando o MHHOB. Nas reuniões do MHHOB durante o V Fórum Social Mun- dial falava-se muito sobre a Conferência do MHHOB que aconteceria em Teresina, no Piauí, em fevereiro daquele mesmo ano. 126 Enraizados: os híbridos glocais 127Enraizados: como começou? 128 Enraizados: os híbridos glocais Assim que cheguei ao Rio de Janeiro recebi uma ligação da Fabiana Menini informando que a Conferência seria durante o carnaval, a partir do dia 5 de fevereiro de 2005. Eu tinha acabado de chegar e já me preparava para mais uma viagem, dessa vez para o Piauí. Eu sabia que as dis- cussões teriam dois eixos muito importantes: a apro- vação dos Pontos de Cultura e a institucionalização do MHHOB por meio de um braço jurídico chamado Instituto Ruas. Minha participação era muito importante nas duas discussões. Não viajei sozinho, levei mais dois integran- tes do Movimento Enraizados, achava importante que essa galera estivesse viajando e conhecendo gente nova. Não poderia imaginar que essa viagem mudaria total- mente o rumo do Movimento Enraizados no Rio de Janeiro. Todos os participantes da Conferência se hospedaram em um hotel perto do Centro de Teresina. Era um hotel duas estrelas, mas era bem confortável e os funcionários muito gentis. Faziam de tudo para nos agradar. Os trabalhos e reuniões aconteciam no Centro de Refe- rência do Hip-Hop, na sede da ONG Questão Ideológica, também fi liada ao MHHOB, uma escola abandonada que foi ocupada por eles. Quando cheguei ao Centro de Refe- rência do Hip-Hop e vi de perto a organização daqueles jovens, fi quei deslumbrado. Não somente com o tama- nho do local, mas também com os equipamentos que eles tinham ali e mais ainda com a administração. A média de idade era no máximo 25 anos. Eu teria que voltar para o Rio antes de terminar a Confe- rência. Algumas reuniões foram antecipadas para que eu participasse. Queria mais informações a respeito da ocu- pação da escola abandonada. Em Morro Agudo havia uma escola estadual abandonada havia mais de quinze anos, onde eu jogava bola quando era criança. O Gil BV, um dos coordenadores da ONG Questão Ideológica e a pessoa com 129Enraizados: como começou? que eu mais tinha contato no Piauí, me contou que eles estavam precisando de uma sede e identifi caram aquela escola. Organizaram-se e em apenas um dia ocuparam o espaço, colocaram luz, água, pintaram, grafi taram tudo e ainda começaram as ofi cinas de hip-hop. A imprensa documentou as atividades, e o governo fez um acordo com eles, que permitia que fi cassem durante dez anos no local. O Gil BV me disse também que foi muito importante o apoio fi nanceiro da Fase, ONG do Rio de Janeiro, por meio de um fundo de apoio cha- mado Saap (Serviço de Análise e Apoio a Projetos). Foi o pontapé inicial, quando eles começaram uma nova fase em suas vidas. Uma nova fase também começava na minha vida. Durante as reuniões soube que oito Pontos de Cultura poderiam ser aprovados para o MHHOB, e um deles iria para o Movimento Enraizados. Além disso, as negociações com o Instituto Ruas também avançavam.Fui embora de Teresina feliz, com uma força renovada, louco para chegar ao Rio e compartilhar com os companheiros do Movimento Enraizados as novidades. Em breve teríamos equipamentos novos para fazer nossas próprias produ- ções de música, vídeo, e tudo mais que tivéssemos von- tade e criatividade. Depois que fui embora muita coisa ainda aconteceu em Teresina. A Fabiana Menini saiu do MHHOB. Acho que ela não queria, mas talvez tenha sido obrigada a dei- xar a organização. Isso nunca fi cou muito claro, cada um com uma versão diferente da história. Creio que foi uma guerra de egos, mas nada podia ser feito. A Fabiana integrou o MHHOB a convite de Preto Ghóez, e sem ele seria impossível mantê-la na organização. Mas a Fabiana continuou com êxito nos seus projetos na Trocando Ideia, sua organização. 130 O Neoenraizados Não estrague aquilo que você tem, desejando o que não tem; lembre-se de que o que você agora possui um dia já esteve entre as coisas com relação às quais você só tinha esperança. — Epicuro Eu não parava de pensar no Centro de Referência do Hip-Hop. Se aqueles garotos conseguiam ter algo daquele tama- nho funcionando em Teresina, por que nós não conse- guiríamos fazer o mesmo em Nova Iguaçu? Fui várias vezes ao colégio abandonado pensando o que pode- ríamos fazer para ocupar o lugar, construir ali a nossa sede e colocar os equipamentos do Ponto de Cultura, que chegariam a qualquer momento. O local é a quadra de um Ciep com mais de 4.000m². O colégio pertence ao Governo do Estado do Rio de Janeiro e está até hoje murado nos quatro lados. Não há como entrar, não existe portão. A diretora da escola, por medo dos adolescentes que usavam a quadra para praticar esportes e usar dro- gas, pediu que murassem o espaço. Nessa mesma época, o Dinho e o Jack, do grupo de rap Fator Baixada, compraram um transmissor FM e mon- taram uma rádio comunitária no terraço da casa do Dinho. Eles tinham um programa diário de rap que era sucesso absoluto no bairro. O Kall e o Jack eram os 131Enraizados: como começou? apresentadores e o Dinho cuidava da parte técnica. O programa era à noite, das 22h à meia-noite, e todos nós íamos ver a performance deles. Em pouco tempo eles compraram uma linha telefônica e ar-condicionado. Eu achava tudo muito legal, as pessoas ligavam querendo participar e a gente conseguia brindes para eles sortea- rem. Aos sábados o programa era de tarde. A gente com- prava cerveja e fi cávamos bebendo enquanto eles traba- lhavam. Sempre levávamos algumas pessoas do hip-hop para serem entrevistadas aos sábados. Uma vez convi- damos o Alessandro Buzo, que sempre estava no Rio de Janeiro, e fi zemos um churrasco na laje do Dinho. Entre uma cerveja e outra o Buzo respondia às perguntas. No dia 31 de março de 2005 saímos tarde da rádio sem saber o que estava acontecendo na cidade de Nova Iguaçu. Somente quando acordei no dia seguinte soube que 29 pessoas foram brutalmente assassinadas em Nova Iguaçu e em Queimados. Meu telefone não parava de tocar, eu não sabia o que fazer. Depois descobrimos que policiais militares foram os responsáveis pelo assassi- nato das pessoas, e que nenhuma delas tinha passagem pela polícia. Todas as 29 pessoas eram inocentes. Nova Iguaçu entrava para a história de uma forma terrível. No meio desses trágicos acontecimentos chegava a boa notícia de que a data de envio dos kits do Ponto de Cul- tura estava cada vez mais próxima. Um dia chamei o Léo da XIII e falei: — Léo, tenta reunir as pessoas que praticam hip-hop em Morro Agudo porque eu preciso dar uma informação que vai ser importante pra todo mundo. — Tá bom, que dia eu marco pra eles virem? — Marca no sábado, dia 30 de abril. — Tudo bem, vou falar com o pessoal. 132 Enraizados: os híbridos glocais — Marca no refeitório do Ciep. Eu vou falar com a diretora e é certo de ela liberar. — Tudo bem, deixa comigo. Falei com a diretora da escola e ela não implicou com a reunião, apenas me disse o que repeti pra todo mundo: não faz barulho, não faz bagunça, e não quebra nada. No dia da reunião fi quei surpreso. Não imaginava que tanta gente praticasse hip-hop em Morro Agudo. Tam- bém fi quei feliz com o empenho do Léo da XIII. Cinquenta pessoas apareceram na reunião, que seria a primeira do Movimento Enraizados em Morro Agudo. Há dois anos o Kall, do Fator Baixada, queria me apresen- tar um cara que morava perto da casa dele. Sempre que a gente se encontrava ele lembrava desse camarada e dizia que eu precisava conhecê-lo, mas eu não dava muita atenção e o Kall nunca trazia o cara. Quando o Léo da XIII convocou o Kall para a reunião, ele viu a oportunidade de levar o tal camarada que ele tanto queria me apresentar. Apesar de estar feliz com a quantidade de pessoas pre- sentes, não demonstrei o sentimento. Apresentei-me, pois alguns não me conheciam. Comecei falando um pouco sobre a trajetória do Movimento Enraizados até aquele momento, e depois da vontade de fi xar a sede da organização em Morro Agudo. Mas para isso precisaria da ajuda de todos. Falei das últimas viagens que havia feito e de tudo que tinha visto. Disse que era possível nós, jun- tos, construirmos algo sólido em Morro Agudo, com base no que a gente sabia fazer de melhor: o hip-hop. Lembro que todos, sem exceção, me olharam como se o que eu falasse naquele momento fosse impossível. Cer- tamente se eu não tivesse visto o Centro de Referência do Hip-Hop, em Teresina, e alguém me contasse que era possível fazer algo parecido, eu encararia a pessoa com 133Enraizados: como começou? o mesmo olhar. Mas quando eu comecei a falar do Ponto de Cultura, dos equipamentos que usaríamos gratuita- mente, e o que poderíamos fazer com aquilo, todos fi ca- ram animados. Mesmo sem saber o que era o Ponto de Cultura e como isso poderia chegar a Morro Agudo. Por participar das atividades do MHHOB, aprendi a orga- nizar a reunião e a minha palestra. Um dos tópicos era a criação de um zine, um meio de comunicação nosso, criado e alimentado por nós. Fizemos um rápido concurso para saber qual seria o nome do zine, e ganhou “Voz Peri- férica”, sugerido pelo Short, um grafi teiro que mora no bairro Nova Era e é liderança da Gorgonoyde Crew. Quando acabou a reunião o Kall me apresentou o camarada dele, Luiz Carlos, que era ator e havia gostado da organização. Das 50 pessoas presentes na reunião, 49 faziam parte da cultura hip-hop. Apenas o Luiz Carlos, hoje conhecido como Luiz Carlos Dumontt, era do teatro. Todos foram embora muito animados e comprometidos em lutar comigo por Morro Agudo, aproveitando o que o Movi- mento Enraizados já havia conseguido e querendo abrir novos horizontes. Mas todos tinham emprego e família, e a evasão foi inevitável. Para ocupar a quadra da escola era necessário fazer tudo como manda o fi gurino. A realidade em Nova Iguaçu é bem diferente da de Teresina. Se nós ocupássemos a quadra, a vida dos meninos e meninas poderia estar em risco. Em Morro Agudo a polícia ou os bandidos facil- mente confundem ocupação com invasão. Sendo assim, dias depois apresentei um documento para a diretora do Ciep, solicitando a quadra. Havia argumen- tos bem sinceros no ofício que redigi. Ela me deu espe- rança e pediu que eu entregasse o documento na coorde- nadoria. Até hoje aguardo um retorno que nunca chegou. 134 Enraizados: os híbridos glocais As atividades artísticas não paravam. Minha casa de qua- tro cômodos era o nosso home estúdio, o lugar onde pro- duzíamos os beats. O computador fi cava no meu quarto e quando a rapaziada chegava minha esposa e minhas fi lhas tinham que ir para a casa da minha mãe. Um dia o Léo da XIII estava comigo em casa, produzindo beats para o grupo Ultimato à Salvação, quando recebi uma ligação do Luiz Carlos Dumontt. Ele queria trocar algumas ideias, tinha pensado algumas coisas para o movimento.Fiquei um pouco preocupado. Eu sempre tomava as ini- ciativas dentro da organização e chamava os camara- das para colocar em prática. Esse cara que nem era do hip-hop já estava pensando coisas para o Movimento Enraizados. Esperei ele chegar pra ver o que realmente queria. Quando ele chegou eu e Léo estávamos com um teclado da Cássio muito usado, tentando captar melo- dias para colocar no beat. O Dumontt olhou aquilo e nem falou o que ele tinha vindo fazer, simplesmente disse: — Vocês estão precisando de um teclado? — Não, não precisamos, não. Esse aqui dá pra usar. — É que eu tenho um teclado lá em casa que não estou usando. — Ah! Se você não está usando então acho que vai servir pra nós, mesmo porque esse aqui não é nosso. — Espera um pouco que eu vou lá buscar. — Tudo bem, a gente espera. Ele saiu da minha casa e depois de meia hora estava de volta, carregando nos ombros um teclado da Yamaha gigante, supercaro, que eu nem sabia como ligava. O Léo da XIII nem piscava, olhando para o equipamento. Acho que ele pensou: “Se com esse teclado todo ruim a gente faz um som maneiro, imagina com esse jumbo!” Acaba- mos de usar o teclado e fomos devolver para o Dumontt. Ele disse que o teclado tinha mais utilidade com a gente, 135Enraizados: como começou? era uma doação para o Movimento Enraizados. Aceitei na hora. Acho que o Movimento Enraizados, antes deste dia, nunca tinha ganhado nada. Eu e o Dumontt começamos a conversar, ele queria saber mais sobre o Movimento Enraizados, sobre a história da organização, e eu queria saber mais sobre ele. Quem era ele? Expliquei tudo sobre o Movimento Enraizados e disse que era a hora de construir uma história em Morro Agudo. Eu cresci ouvindo que o lugar onde nasci e fui criado é amaldiçoado, que nada de bom sai desse lugar, e isso faz com que as pessoas fi quem com autoestima baixa. Isso mexeu comigo durante muito tempo, mas me fez ter mais força para fi ncar aqui minhas raízes. Apesar de estar totalmente envolvido com a questão dos Pontos de Cultura do Ministério da Cultura, ainda não me sentia à vontade pra conversar com políticos. Mas já na primeira conversa o Dumontt tentou me mostrar a importância da articulação política. Hoje conversando com os Enraizados, a gente sempre bate nessa tecla: “Se estiver longe da política, será mais fácil os políticos mal intencionados enganarem você e sua comunidade.” Eu e Dumontt conversávamos bastante, mas eu não podia imaginar que nossa amizade fosse durar mais do que as outras. A gente não tinha muito em comum, e até hoje não temos, e parece que esse é o nosso segredo. Não imaginava que aprenderia tanto e fi caria tanto tempo, literalmente, do lado desse cara. Eu nunca fui religioso, mas tenho certeza que algo sobrenatural fez com que eu e Dumontt nos conhecêssemos especifi ca- mente naquele momento. Tudo o que a gente passou do momento que nos conhecemos até hoje foi literalmente guiado por Deus. 136 Enraizados: os híbridos glocais 137Enraizados: como começou? 138 Level two Não há mais que dois tipos de pessoas: as determinadas e as indeterminadas. As primeiras sabem aonde vão chegar; as outras nem sabem onde estão. — Marina Pechlivanis Depois daquela primeira reunião no Ciep, o Dumontt foi o único que me procurou. Sem contar, claro, os que já estavam enraizados, como o Léo da XIII, o Kall, a Lisa e o Átomo. Eu sabia que não poderia dar muito espaço entre uma reunião e outra. Os garotos não compareceriam. Era união para não evasão. A partir dessa ideia surgiu o evento Encontrão, em que lançaríamos o nosso zine, o “Voz Periférica”. Além disso, era um evento para trocar ideia, conhecer gente nova, trocar CDs e fazer tudo que desse vontade. O objetivo era compartilhar. O Léo da XIII era, como ele mesmo se intitulou, o aproxi- mador. Chamou artistas e militantes para participarem do Encontrão. O primeiro evento aconteceu no dia 28 de julho de 2005, e compareceram aproximadamente 20 pessoas. Pegamos emprestada uma tenda de plástico com o meu tio Humberto, uma caixa de som muito antiga com o Moisés, fi lho do dono da pizzaria Cyntia, fi zemos uma parceria com a Webnetwork (a empresa de um amigo que estudou comigo na faculdade, que disponibilizava 139Enraizados: como começou? internet a cabo em Morro Agudo), ligamos a internet e a caixa de som no meu computador, um Pentium 100 com o monitor quase queimado, e fi zemos a festa. Cantamos e distribuímos a primeira edição do zine “Voz Periférica”. Disponibilizamos muitas revistas “Rap Bra- sil”. O Alexandre de Maio enviava às vezes alguns exem- plares pra nós, era difícil encontrar revistas de hip-hop nas bancas de jornal de Nova Iguaçu. O evento come- çou às 14h e terminou depois das 21h. No dia seguinte o Dumontt havia marcado uma reunião com o secretário de Cultura de Nova Iguaçu, que na época era o Roberto Lara. A maioria dos garotos que estava no Encontrão compare- ceu à reunião, que ainda contava com a presença do coor- denador de Igualdade Racial, Geraldo Magela. O secretário perguntou o que nós precisávamos e que- ríamos. Sempre que acontecia uma reunião desse tipo com a galera do hip-hop, era unânime o pedido de apoio para a realização de eventos de rap, ou dinheiro para gravação de discos. Mas nós queríamos levantar uma discussão a respeito de um fundo para a cultura em Nova Iguaçu, e que essa grana fosse liberada por meio de editais para os grupos culturais da cidade. O Dumontt ainda complementou e disse que o mais importante era uma formação para os grupos cultu- rais aprenderem a fazer projetos. Se os editais um dia saíssem, a maioria dos grupos não saberia como pre- encher os formulários. Todos, inclusive nós, precisáva- mos aprender a fazer projetos, captar recursos e pres- tar contas. O Roberto Lara disse que batalharia por nós, mas logo foi exonerado do cargo. Tudo que acontecia com o Movimento Enraizados, em Morro Agudo, era disponibilizado no Portal Enraizados, e por isso o Encontrão, mesmo sendo um evento pequeno 140 Enraizados: os híbridos glocais e sem qualquer estrutura ou recurso fi nanceiro, come- çava a ganhar projeção nacional. As discussões com o poder público também chamavam a atenção dos Enrai- zados de outros estados. Rapidamente o Dumontt inseria o Enraizados em algumas atividades em Morro Agudo, enquanto eu o levava para conhecer os eventos e os meus camaradas do hip-hop carioca. No mês seguinte fi zemos a segunda edição do Encon- trão, desta vez com mais de 50 participantes. Além da galera de Morro Agudo, compareceram pessoas da Ilha do Governador e de Duque de Caxias. Nessa época conhecemos o cordelista Jota Rodrigues, que mora em Morro Agudo há mais de trinta anos. O Kall foi até a sua casa para fazer uma matéria para o “Voz Periférica”. Enquanto isso o Léo da XIII se envolvia num encontro de Pontos de Cultura, na Leopoldina, centro do Rio de Janeiro, e eu acompanhava reuniões que a prefeitura fazia nas comunidades. Eles traziam arquitetos para conversar com as lideranças do bairro e nos prometeram construir uma casa do hip-hop em Morro Agudo. Também participei, junto com o Dumontt, de mais uma reunião com a diretora do Ciep 117, para tentar resolver de uma vez por todas a questão da ocupação da quadra. Neste dia ela levou um deputado que deu a entender que tinha o poder de liberar a quadra para nós ocupar- mos. Tudo me pareceu um jogo político-partidário, em que a conversa mansa dele insinuava que não teríamos liberdade de trabalhar do nosso jeito. Meu lado radical falou mais alto e fomos embora sem fechar qualquer acordo, continuando nas ruas do bairro. Foi quando entendi o que o Antônio Carlos Magalhães queria dizer com a frase “A ocasião faz o aliado”. Mas com a gente não funcionava dessa forma. 141Enraizados: como começou? O Encontrão não parava de crescer, a terceira ediçãofoi bem maior do que a segunda. Conversando durante o evento, decidimos que nos encontraríamos uma vez por semana. Como não tínhamos sede, nossos encon- tros seriam na praça, no centro de Morro Agudo. Nossas reuniões semanais eram engraçadas, o Dumontt trazia dinâmicas de grupo para fazermos durante o encontro. Cerca de 20 pessoas participavam da reunião. Durante as dinâmicas a gente se abraçava, e as pessoas que pas- savam na rua não entendiam o que estávamos fazendo ali. Acho que só o Dumontt sabia, ele trazia os ensina- mentos do teatro e aplicava no Enraizados. Em uma de nossas reuniões, o Átomo, que é evangélico, disse: — O pessoal da minha rua vai passar e me ver aqui na praça e vão dizer que depois que eu virei crente fi quei maluco. Com o sucesso do Encontrão e a publicação das fotogra- fi as no Portal Enraizados, recebíamos muitos e-mails e telefonemas de grupos de rap que queriam se apre- sentar no evento. Mas eu não permitiria que as pes- soas viessem de outros estados para participar de um evento que nem microfone tinha. O Dumontt disse que era quase impossível conseguir um palco a uma semana do evento, mas tentaria uma articulação com algumas pessoas da prefeitura que talvez desse certo. Os Enraizados de outros estados estavam decididos que viriam para Morro Agudo, mas mesmo assim eu não divulguei. Na sexta-feira, um dia antes do evento, ainda não tínhamos confi rmação do palco. A calma do Dumontt me incomodava. Às 22h ele recebeu uma liga- ção, era o pessoal da prefeitura confi rmando o palco do nosso evento, mas eles não tinham o som. Tínhamos outro problema nas mãos. 142 Enraizados: os híbridos glocais Na madrugada de sexta para sábado o palco foi mon- tado, e quando os moradores acordaram se depararam com uma verdadeira espaçonave na porta de suas casas. Como não havíamos divulgado o evento, os moradores não sabiam para que era aquele palco gigantesco, e as crian- ças na mesma hora o usaram como parque de diversões. Começamos a fazer uns contatos para arrumar o som. Eu sabia que o Chico, pai do Dinho, DJ do grupo Fator Bai- xada, tinha uma aparelhagem, então fomos até a casa dele para conversar. O Chico é muito gente fi na e topou na hora, cobrou bem baratinho pra nós. Os moradores do bairro de fato não conheciam a cultura hip-hop, então tentamos trazer os quatro elementos. Convidamos os grafi teiros Tihkin (Penha) e Kajaman (Duque de Caxias) para participarem do evento conosco. A ideia inicial era grafi tar o muro de algumas casas da rua, mas os moradores não aceitavam de jeito nenhum. A solu- ção foi comprar um tapume para grafi tar. No dia, o César, fi lho do cara que me ensinou a consertar rádio, cedeu a parede do bar dele para o Kajaman grafi tar. Quando os outros moradores viram o resultado quiseram liberar os muros para o grafi te, mas não dava mais tempo. O Alessandro Buzo veio de São Paulo para apresentar o evento. Para cantar, além do casting do Movimento Enraizados (Dudu de Morro Agudo, Fator Baixada, Ulti- mato à Salvação e Léo da XIII), vieram Os Guerreiros e Hórus, ambos de São Paulo, além de alguns grupos do Rio de Janeiro. Mesmo sem entender o que era o hip- hop, os moradores da minha rua queriam se vestir e fi car iguais a nós. Toda hora aparecia uma touca ou um boné de lado, em crianças, jovens, adultos e idosos. A força do Enraizados estava ali, materializada. Cap.03 Seguindo em frente Cap.03 Seguindo em frente 146 A arte de criar o inimaginável Ainda não houve homem de gênio extraordinário sem algo de louco. — Sêneca Eu e o Dumontt começávamos a trocar ideia todos os dias da semana. O Dumontt representava intelectual- mente todas as atividades que o Movimento Enraizados executava. A cada dia ele me apresentava planos mira- bolantes para serem executados a longo prazo no Enrai- zados. Eram dezenas de ideias que talvez eu só fosse pensar uns trinta anos depois. Aos poucos ele contava sua história de vida, e a gente começou a se identifi car. Ele cresceu gago, mas tão gago que não conseguia se comunicar. Sua infância foi dentro de casa, lendo centenas de livros e vendo TV. Destacava- se na escola, foi o primeiro da família a ingressar na uni- versidade. Antes de se formar já dava aulas de matemá- tica. Para conseguir uma bolsa na faculdade entrou para o grupo de teatro, e a partir daí sua vida mudou. Logo depois entrou na Cia. Encena – companhia de tea- tro – e se descobriu ator. Conseguiu controlar aquilo que o perturbava desde pequeno: a gagueira. Iniciou a facul- dade de cinema. A Cia. Encena era um movimento cultu- ral, enquanto Dumontt queria institucionalizar tornando- a uma associação, outros integrantes preferiam montar 147Seguindo em frente uma produtora, o que motivou um racha. Quando a Asso- ciação Cia. Encena estava com os documentos em dia, era ele quem “carregava o piano”. Depois de grandes decep- ções e uma dívida de seis mil reais, a gente se conheceu. Eu estava diante de um gênio, não tinha dúvidas. Sempre o chamei de meu guru. Difi cilmente ele toma decisões de forma lógica, por mais que tudo indique que aquele não é o caminho, se ele achar que é, a gente vai conferir. Em uma de nossas conversas me contou que quando parti- cipou da reunião no Ciep sua vontade era ajudar aqueles garotos durante um tempo, e depois seguir seu caminho. Mas foi se envolvendo com o passar do tempo, e a cada minuto estava mais comprometido com o Enraizados, até que não conseguiu mais ir embora. Eu e Dumontt nos reuníamos no bar Continental, sempre após os encontros do Movimento Enraizados na praça de Morro Agudo. Quando tínhamos dinheiro, o que não era comum, bebíamos umas cervejas enquanto pen- sávamos nas estratégias que usaríamos nos próximos meses. Em uma dessas conversas surgiu a ideia de mar- carmos a cidade com nosso logotipo. Resolvemos grafi - tar a cidade e depois fazer blusas do Movimento Enrai- zados para colocar na rua. Além de nos dar visibilidade geraria uma renda extra para a organização. Outra estra- tégia era continuar compartilhando poder com os garo- tos, sempre os enviando para participar das atividades para as quais nós do Enraizados éramos convidados. Ficamos uns três meses fazendo encontros na Praça de Morro Agudo, até que um dia uma senhora passou de carro, viu nossa situação, chamou o Dumontt e ofereceu a varanda da casa dela para nos reunirmos. Acho que ela fi cou com pena da gente ou achou perigoso fi carmos ali, e a partir de então passamos a nos reunir na casa dela. Seu nome é Rosinha, uma senhora muito boa, que nos ajuda bastante, e por isso foi apelidada de Mãe do Enraizados. 