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2a edição | Nead - UPE 2010 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife Jaeger, Dirce Letras: Morfossintaxe I/Dirce Jaeger. - Recife: UPE/NEAD, 2009. 56 p. ISBN 978-85-7856-051-6 1. Morfologia 2. Sintaxe 3. Formação e Classificação de Palavras 4. Classes Gramaticais 5. Educação à Distância I. Universidade de Pernambuco, Núcleo de Educação à Distância II. Título J22l CDD 415 Impresso no Brasil - Tiragem 150 exemplares Av. Agamenon Magalhães, s/n - Santo Amaro Recife - Pernambuco - CEP: 50103-010 Fone: (81) 3183.3691 - Fax: (81) 3183.3664 Reitor Vice-Reitor Pró-Reitor Administrativo Pró-Reitor de Planejamento Pró-Reitor de Graduação Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Pró-Reitor de Extensão e Cultura Prof. Carlos Fernando de Araújo Calado Prof. Reginaldo Inojosa Carneiro Campello Prof. José Thomaz Medeiros Correia Prof. Béda Barkokébas Jr. Prof.ª Izabel Cristina de Avelar Silva Prof.ª Viviane Colares S. de Andrade Amorim Prof. Álvaro Antônio Cabral Vieira de Melo UNIVERsIDADE DE PERNAmbUCo - UPE NEAD - NÚCLEo DE EDUCAÇÃo A DIsTÂNCIA Coordenador Geral Coordenador Adjunto Assessora da Coordenação Geral Coordenação de Curso Coordenação Pedagógica Coordenação de Revisão Gramatical Administração do Ambiente Coordenação de Design e Produção Equipe de design Coordenação de suporte EDIÇÃo 2010 Prof. Renato Medeiros de Moraes Prof. Walmir Soares da Silva Júnior Prof.ª Waldete Arantes Prof.ª Silvania Núbia Chagas Prof.ª Maria Vitória Ribas de Oliveira Lima Prof.ª Patrícia Lídia do Couto Soares Lopes Prof.ª Anahy Samara Zamblano de Oliveira Prof.ª Angela Maria Borges Cavalcanti Prof.ª Eveline Mendes Costa Lopes. José Alexandro Viana Fonseca Prof. Marcos Leite Anita Sousa Gabriela Castro Rodrigo Sotero Romeu Santos Adonis Dutra Afonso Bione Prof. Jáuvaro Carneiro Leão 5 5 Morfossintaxe Prof.ª Dirce Jaeger Carga Horária | 60 horas eMenta • Caracterização dos campos da Morfologia e da Sintaxe • Princípios de análise mórfica (sintaxe da palavra) • Processos de formação de palavras: abordagem tradicional e abordagem inovadora • Critérios de classificação das palavras: morfológicas, sintáticas e semânticas • Classes gramaticais: definição e funcionamento textual-discursivo objetivo Geral Caracterizar a área e o objeto dos estudos morfossintáticos no âmbito das discipli- nas linguísticas e possibilitar a aprendizagem crítico-reflexiva dos princípios funda- mentais da análise mórfica bem como da estrutura e formação dos vocábulos da língua portuguesa. objetivos específicos • Reconhecer a importância histórica e as implicações práticas dos estudos morfossintáticos para o ensino e a aprendizagem da língua portuguesa; • Desenvolver um conjunto de saberes úteis e necessários à análise sintática das palavras e orações do português; • Desenvolver um olhar crítico sobre os princípios apresentados e uma perma- nente reflexão sobre sua aplicabilidade e relevância dentro da prática do(a) professor(a) de língua portuguesa; • Abrir (novos) horizontes de pesquisa sobre questões estruturais da língua e seu ensino. 7Capítulo 1 a MorfoloGia e seu objeto princípios da análise Mórfica Prof.ª Dirce Jaeger Carga Horária | 15 horas beM-vind@ a esta nova etapa!! Desde já, saiba que é uma imensa alegria iniciar esta nova jornada de estudos e descobertas com você. E como sempre acontece entre companheiros de via- gem, teremos tempo para trocar ideias e nos conhecermos melhor. Também não faltarão oportunidades para contribuir com o processo de crescimento e aprendizagem dos demais companheiros de estrada. Tudo isso nos torna, desde já, parceiros neste processo que ora iniciamos: os estudos morfossintáticos. Para muitos de nós, as disciplinas de morfologia e sintaxe da língua portuguesa não trazem as melhores recordações. Se perguntássemos a alguns de vocês o conteúdo dessas lembranças, muito provavelmente não se esqueceriam de listar a memorização de um sem fim de fenômenos que acometem as palavras, suas muitas terminações e possibilidades de composição (e decomposição). Sabíamos, durante os anos de nossa vida escolar, que aqueles conhecimentos sobre flexões, derivações e composição das palavras tinham por objetivo tornar- nos “melhores” usuários de nosso idioma nacional. Mas o fato é que nem todos nós chegamos a compreender “como” isso se daria... O que eu tenho a lhe dizer, para início de conversa, é que o desafio continua! Só que agora você “mudou de lado”. Já não deve considerar-se tão somente aluno(a) de língua portuguesa. Você é também um(a) pesquisador(a). Além do já conhecido desafio de compreender alguns dos princípios mais relevantes da análise mórfica, está convidado(a) a dar um novo sentido a estes conhecimen- tos; a torná-los úteis e necessários a sua formação como docente da língua por- tuguesa; a descobrir como, de fato, podem contribuir para a aprendizagem do português. Aproveite muito bem todos os espaços de leitura, pesquisa, reflexão e exercício que esta disciplina lhe proporcionará. As lacunas que, porventura, encontre nesta abordagem, deverão ser tomadas como um convite extra à pesquisa, à produção de (novos) conhecimentos e à discussão acadêmica e científica. Como já manifestamos, é uma enorme satisfação iniciar esta nova etapa com você. Sinta-se bem entre nós! Saudações morfológicas a tod@s! 8 Capítulo 1 sanduíche), este passaria a ser pão + manteiga + queijo + presunto + manteiga + pão. Muito provavelmente, estes pesquisadores se perguntariam até que ponto a ordem de entrada desses elementos poderia sofrer alterações (sem deixar de ser um sanduíche). Investi- gariam, entre outros aspectos, que resultado traria a incorporação de algum novo elemento (uma alface, mostarda, um ovo frito...) ou o que aconteceria se al- gum dos elementos fosse permutado por outro (se, por exemplo, uma salsicha substituísse o recheio). Outra abordagem enfocaria, ainda, cada uma das partes constitutivas do sanduíche, buscando divi- di-las em partes cada vez menores. Buscaria, por exemplo, chegar à composição total do pão. En- contrariam nele: trigo, água, sal, fermento,... . Bus- cariam identificar os elementos que se reuniram para constituir o queijo, o presunto e a manteiga. Em outras palavras, a atenção desses pesquisado- res estaria voltada para a estrutura interna do san- duíche, sem nenhum interesse pelos usuários ou quaisquer outros contextos ou esferas de análise. Você deve estar impressionado(a) em ver como um simples sanduíche “dá tanto pano pra manga”. Isso se deve ao fato de que novos olhares sobre o objeto tendem a suscitar diferentes pontos de vista, ainda que estejamos nos referindo a um mero sanduíche! Mas o que isso pode ter a ver com a morfologia que ora se inicia? Esta metáfora nos faz ver que um mesmo objeto pode ser estudado sob vários aspec- tos, todos igualmente interessantes e necessários. A linguística é a ciência que se ocupa em estudar cientificamente a língua sob perspectivas as mais diversas. Alguns se ocupam mais do “uso”; dos “usuários” e das “condições/contexto” do exercí- cio dessa língua. Você já deve ter ouvido falar da sociolinguística; da análise da conversação; da aná- lise do discurso; da pragmática; entre outras áreas de estudos linguísticos. Todas elas se interessam em estudar os aspectos sociodiscursivos e ideológi- cos relacionados ao(s) uso(s) e usuários da língua. Outros, por sua vez, preferem estudar “a língua em si” (lembra do sanduíche em si?). Esta área de estudos corresponde ao conjunto mais antigo de disciplinas linguísticas. São abordagens iniciadas edesenvolvidas por civilizações muito antigas: Índia, Grécia e Roma. Nesse bloco, encontramos: fonéti- ca, fonologia, sintaxe e morfologia. São disciplinas preocupadas em encontrar leis e princípios que permitam conferir regularidade e previsibilidade às 1. a MorfoloGia e seu objeto 1.1 MorfoloGia: o Que veM a ser? As comparações nunca são perfeitas, mas, muitas vezes, ajudam a descomplicar algumas realidades. Imaginemos a sugestiva imagem de um sanduíche. É exatamente isso que você leu: um sanduíche. E como seria esse sandu- íche? Visualize-o junto comigo: primeiro uma fatia de pão; depois uma camada de manteiga; então a fatia de queijo; em seguida, a de presunto; por último, o contato