148 Enraizados: os híbridos glocais O Dumontt conceituou e organizou o modo como tra- balharíamos, chamou de Rede Enraizados e defi niu como essa rede funcionaria dali pra frente. Foi quando Dumontt participou, em dezembro de 2005, da I Con- ferência Nacional de Cultura, em Brasília. Chegando lá conheceu pessoas de diversas instituições. Nós sabí- amos que trabalhávamos em rede, mas neste dia o Dumontt me ligou e disse: — Filhote, estou aqui em Brasília com muitas institui- ções que trabalham com hip-hop e juventude. Posso convidar eles pra entrar na Rede Enraizados? Eu sem saber muito bem do que ele estava falando, concordei: — Pode sim, cara! Claro que pode. Formava-se naquele momento a Rede Enraizados, com seis instituições. A partir de fevereiro de 2006 nos reu- níamos uma vez por semana, à noite, já que todo mundo trabalhava. A Rosinha não se importava com a nossa presença. A gente chegava e já ia sentando na varanda da casa dela, falando alto, mostrando as rimas e dando os informes. Nosso nome já era bastante comentado em Nova Iguaçu, tanto pelos grupos culturais como pelos políticos. Ficamos sabendo que Nova Iguaçu sediaria o Fórum Mundial de Educação, no fi m do mês de março. O Dumontt sugeriu quenos inscrevêssemos em uma ativi- dade autogestionada. Ele articulou com a escola muni- cipal Ivonete dos Santos Alvez, e levamos cerca de 50 crianças, mais professores e diretores da escola. Dez Enraizados estavam empenhados, por meio do pro- jeto “A escola é mais hip-hop”, em mostrar ofi cinas, palestras, bate-papo e debates sobre quanto o hip-hop 149Seguindo em frente pode contribuir para a formação de cidadãos que respei- tam qualquer tipo de diversidade e, acima de tudo, como essa cultura já está integrada à educação. Preparamos uma palestra em que eu contei a história do hip-hop mundial e nacional, o Dumontt falou sobre o Movimento Enraizados, o Léo da XIII, o Kall e o Átomo sobre o rap – a literatura da periferia –, e o Short falou sobre o grafi te. As crianças estavam quase dormindo e as diretoras começaram a reclamar. Explicamos que a palestra não era para as crianças, e sim para os adultos. A parte das crianças seria a próxima: o hip-hop na prática. Nossa intenção era levar o hip-hop para as escolas. Terí- amos primeiro que convencer os adultos, as diretoras, e depois as crianças. Quando começamos as atividades com as crianças, primeiro trabalhamos com a ofi cina de rap. Usamos uma metodologia simples. Fizemos um grande círculo em que todos podiam se ver. Os partici- pantes falavam frases e a gente ia escrevendo no qua- dro negro. Os rappers tinham a missão de fazer com que as frases rimassem. Construímos uma música coletiva, inclusive com direito a refrão, mas sempre com conexão lógica entre os fatos. No fi nal, nós, rappers, selecionamos uma base instru- mental e começamos a musicar com a ajuda de todos os presentes. O ponto alto da ofi cina foi o ensaio, que durou mais de meia hora. Todos aprenderam a música em menos de dez minutos, mas gostaram tanto que não queriam parar de cantar: A escola é mais hip-hop A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer A escola é o lugar aonde eu vou para aprender 150 Enraizados: os híbridos glocais Vou à escola para aprender, já sei ler e escrever Mas por causa da miséria também vou para comer E quando crescer quero ter uma profi ssão Para poder trabalhar e formar um novo cidadão Ser um escrivão para andar de carrão Ter inteligência e ser mais um na inclusão E hoje tô no Fórum Mundial da Educação Usando o hip-hop para a transformação A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer A escola é o lugar aonde eu vou para aprender Em seguida os b. boys ensinaram para as crianças alguns passos de break e evoluímos até chegar a uma coreografi a. Os adultos não resistiram e também entra- ram na dança. Pessoas de outras salas quiseram par- ticipar de nossas atividades, mas a sala de aula já não suportava tanta gente. Com a missão cumprida, fomos comemorar. Quando abria a primeira cerveja em casa, o telefone do Dumontt tocou. Era o Paulô, um grande camarada nosso, que tra- balhava na articulação política da prefeitura de Nova Iguaçu, dizendo que por causa da repercussão da nossa atividade no Fórum o prefeito Lindberg Farias gostaria que fôssemos até o Sesc, onde acontecia uma palestra sobre segurança pública, e falássemos da nossa experi- ência com o projeto. O Paulô pediu que um carro da prefeitura fosse nos buscar. Fui para o Sesc como estava vestido: uma ber- muda de basquete, a blusa Black Panters do Movimento Enraizados, calçando Havaianas. Alías, todos os Enrai- zados estavam com a blusa Black Panters. Causáva- mos espanto por onde passávamos. Vi ali a oportuni- dade de falar algumas verdades em público. Participar 151Seguindo em frente dessa palestra custava uma grana, e quem era professor pagava um pouco menos. Como eu não era professor e não tinha dinheiro, teria fatalmente que fi car de fora da discussão, mas minha oportunidade chegara e eu não poderia deixá-la passar entre meus dedos. Esperamos o anúncio dos organizadores, que não sabiam a hora certa de nos deixar falar. Em uma mistura de pressa e nervosismo nos anunciaram antes da hora prevista. Então entramos, nove Enraizados uniformiza- dos, prontos para falar uma verdade que nem todos que- riam ouvir. Lembro que na plateia havia muitos profes- sores e que a maioria morava na cidade de Nova Iguaçu. Conviviam diariamente com problemáticas ligadas a todo o tipo de violência, dentro e fora da escola. A primeira coisa que fi zemos quando pegamos o micro- fone foi desconstruir o que os palestrantes diziam. Eles não moravam em Nova Iguaçu, não caminharam pelas ruas violentas da cidade. Nenhum deles poderia falar com legitimidade como é viver em Nova Iguaçu. Passa- mos o discurso para as pessoas que estavam na pla- teia, aquele evento não deveria ser uma palestra em que cinco pessoas falam e 150 ouvem. Aquilo deveria ser uma troca, em que todos falavam e ouviam, todos aprendiam juntos e desse modo buscariam soluções efetivas para os problemas, uns com a experiência de vida e outros com o saber da academia. Logo depois mostramos que as crianças entendiam o que é desigualdade social e recitamos a letra da música “A escola é mais hip-hop”. Todos fi caram perplexos quando dissemos que grande parte das frases foi feita por crian- ças entre 5 e 10 anos. Cantamos a música juntos, diver- sas vezes. A mesa foi esvaziando e ninguém mais quis falar. Depois disso foi só festa, todos os presentes que- riam saber mais sobre o Movimento Enraizados, de onde 152 Enraizados: os híbridos glocais éramos e como poderíamos fazer uma parceria com as escolas. O prefeito Lindberg Farias veio nos agradecer e nos apresentou alguns políticos ligados à educação. Ficamos em evidência na cidade e fomos convidados a apresentar a música “A escola é mais hip-hop”, junto com os alunos do colégio Ivonete dos Santos Alves, durante a posse dos diretores das escolas municipais de Nova Iguaçu, que aconteceria no colégio Monteiro Lobato, no centro de Nova Iguaçu. O Dumontt ligou pra escola Ivonete dos Santos Alves e falou com as direto- ras, que permitiram a apresentação dos alunos no dia 30 de março. Um dia antes o Léo da XIII foi até a escola ensaiar com a criançada, todos estavam com a música na ponta da língua. No dia da posse havia mais de 1.000 pessoas no colégio Monteiro Lobato, mas a quantidade de gente não aba- lou as crianças. Todos estavam eufóricos e cantavam a música o tempo inteiro. O Léo da XIII e o Faminto, res- ponsáveis pelas crianças naquele dia, envelheceram três anos em uma hora. A apresentação foi uma festa. A acústica do lugar era horrível e acho que ninguém enten- deu nada, mas era impossível passar despercebida a felicidade estampada no rosto de cada criança. 156 Ousando em novos territórios As riquezas deste mundo pertencem, com efeito, àqueles que têm a ousadia de proclamar-se seus donos. — Georges Duhamel Em abril de 2006, aconteceria a primeira edição do evento Teia, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. O Teia reuniu os Pontos de Cultura participantes do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O MHHOB estava organi- zando o Espaço Preto Ghóez, que aconteceria durante o Teia. Todos os integrantes do MHHOB no Brasil enviaram representantes para as reuniões que aconteceriam em paralelo ao evento, e a principal pauta das reuniões era a discussão sobre os Pontos de Cultura, que estavam mais próximos de virar realidade para nós. Alguns ônibus levariam os integrantes dos Pontos de Cultura para São Paulo, mas eu e Dumontt não pudemos ir porque era dia de semana e horário comercial. O Gil BV (Teresina-PI) me ligou dizendo que o ônibus passaria às 9h na rodovia Presidente Dutra para buscar os integran- tes do Movimento Enraizados. Porém não havia ninguém para ir, muitos eram menores de idade,outros estuda- vam e trabalhavam. Rapidamente liguei para o Léo da XIII e disse que tinha uma missão pra ele. No Enraizados, quando há uma missão, é impossível dizer não. 157Seguindo em frente O Léo saiu de casa às 8h30 e o ônibus só passou às 11h da manhã. Ele tinha apenas dez centavos na carteira e ia pela primeira vez para São Paulo, encontrar pessoas que nem conhecia. Para piorar a situação, o motorista do ônibus levou o Léo para o hotel errado, largou ele lá e foi embora. Quando foi fazer o chek-in não havia reserva em seu nome. Eu acompanhava tudo por tele- fone, ligando para o Gil BV e para o Lamartine, mas eles não tinham notícias do Léo. Por sorte o Léo vestia uma blusa do Movimento Enrai- zados e a Mary Monteiro, do Núcleo Cultural do América Futebol Clube, em Juscelino, no Rio de Janeiro, começou a conversar com ele pra saber mais a respeito da orga- nização que tanto ouvira falar. Durante a conversa o Léo disse que o ônibus o havia deixado no hotel errado, e ele precisava ir para outro hotel, na rua Augusta. Mary tam- bém estava indo para lá de táxi e ofereceu uma carona. Quando chegou ao hotel, todos o procuravam. Final- mente me ligaram, informando que ele estava bem. Dois dias depois fui para São Paulo participar do evento. Quando cheguei ao hotel onde Léo da XIII estava, todos falavam maravilhas dele. Faltavam adjetivos para defi nir sua atuação na Teia. Rolaram até algumas piadas por causa do seu excesso de vontade de cantar rap. Diziam que ele ajudava todo mundo, mas não podia ouvir um cara martelando um prego na madeira, porque se ouvisse o barulho tum, tum, tum, já começava a rimar. Muitos passaram pelo Espaço Preto Ghóez, e o Enraiza- dos SP estava bem representado pelo Rodrigo Dimenor, presente com sua esposa e fi lho, pelo Terno e, é claro, pelo Alessandro Buzo, que daria uma palestra. Outras personalidades das periferias brasileiras estiveram ali, 158 Enraizados: os híbridos glocais marcando presença. Os escritores Sérgio Vaz e Dinha, e muitos integrantes do MHHOB, como Adonias Luz (jor- nal “Estação Hip-hop”), Lamartine, Gil BV, Robson Codó, Saroba e Jackson. Nas reuniões do MHHOB fi quei sabendo que os kits dos Pontos de Cultura estavam no Parque Ibirapuera, e que a gente já poderia levar dali os equipamentos. O Movi- mento Enraizados era um dos contemplados para rece- ber o kit dos Pontos de Cultura. Apesar de não ter onde colocar os equipamentos, eu queria levá-los para Nova Iguaçu de qualquer maneira naquele dia. A gente se reunia, conversava, tentava imaginar alguma solução, mas nada era possível. O Gil BV disse que tal- vez pudéssemos colocar os equipamentos no ônibus que ia para o Nordeste, e quando ele passasse por Morro Agudo a gente pegaria, mas não deu certo. Tentei con- tratar uma empresa para pegar o material no Ibirapuera e entregar em Morro Agudo, mas o valor que a transpor- tadora cobrava era muito alto, cerca de R$800, um valor inviável de a gente arrumar. Liguei para o Dumontt, que era o cara que realizava o impossível. Ele disse que era pra eu arrumar uma trans- portadora e quando a mercadoria chegasse ao Rio de Janeiro ele dava um jeito de pagar. Tentei de todas as formas, mas não consegui. Fomos pra casa com as mãos abanando e com a promessa de que o Ministério da Cul- tura entregaria os equipamentos em Morro Agudo no máximo em quinze dias. Eu sabia que os equipamentos do MHHOB do Piauí che- gariam com certeza. A articulação da organização local com o Ministério da Cultura era muito grande, e o Cen- tro de Referência do Hip-Hop seria o lugar onde have- ria, entre outras, uma formação de metarreciclagem 159Seguindo em frente (reaproveitamento de computadores velhos) do MinC. Eu não tinha tanta certeza de que o nosso chegaria, por isso queria trazer embaixo do braço. Quando vi a quan- tidade de caixas, recuei e só tive a opção de esperar os dias que o MinC pediu. O kit do Ponto de Cultura era composto por um computa- dor multimídia, um terminal burro (sem HD), uma fi lma- dora handcam da Sony, uma máquina fotográfi ca digital, um MD portátil, um microfone lapela, uma impressora jato de tinta, uma impressora a laser, um scanner, uma mesa de som de seis canais, um amplifi cador, dois kits de três microfones e cabos de rede. Imagina um bando de garotos que produziam com apenas um computador Pentium 100 e um teclado velho emprestado com todo esse equipamento nas mãos? Voltando para Nova Iguaçu contamos as novidades aos nossos camaradas. Eles fi caram felizes, mas não fi ze- ram nenhum estardalhaço. Esses equipamentos já esta- vam para chegar há tanto tempo que ninguém mais acre- ditava no envio. 160 Cada um com o seu cada um Políticos: somos parceiros, não somos aliados. — Luiz Carlos Dumontt A Mary Monteiro nos chamou para fazer uma entrevista na Rádio Tropical Solimões. A missão fi cou por conta do Léo da XIII, que já a conhecia e que liderou o bonde rumo à rádio. Foram com ele o Elison, o Short, o Faminto e a Kelly. Ficaram realizados, pois a maioria nunca tinha dado entrevista. Nossa vida continuava como sem- pre. Alguns em seus trabalhos convencionais, família e estudos. Outros sem emprego. Mas todos correndo pelo hip-hop e, consequentemente, pelo Movimento Enraizados. Um mês depois, um repórter do jornal “O Dia”, Helvio Lessa, nos procurou querendo fazer uma matéria para o caderno Baixada. Eu queria marcar em um fi m de semana, mas ele marcou numa quarta-feira, às 14h. Eu pedi que pelo menos fosse na casa da Rosi- nha, e ele concordou. Liguei para todos os companhei- ros do Movimento Enraizados avisando dia e local da entrevista. Quando saí do trabalho fui direto para casa – tinha o costume de parar em uma padaria para beber umas cervejas – separar os materiais do Movimento Enraizados para apresentar ao Helvio. 161Seguindo em frente No dia da entrevista compareceram, além de mim, Léo da XIII, Kall, Velho, Lisa, Átomo, Short, Suellen Casticini e mais dois garotos que resolveram entrar para a organi- zação no dia da fotografi a para o jornal e depois nunca mais apareceram. O Helvio fez uma matéria ampla, saí- ram quatro páginas falando de nós. Foi um ótimo pre- sente para nossas mães, o jornal saiu no dia 14 de maio de 2006, domingo de Dia das Mães. Nesse dia acordei cedo e fui direto para a banca comprar o jornal. Quando vi a matéria, fi quei muito feliz porque não sabia que apa- receríamos em tantas páginas. Além da organização, cada pessoa envolvida ganhou visibilidade, o Short com o grafi te, o Ultimato à Salvação com seu rap de crente, o Kall com o Fator Baixada e eu, liderando o movimento. Quando cheguei em casa entrei no quarto da minha mãe e coloquei o jornal em cima de sua cama. Ela fi cou toda boba quando viu a matéria, e nossa autoestima foi nas nuvens. O título era: “O som do pensamento. Cultura hip-hop se consolida em Nova Iguaçu e faz intercâmbio internacional.” Na época o intercâmbio internacional, e até mesmo o nacional, era feito somente de modo vir- tual. Nós não imaginávamos que os primeiros intercâm- bios internacionais presenciais aconteceriam apenas três anos depois. Um trecho da matéria: O hip-hop de Nova Iguaçu está rompendo fronteiras atra- vés do Movimento Enraizados. Depois de começar timi- damente com um site, idealizado pelo rapper Dudu de Morro Agudo há sete anos, o projeto já tem no currículo a produção de dois CDs coletâneas de artistas nacionais e um só com grupos de Morro Agudo, onde tudo começou. O intercâmbio com adeptos do ritmo nos quatro cantos do mundo está consolidado. Agora o grupo da Baixada troca fi gurinhas com rappers do Japão, Angola e Moçam- bique – inclusive produzindo CDs de grupos africanos e exportando projetos. A página na internet está com a marca de 80 mil acessos por mês. 162 Enraizados: os híbridos glocais Para completar o ciclo de conquistas,a sede defi ni- tiva dos Enraizados está em fase de negociação com o governo do estado. Equipamento como ilha de edição de vídeo e câmera digital chegam na próxima semana, atra- vés de convênio com o Ministério da Cultura. Realmente tínhamos retomado o contato para con- seguir ocupar a quadra do Ciep, mas o Dumontt achou melhor começarmos tudo novamente. Fizemos outro ofício e fomos direto ao governo do Estado, mas a bata- lha estava apenas recomeçando. Os equipamentos do Ponto de Cultura deveriam chegar na outra semana. Na verdade, toda semana eu ouvia essa desculpa do pes- soal do MinC, mas aguardava porque não tinha muito o que fazer. Estávamos confi antes, em alguns estados os equipamentos realmente chegavam, e isso nos animava. Não foi o que aconteceu com o MHHOB do Rio Grande do Sul. O governo prometeu enviar o equipamento deles, mas não o fez. Eles se reuniram e ocuparam o prédio do Ministério da Cultura, passaram a noite nas salas, os militantes levaram suas famílias. No dia seguinte as lideranças nacionais do MHHOB me ligaram para infor- mar o que estava acontecendo. As opiniões estavam divididas, alguns achavam correto, outros que eles esta- vam sendo extremistas. Eu achava que eles estavam certos. Para acalmar os ânimos, algumas pessoas do MHHOB e outras do Ministério da Cultura pediram per- missão para enviar o equipamento do Ponto de Cultura do Movimento Enraizados para o Rio Grande do Sul, em seguida enviariam os equipamentos de outro Ponto de Cultura para nós. Enviaram, então, nosso equipamento para o Sul e os militantes saíram do prédio do MinC. Nossa popularidade aumentava e o portal estava entre os mais acessados, não só dentro dos sites de hip-hop. Muitos convites chegavam e a ideia de descentralizar 163Seguindo em frente o poder da organização dava certo. Léo da XIII, Elison e Scooby representavam o Enraizados em alguns eventos de dança e de rap na cidade. O grafi teiro Short dava conti- nuidade à ideia de marcar a cidade com o nosso logotipo e nos representava participando de eventos e dando ofi ci- nas de grafi te. As reuniões fi cavam cada vez mais cheias. Em junho de 2006 fomos convidados pela Mary Monteiro para fazermos um quadro dentro do programa do Amé- rica na Tropical Solimões, uma rádio AM. Entrevistáva- mos uma pessoa e dávamos informes sobre nosas ati- vidades. As pessoas que entrevistávamos eram sempre do nosso meio, primeiro foi o Short, depois o rapper Kall, e em seguida o Léo da XIII. Um dia o Lamartine (São Luís - MA), quando era Conselheiro Nacional de Juventude, veio ao Rio de Janeiro com o cineasta francês Lahzari e os entrevistamos também. O Lamartine falou de modo muito interessante sobre o movimento hip-hop: Eu queria deixar um recado para as pessoas que não conhecem o movimento hip-hop. É um movimento que hoje trabalha na perspectiva de anu- lar o analfabetismo, anular a violência, inclusive eu estava conversando com a ministra – Matilde Ribeiro – que é necessário uma ação para prever a mortalidade juvenil negra e essa ação em Nova Iguaçu não nasce simplesmente com vocês ouvindo uma pessoa que veio da França e outra pessoa que veio do Maranhão e dizer o seguinte: “É, os caras estão certos, o hip-hop realmente resgata.” Vocês têm uma forma de ajudar, as autoridades aqui têm que se sensibilizar e colar com o movimento hip- hop, não do Maranhão, não de Porto Alegre, mas com o movimento hip-hop de Nova Iguaçu. É o movimento hip- hop de Nova Iguaçu que está discutindo políticas públi- cas, que está ocupando os espaços públicos para fazer essas mudanças, esse movimento se chama Enraizados 166 Enraizados: os híbridos glocais No Brasil inteiro a gente vê organizações fazendo polí- tica pública, exercendo o papel do estado sem espaço físico, e aqui não é muito diferente. É a forma de aju- dar, a forma de mudar, de dar oportunidade de o jovem mudar a realidade de analfabetismo, tráfi co, drogas, desemprego e violência em Nova Iguaçu. A juventude não confi a em partido, não confi a em político, é porque normalmente essas instâncias usam a juventude como massa de manobra, para dar voto, como coisas des- cartáveis, mas, a partir do momento que você coloca a juventude como ator principal do seu processo de mudança, esse processo de mudança vem, e um exem- plo disso é o Movimento Enraizados em Nova Iguaçu. Cerca de três meses se passaram e nossos equipamen- tos não chegaram. Eu liguei para o Aldo Rebelo, que me ligou para informar que nossos equipamentos iriam para o Sul, e perguntei o motivo por que nossos equipamentos ainda não tinham chegado.Ele disse que havia acontecido um imprevisto, mas que tudo estava sendo resolvido e quando nós menos esperássemos os equipamentos che- gariam. Eu disse: — Aldo, eu sou bastante tolerante, inclusive sou considerado o diplomata do MHHOB, mas se esse equi- pamento não chegar aqui até amanhã, o que os meninos do MHHOB do Sul fi zeram vai parecer brincadeira de criança perto do que nós vamos fazer no Rio de Janeiro. — Dudu, fi ca calmo que as coisas vão se resolver, não tem como o equipamento chegar amanhã porque ele está na Bahia. — Aldo, amanhã a gente conversa. Desliguei o telefone e em seguida liguei para o Dumontt. Contei o que tinha acontecido, falei da conversa com o Aldo e disse que tinha certeza que esse equipamento não chegaria no dia seguinte. E se eles só funcionam na pressão, então nós pressionaríamos. O Dumontt deu a 167Seguindo em frente ideia de enchermos um ônibus de grafi teiros, MCs, b. boys e rappers, além dos militantes do Enraizados e par- tir para o edifício Gustavo Capanema, situado na rua da Imprensa, no centro do Rio de Janeiro. Enquanto os b. boys faziam uma roda de break no saguão do prédio, nós ocuparíamos uma das salas e fi caríamos lá até que nos- sos equipamentos chegassem, grafi tando uma parede por hora, ou até a polícia nos prender. Eu adorei a ideia. Começamos as articulações para con- seguir o ônibus, mas misteriosamente todos os equipa- mentos chegaram à minha casa no dia seguinte, frus- trando as quase 40 pessoas que ocupariam o Capanema. Era tanta caixa que não cabia dentro da minha casa, e nós nem tínhamos ainda um lugar para colocar os equipamen- tos. Mas aprendi com o Dumontt a não encarar isso como um problema, e sim como um desafi o. A partir de agora tínhamos o desafi o de conseguir um local para instalar o Ponto de Cultura Fome de Livro, na Quebrada-RJ. 168 Enraizados: os híbridos glocais 169Seguindo em frente 170 Nossas superproduções Quando você não sabe o que está fazendo, e o que está fazendo é o melhor, isto é inspiração. — Robert Bresson Quando o equipamento chegou eu estava no trabalho, vi somente quando cheguei em casa. Comecei a abrir as caixas, quando olhei a câmera de vídeo e a máquina fotográfi ca digital liguei para o Dumontt e pedi que viesse até minha casa. A única câmera que tínhamos era uma Samsung de 1.3 megapixels, que eu havia comprado havia alguns meses para o Enraizados. O Dumontt saía pela rua fotografando tudo o que estava à sua volta. Ele disse que quando estudava cinema tinha escrito uns roteiros, mas não tinha fi lmadora, e os roteiros ainda estavam na casa dele. Quando ele chegou mostrei a fi lmadora. Hoje sei que era apenas uma handcam, mas na época, apesar de não conhecer, achava que era a melhor fi lmadora do mundo. Na realidade, era a melhor do mundo porque era a que nós tínhamos. Falei para o Dumontt levar a fi lmadora e o manual – até hoje a gente não gosta de ler manual – aprender a utilizar a câmera e ensinar para os garotos do Enraizados. Dumontt saiu de casa com a fi lmadora e a máquina fotográfi ca parecendo uma criança que aca- bara de ganhar um brinquedo novo. 171Seguindo em frente Algumas pessoas da Cia. Encena começavam a partici- par mais ativamente do Movimento Enraizados,como Gil Torres, Samuel Azevedo, Nadir, Eliel e Suelen Cas- ticini. Todos são atores, mas a Gil Torres foi a única que conseguiu uma projeção maior. Ela participou de “Cidade dos homens” – uma série de teledramaturgia exibida pela Rede Globo durante quatro temporadas – em um dos episódios que mais gostei, mas não con- seguia me lembrar dela. Por sorte eu gravei este pro- grama e pude conferir a Gil, que teve uma participação enorme. Ela era professora de história do Acerola, per- sonagem do Douglas Silva. Fiquei superorgulhoso. O zine “Voz Periférica” era um sucesso. Começamos a fazer ofi cinas para produzir o zine. A matéria de capa se chamaria matéria rimada. Primeiro a gente identifi cava um problema no bairro e depois falávamos a respeito. Uma pessoa redigia e os rappers faziam com que as frases rimassem. Fizemos um bem interessante sobre o rio Botas. O Rio Botas é um rio brasileiro que banha o estado do Rio de Janeiro. É muito prejudicado pela quantidade de resíduos tais como entulhos, galhadas e lixo domiciliar que constantemente são removidos. Nasce na APA de Gericinó-Mendanha, localizada na cidade de Nova Iguaçu e tem aproximadamente 20km de extensão, passando pelo bairro de Comendador Soares, mais conhecido como Morro Agudo. Deságua no rio Iguaçu no bairro de São Vicente, em Belford Roxo. Seus principais afl uentes são os rios Maxambomba e o Rio das Velhas. (Fonte: Wikipedia) Rapensando as bostas que botas no Rio Botas Brota bosta no rio Botas! Não, não brota, jogam! Jogam até carro, onde deveriam brotar fl ores Rio Botas com bosta, quem gosta? Acho que ninguém, mas se quiser a gente bate uma aposta 172 Enraizados: os híbridos glocais Se a gente bota no Botas, o Botas também bota na gente Prova disso são as enchentes, inclusive a garota apren- deu a nadar na enchente Quando ela passa, o pé atola na fossa, é difícil Não é como a bossa de Tom e Vinicius Na verdade, as crianças de Morro Agudo Nadam no rio como peixinho barrigudo É a alegria dessa gente, que nasce desse afl uente Que vive contente com a droga da enchente Nem a dengue quer fi car no Botas porque gosta de água limpa Brotam ratos no meio das mazelas dos detritos que lá jogam Sujeiras e nojeiras são coisas que me incomodam O Botas te devolve tudo aquilo que nele botas Viram as costas e enchentes tomas pelas costas Nas olimpíadas do Botas existem várias modalidades Lançamento de lixo à distância e outras atividades Levantamento de móveis e nado sincronizado Enquanto o povo se diverte com o Pan, a periferia sofre por outro lado Corpos aparecem no Botas, isso é um grande mistério Pois além de outras atividades o Botas também é cemitério Como se fosse um sonho, tipo “De volta à lagoa Azul” Ops! É só mais uma vala negra em Nova Iguaçu Essa realidade não deveria ser vista só pelos povos E sim por aqueles em que as comunidades votam Quem é responsável por este chulé? Vossas excelências, por favor ponham essa bota no pé. Autores: Paulô, Gil Torres, Suellen Casticine, Dudu de Morro Agudo, Anderson Cravo, Dumontt, Léo da XIII, Lisa Castro, Átomo e Short. No dia 19 de julho estávamos novamente nas páginas do jornal “O Dia”, dessa vez por causa da chegada dos equi- pamentos do Ponto de Cultura. 173Seguindo em frente Filmes e coletânea hip-hop em Nova Iguaçu No Morro Agudo, em Nova Iguaçu, jovens que se uniam desde 1999 para gravar suas músicas ampliaram seus projetos com a chegada do kit do MinC. O grupo Enraiza- dos, ligado ao Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB), não ganhou a antena, mas conseguiu conexão banda larga (ADSL) com outra parceria. Eles usam Software Livre e atendem a cerca de 60 ado- lescentes e jovens. Estão em produção a segunda cole- tânea “Raiz do hip-hop” e dois documentários, sobre gra- videz na adolescência e alcoolismo. “São problemas que afetam diretamente as pessoas daqui”, explica o rapper Dudu de Morro Agudo, 27 anos, fundador do grupo. O CD terá tiragem inicial de mil cópias e será vendido na comunidade e pela internet. Os documentários serão prensados em DVD e VCD e distribuídos para os mora- dores. “Também haverá sessões gratuitas no Ponto de Cultura”, planeja Dudu. Marlon Mendes, jornal “O Dia”, 19 de julho de 2006 Mais convites chegavam e a gente literalmente não parava de trabalhar. Fomos convidados para um evento no Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, e fi zemos uma festa. A gente incentivava e a galera movimentava o zine entrevistando moradores e denunciando problemas graves da cidade. Cópias do zine sempre circulavam pela prefeitura. Eu e Átomo par- ticipamos de um programa de rap na rádio Novos Rumos, em Queimados (cidade vizinha a Nova Iguaçu). O Léo da XIII criou um evento chamado “Banca de frees- tyle”, em que reunia MCs na porta de sua casa, uma espé- cie de miniencontrão. Participávamos de muitas ativida- des ao mesmo tempo. Eu já não conseguia me dedicar ao trabalho formal, e o escritório onde trabalhava era na 174 Enraizados: os híbridos glocais verdade uma extensão do Enraizados, mesmo no horário comercial. Só conseguia pensar nas atividades da orga- nização, onde a galera estava naquele momento e o que estava fazendo. O Dumontt dizia que precisávamos dedicar mais tempo ao Movimento Enraizados. Se acreditávamos mesmo no que fazíamos, tínhamos de nos sustentar desse traba- lho. Eu concordava com ele, mas não conseguia me des- ligar do trabalho porque o dinheiro, apesar de ser pouco, era certo, e eu tinha uma família que dependia desse dinheiro. O Alessandro Buzo havia passado pela mesma situação que eu. Nós conversávamos diariamente pelo telefone e o assunto era sempre sobre a vontade de podermos nos dedicar de modo integral àquilo que real- mente gostamos de fazer. No dia 14 de setembro de 2006, Ítalo Lopes, o Ita, como era conhecido no hip-hop, foi assassinado em Mesquita por policiais do 20º Batalhão, enquanto participava de uma festa. O crime revoltou militantes do hip-hop e dos direitos humanos. Na semana seguinte ao crime fomos convidados para uma manifestação em Mesquita, em um bar onde aconteciam eventos de rock, ali eu vi que estavam todos unidos por uma mesma causa: a vida. Numa das reuniões do Movimento Enraizados, o Du montt, portando a handcam do Ponto de Cultura, criara mais uma metodologia. Eu estava em São Paulo fazendo umas articulações com o Alessandro Buzo, e não participei dessa reunião. A metodologia era a seguinte: 01) O Dumontt dividiu o grupo em dois e pediu que cada um criasse uma história; 02) E que cada grupo contasse a sua história para o outro grupo; 03) Em seguida pediu que os grupos se unissem e juntassem as histórias; 175Seguindo em frente 04) Depois que cada um adotasse um personagem da história; 05) E por último avisou que naquele momento iriam gravar. Entre 9h e 12h eles criaram a história e gravaram. Tudo foi improvisado. Não havia roteiro, fi gurino e nem mesmo atores, mas o resultado foi surpreendente. A autoestima da galera ia nas nuvens. Quando cheguei de viagem, peguei as fi tas e editei. O detalhe é que eu nunca havia editado um fi lme na minha vida, mas a necessidade me forçava a tentar. O suporte do MinC não viera nem mesmo para montar o equipamento. E como tudo era em Software Livre, a difi culdade era ainda maior. Quando o fi lme fi cou pronto, disponibilizamos um DVD na reunião de sábado e pedimos que todos vissem o fi lme até o sábado seguinte. Era mais uma estratégia para que eles fi cassem juntos durante a semana. No sábado seguinte foram muitos comentários, eu conseguia ver o brilho no olho de cada um. Eles estavam felizes, com a autoestima em alta. Durante a reunião decidimos fazer mais um Encontrão. Dessa vez o alvo seria a praça de Morro Agudo, que estava muito feia. Os feirantes ocupavam a praça com caixas e barracas, que lá permaneciam durante toda a semana.Havia um muro cinza de aproximadamente cinco metros, era uma coisa horrível, inclusive fi zemos uma matéria rimada falando da praça. Se liga: A praça é nossa Praça é uma coisa que não tem perto da minha casa Aqui em Morro Agudo não se vê nem com telescópio da Nasa Se procurar na Baixada talvez encontre alguma Mas se juntar todas elas, acho que não dá uma Na Zona Sul vi gangorra e escorrega 176 Enraizados: os híbridos glocais Mas aqui em Nova Iguaçu só tem viela e beco Na praça dos grã-fi nos tem quiosque, cê pode crer E as biroscas de Morro Agudo atrapalham nosso lazer Político vai, político volta, com promessa que revolta Mas pra pisar em Morro Agudo tem que vir com escolta Quem destrói a praça não merece ser chamado de animal Porque os bichinhos não destroem seu habitat natural O galante perde a inspiração pra dizer que ama Como o aposentado perdeu seu assento e o tabuleiro de dama Enquanto os pela-sacos vêm quebrando tudo O Enraizados revitaliza a praça de Morro Agudo Não é praça Mauá, Quinze e nem Onze Aqui não tem chafariz e nem escultura de bronze A comunidade divide lugar com a sujeira Pois a praça parece hotel de mendigo e depósito de feira Urinas em praça transbordam em metros cúbicos A praça que era nossa agora é banheiro público Isso não é rebeldia e nem pirraça Porém só vamos nos calar no dia em que tivermos verdadeiras praças Autores: Movimento Enraizados – Núcleo Morro Agudo A ideia desta vez era fazermos um Encontrão de grafi te, para dar um colorido naquele muro cinza e trazer alegria para o lugar. Ligamos para o Helvio Lessa, do jornal “O Dia”, e informamos que faríamos o evento. Ele colocou uma nota na capa do jornal e publicou a seguinte maté- ria, de uma página: Hip-hop e muito mais Evento vai reunir o melhor da cultura popular na praça de Morro Agudo O Movimento Enraizados de Nova Iguaçu, que promove a cultura hip-hop, vai realizar no próximo sábado a 5ª edi- ção do Encontrão Cultural. O evento acontece a partir das 14h na Praça de Morro Agudo, e vai reunir jovens de 177Seguindo em frente várias partes do estado para praticar, aprender e ensi- nar culturas populares, além dos quatro elementos do hip-hop (rap, DJ, break e grafi te), para jovens moradores da comunidade. O evento vai pegar uma carona no projeto Cinema nos Bairros, que acontece na praça aos sábados, quando será projetado um fi lme no meio da rua, além de exibição de clipes de rap nacional e um longa-metragem. O Movimento Enraizados mantém um portal de hip-hop (www.enraizados.com.br), um dos maiores do gênero na América Latina, passando dos 300 mil acessos mensais. Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 24 de setembro de 2006 Toda a correria para fazer o Encontrão já tinha sido feita. Como as nossas reuniões estavam cada vez mais cheias, e pela primeira vez o número de homens e mulheres era próximo, dividimos bem as tarefas. A Rosinha cedeu a cozinha da casa dela para que nós fi zéssemos a comida para a equipe que trabalharia no evento. Mas a uma semana do evento ainda não tínhamos o principal mate- rial: o spray. Foi aí que descobrimos que havia um grupo novo no bairro: o Amigos do Enraizados. Liderados pelo Paulô, vários moradores nos ajudaram doando uma lata de spray. Assim conseguimos uma quantidade conside- rável de spray, só não sabíamos que os sprays doados não eram apropriados para o grafi te. No dia do evento, quando os grafi teiros chegaram (Short, Dante, Kajaman e Tihkin), a gente apresentou as tintas que havíamos recebido como doação dos moradores. Eles nos olharam com uma cara de quem não acredi- tava no que estava acontecendo. Eu perguntei qual era o problema e eles informaram o tamanho do problema. Tentamos trocar as tintas em algumas lojas de material de construção do bairro, mas não conseguimos. Como todos os grafi teiros haviam trazido tinta, eles mistura- ram as tintas boas com as ruins e começaram o trabalho. 178 Enraizados: os híbridos glocais Os moradores paravam para olhar. Ficavam dezenas de minutos parados, somente observando, alguns fi caram horas. Outros não resistiam e perguntavam. — Quem é que está fazendo isso aí? — Somos nós do Movimento Enraizados. — É da prefeitura? — Não, é o Movimento Enraizados. — Mas quem tá dando o dinheiro? — É o Movimento Enraizados! — Vocês estão gastando o dinheiro de vocês pra fazer isso aí? Vocês são malucos. — Por quê? Tá feio? — Não, está muito bonito, mas isso é trabalho para a prefeitura fazer. Dezenas de pessoas vestindo a nossa blusa. Eu comen- tava com o Dumontt que a ideia tinha sido boa. Quase sempre a gente cruzava com alguém vestindo a blusa, e nem sempre a gente conhecia a pessoa. O tempo inteiro chegava gente ao evento. A chuva ameaçava cair, mas São Pedro a segurava lá em cima. O grupo de rap Família MDG, de Itaboraí, e o grupo O Bando, de Irajá, estiveram presentes, sem contar, é claro, o Ultimato à Salvação, Fator Baixada, Léo da XIII, eu e Marcio RC. Quando começou a anoitecer as pessoas chegaram para assistir ao fi lme que passaria. Mas, para frustra- ção geral, a empresa que traria o telão não apareceu em Morro Agudo. Dezenas de pessoas fi caram frustra- das, homens e mulheres, crianças, adultos e idosos. Eu sabia que havia pessoas ali que nunca tinham pisado no cinema. Quando questionamos sobre o cinema, a empresa respondeu que a prefeitura estava devendo, e por isso eles decidiram não ir. Naquele dia eu disse pro Dumontt que a gente, de uma vez por todas, não poderia mais depender de ninguém, deveríamos ter nossos próprios equipamentos para 179Seguindo em frente fazer as atividades, e ele concordou. Para compensar o furo, começamos a rimar. Muitos shows acontece- ram, os b. boys dançavam na praça, no chão, enquanto a gente rimava. Até hoje, 2010, a praça de Morro Agudo está grafi tada. A tinta está meio fraquinha, porque não era de qualidade, mas está bem melhor do que era antes da nossa interferência. 180 Enraizados: os híbridos glocais 181Seguindo em frente 182 Dinheiro: solução ou mais problemas? É de uso dizer-se que o dinheiro é a raiz de todos os males. A afi rmação vale também para a falta de dinheiro. — Samuel Butler Algumas pessoas do Enraizados tinham trabalhos for- mais, até mesmo para sustentar suas famílias, mas outros não tinham renda, apesar de já pensarem em construir sua própria família. Eu e Dumontt, há tempos, havíamos conseguido a bolsa Agente Cultura Viva, do governo federal, para os partici- pantes do Enraizados que se encaixavam no perfi l. Nossa ideia era que pudessem ganhar dinheiro com a arte deles. Surgiram então algumas oportunidades de dar aula no Polo Esportivo e Cultural do América Futebol Clube, onde o Elison e o Léo da XIII dariam aulas e seriam remunerados. Nessa época, acho que por causa das bolsas, nos- sas reuniões de sábado beiravam umas 100 pessoas. O Dumontt sempre aparecia com uma dinâmica nova. No início era bem divertido, o pessoal do hip-hop não conhecia dinâmicas de grupo porque era uma prática mais comum no teatro. Tinha uma dinâmica, das palmas, que todo mundo pedia pra fazer, toda semana a gente fazia essa dinâmica. 183Seguindo em frente Apesar de a maioria dos participantes praticar um dos quatro elementos do hip-hop, havia muitas pessoas que nem gostavam de hip-hop, mas estavam lá para ganhar os R$150 mensais do governo. E eu não imaginava que essas bolsas trariam tantos problemas. As pessoas que frequentavam o Movimento Enraizados antes da bolsa pararam de frequentar assim que conseguiram o auxi- lio. Outros que não estavam no perfi l continuavam indo mesmo sem bolsa. Alguns que nunca participaram dos encontros começaram a ir por causa da bolsa e nunca mais pararam. Outros ainda receberam a bolsa e nunca pisaram nas reuniões. Sempre que tinha dinheiro envol- vido dava confusão. Um pensava que era mais malandro que o outro e no final todo mundo se enrolava. Antes das ofi cinas no América começarem, o Dumontt conversou com o Elison e o Léo da XIII, explicou que eles não poderiam fazer feio porque o nome do Enraizados estava em jogo. Mas algumas semanas depois os garo- tos começaram a chegar atrasados, e depois a faltar. Um dia o Dumontt chegou lá sem avisar, e nenhum dos dois tinha ido trabalhar. Quando o Dumontt perguntou, eles tentaram mentir, mas não havia como mentir naquela altura do campeonato, porque o próprio Dumontt deu aula no lugar deles. Depois de um tempo preferimos interromper as ofi cinas no América e todo mundo fi cou sem dinheiro novamente. O que nos deixava sem enten- der a situação era que de uma hora pra outra os garo- tos deixaram de nos ver como aliados que lutavam pela mesma causa e passaram a nos enxergar como empre- gadores. Aí o caldo entornou de vez. Certa vez o Dumontt foi à prefeitura falar com a Maria Antônia, primeira-dama e coordenadora do programa Bairro Escola, a respeito do nosso problema de espaço. A prefeitura havia prometido alugar um espaço para 184 Enraizados: os híbridos glocais nós instalarmos o Ponto de Cultura, mas por questões burocráticas dependíamos da liberação do procurador. Mas ninguém achava o tal procurador, e a Maria Antô- nia simplesmente não quis receber o Dumontt. Ele fez um ofício e entregou no gabinete do prefeito. Voltou pra Morro Agudo e lá encontrou o Samuel Azevedo e o Short. Pegaram a fi lmadora e a máquina fotográfi ca do Ponto de Cultura e partiram novamente pra prefeitura. Entra- ram na procuradoria e o Dumontt orientou os Enraiza- dos a fi lmarem todo lugar que ele apontasse. O Dumontt falava: “Filma ali ó, aqui ninguém trabalha, esse aqui tá no Orkut e aquele no MSN!” Segundo o Dumontt foi uma correria danada na prefei- tura, e resolveram atendê-lo, pelo menos para dar uma desculpa. O Dumontt fez outro ofício e entregou no gabi- nete do prefeito para explicar por que fez tudo aquilo. O prefeito pediu uma reunião com a Maria Antônia e com o procurador-geral. Acabou que eles não alugaram o espaço e a gente continuou sem ter onde colocar os equi- pamentos, que continuavam na minha casa, alguns ainda dentro das caixas. Todo o recurso necessário para as ati- vidades do Enraizados saíam do meu bolso ou do bolso do Dumontt, sendo que meu salário era a metade do dele e eu tinha dois fi lhos para criar. Eu sabia que a gente pre- cisava de um lugar como sede, mas essa parceria com a prefeitura não aconteceu, e o processo com o governo do estado para ocupar a quadra do Ciep 117 não andava. Apesar de alguns atritos com a prefeitura a gente tinha uma boa relação com o pessoal da articulação política, o Toninho, o Cláudio Jorge e o Paulô, que sempre que podiam nos ajudavam. O Dumontt me chamou para con- versar e falou que precisávamos alugar pelo menos uma sala para receber as pessoas, fazer nossos projetos, ter um endereço de verdade. Eu concordava, mas tinha 185Seguindo em frente muito medo de não conseguir grana para honrar nossos compromissos, afi nal todo aluguel tem contrato de no mínimo um ano. Ele já tinha visto uma sala no centro de Morro Agudo. O aluguel era R$160 e a gente ainda teria que pagar uma taxa de R$20 da água, isso sem contar com a conta de luz. No mínimo, teríamos um custo de R$200 por mês. O Dumontt me chamava de conservador, eu dizia que trabalhava com a realidade. No fi m ele me convenceu a alugar o local, mas eu ainda morria de medo de ter que tirar dinheiro da minha família pra pagar aluguel do Enraizados. Era difícil aceitar uma organização em que quase 100 pessoas participam mas quando o laço apertava somente meia dúzia aparecia pra ajudar. Eu e Dumontt conversávamos muito sobre esse assunto. A gente preci- sava prezar pela qualidade, e não pela quantidade. Base- ado neste princípio o Dumontt propôs criarmos o Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância), um grupo de estudos que se reuniria semanalmente. Estava entrando o mês de novembro e os convites para participarmos de eventos não paravam de chegar. Pro- postas de parcerias eram aos montes. Fizemos ofi cina de grafi te na Casa das Meninas (instituição benefi cente Brasil-Itália, situada na Cerâmica, bairro vizinho a Morro Agudo); participamos da organização do Bingo Dançante, produzido pelo Roger Craum; estivemos no Cortejo Cul- tural dos Pontos de Cultura, na Cinelândia; participamos da Semana da Consciência Negra de Nova Iguaçu; do Dia da Bíblia, na Alerj, além de outras atividades. Recebi uma homenagem do América Futebol Clube, como personalidade negra jovem. Nem preciso falar que fi quei todo bobo. Primeira homenagem da minha vida. E quem entregou o troféu foi o senhor Edevair, pai do 186 Enraizados: os híbridos glocais Romário. Algumas semanas antes a Claudia Perluxo e o Edu, diretores da ONG Casa de Anyê, nos convidaram para participar do seminário “Música pra que serve?”, em que faríamos a fi lmagem e a edição de um vídeo ins- titucional. Nossa participação no seminário aumentava a cada dia. Estivemos presentes na fi lmagem, na mesa de palestra, na produção, na curadoria e ainda editamos e produzimos um DVD triplo, com todo o seminário. Tudo feito em Software Livre. Paralelo ao seminário, a gente produzia a sexta edição do Encontrão, em que pela primeira vez fecharíamos cinco ruas no centro de Morro Agudo e misturaríamos os grupos de pagode locais com o nosso hip-hop. Por causa da visibilidade do Portal Enraizados e do crescimento estrondoso da Rede Enraizados, muitas pessoas liga- vam querendo participar dos nossos eventos, mas infe- lizmente não tínhamos estrutura para alojar todos. Cada um que viesse deveria arcar as despesas, como foi o caso dos Realistas NPN, que vieram com um ôni- bus com 40 pessoas de Belo Horizonte (MG) no dia do 6º Encontrão, 25 de novembro de 2006. Eles chegaram pela manhã e fomos todos para o Ciep 117, onde aconteceria o seminário, que na verdade foi uma espécie de bate-papo em que as pessoas trocaram ideias e falaram de suas experiências de vida. Nesse dia conhecemos o Ice Band, que contou a história mais chocante. Se envolveu com o crime, tomou vários tiros e, segundo ele, foi resgatado pelo hip-hop. O Ice Band comentou que as mães das crianças do seu bairro diziam aos fi lhos que se eles não as respeitassem ou enveredassem pelo caminho do crime fi cariam como ele, com um olho de vidro, manco de uma perna e com várias cicatrizes no corpo. Ele dizia que o crime servia pelo menos pra isso: ele servia de exemplo para as crianças 187Seguindo em frente não entrarem na vida errada. Neste dia fazia muito calor, acho que uns 45 graus. Os mineiros estavam desespe- rados, nós também, mas não falávamos nada para não assustar ainda mais nossos amigos. Todos procuravam uma sombra para escapar do sol, mas o calor castigava. O dono do bar Continental, bar onde eu e Dumontt pará- vamos com frequência para beber umas cervejas, fi cava em frente ao palco e vendeu bastante cerveja. Ele tam- bém colaborou conosco, liberou todo o estoque de água mineral para nossa equipe e nossos convidados. Conversamos com os grupos que se apresentariam no evento, expondo nossa vontade de gravar os shows e produzir um CD e um DVD para divulgar o trabalho artís- tico e gerar renda, mas para isso precisaríamos da libe- ração das músicas para comércio. Argumentamos que todas as músicas que iríamos cantar ali, naquele evento, estavam disponíveis para download gratuito na internet, mas a maioria do nosso público-alvo, pessoas da peri- feria, não tinha acesso à nossa música justamente por isso. A ideia era a gente disponibilizar as músicas para download nos camelôs. O argumento foi forte, sincero, e todos concordaram. Quando o CD e o DVD “6º Encontrão ao vivo” fi cou pronto, enviamos para todos os envolvidos no projeto,disponi- bilizamos as músicas na internet e fomos para as ruas negociar com os camelôs. Nossa ideia era dar a matriz para os camelôs, que fariam as cópias, e de cada CD ou DVD que eles vendessem voltaria um real para a organiza- ção. Eles toparam e no começo até que devolviam parte da grana, que não era muita. Mas nem todos os grupos que participaram do projeto fi zeram o mesmo. A inicia- tiva deu parcialmente certo. Os CDs e DVDs se alastraram por bancas de camelô do Rio de Janeiro. Inclusive a Lisa Castro, do Ultimato à Salvação, foi reconhecida na rua por 188 Enraizados: os híbridos glocais causa do DVD. E essa pessoa comprou o DVD em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Participaram da coletânea os grupos Re.Fem (Duque de Caxias), Ultimato à Salva- ção (Nova Iguaçu), Léo da XIII (Nova Iguaçu), Família MDG (Itaboraí), Missionários do Rap (Belo Horizonte), Realis- tas NPN (Belo Horizonte), Wiza (Rio das Ostras), Marcio RC (Nova Iguaçu), RDF (Belo Horizonte), Sindicato do Rap (Belo Horizonte), ainda outros. Quando fechamos contrato e alugamos nosso primeiro espaço, o Dumontt convenceu a proprietária e nós não precisamos de um fi ador. Um escritório de 10m² onde muita gente importante passaria no próximo ano, e a gente nem imaginava. Eu, Dumontt, Léo da XIII, Guará e Short pintamos a sala e fi zemos a mudança. Monta- mos todos os equipamentos do Ponto de Cultura. Nem sei como coloquei aquilo tudo pra funcionar. Meu com- putador e o do Dumontt foram pro escritório também. O Dumontt alugou um apartamento ao lado da sala, ele era o nosso segurança. No mês seguinte eu e Dumontt deci- dimos deixar nossos empregos para nos dedicarmos em tempo integral ao Movimento Enraizados. No dia 20 de dezembro de 2006 eu e Dumontt pedimos demissão dos nossos empregos formais. 190 Comunicação: passeando entre classes Ao começar o meu próprio negócio, descobri que você pode ter a maior ideia do mundo. Mas não vai chegar a lugar nenhum se não conseguir vendê-la às outras pessoas. — Roger von Oech No fi m de 2006 fi zemos uma festa na casa da Rosinha e entregamos os certifi cados dos Agentes Cultura Viva que resistiram fortemente até o fi m do projeto. Para a nossa felicidade fi cou uma menina chamada Patrícia Ximango, que entrou para o Enraizados a convite do Léo da XIII e continuou mesmo depois do auxílio do governo ter acabado. Ninguém imaginava que a Patrícia fi caria no projeto. Ela era roqueira, não suportava rap, chegava às reuniões toda vestida de preto, com piercings e tudo mais. Quem diria que dois anos mais tarde ela trabalha- ria conosco como auxiliar administrativa. A cada ano a organização crescia mais. O Dumontt dizia que crescíamos uns 500%. A Rede Enraizados estava em dez estados com instituições e nos 27 estados com artistas e pessoas que nos procuravam querendo ajuda, espaço e atenção. Nós nos autoanalisávamos sempre para entender o que realmente éramos. Tudo acontecia rápido demais. Eu e Dumontt trabalhávamos como men- tores, fi nanciadores e carregadores. Fazíamos o traba- lho intelectual e braçal. 