com a manteiga da outra fatia de pão, com a qual termi- namos a composição do nosso lanche. Agora, afastar-nos-emos por alguns instantes da posi- ção de “consumidores” dessa delícia para transformá- lo em uma metáfora útil à abertura de nosso estudo sobre morfologia. Você sabia que esse sanduíche po- deria servir de objeto para uma série de pesquisas? Por exemplo, alguns estudiosos poderiam investigar as diferentes reações das pessoas frente a ele. Poderiam verificar, entre outras coisas, o modo como cada um “devora” seu sanduíche; as expressões de agrado/desa- grado que emitem; a maneira como homens e mulhe- res o saboreiam; as formas de consumi-lo entre pessoas oriundas de diferentes classes sociais, faixas etárias ou regiões geográficas do Brasil ou do planeta. Você deve concordar que seriam múltiplas as maneiras de se estu- dar o “uso” e a “percepção” desse sanduíche por parte dessas diferentes comunidades de consumidores. Por outro lado, outros pesquisadores poderiam concentrar seu olhar exclusivamente sobre o “san- duíche em si”, sem levantar quaisquer questiona- mentos sobre as maneiras de consumi-lo ou seus efeitos sobre os eventuais “comedores”. Poderiam, por exemplo, interessar-se por identificar as partes que o compõem. Nesse caso, de uma unidade (o Fo nt e: w w w .p ro gr am am om en to sc om je su s.c om /R efl ex õe s 9Capítulo 1 coisas da língua (afinal, não podemos sair por aí cha- mando qualquer coisa de sanduíche, não é?). Dentro deste conjunto de disciplinas linguísticas preocupadas em conhecer o funcionamento da es- trutura da língua, encontram-se a morfologia e a sintaxe, hoje tratadas conjuntamente por morfos- sintaxe. A palavra – o “sanduíche” da morfologia – tem hoje seu estudo integrado ao contexto. Voltando à metáfora com que abrimos essa discus- são, o estudo da “composição e estrutura do san- duíche” modernamente incorpora alguns elemen- tos relativos ao contexto (os acompanhamentos do sanduíche, em que ocasião será saboreado, etc.), à história e às condições de uso/usuários. Em outras palavras, a morfologia é uma dessas disciplinas lin- guísticas que estuda a “língua em si”, que se ocupa em conhecer as partes que compõem a palavra e os fenômenos relacionados à formação das palavras de uma língua. A sintaxe faz a mesma coisa, só que em uma dimensão mais ampliada: a frase e a oração. Portanto, a visão tradicional que aparentemente não permite o diálogo entre as diversas abordagens linguísticas pouco a pouco vai dando lugar a uma abordagem mais interdisciplinar. Hoje em dia, não se concebe a ideia de um estudo da “língua em si” totalmente desvinculado de seu contexto social, his- tórico e político. Isso nos coloca em condições de enriquecer muitíssimo os estudos morfossintáticos que constituem esta disciplina. Não deixaremos, ob- viamente, de resgatar as importantes categorias de estudo e classificação morfêmica, mas sem perder a oportunidade de agregar valor ao que estamos estu- dando. E isso deverá ser feito, mesmo que os conte- údos de morfologia e sintaxe lhe pareçam, a princí- pio, conhecimentos inquestionáveis e fechados. Na grade curricular de seu curso, há duas discipli- nas voltadas às teorias de análise morfossintática (morfossintaxe I e morfossintaxe II). A primeira delas tratará mais de morfologia, enquanto a sin- taxe será melhor aprofundada em morfossintaxe II. É hora, portanto, de conhecermos um pouco mais sobre o percurso desta disciplina. 1.2 uM pouco de História... A morfologia, compreendida como o estudo das for- mas das palavras de uma língua, nem sempre teve este nome. Entre os gregos e latinos, as questões re- ferentes à forma das palavras de uma língua eram estudadas em três partes: flexão (declinatio naturalis), derivação (declinatio voluntaria) e sintaxe. Por flexão, entendemos as variações acidentais que os nomes apresentavam, por exemplo, no latim. Ao estudar língua latina você percebeu que era muito importante conhecer o que significavam as diferentes terminações que uma palavra recebia. Era a termina- ção que nos permitia saber a função sintática que esta palavra exercia na oração (para recordar o assunto, rever os “casos” e declinações do latim). Na gramática latina, portanto, era a palavra a unidade central míni- ma a ser estudada. Era ela também a base da constru- ção sintática do enunciado. Tudo estava na palavra. Somente no século XIX (aproximadamente 1860) é que “morfologia” foi utilizado como termo linguís- tico para os estudos de flexão e derivação das pala- vras. Sua origem está nos estudos evolucionistas de Darwin. Portanto, é na biologia que os gramáticos e filólogos1 da época encontraram um nome que pudesse expressar sua intenção: descobrir a origem da língua(gem) através do estudo da evolução das palavras desde o indoeuropeu2 até seus dias. Outro grande incentivo aos estudos morfológicos da época foi o acesso à gramática de Panini, es- Fo nt e: h tt p: // br .g eo ci tie s.c om /c ei au ff/ xx vi i_ se m an a_ es tu do s_ cl as si co s.j pg 1Filologia: “ciência histórica que tem por objeto o conhecimento das civilizações passadas através dos documentos escritos que elas nos deixaram”. (DUBOIS et all, Dicionário de linguística – ver Referências) 2Línguas indoeuropeias: Conjunto de línguas que teriam se originado de uma língua primitiva comum, jamais conhecida em sua forma original. Nesta família linguística, encontramos desde o antigo sânscrito (Índia) até as principais línguas europeias. Daí porque se diz que o português faz parte da família indoeuropeia. 10 Capítulo 1 “entendíamos”, se você olhar direitinho, ainda pode sofrer divisões. É possível dividi-lo em qua- tro partes. Observe: entend – í – a – mos São estas partes mínimas a que uma palavra pode chegar que recebem o nome de MORFEMAS. Por- tanto, a palavra “entendíamos” está formada por quatro morfemas: “entend + í + a +mos”. Não se preocupe se o modo como se dividiu esta palavra ainda lhe parece confuso. Pouco a pouco, iremos desvendando juntos os princípios de decomposi- ção das palavras em morfemas. É interessante observar que esta oração poderia se transformar em outras, mediante a substituição de qualquer de seus elementos por outros. Em outras palavras, cada uma dessas subdivisões ou unida- des significativas mínimas às quais chegamos no exemplo anterior poderia ser substituída por ou- tras. É a propriedade que os gramáticos/linguistas chamam de eixo paradigmático. Observe: “NÓS” poderia ser substituído por “eu”, “tu”, vocês”, ... “MAL” poderia ser substituído por “bem”, “pre- cariamente”, “pouco”, “muito”, ... “ENTENDÍAMOS” poderia ser substituído por “enxergamos”, “lemos”, “falas”, ... Nesse caso, formaríamos enunciados como estes: “Eu entendia mal”; “Eu entendia pouco”; “Vocês enxergam mal”; “Tu falas muito”, entre outras tantas substituições possíveis. Resumindo, o eixo paradigmático nos faz ver que as possibilidades de substituição das unidades sig- nificativas dentro de nosso idioma são múltiplas. Ainda dentro da primeira articulação, percebe-se que há possibilidades de variações dentro deoutra perspectiva: o eixo sintagmático. Agora, percebe-se que há, para cada uma destas unidades significati- vas, a possibilidade de realizar diferentes funções sintáticas dentro das orações. O “nós” não precisa ser sempre o sujeito das orações em que ele apare- ce. Até mesmo a palavra “mal”, que em nossa ora- ção cumpre o papel de advérbio, poderia mudar de função, se ocupasse outro lugar na cadeia da frase. Quer ver como isso seria possível? Observe crita por volta do século V a.C.. Esta obra auxi- liou no processo de compreensão das estruturas do sânscrito, antiga língua hindu, supostamente apresentada como “parente próximo” do grego e do latim. Ao contrário da tradição gramatical greco-romana, a gramática de Panini reconhecia a estrutura interna das palavras e a ocorrência de ra- ízes e afixos. Desta forma, os estudos comparativis- tas do final do século XVIII deram muita atenção às estruturas internas das palavras. Mais do que a morfologia, foram os estudos fonológicos que li- deraram as pesquisas desse período. Seu objetivo principal era o de comprovar, como já foi dito, o parentesco entre o sânscrito, – antiga língua dos textos sagrados da cultura indiana - o grego e o latim. Nos Estados Unidos, os estudos morfológicos ti- veram seu apogeu nas décadas de 40 e 50. Alguns dos principais nomes associados à morfossintaxe são Bloomfield e Chomsky. Entre os brasileiros que mais destacadamente se dedicaram ao estudo estrutural da língua, encontra-se Joaquim Mattoso Câmara Jr., ao qual faremos referência, algumas vezes, ao longo dos capítulos. 