191Seguindo em frente Nosso portal beirava os 600 mil acessos mensais. Deze- nas de pessoas no bairro falavam o tempo inteiro de nós. Tínhamos força política na cidade e conhecíamos pessoas do Brasil inteiro, além das que moravam em outros países. Mas não sabíamos nos defi nir bem, éra- mos mutantes. Oferecíamos atenção às pessoas que nos procuravam e espaço no Portal Enraizados. Uma de nossas caracterís- ticas era tratar todos de forma igual, não importava se o cara era famoso ou anônimo, o espaço era o mesmo. E isso a gente mantém até hoje, é uma identidade. Nós tínhamos muitos contatos. A gente tinha o hábito de compartilhar de tudo, e começamos a compartilhar os contatos também, apresentar pessoas, fazer com que gente que podia se ajudar se conhecesse conforme a necessidade de cada um. Com isso a Rede Enraizados crescia ainda mais. Até hoje utilizamos todas as ferramentas gratuitas de comunica- ção da internet para particar a Cyber Militância, e ensai- návamos os outros a fazer isso também. A partir daí, universitários, tanto alunos como professores, nos pro- curavam para entender como tudo funcionava. Quando nós contávamos de forma simples e objetiva, a reação deles era de espanto. O ano de 2007 nos preparava uma grande surpresa. Além de militantes e artistas do hip-hop do Brasil inteiro, a gente também teria mais próximo pessoas e organiza- ções bastante infl uentes, que nos ajudariam a encarar a nova fase da nossa vida. Bem no início do ano, eu e Dumontt conhecemos o Aercio, da Fase. Um dia ele ligou e marcou uma conversa. Fomos ao encontro dele num bar em Nova Iguaçu. Lembro que eu e Dumontt demos uma mancada, pedimos uma cerveja mas o cara não bebia. Todos bebemos água. 192 Enraizados: os híbridos glocais Não lembro muito bem para que o Aercio marcou a reu- nião, mas sei que a gente queria se aproximar da Fase porque diziam que ela ajudava as organizações que estavam começando. Eu acho que ele nos fez um convite para participarmos de um projeto de juventude chamado “Derechos e direitos”, que aconteceria durante dois dias na Cáritas, em Nova Iguaçu. Participaram deste projeto, além de nós dois, a Gil Torres e o Eliel Garcia. Nesse primeiro projeto encontramos alguns amigos que já trabalhavam com hip-hop. A galera do Setor BF, organização de hip-hop de Mesquita, liderada por Mad, Sebá e Nego Joe, que já eram nossos amigos. Conhece- mos também outros jovens, que não trabalhavam com hip-hop, mas com circo, mobilização comunitária, tinha também um pessoal de São João de Meriti que mexia com griot, além de alguns jovens que não eram tão orga- nizados, mas já exerciam uma atividade de liderança em sua comunidade. Depois deste projeto com a Fase o Movimento Enrai- zados passou a direcionar mais as atividades. A gente entendeu o que signifi cava exigir direitos e o que signifi - cava direitos humanos. A partir de então tudo o que faze- mos tem como base a exigibilidade de direitos humanos, e utilizamos a nossa arte como ferramenta. A população de Morro Agudo já conseguia enxergar o Movimento Enraizados como uma organização de juven- tude do bairro. Eles não sabiam de onde vínhamos, nem onde estávamos, parecíamos fantasmas que sumiam, de repente apareciam para balançar o bairro, depois desapareciam novamente e deixavam como marca uma mudança signifi cativa. Como muitos estudiosos, jornalis- tas e representantes de organizações sociais e culturais começavam a frequentar Morro Agudo para conhecer os meninos que mobilizavam pessoas no Brasil inteiro, os comerciantes tentavam dar informações sobre nós. 193Seguindo em frente Os visitantes perguntavam: — Você conhece os Enraizados? — Sim, conheço. — Onde é a sede deles? — Ah! Isso eu não sei, senta ali na praça que daqui a pouco passa um deles por aqui, com uma camisa que tem um desenho igual ao daquela pintura que tem lá na praça, é só você prestar atenção. — Tudo bem, obrigado. — De nada. Quando a gente passava os comerciantes comentavam. — Ei, rapazinho!!! — Ôpa, fala aí! — Apareceu um pessoal do jornal aqui procurando vocês e eu falei pra eles que vocês de vez em quando passam ali na praça. Ele conseguiu achar vocês? — Sim, conseguiu. Obrigado! — De nada. Era tudo muito divertido. Eu pensava que isso só acon- teceria num futuro bem distante, mas já era a nossa realidade. Além disso, outro acontecimento anormal no bairro era a presença de pessoas de outros países. Nós começamos a receber a visita de pessoas de diversos países, como a Audrey, da França, que veio nos conhecer e mostrar sua arte. Ela trabalha numa organização cha- mada Meninos de Rua, na França. O ano de 2006 foi certamente um ano de muitas ativi- dades, em que nos dividíamos para conseguir dar conta de tantos compromissos.Mas em 2007, como já tínha- mos um escritório, começamos a receber visitas de pessoas importantes. O Dumontt mais uma vez tinha razão, era fundamental termos um lugar para receber as pessoas. 194 Enraizados: os híbridos glocais 195Seguindo em frente Em meados de fevereiro de 2007 conhecemos algumas pessoas que trabalhavam numa nova secretaria da pre- feitura de Nova Iguaçu, a Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Violência. Conhecemos o Tiago Borba e conversamos com ele sobre a quadra do Ciep 117. A gente não desistia da ideia de ocupar aquele lugar. O Tiago foi conosco até Morro Agudo conhecer o local. Pulamos o muro e entramos na quadra. Ele fi cou impres- sionado. Também não entendia como um local daquele tamanho poderia estar sem utilidade, ao mesmo tempo que a comunidade não tinha equipamento público para prática de esporte e cultura. Eu, nessa época, não acreditava mais que existissem pessoas de bom coração. O Dumontt acreditava menos ainda, mas a gente reparou que o Tiago era diferente. O cara tinha um ar de sinceridade, de positividade. Nessa época também conhecemos o Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político brasileiro, que era o secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violên- cia da prefeitura de Nova Iguaçu. Ele ligou e marcou uma conversa conosco, em nosso escritório. Queria conver- sar, começaria a atuar na cidade e gostaria de conhecer as organizações culturais e de juventude. Lembro que no dia marcado, meia hora antes do horário, ele ligou para o Dumontt e avisou que se atrasaria um pouco. O Dumontt comentou comigo que havia gostado da atitude dele, nós estávamos acostumados a pes- soas que marcavam, chegavam atrasadas e nem sequer pediam desculpas. Conversamos algumas horas com o Luiz Eduardo e percebemos que as pessoas que traba- lhavam com ele tinham essa mesma energia positiva. Ele nos tratou de igual para igual, assim como as outras pessoas que passaram por ali. A diferença é que ele nunca foi embora, está até hoje de olho na gente. 196 Enraizados: os híbridos glocais Luiz Eduardo disse que talvez alguns amigos pudessem nos ajudar, mas que não podia prometer nada. Entraria em contato com eles e, se houvesse uma resposta posi- tiva, nos comunicaria. Ficamos ansiosos pela resposta durante algum tempo. Enquanto aguardávamos o con- tato do Luiz Eduardo, as reuniões abertas realizadas aos sábados na casa da Rosinha deram lugar ao Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância). Conversamos com os meninos e meninas que partici- pavam das reuniões convencionais e explicamos o que era o Cefam. Dissemos que iríamos estudar, conversar e compartilhar tudo o que a gente aprendia com os nossos irmãos, família e amigos, além de identifi car a violação de direitos em nosso bairro e colocar em prática a exigi- bilidade de direitos humanos. Cerca de 15 pessoas topa- ram participar e todo sábado estavam presentes. Sempre com um ar meio profético, o Dumontt me per- guntou o que era importante a gente fazer para evitar que as pessoas se afastassem das reuniões do Cefam. Eu disse que seria legal a gente passar uns fi lmes, mas lembrei que não tínhamos televisão e nem DVD. Ele res- pondeu: “Vamos comprar esses equipamentos, eles são necessários. Depois a gente marca as sessões de cinema uma vez por mês.” Eu concordei, mas lembrei a ele que não tínhamos dinheiro nem para pagar o aluguel do escritório. Ele disse simplesmente que a gente com- praria o equipamento porque era necessário. Fazíamos muita dinâmica, como nas reuniões conven- cionais. O Dumontt preparava o material para a aula de um sábado e eu preparava a do sábado seguinte. Junto com o Átomo, selecionamos os temas que seriam abor- dados ao longo do ano. Uma das dinâmicas deu resultado muito positivo. Li a cópia de um livro de dinâmicas pro- curando algo que pudesse fazer nas reuniões de sábado. 197Seguindo em frente Achei uma que era perfeita, mas precisava de algumas modifi cações. Pesquisei o nome de diversas lideranças negras brasileiras, confesso que da grande maioria eu nunca tinha ouvido falar. Coloquei o nome delas numa folha de caderno. No sábado cada participante do Cefam escolheria um nome, e eu colocaria o nome do participante ao lado do nome escolhido. Uns escolheram o nome mais engra- çado, outros nomes parecidos com os deles, mas a mis- são era pesquisar sobre o nome escolhido, fazer um estudo e no sábado seguinte dar uma aula para os outros companheiros sobre quem era a liderança sobre a qual eles pesquisaram. Eu e Dumontt também participamos. Eu pesquisei Milton Santos e o Dumontt, Luiz Gama. O resultado foi surpreendente. Para pesquisar, os parti- cipantes do Cefam passaram a semana inteira no escri- tório do Enraizados, usando os computadores. Depois de pronta, a pesquisa foi para o Portal Enraizados. O exér- cito do Cefam era formado por: Dudu de Morro Agudo, Dumontt, Átomo, Willian Robson, Rafael, Mailini, Lisa Castro, Sidélia Cantuária, Eliel Garcia, Barraquinha, UR Clau, Marcela, Patrícia Ximango e Léo da XIII. 198 Se não sonhássemos, não sairíamos do lugar Há dois tipos de pessoas no mundo: os realistas e os sonhadores. Os realistas sabem onde estão indo; os sonhadores já estiveram lá. — Robert Orben Até então não tínhamos atrasado nem um mês de alu- guel, mas era sempre por pouco. Às vezes um dia antes do vencimento a gente não tinha nem um real em caixa. Como um milagre recebíamos uma ligação, era alguém querendo contratar uma apresentação minha, mas a pes- soa só poderia pagar 200 reais, que era justamente o valor que precisávamos para quitar o aluguel daquele mês. As coisas foram apertando de tal forma que às vezes eu e Dumontt dividíamos um miojo na hora do almoço e na janta eu ia pra casa da minha mãe e ele pra avó dele. Eu e Dumontt não sabíamos fazer projetos, tínhamos apenas alguma ideia. Numa época um pouco melhor, tínhamos dois mil reais em caixa. O Dumontt me chamou pra con- versar e falou sobre a importância de termos uma for- mação em produção cultural. Disse que havia um curso no centro do Rio de Janeiro que estava com uma turma quase formada. Eu concordei, se era necessário deve- ríamos fazer. Achei que nós dois faríamos o curso, pois acreditava que custava no máximo uns 200 reais. Quando 199Seguindo em frente ele disse que o valor do curso era justamente todo o dinheiro que tínhamos em caixa, entrei em desespero. Logo agora que estávamos conseguindo dar uma respi- rada, íamos voltar ao zero novamente. Ele ainda pediu que eu fi zesse o curso e depois passasse o conheci- mento. Como o Dumontt é bem mais paciente para ensi- nar do que eu, fez o curso e nos ensinou o que aprendeu. Logo depois conseguimos aprovar um projeto na Peace Child. Era o projeto de um jornal temático chamado “Voz Periférica”. Uma continuação, ou evolução, do zine “Voz Periférica”. Seriam três edições com o objetivo de des- mistifi car a linguagem jurídica das leis que estabelecem nossos direitos. Uma edição falando sobre o ECA (Esta- tuto da Criança e do Adolescente), outra sobre os Direi- tos do Consumidor e por último uma abordando partes da Constituição Brasileira. A ideia era que somente os meninos fi zessem o jornal, sem que eu e Dumontt interferíssemos. Antes mesmo de escrever o projeto chamamos Patrícia Ximango, Léo da XIII, Short, Willian Robson e Lisa, que assumiram o pro- jeto. A Patrícia Ximango era a coordenadora, o que pra nós era engrandecedor. A gente começava a entender que o Movimento Enraizados tinha como base o hip-hop, mas ia ainda além dele. Até os dias de hoje, a gente presenteia com o jornal as pessoas que nos visitam, e levamos tam- bém para as escolas e seminários de que participamos. O ano de 2007 foi um ano de altos e baixos para o Enrai- zados. Quando a gente estava novamente em baixa, ten- tando escreveralguns projetos, o Dumontt entrou no site do Governo Federal e viu que o edital para o Prêmio Cultura Viva estava aberto. Ele inscreveu a Rede Enraizados, mas não acreditava que pudéssemos ganhar. Ele passou dias e noites preenchendo dezenas de formulários, juntando e enviando documentos, enquanto eu me ocupava com a 200 Enraizados: os híbridos glocais organização. Pelo menos uma vez na semana ele falava do prêmio, eu concordava e procurava dar uma força pra ele continuar, afi nal estava muito confi ante. Meses depois ele me disse: “Dudu, estamos entre os 200 selecionados.” E eu disse: “Parabéns!!!”, mas não botava muita fé. A gente estava entre as duzentas iniciativas. Pô, duzentas é muita coisa! Mas o Dumontt continuava na empreitada. Algumas semanas depois: “Dudu, a gente está entre as cinquenta iniciativas.” E eu, como sempre: “Parabéns! Agora vai, hein!” E o Dumontt preenchendo mais for- mulários, pedindo para eu ler os textos, dar opiniões e ajudar a procurar umas fotografi as. Mais algumas sema- nas se passaram e ele veio: “Dudu, tu não vai acreditar, fi lhote.” E eu: “Fala tu, o que tá pegando?” E ele: “Esta- mos entre os dez!” Aí eu já fi quei preocupado. Entre quase 2.000 iniciativas, nós estávamos entre as dez. Eu comecei a ver uma luz no fi m do túnel. Algumas semanas: — Dudu, reúne o pessoal porque a gente está entre os três. Agora é à vera. Ruim de tudo a gente tá com 10.000 reais no bolso e dá fazer melhorias na organização. — Como assim entre os três? — Lembra do Prêmio Cultura Viva? — Sim, lembro. — Então, a gente está entre os três primeiros lugares e na próxima semana vai vir um avaliador nos visitar, pra ver se o que a gente escreveu no edital é verdade. Eu estava meio desnorteado com a notícia, mas disse: — Tá tranquilo, vou reunir a galera. A gente não tinha um centavo em caixa, mas era neces- sário alugar um carro pra mostrar a comunidade pro cara, ele tinha que ver como era o nosso dia a dia no bairro. Alugamos o carro com o cartão de crédito. Liguei para a 201Seguindo em frente nossa galera, e no dia estavam todos presentes no horá- rio marcado, mas o avaliador chegou muitas horas atra- sado e o Dumontt cobrou isso dele o tempo inteiro. Algumas pessoas do Enraizados disseram para seus patrões que chegariam um pouco atrasadas no traba- lho para poderem estar presentes na avaliação, mas não puderam participar por causa do atraso do avaliador. Ele se apresentou como Alan Arrais, um produtor indepen- dente, contratado pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pes- quisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) para fazer a avaliação. Ele começou a fazer algumas perguntas técnicas a res- peito da organização para o Dumontt e para mim, mais para o Dumontt. Depois ele começou a perguntar a res- peito dos participantes, e o Dumontt respondeu: — Por que você não pergunta pra eles? O Alan perguntou se realmente podia, porque nas outras organizações avaliadas era sempre uma pessoa que falava por todo mundo. Enquanto ele conversava com a galera, eu e Dumontt tentávamos resolver a questão do aluguel e outros assuntos pendentes que envolviam o dinheiro que a gente não tinha. O Alan também fi cou impressionado com o protagonismo feminino presente no Enraizados, e eu nem havia percebido isso. Neste dia estavam Lisa Castro, Suellen Casticini, Mailine, Marcela e Patrícia Ximango, e o Alan trocou altas ideias com elas. O melhor ainda estava por vir. A galera foi embora e nós tínhamos que levar o Alan para dar uma volta pelo bairro e mostrar que éramos articulados com o poder público. A ideia era levarmos ele até o Paulô, que era da articu- lação política da prefeitura. O Paulô já era Enraizados até os ossos, a pessoa mais indicada para conversar com o Alan e falar bem de nós. Mas o universo conspi- rava a nosso favor e nos três quilômetros que separavam 202 Enraizados: os híbridos glocais o nosso escritório do local onde o Paulô nos esperava, havia dezenas de pessoas que falavam conosco na rua, nos cumprimentavam o tempo inteiro, paravam o carro que nós estávamos para contar uma história, pediam ajuda, muitas estavam com nossas blusas e isso com certeza mexeu com a cabeça dele. Quando chegamos ao Paulô foi tudo como deveria ser, mas não combinamos nada com ele. Dissemos apenas que viria um camarada avaliar o Movimento Enraizados para um prêmio que estávamos concorrendo, e o Paulô fez bonito. Para fechar com chave de ouro levamos o Alan até o Aércio, da Fase, para mostrar que tínhamos arti- culação com outras organizações também. Já era noite e o Aércio estava no colégio Monteiro Lobato, nesse dia aconteceria uma reunião da Fase por lá. Quando o Alan começou a conversar com o Aércio a nosso respeito, fi quei perto observando suas respostas e não conseguia entender por que ele falava sobre nós como se o que fi zéssemos fosse algo sem importância. Tive essa impressão no início, mas o Aércio sabia muito bem o que estava fazendo e terminou de modo genial usando uma ótima frase de efeito. O Alan perguntou a ele: “O que você acha do trabalho deles?” E o Aércio: “Eu não vejo nada de mais, a Fase já faz um trabalho pare- cido há algum tempo...” Eu não conseguia acreditar que ele estava tirando o foco de nós. Até que, minutos depois, usou a tal frase de efeito: — Mas tem uma coisa que me intriga nisso tudo. A Fase trabalha com um orçamento parecido com o de uma prefeitura de pequeno/médio porte e tem muitos funcio- nários, o que torna possível realizar um projeto desses, porém o Dudu e o Dumontt, junto com os outros Enrai- zados, não têm um tostão e executam perfeitamente a Rede Enraizados, com maestria. Como eles fazem tudo isso sem dinheiro, eu juro que não sei. 203Seguindo em frente Nessa hora o olho do Alan brilhou e eu abri um sorriso enorme. Depois disso levamos o Alan na estação de trem de Nova Iguaçu, e ele foi embora. Após essa mis- são nossa vida voltava ao normal, na incessante busca pelo dinheiro para pagar o aluguel. O dinheiro não apa- recia, mas continuávamos nas páginas do jornal “O Dia”, graças ao desempenho do Portal Enraizados, que ultrapassara a marca de 600.000 acessos mensais, e nossas atividades. O projeto Enraizadinhos, uma cole- ção do Movimento Enraizados voltada para o público infantil, com dezenas de personagens usados em dese- nhos animados, cadernos, roupas, foi idealizado pelo Dumontt e materializado nos papéis pelo Willian Rob- son, um ótimo desenhista. O CD e o DVD “Sexto Encon- trão ao vivo” estavam na boca do povo. E nossas produ- ções audiovisuais, tendo como carro-chefe os fi lmes no formato Contra Cinema – um fi lme feito no mesmo dia, por amadores, sem atores, roteiro, fi gurino, cenário, apenas com ideias – e o documentário sobre o primeiro emprego, dirigido pelo Dumontt. Mais uma matéria no jornal “O Dia”: Cultura negra on-line Oito anos depois de o Movimento Enraizados começar timidamente, em Morro Agudo, a divulgar o hip-hop e culturas afi ns, como o grafi te e o break, a página na internet do grupo de Nova Iguaçu (www.enraizados.com. br) ganhou impulso e hoje ostenta a marca de 600 mil acessos mensais. No rastro do sucesso, as conquistas do grupo encabe- çado pelo rapper Dudu de Morro Agudo incluem vários CDs independentes e um DVD ao vivo, produzidos no estúdio de edição de vídeo obtido através de convênio feito com o Ministério da Cultura. 204 Enraizados: os híbridos glocais Na lista de realizações para este ano, destacam-se a produção de três documentários feitos pela câmera digi- tal obtida no pacote do governo federal e a publicação de uma história em quadrinhos, na qual os personagens foram criados nos moldes da cultura hip-hop. “São conquistas que estamos obtendo com muita luta da nossa comunidade. Aprendemos que o mais impor- tante no momento é mostrar o trabalho dessa galera da periferia. Por isso,não nos incomodamos se os CDs vão ser pirateados ou se vão baixar na internet”, disse Dudu de Morro Agudo. O Movimento Enraizados é uma organização que tem como objetivo principal identifi car, capacitar e orientar artistas e militantes para o ativismo cultural. “Somos organizados em uma rede presente em quatro continentes. Estamos na Colômbia, Portugal, Espanha, Finlândia, França, Bél- gica, Angola, Moçambique e Japão”, contou Dudu. No site, os rapazes do Enraizados expõem pensamentos, atividades e mandam para o mundo músicas de jovens que não têm acesso à mídia. Através do Centro de Estudo de Ativismo e Militância (Cefam), os jovens da comu- nidade participam ativamente da vida política, social e cultural da cidade. Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 20 de maio de 2007 Foram quatro páginas de jornal. Sempre que estáva- mos nos jornais nossa autoestima ia nas nuvens, por isso quisemos várias pessoas nas fotografi as. Dessa vez estávamos eu, Jack, Nadir, Átomo, Kall, Faminto, Rafael, Barraquinha, Erivelton, Elicarlos, Dumontt, Short, Samuel, Willian Robson, Lisa Castro e Ur Clau. As reuniões do Cefam esquentavam, os questionamentos eram frequentes. Numa das reuniões surgiu o assunto da necessidade de uma rádio comunitária para tocar nossas músicas (a maioria dos participantes era MC) e propagar 205Seguindo em frente nossas mensagens no bairro. A galera participava efetiva- mente das atividades da organização. Visitávamos outras organizações do bairro, como a escolinha de futebol do Ouro Preto, onde o Cefam foi conversar com a criançada, que adorou, pois chegamos com muitos doces. O Cefam também se preparava para produzir o sétimo Encontrão. Sem que perdêssemos o fôlego, na semana seguinte já aconteceria o sétimo Encontrão. O Dumontt, como sem- pre, fez toda a articulação para conseguirmos palco e som, eu articulei com os artistas para se apresentarem. Além dos artistas do nosso casting – Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII, Ultimato à Salvação, Fator Baixada e Poetas da BF –participariam do evento o rapper Kapella, de Mesquita, e a banda Nego Kapor, do Maranhão. A nossa rede funcionava perfeitamente, estiveram pre- sentes Enraizados de Rio das Ostras, São Gonçalo, Belo Horizonte, Itaboraí, Rio de Janeiro (Santa Teresa e Jaca- repaguá), Duque de Caxias, São João de Meriti, Queima- dos, Japeri e de muitos bairros de Nova Iguaçu. A LUB (Liga Urbana de Basquete) estava cobrindo o evento, o que para nós foi uma honra. 206 Enraizados: os híbridos glocais 207Seguindo em frente 208 Algumas luzes no fi m do túnel Não há maior prova de ignorância do que acreditar que o inexplicável é impossível. — S. Bilard Como a maioria dos participantes do Movimento Enrai- zados eram rappers, eles sentiam a necessidade de um meio de comunicação que divulgasse nossos eventos, tocasse as músicas e interagisse com a nossa comu- nidade. Mas a gente não tinha grana para comprar um transmissor FM pra montar a própria rádio, e nem que- ríamos. A gente não conseguiria a concessão do governo e a Polícia Federal estava fechando muitas rádios comu- nitárias no Brasil inteiro. Então a gente soube que o Dinho, DJ do Fator Baixada, estava trabalhando numa rádio comunitária chamada Atitude FM, que era nova no bairro. Fomos até ele tentar um horário para nosso programa de rap. Dinho cedeu a faixa das 22h à meia-noite, de segunda a sexta-feira. Aí começaram alguns problemas, pois a maioria das pes- soas que deu a ideia de montar a rádio eram as mesmas que não queriam dedicar parte do seu tempo para fazer o programa. Entramos num acordo e cada dia da semana ia alguém para a rádio, que fi cava a dez quilômetros de distância do centro de Morro Agudo. Todos nós íamos de bicicleta e às vezes alguns iam a pé. 209Seguindo em frente Não tínhamos muita experiência, mas o Dinho nos ensi- nou. Levávamos de boa o programa, com muita música e notícias sobre as atividades do Enraizados. A equipe que trabalhava na rádio era Dumontt, Kall, Léo da XIII, eu, Lisa Castro e Átomo. Com o tempo percebemos que os integrantes do Enraizados que pediram a rádio não ouviam o programa. Começamos, então, a pedir que eles ligassem para a rádio todos os dias e pedissem também para seus amigos ligarem. Não era justo que nós seis fi cássemos até meia-noite na rua, passando por lugares perigosos e correndo até mesmo risco de vida, e eles que estavam em casa não contribuíssem de alguma forma para valorizar nosso trabalho. Éramos uma equipe, e deveríamos trabalhar como tal. Continuávamos a fazer pequenas apresentações em troca de 200 reais pra pagar o aluguel e continuar com nossas atividades. Os gringos continuavam nos visi- tando, cada vez mais frequentemente. Certa vez o Luiz Eduardo Soares trouxe para nos conhecer alguns repre- sentantes do BID (Banco Interamericano de Desenvolvi- mento), e dias depois da organização Room to Ritch. Eu brincava com o Dumontt dizendo que se o pessoal do BID desse uma ajudinha eu pararia de comer miojo, que já estava me fazendo mal. Mas as semanas seguintes reservavam boas notícias e um pouco de paz. Certo dia, eu e Dumontt estávamos tra- balhando no escritório, eu ia almoçar na casa da minha mãe e ele passaria mais tarde na casa de sua avó. Já não tínhamos grana para o miojo. Fui andando para a casa da minha mãe pensando que tipo de trabalho poderíamos fazer para descolar uma grana. Mas a única forma que a gente conseguia arrumar dinheiro era fazendo shows. Eu pensei em fazer fi lmagens e edições, mas as pessoas não pagavam. Pensei também em ofi cinas culturais, mas 210 Enraizados: os híbridos glocais fazer ofi cina cultural na periferia cobrando mensalidade é tempo perdido, a galera também não tem dinheiro. Chegando em casa, bem desiludido porque não tinha conseguido pensar em nada, recebi a seguinte mensa- gem do Dumontt no meu celular (usamos o programa Cool SMS, que envia mensagens gratuitamente para celular através da internet): “Dudu, consegui comprar o miojo. Ah!!! O Luiz Eduardo conseguiu aquele apoio pra gente, acho que são cinco mil euros, nosso cineclube tá garantido.” Eu demorei a entender a mensagem. Como assim conseguiu o apoio? Eu não tinha como ligar pra ele, mas queria saber dessa notícia. Comi metade da comida e voltei correndo para o escri- tório. Ele me contou a história toda, disse que a gente tinha que fazer uma espécie de proposta, mas metade do caminho já estava andado. Nós íamos continuar comendo miojo, mas agora teríamos um cineclube, e isso era o máximo. Compramos um projetor, um sistema de som que também servia para fazermos nossas fes- tas, e uma fi lmadora Mini DV da Sony, modelo PD170, que a gente nem sabia usar, mas era a mesma que o Cacau, do grupo Baixada Brothers, usou para fi lmar o evento Raiz do Hip-Hop, três anos antes. Dias depois recebemos a visita de um senhor chamado Robson Aguiar, coordenador social do projeto de tele- centros da RITS (Rede de Informações para o Terceiro Setor) em parceria com a Petrobras. Ele nos procurou porque queria instalar um telecentro na cidade de Nova Iguaçu e havia recebido boas indicações de nós. Gosta- ria que nós administrássemos o telecentro, mas antes faria uma visita e depois traria um representante da Petrobras para visitar o local também. 211Seguindo em frente Quando o Robson começou a falar dos equipamentos do telecentro, das atividades que deveríamos realizar para dar acesso à comunidade, fi camos animados. Mas quando ele disse que haveria uma grana para duas pes- soas trabalharem no telecentro durante um ano, gos- tamos mais ainda.O ditado, porém, já dizia: “Alegria de pobre dura pouco.” Ele condenou nosso escritório por causa do difícil acesso. Nós teríamos que conseguir um novo local para instalar o telecentro, e não tínha- mos muito tempo. Depois desse susto ele nos deu uma boa notícia. Tinhauma verba pra fazer obra e adaptar o local para receber o telecentro. Assim que o Robson foi embora eu e Dumontt saímos pelas ruas de Morro Agudo procurando um novo local para instalar o Movimento Enraizados. Nossa sede seria no mesmo lugar do telecentro. Vimos dois lugares. O pri- meiro era uma pequena loja no centro do bairro, mas o aluguel estava além da nossa realidade, cerca de R$800 por mês, mais documentação e fi ador. O outro local também era inacessível porque era num prédio e o alu- guel era alto. Vimos uma casa, mas a proprietária criou empecilhos porque era para um projeto sociocultural. Ficamos andando de um lado para o outro, sem sucesso, até que vimos uma placa de aluga-se. Atravessamos a rua e olhamos através da grade, o lugar era enorme. O Dumontt queria ligar para ver o preço, mas como esse lugar também era no centro, e a primeira lojinha que a gente viu custava R$800, quanto seria o aluguel deste lugar enorme? Ficamos parados em frente ao local durante alguns minutos, um olhando para a cara do outro e para a placa de aluga-se e decidimos que liga- ríamos somente por curiosidade. Para nossa surpresa o aluguel era R$1.000. Ficamos animados por uns dez segundos, quando lembramos que sofremos durante um 212 Enraizados: os híbridos glocais ano pra pagar os R$200 de aluguel do nosso escritório. Havia os salários do telecentro, que somavam R$1.000, mas nós continuaríamos a comer miojo. A gente se enganava dizendo que tudo daria certo, que o dinheiro seria sufi ciente pra pagar o aluguel. O telecen- tro viria com um recurso para as obras e o local era tão grande que poderíamos fazer nossos eventos, vender nossos produtos e serviços pra levantar uma grana. Como faltava pouco tempo para o Robson voltar com o pessoal da Petrobras para avaliar o local, ligamos para a imobiliá- ria, por sorte era a mesma do outro escritório, e dissemos que estávamos interessados naquele imóvel. No mesmo dia entramos para ver a estrutura de perto. Além do que havíamos conseguido ver através das grades, havia ainda uma outra parte coberta que era enorme. Defi nitivamente aquele lugar deveria ser nosso. Fechamos acordo e arran- jamos de pagar uma semana depois. Passou-se quase um mês e o Robson não aparecia. Nem sozinho e muito menos com o avaliador da Petrobras. A proprietária do lugar onde alugaríamos estava nos pres- sionando, dizia que havia outras pessoas interessadas no local. A gente sabia que era mentira dela, mas fi zemos o jogo, demos algumas desculpas, sempre afi rmando que alugaríamos o imóvel. O Robson apareceu e nos deu a pior notícia dos últimos anos. Por motivos políticos – eu diria politicagem – o telecentro não viria para as nossas mãos, mas para um outro bairro de Nova Iguaçu, onde inclusive já existiam alguns telecentros. Nós realmente acreditá- vamos no Robson, ele estava sendo sincero, e agora nós estávamos bastante encrencados. Dentre as dezenas de pessoas que passavam pelo nosso escritório, recebemos a Helena Aragão, do site Over- mundo, que trabalhava, na época, com o Hermano Viana. Ela ouviu falar de nós em algum lugar e veio nos visitar. 213Seguindo em frente Já estávamos com a história do Movimento Enraizados ensaiada de tanto que a gente contava. Ela fi cou bem próxima, e sem saber entrou pra rede. Falava bastante de nós, até que um dia comentou com algum jornalista da revista “Carta Capital”. Quando recebi a ligação da Renata Carraro, da “Carta Capital”, estava muito ocu- pado tentando resolver os problemas do novo espaço e não pude dar atenção a ela. Na segunda vez que ela ligou estava ainda mais ocupado, mas não pude deixar de atendê-la. Ela queria saber sobre o CD e o DVD “Sexto Encontrão ao vivo”. Contei toda a história pra ela e fi ca- mos mais de uma hora no telefone. No mês de outubro saiu uma matéria especial na revista “Carta Capital” n.º 464. O hip-hop sobrevive Do Alto do Pascoal para o Morro Agudo. É ali, no maior bairro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, que outra rede articulada em torno do hip-hop mostra sinais de vigor econômico. Flávio Eduardo da Silva Assis, o Dudu de Morro Agudo, é uma das lideran- ças do Movimento Enraizados, cujo chamariz é o portal www.enraizados.com.br, com uma loja virtual e 600 mil acessos por mês. Tudo começou em 1999. “O site era para divulgar a música, não tinha o objetivo de renda”, explica o rapper. Mas os contatos foram crescendo, gente do Brasil inteiro começou a acessar, e hoje o Movimento Enraizados tem fi liados em 16 estados. Depois que se juntou ao Movi- mento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB), Dudu percebeu que era preciso discutir políticas públicas para a juventude e pensar em melhorias para a comunidade. “Agora vamos criar um espaço cultural com loja, biblio- teca, telecentro, cinema.” 214 Enraizados: os híbridos glocais 215Seguindo em frente 218 Enraizados: os híbridos glocais O Enraizados tem um esquema de CDs e DVDs. A última coletânea, “6º Encontrão”, foi toda editada em Software Livre. Com o objetivo de popularizar o trabalho, as matri- zes são repassadas para os artistas e camelôs. Nas ban- cas montadas na rua, cada produto é vendido a 5 reais, dos quais 1 real deve retornar para o Enraizados na forma de pagamento de uma licença (Creative Commons), o que rende cerca de 35 reais semanais. Já os artistas podem reproduzir as matrizes e vender pelo preço que desejarem. Viver do hip-hop ainda é para poucos, mas a experiência como a do Recife e a de Nova Iguaçu mostram uma força econômica embrionária que pode revelar novos elemen- tos desse movimento cultural. Bernardete Toneto, Jaqueline Lemos e Renata Carraro, “Carta Capital” n.º 464, 3 de outubro de 2007 Sem ter de onde tirar grana, fomos procurar nosso anjo da guarda, Luiz Eduardo Soares. Nessa época, a Semuv (Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Violência) estava implantando um projeto na cidade de Nova Iguaçu que acompanhávamos de perto por se tratar de um trabalho com a juventude da cidade. Conversamos com o Luiz Eduardo e fecha- mos uma espécie de consultoria, dávamos palestras e ofi cinas, e recebíamos uma grana. Assim, depois de um tempo, conseguimos alugar o imóvel. Batizamos o lugar de Espaço Enraizados. Já estávamos acostumados a trabalhar triplicado no mês de novem- bro, e em 2007 não seria diferente. Por não ter mais trabalho formal eu viajava bastante, principalmente no mês de novembro. Fui a São Paulo para dar uma pales- tra no seminário Conhecimento e Cultura Livres e de lá voei para o II Congresso Nacional do MHHOB, em Porto 219Seguindo em frente Velho. O Dumontt estava a caminho da Argentina para participar do projeto “Derechos e direitos” da Fase. O Dumontt nunca tinha viajado de avião, e foi logo pra fora do país. Ele fi cou algum tempo sem aparecer em Morro Agudo, pulava de um estado para o outro. O combinado foi Dumontt ir direto de Buenos Aires para Porto Velho, onde fi caríamos até o dia 7 de novembro. No Congresso Nacional do MHHOB as discussões eram sobre a aprovação dos novos Pontos de Cultura, for- mação em produção cultural e institucionalização do MHHOB. Como éramos a organização do MHHOB que mais crescera nos últimos anos, e a mais bem apare- lhada, fi cou estabelecido que a nova sede nacional do MHHOB seria no Espaço Enraizados, em Morro Agudo, e que o Dumontt cuidaria da administração do Instituto Ruas, enquanto eu seria o presidente. Estiveram presen- tes no congresso, entre outros, Saroba (Porto Alegre- RS), Jackson (Porto Alegre-RS), Léo Cabral (Brasília-DF/ Fortaleza-CE), Lamartine Silva (São Luís-MA), Augusto (Rio Branco-AC), Dumontt (Nova Iguaçu-RJ), Dudu de Morro Agudo (Nova Iguaçu-RJ), Edjales Fama (Porto Velho-RO), Branco (Macapá-AP), Morcegão (Belém-PA) e Edi Rock (São Paulo-SP). O Américo Córdola que viria a ser nomeado secretárioda Identidade e da Diversidade Cultural, também participou. De Porto Velho o Dumontt voou para Belo Horizonte, onde estava acontecendo o Teia, o maior encontro da diversidade cultural no Brasil, que durou até o dia 11 de novembro. Quando cheguei de Porto Velho recebi a notícia de que estava solteiro, minha esposa havia me deixado. Eram tantas as atividades que nem tive tempo de sofrer, deixei pra chorar em dezembro ou janeiro, meses menos turbulentos. 220 Entre trancos e barrancos O homem consequente crê no destino; o volúvel, no azar. — Benjamin Disraeli Isso não foi legal: parte 1 Havia um camarada chamado Valdemar, meu vizinho, que sempre me emprestava o carro dele para eu fazer uns corres pro Enraizados. Era uma Fiat Uno ano 1989, mas muito conservada. Certa vez, no fi nal do dia, alguns amigos que foram conhecer o Espaço Enraizados convi- daram a mim e ao Dumontt para uma festa. Entre eles estavam Viviane Torres, Natanael, Thiago e sua noiva, e outras pessoas que não conhecia bem. O Dumontt não queria ir, mas eu insisti. Havia muito tempo que a gente não saía pra se divertir, era trabalho o tempo inteiro. Mesmo contra a vontade ele nos acom- panhou. Algumas pessoas foram no carro comigo, eu estava com o carro do Valdemar seguindo o do Thiago. A 100 metros da festa olhei para o lado, tinha umas cinco mulheres sentadas na calçada bebendo cerveja, quando o carro do Thiago freou por causa de um quebra-molas. As pessoas gritaram tentando me alertar, mas já era tarde demais. Quando percebi já estava afundado na traseira do Celta zero quilômetro. Graças a Deus 221Seguindo em frente ninguém se machucou, mas o prejuízo foi enorme. Eu estava a no máximo uns 40 quilômetros por hora, mas o barulho e o estrago foram tão grandes que eu parecia estar em alta velocidade. E o prejuízo não foi somente material. O Dumontt havia me orientado a não ir à festa e eu insisti para irmos. Além disso tinha a Fiat Uno que meu amigo me confi ava para trabalho e eu usei para ir a uma festa. Esse carro signifi cava bem mais que uma Fiat Uno 89 pra ele, difi - cilmente tirava o carro da garagem pra passear, mas todo domingo colocava o carro na calçada, em frente à sua casa, ligava o som e lavava o carro, mesmo quando já estava limpo. Nem os fi lhos podiam dirigir aquele carro e ele havia me confi ado uma cópia da chave. Essa era uma das muitas coisas ruins que aconteceriam nos próximos meses. Coisas boas: parte 1 No dia 14 de novembro o grafi teiro Dante liderava a Bai- xada Crew para grafi tar o Espaço Enraizados. No dia 15 aconteceria um cortejo cultural para dar abertura à Jor- nada Cultural, evento que aconteceria no Espaço Enrai- zados em que participariam dezenas de pessoas de paí- ses diferentes. Eu e Dumontt acompanhávamos todo o processo de perto. No dia 14 à noite, eu tive uma apresentação no centro de Nova Iguaçu, da qual saí às três horas da madrugada, tendo a missão de ir ao aeroporto buscar o Alessandro Buzo, que a convite do Aercio também parti- ciparia da Jornada Cultural. No dia 15, além do cortejo cultural, eu fi z uma apresen- tação no Circo Voador pra levantar um dinheiro. O Léo da XIII foi comigo, mas rapidamente voltamos para o 222 Enraizados: os híbridos glocais Espaço Enraizados, onde estavam dezenas de pessoas de vários países, como Alemanha, Uruguai, Paraguai e Argentina. Era o primeiro evento no Espaço Enraizados, e já um evento internacional. No dia 16 eu tive outra apresentação no Sesc de Nova Iguaçu, e no dia seguinte a Coordenadoria de Igualdade Racial nos fez uma homenagem. Colocaram uma fotogra- fi a minha na via Light. Por causa disso meu telefone tocou o dia inteiro, eram os amigos nos parabenizando. Com um descanso de dois dias antes da próxima viagem, aprovei- tamos que o Buzo estava no Rio e fomos curtir uma praia. Isso não foi legal: parte 2 No dia 20 de novembro tinha uma atividade em Forta- leza, a convite da Ação Educativa, ONG de São Paulo, em que eu participaria de uma mesa e faria uma palestra. Aproveitei que estaria por lá e contactei a Rede Enraiza- dos no Nordeste para saber se haveria algum evento por lá nas datas em que eu estivesse, pois gostaria de fazer apresentações. Fiquei muito animado com o retorno da galera. Muitos eventos de rap estavam rolando naquele mês e eu havia fechado três apresentações. No dia da viagem saí de casa bem cedo. O aeroporto é distante da cidade onde moro e a rodovia Presidente Dutra costuma engarrafar. Eu poderia ter problemas com o horário. Mesmo com todos os cuidados que tomei, a van que me levava para o aeroporto bateu, mas de uma forma que fechou a rodovia e não havia como qualquer outro carro passar por ali. A batida foi tão violenta que eu estava na parte de trás da van e fui projetado para a parte da frente, ao lado do motorista. Por sorte ninguém se machucou, mas todos 223Seguindo em frente fi caram bastante abalados. Inclusive o motorista, que não sabia explicar ao certo o que havia acontecido. O aci- dente foi num lugar sem ruas paralelas. Andei quilôme- tros para tentar achar um táxi ou qualquer outra condu- ção que me levasse até o aeroporto. Depois de bastante tempo caminhando encontrei um taxista que me levou o mais rápido que pôde, porém nem o mais rápido taxista do mundo faria com que eu não perdesse aquele voo. Coisas boas: parte 2 O pessoal da Fase ligou marcando uma reunião para o dia 11 de dezembro. Pediram para levarmos um projeto, eles tinham um recurso do Serviço de Análise e Assesso- ria a Projetos (Saap). Comecei imediatamente a escrever o projeto do Cefam. Isso não foi legal: parte 3 Estava escrevendo o projeto em casa quando meu tele- fone tocou. Como eu tinha me separado há pouco tempo, o único móvel que tinha na minha casa era a mesa do computador, que fi cava embaixo da janela do quarto. Meu telefone celular, que estava na sala carregando, começou a tocar, mas como estava mal-humorado não quis atender. Poucos minutos depois me chamaram no portão, mas eu também não quis atender. Até que minha tia me disse que era meu primo Júnior Baiano quem estava cha- mando. Pensei que pudesse ser algo importante, pois difi cilmente ele ia na minha casa. Fui atender e aprovei- tei pra ver quem estava me ligando. Meu primo não que- ria nada importante, e nem era relevante a ligação que recebi. Quando voltei pra casa, a janela do quarto tinha caído em cima da cadeira que eu estava trabalhando. Decididamente a urucubaca estava solta pro meu lado. 224 Enraizados: os híbridos glocais Coisas boas: parte 3 Como nada de grave aconteceu, terminei o projeto e fomos para a Fase entregá-lo. Para nossa surpresa, lá encontramos alguns companheiros de caminhada, outras organizações de juventude que também foram convidadas. Estávamos entre os três primeiros lugares do Prêmio Cultura Viva 2007 e no dia 18 de dezembro seria a entrega do prêmio, em Brasília. Só lá saberíamos nossa colocação. Como eu era uma espécie de porta-voz do Enraizados, o Dumontt queria que eu fosse pra Brasília. Mas, além dos problemas pessoais que tinha pra resolver, achei justo que ele fosse. Todo o processo começou por causa de sua persistência. E eu estava meio receoso com os fatos estranhos que estavam acontecendo, era capaz até de o avião cair. No dia 18 de dezembro o Dumontt me ligou, superemo- cionado, dizendo que nossa iniciativa havia ganhado o primeiro lugar do Prêmio Cultura Viva, mais de 30 mil reais. Minhas pernas tremiam, eu suava frio e dava pulos de alegria, fi quei eufórico com a notícia. De uma vez por todas, entre trancos e barrancos, fechamos o ano de 2007 com chave de ouro. Cap.04 Estamos só no início Cap.04 Estamos 228 Acionando a Rede Enraizados O mundo se divide em duas espécies de pessoas: aquelas que querem falar com você e aquelas com as quais você quer falar.— Thomaz Souto Corrêa O ano de 2008 começou com boas expectativas para a organização: nova sede, Prêmio Cultura Viva e o projeto do Cefam aprovado. Abrimos inscrições para o Cefam, mas apenas 12 pessoas poderiam participar, sem contar comigo e com o Dumontt. Inscreveram-se Guará, Binho, Júnior, Léo da XIII, Suellen Casticini, Ualax, Lisa Castro, Átomo, UR Clau, Marcela, Kadu e Kall. A Rede Enraizados funcionava a todo vapor. Precisáva- mos comprar uns equipamentos, e acionamos a rede. O Big Dáblio, morador do Capão Redondo, em São Paulo, trabalha numa loja de equipamentos eletrônicos e fez um preço camarada. Fui até São Paulo comprar com ele. Na mesma época, o Jackson Brum, de Porto Alegre, acionou a Rede Enraizados para realizar um projeto chamado “Seis direções”, patrocinado pela Petrobras e pela Funarte. A ideia era grafi tar painéis de 100m² em seis cidades, partindo de Porto Alegre (RS) e passando por Florianópolis (SC), Curitiba (PR), São Paulo (SP), Nova 229Estamos só no início Iguaçu (RJ), fi nalizando em Belo Horizonte (MG). Quatro grafi teiros locais seriam convidados para interagir com os outros seis que vinham com o projeto. Por meio da Rede Enraizados o Jackson conseguiu os contatos que não tinha em algumas cidades, e o Movi- mento Enraizados foi responsável pela produção do pro- jeto em Nova Iguaçu. Convidamos os grafi teiros Dante e Tihkin e a grafi teira Anarkia para participarem do pro- jeto. O Jackson chamou o grafi teiro Ments, mas por pro- blemas pessoais ele não pôde participar. Fechamos uma parceria com a SuperVia e nos dias 26, 27 e 28 de janeiro grafi tamos o muro da estação de trem de Comendador Soares. Este projeto mudou a cara do bairro. As pessoas comentavam que quando passavam de trem para ir pro trabalho, de madrugada, os grafi tes transmitiam alegria. Realmente era algo bom. Transformávamos o Espaço Enraizados, que antes era uma ofi cina de carros, em uma opção cultural para a cidade. A intenção era colocarmos, além do escritório, uma loja para escoar nossos produtos e de parceiros, uma lanchonete, uma biblioteca e um estúdio audiovi- sual. Queríamos inaugurar o Espaço Enraizados o mais rápido possível, por isso precisávamos de voluntários para as obras não pararem. As articulações eram diárias. Estávamos saindo de um espaço de aproximadamente 10m² e indo para um de 350m². Tínhamos que adminis- trar os recursos de modo que conseguíssemos equipar o novo espaço e pagar as obrigações mensais, como conta de luz e telefone. O Dumontt trabalhava incessan- temente em suas articulações, e eu correndo como um louco nas minhas. Em meio desse turbilhão de acontecimentos, recebemos a ligação do Écio Salles, um amigo de longa data em quem sempre confi ei bastante. Ele me comunicou que estava 230 Enraizados: os híbridos glocais trabalhando na secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, a convite do novo secretário de Cultura, o Marcus Vinícius Faustini, e gostaria de marcar uma reunião conosco. Andávamos distantes da Secretaria de Cultura, porque a relação com os últimos secretários não havia sido muito boa. Numa das reuniões de coordenação eu e Dumontt decidimos conversar com Écio e Faustini. Mas estava claro que era apenas porque o Écio pedia. Se desse algum problema, era deles a responsabilidade. Foi justamente isso que falamos com o Écio, que assu- miu total responsabilidade por já conhecer o Faustini e confi ar nele. Até hoje não tivemos problemas com eles. Pelo contrário, temos uma relação bastante transpa- rente. Não só na Secretaria de Cultura, mas no dia a dia. Convidamos muitas pessoas para participarem da inau- guração do Espaço Enraizados, que aconteceu no dia 5 de abril de 2008. Nosso convite era um cartão-postal que mostrava a localização do Espaço Enraizados via satélite. Eu fui ao correio e enviei um deles para meu endereço para registrar o dia, que foi perfeito. Mili- tantes, universitários, políticos, empresários e, o mais importante, a população de Morro Agudo estavam lá, marcando presença. Nossa loja funcionava com muito movimento. As pessoas não conseguiam acreditar no que viam. Aquele espaço enorme, todo grafi tado, equipado, tocando rap, no centro de Morro Agudo, era todo nosso, da peri- feria. Os Enraizados que vieram de outros estados reno- varam suas esperanças, como o Terno e o Alessandro Buzo, do Enraizados-SP, que viram como era possível fazer o mesmo nas suas comunidades. 231Estamos só no início Dentre as centenas de pessoas que passaram pelo Espaço Enraizados naquele dia, faço questão de citar o nome de algumas: Lindberg Farias, prefeito de Nova Iguaçu (RJ); Juana Nunes, mobilização e articulação de redes sociais do Ministério da Cultura (DF); Écio Salles, subsecretário de Cultura de Nova Iguaçu, com sua famí- lia; Vladimir Palmeira, líder da passeata dos 100 mil con- tra a ditadura militar, em 1968 (RJ); Cida Diogo, deputada federal (RJ); Tiago Borba, subsecretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência (RJ); Edson, do Cefet (RJ); Elicarlos (Japeri-RJ); Def Yuri, do Viva Rio (RJ); Alessandro Buzo (Itaim Paulista-SP); Marilda Borges (SP); Pêvirgula- dez (Duque de Caxias-RJ); Pinah (Santa Teresa-RJ); Trutty (SP); Andressa Leite (Méier-RJ); Bruno Thomassin e Jane Thomassin (São Gonçalo-RJ); Numa Ciro (Santa Teresa- RJ); Mirian Juvino (RJ); Terno e sua esposa, Enraizados- SP (Parque Bristol-SP); Re.Fem (Duque de Caxias-RJ); Luciano Lyrio (Nova Iguaçu-RJ); Erivelton (Nova Iguaçu- RJ); Jota Rodrigues, cordelista e xilogravador (Nova Iguaçu-RJ); e Dante (Mesquita-RJ). E não poderia deixar de falar dos militantes e ativistas da comunidade: Dico, Short, Samuel, Suellen Casticini, Júnior, Guará, Kadu, Ualax, Léo da XIII, Kall, Átomo, Lisa Castro, Gil Torres, UR Clau e Marcela. Começamos cedo com a festa, que foi até altas horas da noite com shows de rap e apresentação do cordelista Jota Rodrigues, e termi- nou com uma roda de samba, no melhor estilo periferia. 