2. princípios da análise Mórfica 2.1 a dupla articulação da linGuaGeM Os estudiosos da língua concluíram que os enun- ciados encontravam-se articulados em dois pla- nos: a primeira e a segunda articulações (segundo classificação proposta por Martinet). Para enten- der melhor essa distinção, tomemos o seguinte enunciado: “Nós entendíamos mal” Podemos analisar este enunciado sob dois diferen- tes prismas, diriam os gramáticos. Um primeiro olhar chamaria nossa atenção sobre a sequência de palavras organizadas nesta sentença. Neste primeiro plano, ou primeira articulação, o enun- ciado aparece organizado linearmente em uma se- quência de unidades significativas, a saber, “nós + entendíamos + mal”. Será que conseguiríamos dividir ainda mais essas três unidades que identi- ficamos há pouco? Na realidade, as palavras “nós” e “mal” já constituem mínimas unidades signifi- cativas. Não podem ser subdivididas. Mas o verbo 11Capítulo 1 zem parte da primeira articulação da língua(gem). A unidade mínima de análise e sentido, para a primeira articulação, é o MORFEMA. E de que trata, então, a segunda articulação da linguagem? Esta tem a ver com os sons e não mais com unidades significativas. No exemplo acima: “Nós entendíamos mal”, tomemos a palavra “nós”. Ela está constituída, dentro da segunda ar- ticulação, de três fonemas /n/, /ó/, /s/. Esta sub- divisão já não busca o sentido das partes, mas os sons. Aqui também se verifica a possibilidade de combinações. A substituição do primeiro fonema por /s/ ou /v/, por exemplo, já produz mudan- ças significativas na palavra. Fazendo as substitui- ções sugeridas, formaríamos estas novas palavras: “sós” e “vós”. Os estudos de fonética e fonologia situam-se no campo desta segunda articulação da linguagem, e sua unidade mínima de análise é o FONEMA. Nesta disciplina, não nos dedicaremos a analisar palavras e enunciados com base na se- gunda articulação da linguagem. Isso foi assunto da disciplina de fonética e fonologia. Vimos, portanto, que os FONEMAS são unidades mínimas sonoras e são abordados dentro da segunda articulação, conforme sugestão dos estudiosos da lín- gua “em si”. Aprendemos, também, que os enuncia- dos podem ser analisados a partir de suas unidades mínimas de sentido, os MORFEMAS, dentro da chamada primeira articulação da linguagem. A fim de fixarmos um pouco mais o que se apren- deu sobre a primeira articulação da linguagem – porque é aqui que se desenvolvem os estudos morfossintáticos - que tal fazermos juntos um bre- ve exercício de segmentação (divisão em partes)? Tomemos o seguinte enunciado: “Ela escuta o som bem baixinho” Considerando a primeira articulação deste enunciado, em quantas unidades significativas, você o dividiria? Em seis? Isso mesmo: Ela + escuta + o + som + bem + baixinho 1 2 3 4 5 6 como o “nós” e o “mal” podem “jogar em várias posições” nos diferentes enunciados: Nós terminamos a tarefa. (sujeito) Dirigiu-se a nós ao término da reunião. (objeto indireto) Tu diriges mal. (advérbio) O mal se espalhou rapidamente. (sujeito) O eixo sintagmático3 nos recorda que as unidades significativas de uma língua nem sempre desem- penham a mesma função sintática no interior do sintagma ; tudo depende da posição que estas uni- dades (palavras) ocupam no enunciado. Quando observamos o eixo sintagmático, toda a nossa atenção se volta para o plano horizontal da frase. Nesse momento, você deve estar se lembran- do dos exercícios de análise sintática que realizava no colégio. E, de fato, tem tudo a ver com eles: o eixo sintagmático refere-se às diversas funções sintá- ticas que uma palavra pode desempenhar dentro do conjunto do enunciado. Portanto, enquanto o eixo paradigmático se refere à permanente possibilidade de substituição das uni- dades significativas (palavras) por outras unidades significativas dentro do amplo repertório ofereci- do pelo nosso idioma; a análise do eixo sintagmá- tico (ou das relações sintagmáticas) nos revela que as palavras não estão “determinadas” a exercer sempre a mesma função sintática no interior do enunciado. Isso nos faz lembrar porque a “decoreba” não aju- da muito na hora de compreender a sintaxe da língua portuguesa. Devemos desenvolver, antes de mais nada, a capacidade de “pensar” os fenôme- nos da língua. Concluindo, a primeira articulação chama nossa atenção para a existência de segmentos significa- tivos mínimos (morfemas) nas palavras bem como para as variações de sentido que estas unidades podem sofrer dentro do plano do enunciado. Em outras palavras, os estudos de morfossintaxe fa- 3Por sintagma, entende-se toda combinação de palavras que consegue formar uma unidade dentro da estrutura da frase. Por exemplo, no enunciado: “A pobre menina espera a volta de sua mãe”, identificam-se algumas destas unidades: “A pobre menina” (sintagma que cumpre a função de sujeito); “espera a volta de sua mãe” (sintagma que cumpre a função de predicado); “a volta de sua mãe” (sintagma na função de objeto direto); “de sua mãe” (sintagma na função de complemento). 12 Capítulo 1 Algumas destas unidades se mostram indivisíveis. Veja: as palavras “o”, “som” e “bem” já se encon- tram em sua forma mínima. E por que se diz que as palavras “ela”, “escuta” e “baixinho” não se encontram em sua forma mí- nima, indivisível? Porque estas ainda podem ser segmentadas. Observe: • El-a: o “el” funciona como base comum a ou- tras palavras: • el+e (ele) • el+as (elas) • el+es (eles) • d+el+e (dele) • escut-a: o “escut” é a base de formação de dife- rentes tempos/pessoas do verbo “escutar”: • escut+o (escuto) • escut+a+mos(escutamos) • escut+a+rí+a+mos (escutaríamos) • baix-inh-o: o “baix” pode formar outras pala- vras, dependendo dos afixos que receba: • re+baix+ a+do (rebaixado) • baix+o (baixo) • baix+a+s (baixas) Esta decomposição, tendo por base a primeira ar- ticulação, dá uma ideia mínima de quantos ele- mentos (morfemas) podem compor as palavras. Percebe-se, sem muita reflexão, que alguns destes morfemas identificam o gênero, enquanto outros dão a ideia de plural ou mesmo de grau (como o diminutivo–inho). Nos verbos, os morfemas podem definir pessoa, número, modo e tempo verbal. São pequenas partes carregadas de signifi- cação. Daí porque se diz que os morfemas são as unidades mínimas de análise das palavras. 2.2 forMas livres, presas e dependentes Voltemos, uma vez mais, ao esforço de encontrar as unidades significativas de um enunciado e de- pois identificar quais palavras já se acham em sua unidade mínima (morfema) e quais ainda compor- tam subdivisões. Para isso, analisemos as unidades que constituem o seguinte enunciado: “Distinguia-se a voz inconfundível” Quais palavras já se acham em sua forma mínima? “se”, “a” e “voz”. Concorda? Por outro lado, “distinguia” está constituído dos morfemas “distin+g+u+i+a”, porque podemos, ao substituir os morfemas acrescidos ao radical, for- mar outros vocábulos: distingo, distingue, distin- guíamos, distinto, distinção... Quanto à palavra “inconfundível”, o que se sabe sobre sua composição? É possível visualizar, a par- tir de diferentes níveis de segmentação, as seguin- tes formas: in+confundível in+confu+nd+ível Uma vez substituindo estas formas4 e morfemas por outros (ou eliminando algum), teríamos: in- compatível, infeliz, confundível, confuso, confu- são, confundir, confunde,... E agora, gostaria que você observasse um pouco mais detidamente as formas e morfemas resultan- tes do exercício recém-realizado: “se”, “voz”, “ível”, “in”, “i”, “a”, “confu”, “confundível”. Será que to- dos têm o mesmo comportamento na formação das palavras? Haverá formas mais “significativas” que outras? Ou mais independentes? Perguntas como estas geraram algumas teorias sobre as formas e morfemas que compõem as palavras. Bloomfield foi um dos pioneiros a falar de formas LIVRES e formas PRESAS. Veja se você compreende: Formas livres são aquelas que podem, por si sós, comunicar com sentido. Por exemplo, a forma (que é também morfema) “voz”. Suponha que você esteja comentando a performance de um novo cantor de música sertaneja com seu melhor amigo. Ele, inconformado com suas críticas ao novo astro, pergunta: “Mas, me diga, pra você o que é que fal- ta nele afinal?” E você responde: “Voz”. Resposta mais do que convincente e significativa, não acha? A forma “voz”, portanto, é considerada uma forma 4 “forma” é uma categoria diferente da de morfema. A “forma”, embora às vezes coincida com o morfema (por ex. sol; a; que), leva em consideração a frase como um todo, coisa que uma análise mórfica tradicional não precisa fazer. Enquanto isso, o “morfema” sempre se refere à mínima unidade de análise da palavra. 13Capítulo 1 livre, porque não precisa andar junto a outras para adquirir valor semântico (significado). O mesmo ocorre com a forma “confundível” que também apareceu em nosso exercício de segmentação. As formas presas, por sua vez, são aquelas que só funcionam na medida em que aparecem ligadas a outras. Você é capaz de identificar algumas que apareceram em nossa última análise? Observe o “in” e o “ível”. Adquirem sentido quando se jun- tam com outros morfemas ou com outras formas livres: “infeliz”, “invencível”, “comestível”,... . Isso caracteriza as chamadas formas presas. Está explicado porque algumas gramáticas, ao se re- ferirem à formação das palavras, dizem que os vocá- bulos simples de nossa língua podem ser constituí- dos de uma forma livre indivisível (luz, pó, voz,...); de duas ou mais formas presas (im+pre+vis+ível); ou de uma forma livre e uma ou mais formas pre- sas (in-feliz, atual-mente, in-feliz-mente). Mas, como classificar o “se” e o “a” que aparecem em: “Distinguia-se a voz inconfundível”? Mattoso Câmara chama nossa atenção para essas formas. Elas, segundo o autor, não podem ser consideradas formas livres nem presas. Não são livres, porque carecem de significação em si mesmas. Não é comum atribuir-se ao artigo (ou à preposição) “a” uma existência comunicati- va isolada. O mesmo ocorre ao pronome “se”, tomado isoladamente. Por isso, não são formas livres. Por outro lado, como já se antecipou, o “se” e o “a” tam- bém não são formas presas. A explicação é simples: as duas formas, mesmo que se apresentem ligadas a outras formas livres, gozam de relativa liberdade. O “se” de “distinguia-se” pode ocupar, em outro momento, uma posição proclítica5 (se distinguia). Assim como o artigo “a” pode afastar-se do termo que acompanha, por exem- plo, quando introduzimos novos elementos entre eles: “a doce e suave voz”. Nesse caso, não se pode dizer que o “a” esteja “preso” ao substantivo a que se refere (voz). A partir dessas reflexões, Mattoso Câmara propõe a ca- tegoria de forma dependente. As formas “a” e “se” não seriam livres nem presas, mas dependentes. Nessa cate- goria, Mattoso inclui o artigo, os pronomes enclíticos e proclíticos, as preposições, a partícula “que”, entre outras. atividade | Sempre é bom colocar em práti- ca o que estamos aprendendo. 1. Em um primeiro momento, divida este pre- cioso pensamento de Cora Coralina em uni- dades significativas6 , sem se preocupar ainda em encontrar os morfemas. Quantos segmen- tos você achou? “FELIZ AQUELE QUE TRANSFERE O QUE SABE E APRENDE O QUE ENSINA” 2. Agora, analise cada palavra separadamente e decida se aquele vocábulo já se encontra em sua forma mínima ou se ainda pode ser dividi- do. Neste caso, faça a segmentação até conhe- cer os morfemas que o compõem: FELIZ AQUELE QUE TRANSFERE O QUE SABE E APRENDE O QUE ENSINA 3. Para finalizar, classifique cada segmento mí- nimo (morfema) que você encontrou no exercí- cio 2 em forma livre, presa ou dependente. 4. Repita os mesmos procedimentos com cada um dos enunciados abaixo. Isso vai ajudá-lo(a) a fixar estas categorias!! Talvez surjam dificul- dades à hora de identificar alguns morfemas. Afinal, ainda temos “muito chão” pela frente até conhecermos bastante sobre análise mor- fológica. Mesmo assim, faça o melhor que pu- der!! “Conta-me coisas da atualidade” “Mercadorias importadas e nacionais” 5 Próclise (posição proclítica): quando o pronome aparece antes do verbo (te amo; nos veremos; se odiavam). Ênclise (posição enclítica): quando o pronome vem depois do verbo (divertir-me; pedi-lhe; propõem-se). 6 Fizemos uma divisão em unidades significativas logo no início da explicação sobre a primeira articulação. Se tiver dúvidas, volte ao exemplo dado. 14 Capítulo 1 O CONCRETISMO, movimento literário de vanguarda liderado por Décio Pignatari, Haroldo Campos e Augusto Campos, na década de 50 (séc. XX), supervalorizou (e subverteu) os morfemas. Era a chamada poesia concreta. Nela, aboliam-se os versos tradicionais mediante a supressão das pre- posições, conjunções, pronomes, etc. Nascia uma poesia objetiva, concreta, feita quase que exclusi- vamente de substantivos e verbos. Aboliam-se os tradicionais princípios de uso do espaço da folha de papel e as margens das palavras, das sílabas, dos morfemas... Diziam seus seguidores que esta era uma linguagem compatível com os novos tempos e a industrialização que avançava rapidamente.... Veja com seus próprios olhos (porque esta era a proposta dos concretistas: o poema objeto-visual!) terra (Décio Pignatari) ra terra ter rat erra ter rate rra ter rater ra ter raterr a ter raterra terr araterra ter raraterra te rraraterra t erraraterra terraraterra nãoMevendo ( Augusto de Campos) Você está convidado(a) a comentar esta proposta dos concretistas brasileiros. Informe-se mais sobre este interessante movimento da vanguarda literá- ria brasileira e, sobretudo, descubra a poesia dos morfemas de nossa língua portuguesa!! Sejam eles presos, livres ou dependentes... Quem sabe você até nos surpreenda com alguns versos concretos de sua autoria!? 2.3 MorfeMas lexicais e MorfeMas GraMaticais (ou flexionais) Depois de estudarmos as categorias: formapresa, forma livre e forma dependente, apercebemo-nos que sempre há a possibilidade de se lançar dife- rentes olhares sobre a estrutura das palavras (os concretistas que o digam!!). Pode-se tão somente olhar a palavra isoladamente, tentando descobrir em quantas e que partes é possível dividi-la. Como também é possível levar em consideração a “vida” destes pedaços no universo da frase e, até mesmo, da língua. Daí porque se chegou à classificação das formas livres, presas ou dependentes. E agora, convido você a mais uma vez observar os morfemas que se evidenciam a partir do processo de segmentação (divisão em partes buscando isolar as unidades mínimas). Tomemos como exemplo apenas o vocábulo: “bela” Uma vez subdividido em morfemas, muito provavel- mente chegaríamos todos à mesma conclusão: “bel – a” . Também não seria difícil formar outras palavras a partir do mesmo radical: “bel”. Você concorda? bel-ez-a em-bel-ez-ar bel-dade bel-a-mente bel-e-zura SAIBA MAIS! h t t p : / / e d u c a t e r r a . t e r r a . c o m . b r / l i t e r a t u r a / litcont/2003/04/22/001.htm h t t p : / / e d u c a t e r r a . t e r r a . c o m . b r / l i t e r a t u r a / litcont/2003/04/22/001.htm_ poesia.htm http://www.algumapoesia.com .br/poesia/poesianet066. VOCÊ SABIA... ...um dos mais controverti dos movimentos lite- rários brasileiros deu um n ovo sentido aos mor- femas da língua portugue sa: viraram poesia!!! 