234 Enraizados: os híbridos glocais 235Estamos só no início 236 Um elefante branco nas mãos O que separa as pessoas que alcançam seus objetivos das pessoas que não está diretamente relacionado com a habilidade de saber pedir ajuda na hora certa. — Donald Keough Dias depois da inauguração abrimos o Espaço Enrai- zados para a comunidade. Usávamos o cineclube para exibir o campeonato carioca, por isso pessoas que não conheciam a cultura hip-hop passaram a frequentar o espaço por causa do futebol. Fizemos as exibições durante alguns meses, mas paramos porque alguns estavam abusando e o local era para ser familiar. Estávamos muito bem equipados, mas também com muitas dívidas. Precisávamos de maneiras diferentes de obter recursos. Chamei alguns produtores de evento pra conversar. Além dos eventos de hip-hop queríamos fazer também outros tipos, dando opção para a comunidade curtir e conhecer a organização. A loja também era uma boa opção para gerar renda. Como tínhamos uma loja virtual, pensamos em integrar com a presencial. Falei com alguns artistas da Rede Enraizados e ofereci a loja para escoar seus produtos. Seria venda através de consignação, uma espécie de comércio solidário, para 237Estamos só no início nosso dinheiro circular entre nós. Fizemos uma faixa com programação fi xa do Espaço Enraizados, que come- çava às terças-feiras. Terça-feira Mistureba: sarau de poesias num misto de músicos populares, rappers e poetas. Quarta-feira Samba de mesa: samba de mesa que começou com o grupo Refl exo do Batuque e depois abriu para outros grupos de samba da comunidade. Quinta-feira Cineclube Enraizados: exibição de documentários de curta e longa-metragens. Sexta-feira Charm soul black: o melhor do hip-hop internacional, do charm e do soul. Sábado Raiz do hip-hop: o melhor do hip-hop nacional. Domingo Futebol no telão: a partir das 16h,fi nal do Cariocão. A programação era permanente, além das atividades que aconteciam durante a semana. Alguém sempre queria fazer uma ofi cina, apresentação ou workshop no espaço. Emprestávamos toda a estrutura do Espaço Enraizados e não cobrávamos nem um real, o que fazemos até hoje. Estávamos confiantes de que com essa programa- ção, e uma forte divulgação no bairro, a comuni- dade abraçaria a ideia, e todos os nossos problemas estariam resolvidos. Então o que parecia o paraíso se tranformou no nosso inferno particular. 238 Enraizados: os híbridos glocais Nossos pequenos problemas tomaram uma proporção gigantesca, uma enorme dívida se acumulava e a gente estava com aquele elefante branco nas mãos, sem saber o que fazer. Continuávamos a receber muitos convites e a participar das atividades dos parceiros, como o Favela Toma Conta, projeto realizado pela Suburbano Convicto, organização do Alessandro Buzo, fi liada a Rede Enraiza- dos em São Paulo; apresentações para o Graal, projeto da Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Vio- lência; o Dia da Abolição, projeto da Coordenadoria de Igualdade Racial; além dos encontros da Fase. O Mistureba nunca se fi rmou enquanto evento. Con- vidamos alguns músicos e poetas da cidade, mas eles não compareceram durante três semanas consecuti- vas. Justamente na semana que não fi zemos o evento, eles começaram a ligar, querendo participar. O mesmo aconteceu com o Samba Enraizados e o Charm, só que no Samba e no Charm quem não aparecia era o público. Mais uma vez, na semana que decidimos parar com o evento o público bateu na porta, mas infelizmente não podíamos continuar com eventos que davam preju- ízo. Enquanto de um lado as coisas iam mal, de outro o Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Mili- tância) fazia muitos progressos. Uma epidemia de dengue assolava a cidade de Nova Iguaçu. Acionamos escolas particulares e públicas, associações de moradores e líderes comunitários para articularmos uma ação para mobilizar os moradores do bairro contra a dengue. Concluímos que a melhor forma seria uma passeata com as crianças das escolas públicas e particulares do bairro, distribuindo folhetos informativos, esbanjando a alegria da criançada e cha- mando a atenção da população. Enquanto nos articulá- vamos com as outras organizações para conversar com 239Estamos só no início as escolas, trabalhávamos em outros eixos. Estávamos empenhados em identifi car violações de direitos em nossa comunidade. Nós, do Cefam, começamos a nos reunir com mais frequ- ência. Identifi camos que o direito de ir e vir dos morado- res do bairro era violado tanto pelos comerciantes, que utilizavam as calçadas para expor seus produtos, como pelos motoristas, que estacionavam os carros em cima da calçada, o que inviabilizava a locomoção dos pedes- tres. Eles tinham que disputar as ruas com os carros em alta velocidade, correndo risco de vida. No dia 10 de maio de 2008, eu, Lisa Castro, Léo da XIII, Guará e Júnior fomos para rua e fi zemos o documentário “Cefam: pelo direito de ir e vir”, em que entrevistamos alguns morado- res que mostraram a sua revolta com a situação e fl agra- mos algumas violações. Algumas semanas depois, esperávamos de cinco a oito escolas para a passeata contra a dengue, com cerca de 50 alunos cada uma. Mas não sabíamos que havia uma espécie de rixa entre elas. Somente uma escola apare- ceu, com seis alunos, o que causou grande decepção. O Dumontt resolveu adiar a passeata. Quando todos já tinham concordado que adiar seria a melhor opção naquele momento, chegou uma escola com quase 100 crianças, carregando faixas, cartazes e folhetos. Fize- mos a passeata, fi lmando todo o processo e encantando os lugares por onde passávamos. Fizemos um documentário com as imagens captadas nesse dia chamado “Cefam: na luta contra a dengue”. O retorno da comunidade foi muito positivo. Distribuímos 100 DVDs com o documentário, o exibimos no cineclube, e conseguimos centenas de acessos no Youtube. 240 Enraizados: os híbridos glocais 241Estamos só no início 242 Núcleo de mulheres do Enraizados: uma questão de gênero Há dois tipos de pessoas: as que fazem as coisas e as que fi cam com os louros. Procure fi car no primeiro grupo: há menos competição lá. — Indira Gandhi As meninas do Enraizados sempre me cobravam pelo fato de o Enraizados ser uma organização machista. Eu não tinha muito pra onde correr, minha explicação era sem- pre a mesma: “Eu não posso criar um núcleo de mulheres porque eu sou homem, vocês têm que se organizar para tomar conta e ocupar o espaço de vocês na organização.” A Lisa Castro já era bastante atuante no Enraizados, mas sozinha realmente era difícil conseguir muita coisa. Em 2008, a Janaina Oliveira, mais conhecida no cenário hip- hop como Re.Fem, começou a se aproximar do Movimento Enraizados, apesar de eu já a conhecer havia uns cinco anos e ela sempre participar das atividades da organização. A Lisa Castro e a Re.Fem fazem parte de um projeto chamado “Rap de saia”. Elas se juntaram e idealiza- ram o evento Donas da Arte, cuja primeira edição foi no dia 31 de maio de 2008. Nesse dia circularam deze- nas de mulheres pelo Espaço Enraizados, participando de diversas atividades. Eu, Átomo, Dumontt e Guará somente carregávamos o pesado. 243Estamos só no início O Donas da Arte nasceu para dar visibilidade à arte das mulheres, especialmente as de Nova Iguaçu, de qualquer faixa etária. O importante era ter um dom. O evento deu visibilidade pro trabalho dessas mulheres, permitindo que outras pessoas da comunidade admirassem suas artes, elevando a autoestima da mulherada. Aconteceram sete edições do Donas da Arte, que hoje se transformou no Núcleo de Mulheres do Movimento Enraizados, lide- rado por Janaina Oliveira (Re.Fem) e Lisa Castro. A ideia é inserir discussões sobre a questão de gênero no dia a dia das pessoas que fazem parte da Rede Enraizados. Financeiramente o Espaço Enraizados ia mal das pernas, mas socialmente estava indo muito bem. A partir de junho fechávamos as portas da organização para nos dedi- car somente a escrever projetos. O simples fato de abrir o Espaço Enraizados gerava custos altos, por isso eu e Dumontt decidimos deixar os portões fechados enquanto nos dedicávamos à elaboração de projetos. Nessa época já havíamos nos comprometido com a Fase para fazer um encontro de juventude no Espaço, que rolou num astral superlegal. Participaram organizações de juventude que não eram necessariamente de hip-hop, como a Rede Funk Social, a Pastoral da Juventude, a Arte Jovem, os jovens griots, Anticinema e Com Causa. Eu me sentia realizado toda vez que uma pessoa nova conhecia nossa sede, por isso organizei um churrasco no dia 28 de junho e convidei uma galera da Rede Enraiza- dos no Rio de Janeiro. Como sempre, vieram pessoas de diversas partes do estado, mas algumas nunca haviam estado em Morro Agudo e marcaram presença nesse encontro. O DJ LP, o Eddi MC, que levou seu fi lho e a rapper Jamile, o que aumentou mais um pouco nossa rede. Compareceram também um pessoal novo de Mesquita e Campo Grande 245Estamos só no início que queriam conhecer o espaço, e os amigos de sempre: Mad, Nelinha, Pêvirguladez, Pinah, Slow da BF e Re.Fem, sem contar com os residentes e minha família – minha mãe e minhas tias que fi caram cuidando do rango. A galera se identifi cou bastante com a biblioteca, muitas pessoas fi caram lendo durante o evento, que terminou às 22h com apresentações de rap de quase todos os que estavam presentes. A convite do secretário de cultura de Nova Iguaçu, Marcus Vinícius Faustini, participamos da Conferência de Cultura de Nova Iguaçu. Dividi a mesa com o próprio secretário e com a Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Apesar de essa não ser nossaprimeira atuação numa Conferência de Cultura, sempre fomos bastante ativos na vida política da cidade, era a primeira vez na mesa com pessoas dessa infl uência. 246 Mil fi tas acontecendo Quem não é contra nós é por nós. — Marcos 9:40 Eu e Dumontt estudávamos muito para poder sair daquela situação fi nanceiramente incômoda. Estáva- mos endividados com cartões de crédito e cheque espe- cial, e até pegávamos dinheiro emprestado com nossos familiares para arcar com os compromissos do Movi- mento Enraizados. O Dumontt sinalizava que o caminho para sairmos dessa crise seriam os editais públicos, eu aceitava sua ideia, mas mesmo assim insistia em abrir espaço para even- tos. Foi quando surgiu a ideia de fazermos o evento “Hip-hop (+)”, que durou até dezembro, contabilizando 24 edições que aconteciam toda semana. Passaram pelo “Hip-hop (+)” os rappers Léo da XIII, Ultimato à Salvação, Poetas da BF, Fator Baixada, Realidade, Dudu de Morro Agudo, Marcio RC, BDO MCs, K.A.S, Estilhaço, Marcelo Comuna, Slow da BF, Wr Soul, DJ Pica Pau, Dom Black, Pêvirguladez e Sagat. Fizemos também algumas edições especiais como a do Encontrão e a de b. boys. O “Hip-hop (+)” era um evento de produção coletiva. O artista era convidado, ou entrava em contato com a organização para fazer uma apresentação, e entrava 247Estamos só no início na programação do mês, que começou às sextas-fei- ras. Fechávamos quatro artistas por mês, um para cada sexta-feira. O Movimento Enraizados se comprometia em fazer 10.000 fl yers com a programação mensal, o que daria 2.000 fl yers para cada artista e mais 2.000 fl yers para a organização divulgar. Era o mesmo princípio das coletâneas. Se cada artista divulgasse seu próprio evento, estaria também divulgando o evento dos outros artistas. Além disso, a organização entre- vistava o artista na semana do show e publicava a entre- vista no Portal Enraizados, o que aumentava a rotatividade de matérias do portal. Fazíamos ainda e-fl yers que divulgá- vamos na internet através de sites de relacionamento e do newsletter com mais de 60.000 e-mails válidos cadastra- dos. A produção do dia fi cava por conta dos artistas. Às vezes dava um desânimo muito grande, pois havia eventos em que ia apenas uma pessoa. Com o tempo percebemos que isso dependia muito do comprome- timento de cada artista na divulgação e na produção do seu evento. Nem mesmo o mau tempo era capaz de impedir a realização de um “Hip-hop (+)”. Em paralelo aos eventos de rap a gente emprestava o espaço para grupos organizados e artistas da cidade. Foi como acon- teceu o Fórum de Juventude Negra e a apresentação artística do Roberto Lara (músico e ex-secretário de Cultura de Nova Iguaçu), que trouxe um outro público da comunidade para dentro do Espaço Enraizados. Tenta- mos também inserir o forró como opção. Era um evento que estava dando certo. As pessoas curtiam o lugar, o público do forró consumia as roupas de hip-hop, e come- çamos a enxergar uma luz no fi m do túnel, mas infeliz- mente o produtor do evento vacilou. No terceiro dia de evento, quando o local deveria se fi r- mar como o ponto de forró do bairro, o produtor não apa- receu com o grupo e nem deu satisfação. Depois desse 248 Enraizados: os híbridos glocais dia foi um furo atrás do outro, até que numa noite o grupo que se apresentou cantava músicas pornográfi cas. Foi a gota d’ água. Terminamos o evento na hora e as últimas moedas do Enraizados se foram. O Bruno Thomassin, cineasta francês, e sua esposa, Jane Thomassin, amigos de muitos anos, são pessoas envolvidas na minha vida, tanto pessoal quanto pro- fi ssional, se é que conseguimos separar uma da outra. Quando os conheci, não lembro bem o ano, estávamos num bar em São Gonçalo, o Bruno fazia uma fi lmagem para uns camaradas dele que eu também conhecia, e nesse dia tive um embate ideológico com a Jane, mas logo depois já éramos grandes amigos. Dia 8 de agosto foi a minha apresentação no evento “Hip- hop (+)”. Muitas pessoas estiveram presentes, foi ines- quecível. O Bruno fez um vídeo com depoimentos dos meus amigos e família. Fico emocionado toda vez que vejo. Neste dia até mesmo a primeira-dama, Maria Antô- nia, esteve presente com sua mãe e fi lho, e num rápido bate-papo ela me informou que o edital para o Projovem Adolescente seria aberto em breve, e ela achava que a gente tinha o perfi l para executar o projeto. Como essa área não era minha especialidade, disse que falaria com o Dumontt. O Dumontt achou legal e começou a tra- balhar no projeto do Projovem Adolescente, dentre as dezenas de outros que estávamos escrevendo. Fomos convidados a participar de uma reunião que acon- teceria em Brasília no dia 11 de setembro, em que se dis- cutiria como seria a execução do Prêmio Cultura Hip-Hop – Edição Preto Ghóez, uma espécie de consultoria do governo com instituições nacionais e de referência den- tro do hip-hop. O governo daria apenas uma passagem e diária, mas era necessário que o Dumontt também esti- vesse presente. Começamos uma busca louca por outra 249Estamos só no início passagem, contactamos dezenas de pessoas, até que um dia ligamos para a Fase e eles atenderam o nosso pedido, conscientes de que era uma ação importante para a orga- nização. Estavam na reunião o Nino Brown, o Fama, o Gil BV, o GOG, a Fabiana Menini, entre outros. 250 Articulação internacional O auge do sucesso é o luxo de dar a si mesmo tempo para fazer o que se quer. — Leontyne Price A Escola de Música Eletrônica, uma organização sediada no bairro da Cerâmica, em Nova Iguaçu, estava com pla- nos de fazer um curso de DJ, mas queriam ensinar com aparelhagem profi ssional e com ênfase no hip-hop, e vieram nos procurar. Queriam que nós assumíssemos a ofi cina na sede deles. Chamamos o DJ Soneca, da Cidade Alta, para ministrar as aulas. Nessa mesma época, a Ana Massa, uma mineira gente fi na que estudava na França e estava no Rio de Janeiro fazendo uma pesquisa com grupos de jovens que traba- lhavam com hip-hop, apareceu num sábado, dia da reu- nião do Cefam, para nos pedir para acompanhar nossas atividades. Ela havia começado a fazer uma pesquisa com uma organização francesa chamada Talent et Develop- ment e agora planejava fazer o mesmo no Rio de Janeiro. Ana disse que havia passado por algumas organizações no Rio de Janeiro, mas não tivera sucesso. Na conversa com ela, estávamos eu, o Dumontt, o Kall, o Átomo e o UR Clau. O Dumontt não viu problemas em ela acompanhar as atividades, e inclusive orientou que acompanhasse o DJ Soneca na Escola de Música Eletrônica. Era lá o local 251Estamos só no início onde ela poderia ter mais sucesso nas pesquisas, porque além da ofi cina de DJ daríamos formação de ativismo e militância, um pequeno braço do Cefam no bairro vizinho. Avisei que não poderia levá-la e apanhá-la todos os dias na Escola de Música Eletrônica. Meu tempo estava curto. Eu levaria naquele dia e depois ela teria que ir sozinha. Usei um termo típico de Minas Gerais para explicar onde era o lugar que iríamos naquele momento: “É logo ali.” Andamos cerca de três quilômetros e a Ana já estava desistindo quando falei que realmente estava chegando. Acho que depois desse dia ela nunca mais foi a pé do Espaço Enraizados até a Escola de Música Eletrônica. A Ana estava toda semana conosco, e com o tempo ela começou a ir direto para a Escola de Música Eletrônica. Foi inevitável que entrasse para a rede também. Fez amizade com o DJ Soneca e com os alunos do curso, que também gostavam muito dela. O Ecio Salles me convidou para participar do seminário Antídoto, em São Paulo. Este seminário é uma parceria entre o Grupo Cultural AfroReggae e o Itaú Cultural. Eu faria parte de um projeto chamado “Onda cidadã”, de que já havia participado no Rio de Janeiro. Esse ano o “Onda cidadã” estava inserido no Antídoto,para gerar um conteúdo mais informal e jovem. Eu saí do Rio de Janeiro pensando que o evento não seria muito interessante, o que resultaria em textos com crí- ticas bastante negativas da minha parte. Mas fi quei surpreso com a qualidade do projeto, com a riqueza de informações e com as maravilhosas e inspiradoras his- tórias de vida que os participantes compartilhavam com o público, formado em sua maioria por universitários e estudiosos da área de ciências sociais – o que me deixou muito insatisfeito. Na minha opinião, o público deveria ser formado também por líderes comunitários. 252 Enraizados: os híbridos glocais Foi nesse dia que ouvi falar do país Burkina Faso. Senti- me um grande ignorante por não conhecer a história do país. Fiquei mais surpreso ainda com a história de vida do líder Koudbi Koala. Assisti ao documentário “Sete dias em Burkina”, de Carlinhos Antunes e Marcio Wer- neck, em que contam parte da história de Koudbi. Quando saí da sede do Itaú Cultural fui abordado por uma menina, estudante da UFRJ, que conhecia a mim e a his- tória do Movimento Enraizados. Sua professora estava fazendo um estudo sobre nós, inclusive já havia nos feito algumas visitas. Começamos a conversar e falei do meu interesse pelo documentário que acabara de ver, ela disse que conhecia o Carlinhos Antunes e que poderia me apresentar a ele. Concordei na hora e fomos até ele. Eu e Carlinhos trocamos algumas ideias. Contei um pouco sobre o Movimento Enraizados e ele me disse que estaria no Rio de Janeiro na semana seguinte. Se qui- séssemos, poderíamos articular uma sessão do fi lme em Morro Agudo. Achei o máximo, na mesma hora liguei para o Dumontt, que adorou a ideia. Quando cheguei ao Rio, fui rapidamente convidando alguns amigos para estarem presentes no dia da exibi- ção do fi lme. Ainda teriam a oportunidade de conversar com o próprio Koudbi Koala, Carlinhos Antunes e Marcio Werneck. Foi um dia realmente construtivo. Participa- ram do encontro eu, Dumontt, Bruno Thomassin, Cacau Amaral, Átomo, Re.Fem e Lisa Castro. Nossas conversas passaram pelo festival de cinema de Burkina Faso, o Fespaco, por técnicas de gravação, equipamentos, curiosidades sobre o país, entre outras coisas. Quando Koudbi e os outros que o acompanha- vam foram embora, fi camos conversando eu, a Re.Fem, o Bruno Thomassim, o Cacau e o Dumontt e eu falei com 253Estamos só no início o pessoal do meu interesse em fazer um documentário sobre o hip-hop, mas não queria fazer um fi lme clichê, sem história ou com história repetida, eu queria algo novo. Apresentei então a proposta do fi lme “Mães do hip-hop”. A ideia de fazer esse fi lme surgiu a partir de uma conversa que tive com a doutora Numa Ciro, que na época fazia sua tese de doutorado. Ela me fez várias per- guntas, uma delas a respeito do que minha mãe achava da minha trajetória no rap, e eu não soube responder. Fui dormir com a ideia na cabeça e sonhei com o fi lme. Acordei com ele quase pronto, inclusive já defi nidas as pessoas que participariam da produção. Todos fi caram interessados na empreitada. A conversa sobre o assunto durou alguns meses. Três dias depois da visita de Koudbi Koala, recebemos aproximadamente 40 chilenos, de Santiago. Foram conhecer o Espaço Enraizados junto com a Fase. Faziam parte do projeto “Derechos e direitos”, e esse intercâm- bio era muito importante para nós. Eles passaram tam- bém pelo Setor BF, em Mesquita, e depois foram noutra favela do Rio de Janeiro. Demos uma volta com eles pelo bairro, os levamos na praça de Morro Agudo, na estação de trem, na farmácia, e depois fomos almoçar. Como de praxe, contamos a história do Movimento Enraizados. Muitos fi caram impressionados com a nossa estrutura, disseram que nossa vida era um sonho. Principalmente o Zerta e o José, que pensavam em morar no Brasil por- que as coisas aqui pareciam mais fáceis para o hip-hop. Eu avisei que não era bem assim, quando tivesse um tempo eu contaria toda a trajetória do hip-hop, e como nós havíamos conseguido o que temos. Depois dessa correria fomos para Cabo Frio, para um encontro 254 Enraizados: os híbridos glocais internacional organizado pela Fase, em que cerca de 200 jovens dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) mais o Chile participariam, durante quatro dias, de uma série de debates, painéis e ofi cinas, com o foco na exigibilidade de direitos. Além de parti- cipar do evento a gente aproveitava para fazer nossas articulações e aumentar a Rede Enraizados. Fomos apenas eu e Dumontt para Cabo Frio, porque já estávamos envolvidos com o projeto. Os militantes do Enraizados (Kall, Lisa Castro, Átomo e UR Clau) assumi- ram o controle e fi zeram sozinhos o evento “Hip-hop (+)” no Espaço Enraizados, sem a nossa presença, o que na época não era comum. Hoje em dia as coisas já são bem diferentes, e o evento bombou. Tudo estava legal, as ligações com a imprensa conti- nuavam fi rmes. Estávamos trilhando um caminho de sucesso, articulações com o governo, com a imprensa, com a iniciativa privada e com a sociedade civil. Come- çamos a pensar na possibilidade das articulações inter- nacionais presenciais, mas dessa vez nós é que iríamos para outros países. Ainda não sabíamos como, mas já estava decidido que iríamos. E quando a gente decide uma coisa, ela acontece. Em uma conversa entre a Ana Massa e o Dumont, surgiu a ideia de fazer um projeto de intercâmbio virtual entre o Movimento Enraizados e a organização francesa Talent et Developement. O intercâmbio consistia em fazer uma música e um vídeo coletivos. A metodologia era simples. Escolheríamos juntos um tema, faríamos o beat no Bra- sil e enviaríamos para os franceses. Todo o processo de produção da letra da música seria gravado e depois o Bruno Thomassin faria um fi lme. 255Estamos só no início Na hora de executar, utilizamos uma metodologia dife- rente da organização francesa. Decidimos que o Léo da XIII, que é da segunda geração de MCs do Movimento Enraizados, faria uma ofi cina de rap com dois meninos da terceira geração, o Kadu e o Júnior. Eles escreveriam juntos e o Léo também participaria da música. Foi o Léo quem fez o beat. Fiquei muito feliz e orgulhoso. Vi que o cara que começou me vendo produzir música tinha evoluído e até me ensinava a usar alguns softwa- res. Ele evoluiu também na maneira de escrever e cantar rap. Alguns garotos começavam a cantar infl uenciados por ele. O Léo tem uma maneira peculiar de ensinar a fazer rap, parece que ele semeia uma semente no cora- ção da galera e muitos nunca mais param de cantar. A organização francesa trabalhou de modo totalmente diferente. Eles se reuniram num grupo de 15 pessoas e conversaram sobre o Brasil, o que eles conheciam do Brasil. Depois fariam um rap em cima do tema escolhido. O tema do rap era “As nossas cidades”, Nova Iguaçu e Blanc Mesnil. Retrataríamos os problemas sociais e depois faríamos uma comparação entre as duas cidades e os dois países. 