15Capítulo 1 Observe que há uma parte invariável em todos os paradigmas: BEL. Os morfemas que se unem a “bel” acabam modificando as palavras, mas “bel” nunca perde seu significado essencial. O sentido de “bel” está assegurado pelo dicionário. Sempre será o mesmo: beleza. Note que todas as palavras que têm por radical “bel” devem carregar em sua essência o sentido do belo (beleza, embelezar, bel- dade, belamente, belezura, etc). Logo, o radical é considerado um morfema lexical, porque se man- tém ligado a seu sentido dicionarizado. E o que dizer, então, dos demais morfemas que se uniram a “bel”? Todas as partículas que se soma- ram a “bel”, muito embora ajudem a conferir sig- nificação às novas palavras que formam, não têm seus significados dicionarizados. É o caso de “eza”, “zura”, “”mente”, “em”, “dade”, etc. Estas partí- culas não moram no dicionário, mas nas gramá- ticas da língua. Por esse motivo, são considerados morfemas gramaticais ou flexionais. São aqueles que marcam os fatos gramaticais da língua: plural, singular, masculino, feminino, tempos verbais, pes- soas dos verbos, aumentativos, diminutivos, etc. São formas presas que transformam as palavras (a partir do seu radical/morfema lexical) em substan- tivos (beleza), verbos (embelezar), advérbios (bela- mente) ou outras categorias gramaticais. O que você acha de praticar um pouco isso que se acabou de estudar? Vimos que, dentro das palavras, há um radical, também chamado de morfema lexi- cal, porque tem tudo a ver com o léxico da língua, o qual recebe a adição de outros morfemas – os gramaticais. Identifique o morfema lexical dentro de cada uma destas palavras, isolando-o, conforme o exemplo dado. Exemplo: desocupado: ocup (é o morfema lexical) 1. barriguda: 2. retrato: 3. descampado: 4. sortudo: 5. amabilíssimo: 6. predisposição: 7. impontual: atividade | E agora, faremos uma atividade7 bastante desafiadora. Vamos conhecer e estu- dar uma língua jamais vista. Uma língua in- ventada especialmente para que treinemos o processo de segmentação: Observe os dados da língua “A” e depois faça os exercícios propostos abaixo: ikalveve: casa grande ikalsosol: casa velha ikalcin: casa pequena petatveve: capacho grande petatsosol: capacho velho petatcin: capacho pequeno ikalmeh: casas petatmeh: capachos a) Segmente os vocábulos (isole o morfema lexical dos morfemas gramaticais): b) Quais os elementos que significam “gran- de”, “velho”, “pequeno”? c). Quais os elementos que significam “casa” e “capacho”? 4. d) Qual o morfema indicativo de número? 2.3.1 Princípios básicos e auxiliares da análise mórfica Os morfemas gramaticais ou flexionais às vezes dão um pouco mais de trabalho à hora de segmen- tá-los. Sabemos que são morfemas gramaticais, mas às vezes não temos muita certeza de “quantos diferentes pedaços” os compõem, não é verdade? Observe o verbo: “jogaríamos” Não é difícil isolar o radical (morfema lexical): “jog”. A partir deste momento, sabemos que o “arí- amos” reúne os morfemas flexionais (gramaticais) que se somam ao radical “jog”. Mas como saber quantos e quais morfemas flexionais “se escon- dem” no “aríamos”? Existirá algum princípio que nos auxilie a separar mais facilmente o morfema lexical dos morfemas gramati- cais ou flexionais e reconhecer as subdivisões destes? 7 Adaptação do exercício proposto por Souza e Silva & Koch (2009 a, p. 35) 16 Capítulo 1 Os gramáticos falam de alguns princípios básicos para se proceder à análise mórfica (subdividir as palavras em morfemas lexicais e gramaticais). O primeiro deles vem a ser a COMUTAÇÃO. Veja- mos no que consiste: Comutar significa “trocar ou trocar de lugar”. Vol- temos ao verbo “jogaríamos”. Este é um verbo da primeira conjugação (terminado em AR). Obser- vemo-lo agora junto aos verbos “beber” e “pedir” (terminados em ER e IR respectivamente). jogaríamos beberíamos pediríamos Em um primeiro momento, isolemos o morfema lexical de cada um deles. Teremos então: jog-aríamos beb-eríamos ped-iríamos Facilmente reconhecemos o “jog”, “beb” e “ped” como os morfemas lexicais que receberam a adição dos morfemas flexionais. Você consegue ver a vogal temática que caracteriza as três conjugações verbais? O “a” da primeira conjugação (AR); o “e” da segun- da (ER) e o “i” da terceira (IR). Para facilitar a visua- lização, elas aparecem em negrito e isoladas abaixo: jog-a-ríamos beb-e-ríamos ped-i-ríamos Acabamos de visualizar um importante morfema flexional: a vogal temática. Nem sempre ela apare- ce. Mas neste tempo verbal (futuro do pretérito), a vogal temática se fez bem presente. E o “ríamos”? Será este um morfema flexional úni- co ou ainda pode ser mais dividido? Nesta hora, a COMUTAÇÃO também pode nos ajudar bas- tante. Comparemos o “jogaríamos” com outros tempos verbais do mesmo verbo. jogaríamos jogávamos jogaremos Veja os diferentes morfemas que surgiram na me- dida em que fomos trocando de tempo verbal: jog-a-ría-mos jog-á-va-mos jog-a-re-mos Considerando os diferentes tempos verbais em que se encontram, concluímos que o “ria” é a marca do futu- ro do pretérito em oposição a “va” do pretérito imper- feito e do “re” do futuro do presente. Cada um deles, portanto, vem a ser um morfema flexional que dá a informação de tempo verbal. Diferentemente, o “mos” que aparece igualmente nos três tempos, é o morfema que traz a marca da primeira pessoa do plural: nós. Foi a comutação que nos auxiliou na tarefa de sepa- rar o morfema lexical dos gramaticais e estes entre si. Primeiro, comparamos o verbo “jogaríamos” com verbos de outras conjugações e assim isolamos a vo- gal temática. Posteriormente, conseguimos visuali- zar as marcas de tempo, modo, pessoa e número, co- mutando com diferentes tempos verbais do mesmo verbo. Como percebemos, esse princípio se mostra especialmente útil para a segmentação dos verbos. Outro princípio de análise mórfica vem a ser a ALOMORFIA. Esta nos faz ver que há certas “irregularidades” dentro da realização de alguns morfemas. Por exemplo, dizemos que o plural das palavras do português se faz acrescentando o “s” às formas dos nomes em singular. Isso é só uma meia verdade. Esta “regra” serve para cama/camas; livro/livros; pé/pés; entre muitas outras palavras do português. Mas não se aplica a lençol/lençóis; voz/vozes; etc. Issoquer dizer que os diversos mor- femas de uma língua não são obrigados a se apre- sentarem sempre do mesmo modo (como um seg- mento fônico imutável). Até mesmo os morfemas lexicais (aqueles com significado dicionarizado) podem apresentar variantes. É o caso de “ordem” que, dependendo da palavra, pode se realizar como “orden” ou “ordin”. Quer ver? ordem - ordenar - ordinário A estas variações possíveis para a realização dos morfemas se dá o nome de ALOMORFES. Algu- mas alomorfias acontecem em razão do “som” de algumas palavras. Por exemplo, o prefixo ”in” vira “i” ou “im” em algumas palavras. Temos “incapaz” e “infeliz”, mas temos também “imutável” (e não inmutável); “imundo” (e não inmundo). Da mesma forma, tampouco teremos “inprodutivo” ou “inpe- dimento”. São casos em que a consoante nasal “m” da palavra seguinte inviabiliza a permanência do 17Capítulo 1 “n” do prefixo. Essa alomorfia é também chama- da de mudança morfofonêmica, porque ocorre para cumprir com alguns princípios fonético-fonológi- cos da nossa língua. Usando de palavras mais sim- ples, sabemos que antes de “p” teremos “m” e não “n”. As diferentes realizações do morfema in/i/im são, portanto, exemplos de alomorfia. O desconhecimento da existência destes alomorfes, muitas vezes, acaba gerando alguns mal-entendidos ou simplificação das descrições gramaticais durante a derivação vocabular, flexões nominais ou verbais. Por exemplo, algumas pessoas não conseguem ver que o “in” de “infeliz” e o “im” de “improdutivo” são, em realidade, o mesmo morfema. Agora, não só estamos em condições de afirmar isto como tam- bém sabemos que ocorre aí um caso de alomorfia motivada por uma exigência fonético-fonológica: antes de P e B impõe-se o som /m/ e não /n/. Antes de conhecermos um novo aspecto a ser le- vado em conta durante o processo de análise mór- fica, seria muito bom exercitar um pouco mais a segmentação de palavras e a recém-aprendida no- ção de alomorfia. atividade8 | Observe agora esta outra língua to- talmente desconhecida e especialmente constituída para treinarmos os princípios de análise mórfica: filkas – forte mufilkas – fortalecer kelad – fraco mekelad – enfraquecer batar – surdo mebatar – ensurdecer fusat – escuro mufusat – escurecer pesal – velho mepesal – envelhecer a) Qual o afixo que aparece nos dados? Ou seja, qual o morfema flexional que se somou ao morfe- ma lexical? b) Que ideia encerra este afixo? c) Esse afixo apresenta variantes alomorfes? d) Dadas as palavras posas (pobre) e fejas (doido), como você diria empobrecer e endoidecer nesta nova língua? Outro importante fenômeno que nos ajuda a explicar alguns aspectos da análise mórfica é a NEUTRALIZA- ÇÃO. Você já deve ter percebido alguns casos de am- biguidade entre algumas conjugações verbais do portu- guês. Veja este exemplo: “Falamos mal de você” A partir desta oração, não é possível precisar o tempo verbal. Será que eles falaram mal de você no passado ou isso se refere a uma ação