258 O pulo do gato Qualquer homem pode alcançar o êxito se dirigir seus pensamentos numa direção e insistir neles, até que aconteça alguma coisa. — Thomas Edison Apesar de continuarmos no osso, sem dinheiro e cheios de dívidas, ainda assim executávamos vários projetos simultaneamente. Era bom fazer isso. Toda vez que eu pensava que perdi dez anos da minha vida trabalhando em algo de que não gostava, me empenhava mais nos tra- balhos dentro da organização, mesmo que não ganhasse dinheiro com isso, mas chega um ponto que fi ca inviável e o dinheiro tem que vir de algum lugar. Somente no fi nal de 2008 as notícias boas começaram a chegar. Durante o ano pulverizamos cerca de dez projetos, para vários luga- res, e, por incrível que pareça, aprovamos os dez. Nosso investimento em conhecimento começava a dar retorno. Dentre os projetosaprovados estavam o Projovem Ado- lescente (Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social), a Biblioteca Enraizados (Casa da Moeda do Bra- sil), ambos executados durante o ano de 2009; Festival de Hip-Hop VIII Encontrão (Fundo Municipal de Cultura), executado no início de 2010; o fi lme “Round one Morro Agudo X Comendador Soares” (Fundo Municipal de Cul- tura); o Pontão de Cultura Digital (Ministério da Cultura) 259Estamos só no início e o Pontinho de Cultura (Prefeitura de Nova Iguaçu), rea- lizados em 2010. Além dos outros projetos que executa- mos sem recurso fi nanceiro. Em dezembro começamos a contratar os funcionários que trabalhariam no Projovem Adolescente e na Biblio- teca Enraizados. Como não queríamos qualquer pessoa trabalhando para nós, eu Dumontt começamos a trazer pessoas próximas e depois contratamos aquelas que tinham um perfi l parecido com o da organização. Fize- mos imersão em que explicávamos o projeto que seria executado e falávamos sobre a organização. O projeto deveria se integrar à organização, não iríamos somente executar o projeto, nós viveríamos o projeto. De novo crescemos absurdamente. A cada ano era mais difícil para nós, eu e Dumontt, traçar as metas, as atividades nos atropelavam, mas sempre fazíamos um esforço para colocar nossos pensamentos em sintonia. Fazíamos uma análise do ano que passara e defi níamos as metas para o seguinte, mesmo sabendo que iríamos bem além daquilo, era somente para ter uma direção. A organização que devia dinheiro a todo mundo conseguiu pagar todas as contas e ainda contratou 40 pessoas durante o ano. A experiência de lidar com pes- soas era nova pra mim, e se o Dumontt não estivesse à frente eu certamente não conseguiria. Conhecer pessoas é muito bom, mas lidar com elas no dia a dia é algo muito difícil que, sinceramente, não me agrada. Por exemplo, não gosto de falar duas vezes a mesma coisa, acho que quando as pessoas sabem de suas obrigações a cobrança é desnecessária. Mas esse pensamento só funciona na minha cabeça, o mundo real é diferente. É administrar, acompanhar, cobrar, elogiar, chamar a atenção e muitas outras coisas que têm que ser feitas a todo momento. 260 Enraizados: os híbridos glocais O Dumontt tem o prazer, e o dom, de desenvolver algu- mas atividades que eu não consigo, não gosto e não tenho vontade de aprender. Já eu gosto de fazer outras coisas que ele também não tem a mínima intenção de aprender. Acho que esse é o segredo de a gente traba- lhar juntos há tanto tempo, alimentando a organização. Além da confi ança que temos um no outro. Para executar o Projovem Adolescente, a equipe deve- ria atrair os adolescentes para as atividades oferecidas pelo Movimento Enraizados. Eles deveriam ter entre 15 e 17 anos, serem moradores do bairro e benefi ciários do Bolsa Família (programa social do Governo Federal). Como tínhamos que executar o projeto em dois polos, nos bairros Morro Agudo e Austin, tivemos que alugar outro espaço em Austin, maior do que o de Morro Agudo e com uma piscina enorme. A gente fazia de tudo para atrair os adolescentes. Eu mesmo fi z apresentações no Espaço Enraizados e em outros lugares onde havia meninos e meninas com o perfi l do projeto. Até mesmo as ofi cinas que seriam exe- cutadas deveriam chamar a atenção dos adolescentes. Decidimos colocar ofi cinas de DJ, ministrada pelo DJ Soneca, de cinema, Bruno Thomassin, de rap, pelo Léo da XIII , e de jornalismo, pela Flávia Ferreira. No mês de abril começamos as fi lmagens para o fi lme “Mães do hip-hop”. Foi uma correria louca, grava- mos tudo e editamos em um mês. A equipe – Dumontt, Re.Fem, Cacau Amaral, Bruno Thomassin, Felipe Fer- reira e eu – adorava trabalhar nesse projeto. Marcáva- mos as gravações com antecedência, pra não pegar as mães de surpresa, e elas arrumavam uns comes e bebes pra gente. Toda fi lmagem tinha comidinha pra galera. 261Estamos só no início Cada um tinha uma função específi ca nas fi lmagens. O Bruno era responsável pela fotografi a, a Re.Fem e eu estávamos na direção e no roteiro, o Cacau como auxi- liar de fotografi a, Felipe Ferreira técnico de som e o Dumontt na produção. No meio do projeto o Dumontt já estava na fotografi a e eu e a Re.Fem captando o som. No fi nal éramos eu e Re.Fem dirigindo a edição, e o Bruno editando. Foi um processo cansativo, mas muito impor- tante. O fi lme pronto fi cou maravilhoso. O Bruno ainda legendou para francês. Além de pegar pesado no fi lme “Mães do hip-hop”, o Bruno Thomassin ainda fazia da ofi cina de cinema uma das que os adolescentes mais gostavam. Lembro que o Bruno fi cou um pouco inseguro na hora de aceitar o con- vite para dar a ofi cina. Como ele é francês, achou que o idioma pudesse prejudicar o entendimento das aulas, mas o Bruno é o francês mais carioca que eu já conheci. Um fato legal que aconteceu durante a ofi cina de cinema foi a TV Brasil fazer uma matéria com o Bruno justa- mente porque o ano de 2009 foi o ano da França no Bra- sil. Todo francês que eles conheciam eram cheios da grana e faziam um trabalho bem burocrático. O Bruno seria um contraponto, um francês que trabalhava na periferia da periferia. O Bruno preferiu fazer a matéria no Espaço de Aus- tin, assim os adolescentes poderiam ver a semelhança entre os equipamentos da TV e os que eles usavam nas ofi cinas, além das técnicas, que eram as mesmas que eles aprendiam na ofi cina. A garotada achou o máximo. Enquanto os profi ssionais faziam a matéria para a TV Brasil, eles faziam a matéria para a TV Enraizados e ainda tiraravam dúvidas com a galera da televisão. 262 Enraizados: os híbridos glocais Outra ofi cina que no início eu achei que os adolescentes não iriam aderir era a de jornalismo, mas eles se interes- saram bastante e essa foi uma das mais frequentadas, com menos evasão. Parecia um sonho, por causa do Pro- jovem Adolescente cada vez mais gente frequentava o Movimento Enraizados, e aos poucos essas pessoas se envolviam também com a organização. 263Estamos só no início 264 Nossa odisseia pela Europa Viajar é descobrir que todas as pessoas estão erradas a respeito dos outros países. — Aldous Huxley Desde que meu disco fi cou pronto, em abril de 2008, eu tinha planos de fazer o lançamento fora do país. A nossa rede já tinha uma grande articulação com países como Colômbia, Chile, Portugal, Finlândia, Estados Unidos, Japão, França, Alemanha, Espanha, México, Angola, Moçambique e Argentina, mas não sabíamos se estáva- mos preparados para essa nova odisseia. Eu, o Dumontt e o Kall fazíamos um curso de inglês no Brasas de Nova Iguaçu, um dos melhores, conseguimos bolsas de estudo através de uma articulação. Nós já sabí- amos que precisávamos dominar outros idiomas para diminuir cada vez mais o contato com os intermediários. Quando a Ana Massa se despediu de nós, lembro que ela fez uma cara de que nunca mais nos veríamos, e eu disse: “Tchau, Ana, a gente se vê na França.” Ela achou engra- çado o que eu disse e começou a rir. Eu então usei a céle- bre frase do Racionais MCs: “Pode rir, mas não desacre- dita, não!” Ela falou que botava fé, e rimos juntos. 265Estamos só no início Até que um dia o DJ Soneca chegou ao Espaço Enraizados, acho que isso em fevereiro ou março de 2009, dizendo que estava a fi m de ir para a França, tinha contatos por lá. Lem- bro como se fosse hoje, num dia ensolarado, ele chegou meio desastrado querendo falar comigo: — Dudu, cê tá ocupado? — Não, fala aí! — Cara, tô com uns contatos na França. O que tu acha de irmos pra lá? — Acho legal, por quê? Você quer ir? — Sim, quero! — Então vamos! Ele começou a rir, e eu também. Até que o surpreendi: “Eu tô falando sério. Tá a fi m de ir? Ele deu uma gague- jada e respondeu: —Claro que tô, mas como vamos? E eu disse: — Essa parte você deixa comigo. Ele voltou para darofi cina de DJ e eu fui conversar com o Dumontt a respeito da viagem que estava decidido a fazer. O Dumontt estava ocupado com a prestação de contas do Projovem e não deu muita atenção quando falei com ele a primeira vez, somente concordou como se eu estivesse dizendo pra ele que nós íamos no bairro vizinho. Perguntou para quando eu estava planejando a viagem, respondi que não sabia ainda, o mais rápido possível. Lembrei que o Gil BV, do Piauí, havia conseguido passa- gens aéreas para a França através do edital do Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural, do Ministério da Cul- tura. Entrei no site para ver o edital, baixei e no mesmo instante comecei a escrever o projeto, antes mesmo de acionar a Rede Enraizados na França pra saber a possi- bilidade de irmos em maio, como o edital sugeria. 266 Enraizados: os híbridos glocais A ideia era fazer um intercâmbio presencial do projeto Iguaçu-Mensil, dando ofi cinas, palestras, workshops, shows e produzindo um evento em parceria com a organi- zação Talent et Developement. Como a equipe que traba- lhava comigo no meu disco, DJ Soneca e Léo da XIII, tam- bém estava envolvida no projeto de intercâmbio virtual Iguaçu-Mensil, era tranquilo levá-los para dar continui- dade ao projeto, promovendo um intercâmbio presencial. Quando boa parte do argumento já estava preparado, comuniquei ao Bruno Thomassin, que é francês, estava envolvido na primeira parte do projeto e também iria para a França em maio, que estávamos escrevendo um projeto para viajar para lá, e que eu pretendia fazer uns shows além do projeto Iguaçu-Mesnil e gostaria de con- tar com ele para me ajudar na articulação e para quebrar a barreira do idioma. Ele, como sempre, topou na hora. Depois de acertado com o Bruno, liguei para Ana e contei a novidade. Ela fi cou muito feliz, disse que nos ajudaria em Paris e começou a articular com a Talent et Develope- ment para que nossa passagem por lá fosse produtiva. O Bruno, por sua vez, conversava com a Rute – sua amiga, que trabalha numa associação chamada MJC, na cidade de Nancy – sobre a possibilidade de fechar shows por lá. Ela disse que tentaria arranjar, mas já era quase certo de nós tocarmos em maio na MJC. Se nós fôssemos pode- ríamos fi car num apartamento da MJC exclusivo para os artistas que se apresentam. Terminei de lapidar o pro- jeto e enviamos para o Ministério da Cultura. Fui falar novamente com o Dumontt que já havia man- dado o projeto, ele perguntou se eu precisava de alguma ajuda, estava muito envolvido com a prestação de con- tas do Projovem Adolescente e com a faculdade, quase não tinha tempo. Eu pedi que, se desse, seria bom ele 267Estamos só no início ajudar na articulação política. Pouco tempo depois recebi a notícia de que o projeto estava aprovado. Todos deveriam providenciar o passaporte e os outros docu- mentos solicitados. O Dumontt e o Léo da XIII resolveram esse problema rápido, eu ainda precisava do certifi cado de reservista. Fui na Junta Militar dar entrada no documento e só depois bus- quei o passaporte. A situação do Soneca era pior do que a minha. Ele não havia se recadastrado na Receita Fede- ral e seu CPF estava inválido. Por pouco ele não conseguiu resolver essa pendência a tempo de viajar. Quando estava tudo certo com o governo, comuniquei ao Dumontt que compraria nossas passagens. Ele pergun- tou em que dia iríamos, eu disse dia 31 de maio. Ele se assustou, a data da viagem estava muito próxima, e per- guntou quanto tempo fi caríamos na França. Quando eu respondi trinta e cinco dias, ele se assustou novamente. Era muito tempo fora. O Projovem consumia muito o nosso tempo. Além disso, ele cursava administração na UFRRJ, como poderia fi car 35 dias longe da universidade? De qualquer modo, Dumontt disse que tentaria resolver, inclusive pediu que eu comprasse as passagens. Em cima da hora a Rute confi rmou um show na MJC no dia 29 de maio, comprei a passagem para dia 25. Quando o Dumontt comunicou aos professores que fi caria fora da faculdade por mais de 30 dias porque iria pra França, todos libera- ram, pediram inclusive presentinhos, mas disseram que ele deveria estudar. Voltaria em época de provas. Soube que o governo francês mandava de volta todos os brasileiros que chegavam a Paris. Liguei novamente para a agência onde eu havia comprado a passagem e a atendente me orientou a fazer um seguro para cada pes- soa que fosse viajar comigo. Pesquisei na internet e vi 268 Enraizados: os híbridos glocais que realmente o governo francês solicitava o seguro, um documento da prefeitura da cidade onde fi caríamos, a reserva num hotel e um cartão de crédito internacional. Eu fi quei preocupado, como pagaria o seguro? A gente não tinha grana pra isso. Liguei para o Ministério da Cul- tura e perguntei se poderia pagar o seguro com dinheiro do governo. Eles responderam que sim, esta condição estava inclusive no edital. Fizemos os seguros, falei com a Rute e com a Ana sobre a possibilidade de conseguirem a carta da prefeitura, e fui ao banco pedir ao meu gerente um cartão internacional. Graças a Deus estava tudo dando certo, até que a irmã do Léo da XIII foi até o Espaço Enraizados saber sobre a viagem. Ela me questionou, fez muitas perguntas, estava preocupada com o irmão. Eu tentei acalmá- la, disse que apesar de o Léo já ter 22 anos estava sob minha responsabilidade. Eu jamais deixaria ele passar difi culdade. Essa era uma oportunidade única pra ele. Então eu disse: “Tem certeza que você quer privar ele disso?” Ela disse que não e pediu pra eu cuidar dele. Sabia que o Léo fi caria irritado quando eu contasse que a irmã dele estivera no Espaço Enraizados. Pedi que ela mesmo contasse e explicase que só falou comigo porque estava preocupada. Esteve lá para saber mais, já que ele não falava em casa. Preparamos muito material para a viagem à França. Além de várias cópias do meu disco, levamos muitas blusas do Enraizados. Mas esperávamos maior retorno do fi lme “Mães do hip-hop”, que estava pronto e com legendas em francês. Então no dia 25 de maio nós quatro fomos pela primeira vez para a França, sendo que para o Léo da XIII e o Soneca era ainda mais emocionante, era a primeira vez que os dois viajavam de avião. 269Estamos só no início Quando chegamos ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, a Ana Massa nos esperava, junto com a Anne, que é advogada. Se houvesse algum problema na imigração a Anne resolveria, era o que nós esperávamos que ela fi zesse. Foi ela também quem nos levou para a estação de trem Gare de l’Est. Passaríamos os primeiros 14 dias em Nancy, cidade que fi ca a uma hora e meia de Paris, onde a Rute estava articulando alguns shows para nós. Todas as pessoas que conhecemos em Nancy são ami- gas do Bruno e da Jane Thomassin. Nos primeiros dois dias passeamos pela cidade, conhecemos o centro his- tórico, fomos a um restaurante árabe, fi zemos compras no supermercado, até que chegou o dia do show na MJC, 29 de maio. O combinado foi que faríamos a apresenta- ção e depois o fi lme “Mães do hip-hop” seria exibido. O Bruno me apresentou ao Henry, um senegalês, de apro- ximadamente 1,80m, que toca pandeiro com maestria, e eu o convidei pra participar do meu show. A ideia era o Henry entrar tocando pandeiro no meio da música “Não presto”. Ensaiamos algumas vezes, em nenhuma deu certo, mas mesmo assim decidi colocá-lo no show. Na hora que cantávamos a segunda parte da música, o Soneca parou o beat e o Henry entrou tocando o pandeiro. Eu continuei rimando, foi emocionante, nunca tinha experimentado fazer algo assim nas minhas apresentações. O público foi à loucura, realmente foi muito emocionante. Quando fomos assistir ao fi lme “Mães do hip-hop”, em vez de olhar pra tela fi quei reparando na reação das pes- soas para sentir se o fi lme passava a mensagem que que-ríamos. Quando terminou, as pessoas vieram nos cumpri- mentar, e reparei que somente depois de assistir ao fi lme elas haviam entendido a proposta do Movimento Enraiza- dos. O fi lme cumpria o seu papel até mesmo noutro país. 270 Enraizados: os híbridos glocais Depois que cantei não vendi muitos discos, mas logo que o fi lme acabou a galera comprou uns discos e até autografei alguns. O bom era que o disco, que custava R$6 no Brasil, era vendido por €6 na França. Depois que cumprimos a agenda do show, o Bruno nos levou para conhecer um casal de amigos, Hiogy e Vivane, e suas fi lhas Mimi e Fujiko. Dias depois conhecemos o Poeta, um ótimo músico, que faz parte de algumas bandas da cidade e nos convidou para fazer uma participação num show do Atomic Kids, uma banda de rock liderada por ele, que faz umas inter- venções com rap. No dia 31 de maio quando acordamos, alguém ligou para o Bruno perguntando se os amigos brasileiros já haviam chegado. Ele respondeu que sim e perguntou o motivo da pergunta. O interlocutor explicou que um avião da Air France que saiu do Rio de Janeiro com destino a Paris havia caído no oceano. O Bruno disse que nós já estávamos na França há alguns dias, e desligou o telefone. Quando ele me contou o que havia acontecido lembrei que nós estaríamos nesse voo, a sorte é que a Rute tinha confi rmado o show do dia 29 de maio, por isso comprei a passagem para o dia 26, e não para o dia 31, como já estava defi nido. Deu-me uma sensação ruim. Contei para o Dumontt e o Léo, ambos não fi caram muito preo- cupados, mas quando contei para o Soneca, ele não con- seguia acreditar que pudesse ser verdade. Nossa passagem por Nancy estava sendo muito mar- cante. A vontade e a disponibilidade de conhecer uma nova cultura nos dava a oportunidade de participar de atividades que víamos apenas em fi lmes, como, por exemplo, um piquenique. Fizemos várias amizades em Nancy e gostamos muito de ter passado por lá, mas no dia 9 de junho tínhamos que ir para Paris começar o pro- jeto com a Talent et Developement. 271Estamos só no início A Ana Massa foi para a casa de um amigo e nos empres- tou seu apartamento, que é superpequeno, mas aco- modou cinco adultos (eu, Soneca, Dumontt, Léo da XIII e Bruno) por mais quatorze dias. Além de fazer a articu- lação e produzir várias atividades de que participamos, a Ana, a Anne e a Bettina nos proporcionaram momen- tos únicos. Fazer um piquenique no canal de Lurc, outro piquenique em frente ao museu do Louvre, depois ir ao Louvre, passear pelas margens do rio Sena, fazer um show num Squat e, é claro, conhecer a torre Eiffel. Na primeira vez que estivemos em Blanc Mesnil conhe- cemos a sede da Talent et Developement, uma sala na sede de outra organização do governo chamada La Mai- son des Tilleuls. Neste dia somente vimos o local, Mar- camos a ofi cina de DJ, a apresentação do fi lme “Iguaçu- Mesnil” (sobre o intercâmbio virtual), e um rápido bate-papo com a juventude local. No início a Ana fi cou um pouco preocupada. Ela não poderia nos acompanhar no dia a dia, tinha que trabalhar. Nos ensinou a andar de metrô e de trem, e a partir daí começamos a transitar sozinhos pelas ruas de Paris. No dia 13 de junho começaram as gravações de rap nos estúdios da Talent et Developement. A Ana e a Anne ten- taram organizar um pouco a ordem da gravação, mas eram muitos meninos e todos queriam gravar conosco. A gente chegou no estúdio e começou a escrever as letras de rap. O Léo da XIII queria fazer som com todo mundo, eu ia na energia dele e as músicas saíam muito boas. Funcionava mais ou menos assim: a gente chegava às 10h, cinco garotos e garotas queriam gravar conosco. Escolhíamos um tema; o Léo fazia 16 linhas, eu fazia 16 linhas e os garotos franceses deveriam fazer também as 16 linhas, mas eles não tinham esse padrão, o que difi cultava bastante. Depois das letras escritas a gente 272 Enraizados: os híbridos glocais 273Estamos só no início 274 Enraizados: os híbridos glocais 275Estamos só no início 276 Enraizados: os híbridos glocais gravava, sem mesmo ter decorado a letra. E após a gra- vação, começávamos a escrever outra letra pra gravar com outro cara. Fizemos o som “Respeito”, com uma garota chamada La Peste, que fi cou muito bom, na letra, no beat e na levada. A música está no Portal Enraizados (www.enraizados. com.br) disponível para download. Respeito Léo da XIII Com maior respeito tá ligado parceiro, direto do Rio de Janeiro, Léo da XIII e Dudu de Morro Agudo, tâmo envolvido aqui na Europa com a La Peste, se liga como é que é. Eu não gosto de quem leva e traz meu nome, falar de mim pelas costas, isso é coisa de quem não é sujeito homem passando fome, sonhando com a Cherokee tem uma Preta do lado, mas quer tá casado com a Kelly Key Super rimador, MC, direto da favela história e fi cção emociona quem vive de novela a vida é bela né truta e curte mais quem tem não quem acorda com o galo cantando e pega o trem vai vendo bem, isso daqui não é viagem é Léo da XIII no mic com a trilha inspirada no Sabotage em alta voltagem, nem por isso de gloc não sou perfeito, meu defeito fez meu hip-hop não por ibope, por amor, assim é verdadeiro visão artística no mundo, quem não quer dinheiro? nem pagodeiro, nem roqueiro, nem superstar apenas um moleque pele parda que veio pra fi car Enquanto o sol brilhar e a lua aparecer enquanto o dom permanecer, meu rap te envolver 277Estamos só no início eu vou, e não importa onde eu vou vagabundo não sou o dono da verdade. Filho do dono do mundo Dudu de Morro Agudo Eu vi oportunidade onde ninguém encontrava porque eu passei pela cidade que ninguém habitava eu encarei o leão de frente e ninguém acreditava que eu sairia de pé, enquanto ele se arrasava sou vencedor e já provei mais de uma vez porque eu driblei o terror e acenei pra vocês o neguinho conquistou, o inimigo é freguês a favela tá atuando e dispensando os dublês sou da Baixada, cria da periferia que cria melodia e realiza um sonho por dia. Geral dizia: - Esses malucos são quente! A mente tá carregada, são mais de trinta no pente e consequentemente poesia vira prosa o rap sai da gente a cento e vinte no corsa a gente está contente e minha vida é a prova de que a gente é que cava a nossa própria cova. Essa letra foi feita como uma espécie de desabafo, para mostrar pras pessoas que dá pra virar o jogo. É uma letra que se relaciona com superação, por mais que você faça correto, nunca vai agradar a todos. Sempre haverá uma âncora querendo te levar pra baixo ou te deixar estag- nado em algum lugar. A saída é seguir o seu caminho, fazer aquilo que você acredita, realizar sonhos, essa é a meta. Se você hoje está por baixo e estão pisando em você, não desista. A roda da vida gira o tempo todo, e mais cedo ou mais tarde você vai estar em cima. É como a história do Enraizados ou de vários brasileiros. Eu me sentia muito bem na França. Desde que cheguei sempre fui muito bem tratado e as pessoas se esfor- çavam para poder ajudar e agradar. Talvez fosse por- que já tivéssemos amizade com algumas pessoas, ou 278 Enraizados: os híbridos glocais simplesmente por sermos estrangeiros, as pessoas queriam estar sempre perto de nós. Ali eu percebi que nada é igual a um intercâmbio presencial. Eles nos leva- vam pra almoçar, arrumaram um show para fazermos no estádio de Blanc Mesnil, trouxeram beats para gravar- mos. Além da troca de ideias, a parte mais legal. O DJ Plays deu um mixer que custa R$3.000 para o DJ Soneca horas depois de o conhecer, a Bettina – que é argentina e trabalha num restaurante dentro do museu do Louvre – conseguiu que nós entrássemos de graça no museu e ainda arrumou uma comidinha pra nós no restaurante onde trabalhava, a Anne conseguiu comida e passagem de metrô para nós durante vinte e um dias. Eu e Dumontt éramos os piores alunosno curso de inglês, porque estávamos sempre envolvidos com alguma ati- vidade do Enraizados e não tínhamos muito tempo para nos dedicar aos estudos. Mas foi justamente o nosso inglês que aguentou a barra na França. Era uma salada de idiomas incrível. A Bettina falava espanhol e francês, a Ana português e francês, a gente falava inglês e portu- guês e, como diz o Dumontt, no fi nal de tudo o que salvou mesmo foi a linguagem de sinais. Uma vez demos uma volta pelo bairro 212, e conhecemos uma organização muito legal, onde passamos o fi lme “Mães do hip-hop” para várias crianças. A intenção era exibir o fi lme para adolescentes, mas naquela região existe uma rixa entre bairros e os adolescentes não apa- receram, somente as crianças assistiram. Na hora do bate-papo, muitos deles nem prestaram atenção, mas alguns , especialmente duas meninas chamadas Fanta, que fi zeram várias perguntas como essa: “Como vocês dizem que são pobres e têm casas tão bonitas?” E a gente respondia: “Nossa casa está em obras há mais de 20 anos.” Elas riam e faziam outra pergunta ainda mais engraçada, até que chegaram à pergunta que elas 279Estamos só no início queriam fazer desde o começo. Apontando para o Léo da XIII disseram: “Vamos fazer uma pergunta anônima. Ele é casado?” Todo mundo riu, elas tinham uns 8 anos de idade. Como o Léo é pequeno, elas achavam que ele era criança e se encantaram com ele, que respondeu o seguinte:“Sim, sou casado e tenho uma fi lha quase da tua idade.” Nesse momento todo mundo riu ainda mais. Nossa passagem pela França era intensa, a gente quase não dormia. Pegamos uma época boa, no verão, onde o sol nascia às 5h e só ia embora às 22h, então quando dava 22h achávamos que ainda eram 18h, e entrávamos pela madrugada até perceber que o sol estava nascendo novamente. O fuso horário nos deixou malucos. Sem- pre que dava ligávamos para o Espaço Enraizados para saber como estavam as coisas por lá sem nós. Sabia que quando chegássemos ao Brasil trabalharíamos em tri- plo. Não sei como o Dumontt faria as provas na facul- dade. Ele sequer havia encostado a mão nos livros, nos 35 dias que passamos na França. Eu ligava com frequência para a minha família, que es- tava bastante preocupada com todos nós desde que o avião da Air France caiu, no dia 31 de maio. No mês de ju- nho um monte de aviões caiu pelo mundo afora. Toda vez que passava esse tipo de notícia na televisão fi cavam bem apreensivos na minha casa. Sempre que eu e o Léo ligávamos para o Brasil falávamos