presente? Essa dificulda- de de compreensão se deve ao fato de que, no plano formal, verifica-se uma neutralização entre o morfe- ma “mos” que se refere à primeira pessoa do plural do verbo falar no presente do indicativo e aquele que marca a primeira pessoa do plural do mesmo verbo no pretérito. A esta indefinição do morfema dá-se o nome de neutralização. Não há como definir com cla- reza o tempo verbal, porque, nestes exemplos, não há distinção (diferença) entre os morfemas em questão. Neste caso, só o contexto dará pistas mais claras para a compreensão do enunciado: “Falamos mal de você ontem à tarde.” (pretérito) “Falamos mal de você desde aquele dia.” (presente) O mesmo ocorre com outros tempos/pessoas na con- jugação verbal. É o caso da confusão que se gera entre a primeira e a terceira pessoa em: • CANTAVA (pretérito imperfeito) eu cantava (1ª pessoa do sing.) / ela-ele-você cantava (3ª pessoa do sing.) • VIVERIA (futuro do pretérito) eu viveria (1ª pessoa do sing.) / ela-ele-você viveria (3ª pessoa do sing.) Essas noções de comutação, alomorfia e neutralização são importantes auxiliares no processo de análise mor- fológica das palavras. Por um lado, elas nos ajudam a segmentar os vocábulos da língua e, por outra parte, não nos deixam esquecer que as anomalias e irregularidades fazem parte da realidade da língua. Por trás desses fenô- menos, encontra-se o processo histórico e evolutivo que acompanha todos os seres que você conhece. Com a lín- gua não poderia ser diferente. A língua não é só escrita. A língua é, antes de mais nada, realizada na fala. E a fala tem o poder de modificar a escrita, mesmo que isso demore muito tempo para aparecer nas gramáticas e nos dicionários. Muitas das “irregularidades” que encontra- remos na formação das palavras de nossa língua escrita estão explicadas pela história evolutiva desta língua, pela influência dos modos de falar (realizações linguísticas) dos usuários desta língua, entre outros motivos ligados às modificações que o passar do tempo causa em todos nós. Caso contrário, como explicar aquela novidade que apareceu logo no início de nosso capítulo? Lembra-se do bem-vind@ com que os saudamos inicialmente? 8 Adaptação do exercício proposto por Souza e Silva & Koch (2009 a, p. 35) 18 Capítulo 1 Ou o tod@s com que nos despedimos? Este é apenas um exemplo de como o marcador de gênero o/a, às ve- zes, sexista e excludente, pode encontrar saídas criativas em alguns contextos. Mas este será um bom tema para outra conversa! O fato é que 11 entre 10 brasileiros sonham com uma língua livre de irregularidades, anomalias e as tais exceções à regra, não é verdade? Mas basta enxer- gar que as línguas assim como tudo o que você conhece têm uma história e uma vida evolutiva que não admi- tem nem a homogeneidade, nem a invariância nem a eterna regularidade. De vez em quando, no decorrer de nossa disciplina, trataremos de refrescar nossa memória quanto a esta verdade básica: tudo, até mesmo a língua portuguesa, tem sua história marcada por mudanças e passos evolutivos. E isso, acreditem, pode ser muito sau- dável e estimulante! Como já diria nosso pensador Raul Seixas: prefiro ser essa metamorfose ambulante... referÊncias LAROCA, Maria Nazaré de Carvalho. Manual de morfologia do português. São Paulo: Pontes, 2001. LYONS, John. Linguagem e linguística: uma in- trodução. Tradução: Marilda Averburg & Cla- risse de Souza. Rio de Janeiro: LTC, 1987. MACAMBIRA, José Rebouças. A estrutura mor- fo-sintática do português. 4 ed. São Paulo: Pio- neira, 1982. MATTOSO CÂMARA JR. Estrutura da língua por- tuguesa. 40 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1970. SOUZA E SILVA, Maria Cecília; KOCH, Ingedo- re. Linguística aplicada ao português: morfolo- gia. 17 ed. São Paulo: Cortez, 2009. SOUZA E SILVA, Maria Cecília; KOCH, Ingedo- re. Linguística aplicada ao português: sintaxe. 15 ed. São Paulo: Cortez, 2009. 19Capítulo 2 19Capítulo 2 processo de forMação das palavras no portuGuÊs (parte 1) Prof. Dirce Jaeger Carga Horária | 15 horas Que boM revÊ-l@s!! Neste novo capítulo, continuaremos nossa jornada pelos bastidores (e palcos!) da língua portuguesa. Mais especificamente, ampliaremos nossos conhecimentos sobre os processos que se propõem a explicar a formação do léxico do português. O primeiro capítulo já trouxe muitas novidades. Imaginem quantas descobertas nos reserva este novo material... Na primeira parte, tratamos sobre a origem dos estudos morfossintáticos bem como aprendemos alguns conceitos fundamentais dentro dos estudos morfológi- cos. Lembram ainda dos morfemas e dos alomorfes? Saberiam diferenciar as formas livres das formas presas e das dependentes? Todas essas categorias continuarão a ser usadas. Elas agora fazem parte do “morfologiquês” que estamos tratando de aprender... A partir deste capítulo, entraremos em um terreno mais familiar: a formação das palavrasde nosso léxico. É bem certo que não esgotaremos o assunto neste capítulo, mas começaremos, entre outras coisas, a ver o “trabalho” dos prefixos e sufixos na formação das palavras do português. Também traremos, à discussão, algumas questões bastante caras aos linguistas. Referimo-nos ao reconhecimento da constante tensão entre a forma e o uso das palavras no cotidiano dos usuários da língua. Sabemos que a aplicação de regras e princípios gramaticais não pode se dar à margem do uso vivo e dinâmico da língua. Esse é um tipo de discussão que, muito provavelmente, estava fora da agenda dos estudos morfossintáticos de décadas passadas. Bom, esperamos que se sintam novamente “em casa” com esta disciplina! Como já foi dito na introdução do nosso curso, aproveitem todas as oportunida- des para enriquecer seus estudos. Mantenham sempre uma postura de estudantes (e não meros alunos) e uma permanente ação de pesquisa (e não de simples leitu- ra). Agreguem valor a tudo o que vocês fizerem!! Dessa forma, TUDO fica mais interessante... 20 Capítulo 2 1. MorfoloGia lexical e MorfoloGia flexional: teoria e uso A diferenciação entre morfema lexical e gramatical (flexional) já foi alvo de nossas reflexões no capítulo anterior. Naquela ocasião, aprendemos que há um morfema lexical que serve de base para a formação de outras palavras. Usamos o exemplo do morfema lexical “bel” que, acrescido de outros “pedacinhos” (morfemas gramaticais), dava forma a palavras do tipo: BELeza, emBELezar, BELdade, emBELezare- mos, BELas, etc. Entretanto, percebe-se que todos eles giram em torno do conceito de “belo”, uma vez que o morfema lexical BEL traz em si este significado. Os morfemas que se somam ao morfema lexical, den- tro do exemplo dado, podem dar origem a diferen- tes vocábulos da língua portuguesa ou simplesmente revelar número, gênero e outras informações sobre tempo e modo verbais. Alguns deles ajudam a formar verbos (embelezar); outros fazem nascer substantivos (beleza); ou adjetivos (bela). Mas, não se esqueçam de que essas categorias são bastante flexíveis. Nem sempre “belo” funcionará como adjetivo. Isso acaba confundindo muito a cabeça de quem busca leis imu- táveis para o funcionamento da língua portuguesa. Olhem para estes exemplos: Compraste um belo vestido! O belo é para ser admirado. A palavra em destaque não poderá ser enquadrada numa mesma categoria (adjetivo) nos dois casos. En- quanto funciona como adjetivo, qualidade do vesti- do, no primeiro enunciado, revela-se um substantivo na segunda oração. Isso significa que, em qualquer situação de análise dos vocábulos, textos e enuncia- dos da língua portuguesa, não poderemos deixar de observar estes três aspectos: a forma, a função e o uso. Muitas vezes nos apegamos demasiadamente à forma. Por exemplo, aprendemos que inho/inha servem para formar o diminutivo dos nomes, não é verda- de? Mas olha o que acontece se vocês, suponhamos, fizessem uso dessa forma diminutiva para se referirem à baixa estatura de sua professora: Aquela mulherzinha é minha professora de inglês. Todos concordamos que não é um vocábulo muito feliz para se referir positivamente a uma mulher. A forma está correta, ou seja, a gramática me autoriza a usar o morfema INHA para expressar o diminutivo dos nomes femininos, mas as regras de uso (aprendi- das no convívio social) tornam a palavra em questão inapropriada. Dentro de nossa cultura, “mulherzi- nha” carrega uma carga semântica (de significado) um tanto quanto pejorativa: mulher de má reputação ou desprezível. Este é um exemplo de como a função esperada pela correta aplicação dos morfemas da lín- gua portuguesa, às vezes, entra em conflito com as “regras” do bom uso de nosso idioma. Para comuni- car que a professora tem uma estatura baixa, o enun- ciador teria que considerar outras alternativas dentro da língua: Aquela senhora baixinha é minha professora de inglês. Ou até mesmo: Aquela baixinha é minha professora de inglês. Mas por que incluir essas preocupações com o uso da língua dentro dos estudos morfológicos? Porque hoje em dia entendemos que não basta a apropriação de todas as possibilidades de derivação e decomposição dos vocábulos de nossa língua ou o conhecimento de todos os fenômenos morfológicos que acometem as palavras, se não soubermos quando, onde e como utilizá-las eficientemente no cotidiano de nossa práti- ca discursiva. Vão pensando sobre isto... vocês terão oportunidade de opinar sobre esse interessante tema em nossos fóruns de discussão. Retomemos, portanto, as reflexões que abriram este capítulo. Com a finalidade de auxiliar na compre- ensão do funcionamento dos chamados morfemas gramaticais e lexicais, os estudos morfológicos cos- tumam organizar-se dentro de um duplo enfoque: a morfologia lexical e a morfologia flexional (gramatical). A partir deste capítulo, conheceremos uma série de classes e categorias morfológicas, todas elas propostas por pesquisadores dos fenômenos morfossintáticos. É claro que nem todos os estudiosos do assunto con- cordam integralmente com as tipologias propostas pelos autores. Isso acontece em todas as áreas do saber: diferentes abordagens podem produzir conclu- sões e princípios não coincidentes. É por esse motivo que vocês são permanentemente chamados a refletir sobre o que está estudando e estimulados a produzi- rem novos conhecimentos (e não só a reproduzi-los!). A morfologia flexional estuda as diferentes formas de uma mesma palavra. Nesse caso, não entram as 21Capítulo 2 situações em que os morfemas criam novas palavras, mas apenas variações de caráter gramatical, como é o caso das marcas de número, gênero ou modos, tem- pos e pessoas verbais. Observe o exemplo: Antigamente estudávamos muitas horas. A morfologia flexional analisa as marcas de plural dos nomes, dos adjetivos e dos verbos não só em relação às palavras em si mas também olhando o conjunto da frase. Há motivos para que o adjetivo “muitas” apareça no plural: sua concordância com o substantivo “horas” que está no plural. Da mes- ma forma, a marca de gênero feminino do “muitas” se dá em função da concordância com o “horas”. Se nossa frase fosse, por exemplo: “Antigamente es- tudávamos muito tempo”, a concordância exigiria a presença da forma masculina singular “muito”, a fim de produzir a concordância adjetivo-nome: “muito tempo”. Do mesmo modo, a morfologia flexional analisará os morfemas flexionais do verbo “estudávamos” não só em relação às marcas de pessoa, número, modo e tempo verbal mas também no que se refere ao contexto da frase. Afinal, foi a presença do ad- vérbio de tempo “antigamente” que proporcionou o surgimento do pretérito imperfeito do indicati- vo. Outro tempo verbal, como você pode verificar nas simulações abaixo, não combinaria muito: antigamente estudamos... antigamente estudaremos... antigamente estudássemos... Talvez pareça estranho o fato de a morfologia dita flexional olhar para além da palavra em si, buscan- do relacionar as marcas de plural, de gênero, etc às exigências de concordância que regem os sintag- mas e as frases como um todo. Mas esta é a perspec- tiva em que trabalha a linguística moderna. Busca relacionar o que acontece no particular da palavra com o universo do contexto em que este vocábulo está inserido e onde ele adquire função e sentido. Lembre-se da permanente relação forma-função-uso da qual não devemos nos ausentar durante nossos estudos morfossintáticos. Mas, e a morfologia lexical? Qual será seu enfoque? Esta olha mais de perto o processo de formação (de- rivação) das palavras. Analisa as modificações de sen- tido que o processo de derivação causa. Por exemplo, as palavras “jogo”, “jogar” e “jogador”. Ainda que tenham em comum o mesmo morfema lexical JOG, são palavras distintas. Além do mais, mesmo que se mostrem idênticasem sua forma, podem exercer dife- rentes funções e sentidos. Observe os exemplos: O jogo será na quadra. (substantivo) Não jogo neste time. (verbo) Queixava-se do marido jogador e beberrão. (adjetivo) Aos quinze minutos de partida, já tínhamos um jogador expulso. (substantivo) Portanto, também a morfologia lexical não deixa de considerar o contexto em que o vocábulo se realiza. Já que lhe interessa as mudanças de função e signifi- cado que as palavras sofrem durante o processo de derivação, é imprescindível identificar os efeitos do conjunto do enunciado. Observem outros exemplos de como se encontram comprometidos alguns sig- nificados de palavras que, aparentemente, deveriam compartilhar o mesmo sentido. Nos exemplos abai- xo, também não encontramos diferenças na forma: a) A professora lhes pediu uma redação de pelo me- nos 20 linhas. b) O pai de Clarinha deixou seu trabalho na reda- ção do Folha da Manhã. c) Os corredores cruzaram a linha de chegada na maior euforia. d) Os meninos fizeram a maior algazarra nos corre- dores do hotel. Nota-se que, apesar da identidade formal, as pala- vras grifadas em a/b; c/d, não têm o mesmo sig- nificado. Isso não quer dizer que, em sua origem, não se encontre uma raiz comum. No caso de “re- dação”, por exemplo, este parentesco fica bem cla- ro. Tanto a redação escolar quanto a redação (cor- po de redatores ou lugar para redigir um jornal) referem-se ao ato de escrever. O que queremos enfatizar ao iniciarmos nosso es- tudo dos processos de derivação é que tanto a mor- fologia flexional a partir da análise dos morfemas gramaticais quanto a morfologia lexical a partir da consideração dos sentidos não deixam de considerar o que ocorre na totalidade do enunciado, em uma permanente análise da forma, da função e de sua re- lação com seu uso dentro da comunidade linguística em que o enunciador está inserido. 22 Capítulo 2 Os dois enfoques tratam de conhecer como ocorre a composição das palavras de nossa língua. Os pró- ximos tópicos contemplarão algumas categorias morfêmicas apresentadas nas gramáticas. Percebe- remos que umas, mais do que outras, colaboram para a criação de novos vocábulos para a língua portuguesa. Por outro lado, todas elas deverão ter sua existência e seu funcionamento analisados no contexto de seus enunciados. 1.1 classificação dos MorfeMas Aproveitando o exemplo com que abrimos o primei- ro capítulo, Morfemas são as unidades que aparecem junto ao morfema “bel”, às vezes marcando a diferen- ça singular/plural; masculino/feminino; outras vezes, promovendo o surgimento de novas palavras. Observe: belO – belA – belOS – EMbelEZAR belEZA - belEZURA Algumas gramáticas mencionam quatro tipos de morfemas: classificatórios, flexionais, relacionais e deriva- cionais. Trataremos de explicá-los: 1.1.1 Morfemas classificatórios São as vogais temáticas, cuja função é a de enquadrar os vocábulos em classes de nomes ou verbos. Para os nomes, temos a – e – o, ou seja, em nossa língua, os substantivos e adjetivos tendem a terminar em uma destas três vogais. Observem os exemplos: neve – telhado – cidade – panela – urso – gata floresta – grande – bela – livre Deve estar se perguntando sobre outras termina- ções para os adjetivos e substantivos que vocês co- nhecem: feroz, papel, álbum, fiel, etc. Esses casos são tratados como formas atemáticas (sem a vogal temática). É o que acontece com os nomes terminados em consoante, como os recém citados. Mas os verbos também têm suas vogais temáticas. Recordemos os exemplos trabalhados no primeiro capítulo: jogaríamos beberíamos pediríamos Quando decompomos estes verbos em morfemas, surgem, entre outras coisas, as vogais temáticas a - e - i, relativas aos verbos da 1ª , 2ª e 3ª conjugações: jog - a – ríamos (1ª conjugação – AR) beb – e – ríamos (2ª conjugação – ER) ped - i – ríamos (3ª conjugação – IR) É a vogal temática que aparece “colada” ao morfema lexical e recebe a anexação dos morfemas flexionais. Mas atenção: nem sempre a vogal temática estará vi- sível no verbo. 