também com nossas mulheres, ele com sua esposa, a Kelly, e eu com a minha namorada, a Fernanda Rocha. Tinha dias que o Léo fi cava pensativo num canto, outros ele nem saía da cama. Achei que ele estava entrando em depressão, pensei que pudesse ser saudades da mulher e da família. Convidei ele pra fazer uma letra de rap para as nossas mulheres. Escrevemos, então, a letra abaixo, “Pras pretas”, que teve a participação de Hallima e Amel, cantoras francesas de R&B. 282 Enraizados: os híbridos glocais Pras Pretas Léo da XIII Difícil imaginar como seria um cara como eu se eu não encontrasse um dia alguém como você, preciso te dizer Preta, “mó” saudade de você eu preciso te escrever, sei lá, desabafar entre palavras, só uma pode me confortar te amo, é você que eu clamo quando eu deito na cama é você que eu chamo lembro quando a gente se encontrou pela primeira vez um beijo seu arrancando a minha timidez no seu olhar enxerguei o começo de uma nova vida passo contigo na rua, “as mina” duvida ”- O que esse cara tem? Ela é demais pra você!” quer saber, sou romântico sim também curto lazer vinte quatro horas de prazer, eu e você minha Preta te declaro amor eterno através dessa letra Hallima e Amel La femme de sa vie Cette fl amme qui n’fait que d’agrandir Fonder une famille Finir ensemble réunies « Saodadje » ma promise x 2 Carinho, Carinho Notre enfant sera mon cado Dudu de Morro Agudo Cê sabe que eu te amo né preta, nem preciso falar Se a gente conta nossa história eles vão duvidar às vezes eu não tinha um “din” pra “nós” se divertir e você ainda conseguia me fazer sorrir eu boladão, travado, cheio dos esquemas e você lado a lado resolvendo tudo quanto é problema tem gente que ainda duvida do nosso amor 283Estamos só no início mas um dia eles aprendem, cê vai ver, o tempo é professor sorte grande pra dois amantes o destino garante e a gente segue adiante constante, no fl uxo que a vida levar sem luxo, só tendo o bastante pra gente se amar você é a Preta mais linda que já se ouviu falar as outras se contentem com o segundo lugar porque amar faz mais sentido com você pode esperar porque tem muita coisa boa pra gente viver. Essa letra fi cou muito boa também, tem uma energia especial e de lá da França mesmo a gente já disponibili- zou na internet. As garotas do rap no Brasil adoraram o nosso som. Mas a letra que eu mais gostei de fazer foi a de “Reencontro”, que eu fi z com a Amel. Parecia que eu estava em transe quando escrevi. Consegui passar para o papel tudo o que estava sentindo lá: Reencontro Dudu de Morro Agudo Não importa o idioma e nem mesmo importa o país O que importa é quem a gente ama e o que faz a gente feliz Amor à primeira vista são amizades que a gente conquista E a cada dia que eu passo em Blanc Mesnil, cresce mais a minha lista Quando rolar o “hasta la vista” meu coração vai partir ao meio e quando eu voltar ao Brasil ele vai se refazer, eu creio, tem gente que dá valor a coisas que não têm valor e não dá o mínimo valor às amizades que conquistou Cê entende? É um lance meio espiritual É bem mais do que a cor da pele, vai além do material 284 Enraizados: os híbridos glocais Isso não sai no jornal, você nunca vai ver na TV E a playboyzada por mais que estude, eles nunca vão aprender Que foi um grande prazer conhecer e estar com você Periferia é periferia, provei na fonte mais uma vez Parecia que eu sentia a energia que iria rolar aqui Consegui achar semelhanças entre Morro Agudo e Blanc Mesnil Enquanto estivemos na França, passamos por quatro casas, a última foi a casa de Chong e Marie Pierre. Eles são ótima gente. Viveram no Brasil tempos atrás, o Bruno falou que o Chong foi o engenheiro-chefe que fez a linha do trem ou do metrô do Rio de Janeiro. O Chong quis nos agradar de todas as formas. Abriu os melhores vinhos e champanhes, inclusive teve uma história muito engra- çada, pois a gente não conhecia esse tipo de bebidas. Um dia o Chong abriu uma garrafa de champanhe que não sei qual é o nome, só sei que era bem famosa, por- que ele fez uma propaganda enorme antes de abrir a gar- rafa, colocou na mesa junto com algumas comidas fi nas e um vinho também muito fi no. Tinha todo um ritual pra comer o que no Brasil a gente chamaria de “tira-gosto”. Toda casa em que o Léo da XIII chegava ele se tornava o xodó da família, e na casa do Chong não foi diferente. A Marie Pierre sempre tentava agradar o Léo de alguma forma. Ele sempre tinha que estar na mesa conosco senão tínhamos que ir buscá-lo. Eu não queria beber o champanhe, mas o Chong fez tanto comercial da bebida que não pude recusar, ele poderia fi car triste comigo. Quando ele encheu a minha taça, bebi e fi z uma cara como se aquele champanhe fosse a melhor coisa que eu já tinha bebido em toda a minha vida. Ele nem preci- sou perguntar o que eu tinha achado, só pela minha fei- ção deduziu a resposta. Ao encher a taça do Léo da XIII, 285Estamos só no início foi sensacional, o Léo bebeu, a cara que ele fez foi a de quem estava bebendo água. O Chong então perguntou o que ele tinha achado da bebida. O Léo respondeu: “É né? Boazinha.” E novamente fez cara de que estava bebendo uma coisa qualquer, tipo um refrigerante Simba. Foi o limite pra todo mundo mudar de assunto antes que o Chong tivesse um troço. Depois que exibimos o fi lme “Mãesdo hip-hop” na pre- feitura de Blanc Mesnil nosso último compromisso era produzir e participar da Festa das Associações, o que foi enriquecedor para todos nós, uma produção nossa com a Talent et Developement. Depois que terminamos tudo o que tínhamos planejado voltamos pro Brasil, o Bruno e a Jane Thomassin fi cariam na França por mais alguns meses. 288 Voltando para casa Cada pequena vitória tem de ser celebrada. — Lucília Diniz Quando chegamos ao Brasil, encontramos o Espaço Enraizados totalmente mudado. O que eu e Dumontt tínhamos defi nido foi mudado sem que nos comunicas- sem. Teríamos que arrumar a casa. Já havia convites para participarmos de projetos de parceiros e ainda deveríamos produzir a “Mostra Cultural Enraizados”, nossa contrapartida para o Governo Federal referente à viagem pra França. A “Mostra Cultural Enraizados” foi no dia 26 de setem- bro de 2009. Aconteceram as seguintes atividades: mostra de resultados do projeto de intercâmbio Iguaçu- Mesnil; apresentação de Capoeira com o instrutor do Projovem Adolescente; tenda estilizada de fotografi a; lançamento dos livros “Poesia revoltada”, de Écio Sal- les, “Acorda hip-hop”, DJ TR, com direito a palestra e debate; exibição do fi lme “Iguaçu-Mesnil”; exposi- ção de fotografi as do projeto Iguaçu-Mesnil; inaugu- ração da Biblioteca Enraizados; teatro e show de rap com os grupos do casting da organização. Cerca de 500 pessoas passaram pelo Espaço Enraizados durante a “Mostra Cultural Enraizados”. 289Estamos só no início No dia 15 de novembro de 2009, eu e Dumontt fomos para Santiago, no Chile, participar do projeto Muro Por La Paz, a convite do amigo da Rede Enraizados no Chile, Zerta Rapper, que visitou o Espaço Enraizados em outubro de 2008. Lá encontramos o Dante, grafi teiro de Mesquita (RJ), conhecemos os grafi teiros de Macaé, Muk e Ric, que entraram pra Rede Enraizados, e também reencontramos muitos grafi teiros do Rio Grande do Sul que participaram do projeto “Seis direções”, em janeiro de 2008. Esse evento no Chile materializava bem a nossa Rede Era através dos nossos pontos que a galera se comunicava e se conhecia, a gente colaborava de alguma forma e colo- cava as pessoas em contato. Quando voltamos do Chile continuávamos com a missão de participar de projetos parceiros, e então logo no comecinho de dezembro par- ticipamos do Fórum de Mídias Livres, na Ufes, em Vitó- ria, e da Universidade das Quebradas, na UFRJ, no Rio de Janeiro. Atualmente, executamos o Pontão de Cultura Digital, o Projovem Adolescente, o Pontinho de Cultura, a Biblioteca Enraizados, o Telecentro Comunitário e o fi lme “Round One: Morro Agudo X Comendador Soares”. Temos também projetos de comunicação que envolvem a Revista Enraizados. Estamos reformulando o Portal Enraizados, a Rádio Comunitária e online, e criamos um núcleo de comunicação para mostrar de modo mais efi ciente a evolução de cada projeto e os passos da organização. Faremos mais cópias do meu disco “Rolo compressor”, que esgotou. Prensaremos o DVD do fi lme “Mães do hip-hop” com legendas em português, inglês, espanhol e francês. Contamos com um quadro de excelentes profi ssionais, que já conhecemos há muito tempo, que agora traba- lham conosco. Alexandre de Maio (“Rap Brasil”, “Folha de S.Paulo” e “Revista Raça”), Bruno Thomassin (La 290 Enraizados: os híbridos glocais Casa Loka), Simone, Re.Fem, Léo da XIII, Lisa Castro, além de todas as outras pessoas que são extremamente importantes para um bom desempenho da organização. Este livro termina aqui, mas vamos aguardar a segunda parte em 2020. Nossa história não tem fi m! Anexo Movimento Enraizados por Movimento Enraizados (Frases no twitter) 292 Augusto (Rio Branco – AC) O Enraizados é família de caboclo! Enraizados é poder contar com a rede que te socorre em qualquer lugar do país onde exista um computador conectado, seja no âmago da fl oresta ou no meio do fi m do mundo. Verídico (Boca do Rio/Salvador – BA) O Enraizados se concentra na ideia de que podemos mudar de lugar, mas nossas raízes sempre serão as mesmas. GOG (Ceilândia - DF) Enraizados é o sentimento de transformação arraigado nas comunidades do Rio de Janeiro e nas periferias do planeta se faz atuante. J3 (Vitória-ES) O Enraizados é mais uma iniciativa louvável que surgiu para fortalecer o hip-hop no Brasil, divulgando a grande variedade de talentos da cena nacional e facilitando o nosso intercâmbio. Lamartine Silva (São Luiz – MA) Enraizados é a cadeia de comunicação que nasce no Rio, se espalha pelo Brasil e como uma peste benigna se alastra pelo mundão, pregando não a inclusão, mas uma forte e necessária revolução, em que a cultura e a arte sejam o instrumento de solução. Jéssica Balbino (Juiz de Fora – MG) Enraizados é a raiz da cultura nos becos e vielas do Rio de Janeiro. É arte enraizada no coração dos brasileiros! Gil BV (Teresina-PI) A frase “Nunca deixe de sonhar” foi seguida pelo Enraizados ao pé da letra. Acompanhei toda a luta na 293Anexo construção do que é hoje o maior espaço de cultura digital e alternativa do Rio de Janeiro. Janaina Oliveira (Parada Angélica/Duque de Caxias - RJ) Enraizados é uma rede de pessoas que acreditam na transformação social por meio da cultura e amam construir parte da história hip-hop no Brasil. O Átomo [U-SAL] (Morro Agudo/Nova Iguaçu - RJ) Lembro da minha adolescência ociosa, das confusões em que me meti. Entre mortos e feridos, cá estou, graças a Deus. Ah se houvesse um quilombo como o Enraizados! Jana Guinond (Tijuca/Rio de Janeiro - RJ) Enraizados é um espaço para refl exões que rompe a bar- reira do som, do racismo, da invisibilidade e o principal: conquista o mundo. Samuel Azevedo (Miguel Couto/Nova Iguaçu - RJ) Enraizados é um campo de batalha mitológica, onde nos faz expurgar a metástase da alma e enxergar o rival cometer harakiri. Um ótimo anticoagulante cerebral. Numa Ciro (Santa Teresa/Rio de Janeiro – RJ) Enraizados é o macete loko puxado pelo rap de raiz de Dudu de Morro Agudo, que faz da sua autobiogra- fi a uma rede que tece, por meio da arte, a história dos seus contemporâneos. Pêvirguladez (Duque de Caxias - RJ) Ser “Enraizados” é usar suas origens, seu habitat e sua cultura para reordenar a sociedade, mostrando que a “revolução” parte do nosso interior, e não do exterior. MC Marechal (Niterói - RJ) Enraizados é plantio de futuro... Um só caminho... 294 Enraizados: os híbridos glocais Adriana Facina (Santa Rosa/Niterói - RJ) O Enraizados é a vitória da fé no trabalho criativo e a certeza de que a revolução que construirá um outro mundo virá das periferias. Luiz Eduardo Soares (Rio de Janeiro - RJ) Enraizados são lunáticos maravilhosos numa salinha apertada em Nova Iguaçu conversando com o planeta e evocando os deuses da paz e da justiça. Big Richard (Rio Comprido/Rio de Janeiro - RJ) Enraizadamente o Enraizados subverte a ordem e reconstrói a autoestima dos carenciados, reconectando de Sul a Sul a esperança. É tudo nosso! Hannah Lima (Flamengo- RJ) Enraizados é algo que brota da terra e se expande em direção ao universo. Raízes fi ncadas e mentes em expansão criativa. Marcus Vinícius Faustini (Santa Teresa/Rio de Janeiro - RJ) Os Enraizados são um bando de botocudos!!! Alexandre Taurus (Petrópolis/Natal - RN) Enraizados é um movimento cultural democrático que despertou em mim uma forma de escrever que vai além do rap. Transparência e amor pelo hip-hop. Edjales Fama (Porto Velho-RO) O Movimento Enraizados é uma inovação no conceito de rede sociais. Ultilizando a internet como meio para essa inovação, consegue articular informação, políticas públicas, cultura, arte, comércio justo e etc. sempre em uma linguagem acessível e jovem. 295Anexo Débora Bós e Silva (Bento Gonçalves-RS) O Enraizados é um movimento que se preocupa com seus membros,busca fazer atividades de cunho social utilizando estratégias como a informação e a cultura, de forma a mostrar que a participação popular pode se dar por diversos meios, possibilitando uma transformação na sociedade. Fabiana Menini (Porto Alegre – RS) Conheço o Enraizados, acredito no Enraizados e tenho certeza da força e do poder de transformação deste grupo, que de sua comunidade muda o mundo. Noise Dee (Menino Deus/Porto Alegre - RS) Enraizados é ser forte. Ter o conhecimento como alicerce e capacidade de reação. É lutar pela essência e mudar esse mundão. Dimenor (Parque Bristol/São Paulo – SP) O Enraizados e o hip-hop chegaram para romper barreiras e contrariar o que o sistema burguês impõe. O Enraizados é o sucesso de uma vida de vitórias, estudos e amizades. Alessandro Buzo (Itaim Paulista/São Paulo - SP) Enraizados é você ser do hip-hop e pensar grande. Se fosse pra pensar pequeno era melhor curtir axé! Enraizados é ser líder! Jurandir Fernandes (São Paulo – SP) O Movimento Enraizados é como uma grande árvore onde cada galho representa uma história, atitude, opinião, respeito e humildade. MC Taike (Palmas - TO) Enraizados é a gente poder ajudar a nossa comu- nidade com o pouco de conhecimento que cada um possui na mente. 296 Enraizados: os híbridos glocais Zerta Rapper (Peñalolen/Santiago – Chile) Son un ejemplo para los jóvenes que sueñan con cambiar su país, porque en sus proyectos si logran benefi cios colectivos e integradores. São um exemplo para os jovens que sonham em mudar seu país, porque seus projetos produzem benefícios coletivos e integradores. Bruno Thomassin (Galo Branco/São Gonçalo - RJ/ Nancy - França) Enraizados é coletivo de hip-hop, grupo de rap militante, rede de autoajuda, Centro de Cultura Alternativa, Pon- tão de Cultura, Biblioteca Comunitária... O Enraizados cresce na busca de uma sociedade mais justa onde cada um tenha o seu lugar. MC Kabron (Peñañolen/Santiago – Chile) Movimientos como el de Enraizados son fundamentales en Lationamerica, ya que generan instancias de partici- pacion juvenil, en el ambito del arte y porsupuesto social. Ojala el modelo de Enraizados se pueda copiar en muchos otros paises del cono sur un afectuoso, saludo desde Chile hermanos mios de parte del Mc Kabron, Felix Bezares. Movimentos como o Enraizados são fundamentais na Amé- rica Latina, pois geram instâncias de participação juvenil no âmbito artístico e, claro, social. Tomara que o modelo seja adotado em muitos outros países da região. Saudações afetuosas do Chile, irmãos, do Mc Kabron, Felix Bezares. Ana Massa (Paris - França/Belo Horizonte - MG) Tive o prazer de conhecer o Movimento Enraizados, em 2008, em Morro Agudo. Encontrei portas abertas e pessoas inteligentes e comprometidas com uma verda- deira transformação social. Em 2009, estivemos juntos 297Anexo na França, quando o Movimento Enraizados fez prova do seu profi ssionalismo, transformando a experiência em Nova Iguaçu em uma contribuição generosa para a refl exão e a mobilização dos manos, dos frères de Blanc Mesnil. É o Movimento Enraizados fazendo rede, articulando jovens e trabalhando para um mundo onde as relações sejam mais justas e igualitárias. Edilasio (Cazenga / Luanda - Angola) Enraizados é um espaço de interação cultural mais voltado ao hip-hop, onde podemos dar nossas opiniões, e que nos faz sentir jovens de personalidade fi rme. Ecio Salles (Olaria / RJ) Enraizados é um abalo sísmico que propõe o ritmo da dança e mistura os ingredientes; é gente junta, movi- mento de cardume, melodia de enxame. Letícia Almeida (Copacabana / RJ) Enraizados é protagonismo revolucionário, resistência, criatividade, coragem, uma linda estória de amor. Célio Turino (DF) Enraizados é a cultura brasileira sendo escrita por quem a faz. Def Yuri (RJ) Enraizados é ser integrado. É se ver enquanto parte de uma fonte que integra percepções e ações em prol da transformação em comum. Queen Odara (RJ) Enraizados redireciona futuros dando novo sentido às vidas!!! 301 Posfácio Conheci pessoalmente o Dudu de Morro Agudo em janei- ro de 2010, apesar de já conhecer o trabalho do Enraiza- dos há muito tempo. Quando tivemos a chance de con- versar um pouco logo vi que tínhamos muito em comum. O respeito por suas ideias veio de imediato e o convite para dar um workshop e conhecer o Enraizados foi ma- ravilhoso. Logo em seguida, estimulado pela cineas ta Re.Fem, o convidei para se apresentar no 4º Festival de Hip-Hop do Cerrado, em Brasília. A minha maior impressão sobre o Dudu não foi a apre- sentação maravilhosa que ele fez, mas a humildade que ele teve de, antes e depois do seu show, andar no meio de um público de mais de 15.000 pessoas só para sen- tir o calor humano das pessoas presentes e descobrir novos motivos para seguir em frente. É impossível não gostar do Dudu. Esse cara humilde, sincero, verdadeiro, idealista e, acima de tudo, um visionário. DJ Raffa (Brasília - DF) Imagens: índice e créditos P.26-27 Dudu de Morro Agudo na 3ª série, com 8 anos foto: Acervo pessoal P.28 Dudu de Morro Agudo na formatura do 1º grau, com os amigos Luciano Gomes à esquerda e Márcio ao centro foto: Acervo pessoal P.29 Dudu de Morro Agudo na Comercial Lubi Peças, aos 14 anos, quando trabalhava no setor fi nanceiro foto: Acervo pessoal P.34 Dudu de Morro Agudo em seu aniversário de 18 anos, com os amigos Luciano Gomes, Fernandinho e Bruno foto: Acervo pessoal P.35 Dudu de Morro Agudo na discoteca “Must”, em Nova Iguaçu, com Fernandinho foto: Acervo pessoal P.41 Dudu de Morro Agudo com os colegas de trabalho do Lava Jato, no bairro Camari, em Nova Iguaçu foto: Acervo pessoal P.47 Dudu de Morro Agudo na rua de casa com os amigos Fábio, Alex Pneu e Fernandinho foto: Acervo pessoal P.52-53 Na Petrobras Distribuidora, onde fazia estágio foto: Acervo pessoal P.54-55 Dudu de Morro Agudo com os primos Wilson e Felipe e o amigo Dedé Barbosa na festa que fazia na rua de casa foto: Acervo pessoal P.64-65 O amigo desenhista e rapper Wilson Nenem foto: Dudu de Morro Agudo P.66-67 Rodrigo Dimenor foto: Acervo Movimento Enraizados P.71 Portal Enraizados foto: Acervo Movimento Enraizados P.79 Grafi te do Enraizados no bairro Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados P.85 Matéria no Jornal O São Gonçalo foto: Acervo Movimento Enraizados P.92-93 Matéria na revista Megazine, do Jornal O Globo foto: Acervo Movimento Enraizados P.94 Matéria na revista do SESC de Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados P.95 Capa da Revista Rap Brasil foto: Acervo Movimento Enraizados P.100 Alessandro Buzo e Dudu de Morro Agudo durante o lançamento do livro Suburbano Convicto, no Itaim Paulista, em São Paulo foto: Acervo Movimento Enraizados P.101 Léo da XIII foto: Acervo Movimento Enraizados P.105 Lisa Castro e Átomo, do grupo U-SAL, durante apresentação no evento Raiz do Hip-Hop, no bairro Cerâmica, em Nova Iguaçu, em maio de 2004 foto: Acervo Movimento Enraizados P.109 Matéria com Alessandro Buzo foto: Acervo Movimento Enraizados P.115 Def Yuri, Dudu de Morro Agudo e Fábio ACM dentro do avião rumo a Porto Alegre foto: Acervo Movimento Enraizados P.124 Ministro Gilberto Gil durante o Fórum Social Mundial, em 2005 foto: Dudu de Morro Agudo P.126 Dudu de Morro Agudo e Claudio Prado dando palestra durante o Fórum Social Mundial, em 2005 foto: Acervo Movimento Enraizados P.127 Estúdio do Centro de Referência do Hip-Hop, em Teresina, no Piauí foto: Acervo Movimento Enraizados P.136-137 Participantes da primeira reunião do Movimento Enraizados em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.143 Grafi teiro Tihkin durante o 4º Encontrão, em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.153 Os Enraizados durante o Fórum Mundial de Educação, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados P.154-155 Matéria na Revista Rap Brasil foto: Acervo MovimentoEnraizados P.164-165 Matéria no Jornal O Dia foto: Acervo Movimento Enraizados P.168-169 O rapper maranhense Lamartine Silva e o cineatra francês Lahzari durante entrevista no quadro Janela do Enraizados, na Rádio Trocipal Solimões, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados P.180 Taffarel, Aércio, Sebá, Kapella, Dudu de Morro Agudo e Joe durante tributo ao mano Ita, em Mesquita (RJ) foto: Acervo Movimento Enraizados P.181 Luiz Carlos Dumontt com as crianças do bairro Nova Era foto: Acervo Movimento Enraizados P.189 Homenagem do governo do Estado do Rio de Janeiro ao Movimento Enraizados foto: Acervo Movimento Enraizados P.194 Dudu de Morro Agudo e Tiago Borba na quadra do CIEP 117 fotógrafo: Luiz Carlos Dumontt P.206 Galera do Enraizados com as crianças do bairro Ouro Preto foto: Acervo Movimento Enraizados P.207 Galera do Enraizados assistindo ao fi lme “E o meu direito ao emprego?” foto: Acervo Movimento Enraizados P.214-215 Primeira fotografi a do Espaço Enraizados foto: Acervo Movimento Enraizados P.216-217 Matéria na Carta Capital foto: Acervo Movimento Enraizados P.225 Encontro de juventude na FASE foto: Acervo Movimento Enraizados P.232 Prefeito Lindberg Farias e Luiz Carlos Dumontt durante a inauguração do Espaço Enraizados, em abril de 2008 foto: Acervo Movimento Enraizados P.233 Terno (Enraizados SP), Big W e Dudu de Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.234-235 Alessandro Buzo, Átomo, Kall Gomes e Lisa Castro foto: Acervo Movimento Enraizados P.240-241 Luiz Carlos Dumontt fi lmando a passeata contra a dengue, em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.244 Re.Fem, Lisa Castro e Marcela (Dona da Arte) foto: Acervo Movimento Enraizados P.249 Américo Córdola, Edjales Fama, Dudu de Morro Agudo e Luiz Carlos Dumontt durante reunião sobre o Prêmio Cultura Hip-Hop, em Brasília foto: Acervo Movimento Enraizados P.256-257 Dudu de Morro Agudo contando a história do Movimento Enraizados para jovens que vieram do Chile para conhecer a organização foto: Acervo Movimento Enraizados P.263 Equipe do Projovem Adolescente, em 2009 foto: Acervo Movimento Enraizados P.272-273 Luiz Carlos Dumontt, Hyogi, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII e DJ Soneca, em Nancy, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.274-275 Dudu de Morro Agudo mostrando o cartaz do seu show nas ruas de Paris, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.280-281 DJ Soneca, Dudu de Morro Agudo e Léo da XIII durante show em um Squat, em Paris, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.286-287 Léo da XIII, Bruno Thomassim (ao fundo), Chon, Marie Pierre, Jane Thomassim, Dudu de Morro Agudo e Luiz Carlos Dumontt na casa do Chon, em Medon, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.290 Dudu de Morro Agudo, em Santiago, no Chile, durante o evento Hip-Hop Por La paz, que entrou para o Guinness Book foto: Acervo Movimento Enraizados P.298-299 Galera do Enraizados durante o Oitavo Encontrão foto: Acervo Movimento Enraizados P.306 Dudu de Morro Agudo foto: Alexandre de Maio Sobre o autor Dudu de Morro Agudo começou com 14 anos de idade na cultura hip-hop. A identifi cação imediata com a lin- guagem da periferia, as lutas de classe, a discrimina- ção social e racial tão cantada nos raps o ajudaram a construir uma consciência crítica e cidadã, retirando-o da margem social para que pudesse ajudar outros ado- lescentes que, assim como ele, também tinham um his- tórico de exclusão cultural. A sua eloquência de líder colocou-o cara a cara com aquilo que consideramos o primeiro milagre do Enraizados: transformar três cartas escritas a mão livre em uma rede de articulação multi- cultural e intercontinental. A Rede Enraizados não foi criada nem inventada, foi des- coberta, aprimorada e maximizada sob a inconfundível liderança desse “preto de conceito”, que consegue unir a liderança juvenil, a articulação artística, a coordenação de projetos e a amizade à vida prática. Do Rio Branco a Poá, de São Luís ao Rio de Janeiro. Se militância e supe- ração têm nome, pode chamá-lo de DMA. Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Imprinta Express em novembro de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identifi car e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identifi cação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.