1.1.2 Morfemas flexionais São aqueles que se somam aos morfemas lexicais de modo que estes recebam as características gramaticais que sua classe permite (nos substantivos: número, gênero; nos verbos: modo,tempo, número e pessoa). São cinco os morfemas flexionais em português: adi- tivos, subtrativos, alternativos, morfema zero e morfema latente. Nomes um tanto quanto estranhos, mas que trataremos de tornar mais familiares a partir das ex- plicações e exemplos que seguem. Aditivos: como o nome já sugere, resultam do “acrés- cimo” de um ou mais morfemas ao morfema lexical. Considerem estes exemplos: a) rapaz - rapazes; instrutor – instrutores b) professor – professora; vendedor - vendedora Nos exemplos trazidos em “a”, vemos que os plurais de rapaz e instrutor são obtidos mediante a adição (acréscimo) do morfema –es. De modo semelhan- te, obtivemos a formação do feminino de professor e vendedor. Nesses casos, foi a adição do morfema –a, que permitiu a formação dos femininos professora e vendedora. Isso explica por que esse tipo de morfema flexional se chama aditivo. Nos verbos, é comum que alguns morfemas aditivos sejam cumulativos. O nome se deve ao fato de que es- ses morfemas “acumulam” mais de uma noção gra- matical em um único morfema. Veja no exemplo: amáramos = amá – ra - mos bebêramos = bebê - ra - mos partíramos = partí- ra - mos O morfema –ra acumula a noção de modo (indicati- vo) e de tempo (mais-que-perfeito), enquanto o mor- 23Capítulo 2 fema –mos acumula as noções de número (plural) e pessoa (primeira do plural). Subtrativos: esses morfemas flexionais, como o nome já sugere, agem pela “subtração” de um segmento. Acontece aqui um movimento contrário ao anterior, em que se processava uma adição (acréscimo). Vejam como se constrói o feminino de “órfão”: órfão (masc.) órfã (fem.) A noção de feminino, em vez de surgir da adição de um morfema, surgiu a partir da subtração deste. Alternativos: neste caso, não trataremos exatamente de morfemas, mas de alternâncias no som (fonemas). Todos já nos apercebemos que, quando passamos a palavra “povo” ao plural, ela não só recebe a adição do –s como também sofre uma alteração no som do “o”. Fale em voz alta essas duas palavras: “povo - po- vos”. Perceberam? O /o/ de algumas palavras mascu- linas é pronunciado de modo mais aberto no plural (e no feminino). Observem outros exemplos: poço - poços formoso - formosos - formosa Alguns estudiosos consideram a alternância fônica nestas palavras como um traço secundário, porque, afinal, as flexões de gênero e número encontram-se demarcadas por morfemas específicos (o – a – s). Mas o mesmo não se aplica ao par: avô - avó Neste caso, não há outro traço distintivo que faça a di- ferença entre os gêneros masculino e feminino. Não há um sufixo marcadamente feminino para caracte- rizar o feminino de “avô”. Se seguisse a lógica, tería- mos “avá” como feminino de “avô”. Mas não é o que acontece. A marca de gênero é indicada unicamente pela alternância de som ó/ô. Aqui se considera a al- ternância como traço primário e distintivo. Morfema-zero (φ): resulta da ausência de determina- do morfema. Foi o que aconteceu com professor/ professora. Quando pensamos no acréscimo do “a”, que acabou formando a palavra “professora”, falou-se de adição. Mas agora estamos fazendo um movimen- to contrário. Como explicar a marca de masculino que traz o vocábulo “professor’? Diz-se que a noção de masculino desta palavra está expressa pela ausência do “a” de “professora”. Essa ausência é representada pelo símbolo φ que significa “conjunto vazio”. Vejam como está representado: professor φ professora Nestes casos, diz-se que há oposição, ou seja, um morfe- ma lexical passa a significar em virtude da ausência do morfema que expressa a significaçãooposta. Por esse motivo, pode-se dizer que “professor” é masculino, por- que está ausente o morfema que marca o feminino(a). De modo semelhante, diz-se que “casa” está no singular, porque está ausente o morfema que marca o plural (s) presente em “casas”, o que estaria assim representado: casa φ casas Só se fala em morfema-zero (representado por φ), quando se reconhece que, em outras palavras, para aquela posição, existe um determinado morfema que marca o número ou o gênero. Morfema latente: nesse caso, também nos referire- mos à ausência de marcas de número e gênero, mas com uma importante diferença. Para essas palavras, não existem morfemas próprios a fim de expressar essas noções gramaticais. É o caso de nomes como: lápis (sem distinção singular/plural) artista (sem distinção masculino/feminino) Referimo-nos à existência de um morfema-latente, porque as marcas de gênero e número dessas pala- vras “existem”, mas só no contexto do enunciado. Quer ver? O lápis azul. (sing.) / Os lápis azuis. (plural) A artista se emocionou. (fem.) / O artista se emocio- nou. (masc.) Só conseguimos distinguir as “marcas” de número e gênero através dos artigos o/os (lápis) e também a/o (artista). atividade | Coloquemos a mão na massa... A fim de praticar os tipos de morfemas gramati- cais de que tratamos há pouco, classifiquem1 os morfemas flexionais encontrados em cada 1 Adaptação do exercício proposto por Souza e Silva & Koch (2009 a, p. 35) 24 Capítulo 2 par de vocábulos: a. freguês – freguesa b. bisavô – bisavó c. o pianista – a pianista d. cirurgião – cirurgiã e. sogro – sogra f. mão – mãos g. o pires – os pires h. compraremos - venderemos 1.2 MorfeMas relacionais Não há muito o que dizer agora sobre esses mor- femas. São morfemas com atuação mais marcada dentro da sintaxe. Trata-se, entre outras formas, dos pronomes relativos, das preposições e conjun- ções. Seu papel é o de ordenar e estabelecer a rela- ção entre as palavras dentro de um enunciado. Não são o tipo de morfema que servirá de base para novas palavras, como os lexicais, nem tampouco são morfemas que se juntam com os lexicais para a formação de novos vocábulos da língua, como o fazem os chamados derivacionais. Terão maior destaque, repetimos, dentro das futuras análises e estudos sintáticos. 1.3 MorfeMas derivacionais Ao contrário do que ocorre com os morfemas fle- xionais, os derivacionais não se encontram ligados a modelos de funcionamento tão regulados. Entra- remos em um terreno da morfologia dos mais inte- ressantes: o das formas de derivação das palavras do português. Não esgotaremos o assunto neste capí- tulo, mas teremos a oportunidade de rever alguns conceitos já vivenciados em seus anos escolares. A partir da aplicação dos morfemas flexionais, con- seguimos, segundo vimos, alterar o número e o gê- nero dos nomes e verbos bem como o modo, o tem- po e a pessoa destes últimos. Isso se dá mediante a aplicação dos morfemas flexionais correspondentes ou, até mesmo, sua supressão ou ausência (se neces- sário, rever os tipos de morfemas lexicais). Percebe- se que as modificações que os morfemas flexionais conseguem promover são, até certo ponto, bastante limitadas. Não chegam a criar novas palavras. A criação de novas palavras é atribuição dos morfe- mas derivacionais. É disso que trata, mais de perto, a chamada morfologia lexical. Através da ação dos morfemas derivacionais, vemos o surgimento de “famílias” derivadas de um único morfema lexical. Vejamos o exemplo de “LIVR” (morfema lexical). Observe o que é possível formar a partir da adição de diferentes morfemas derivacionais: livro – livraria – livreiro – livrinho livresco – livreco – etc Uma consulta ao dicionário ajudará a explicar por que se diz que os morfemas derivacionais têm essa capacidade de gerar novos vocábulos para nosso idioma. A título de ilustração, acompanhem al- guns verbetes2 do Dicionário Houaiss para algumas das palavras formadas sobre a base do radical “livr”: Livraria (s.f.): estabelecimento onde se vendem livros. Livreiro (adj., s.m.): 1. Que(m) tem ou vende livros; 2. (adj.) relativo à produção de livros. Livreco (s.m.): 1. pequeno livro; 2. (pej.) livro sem importância. Este breve exemplo demonstra como a incorpora- ção de diferentes morfemas derivacionais pode al- terar o significado e a classe gramatical das palavras formadas a partir da base comum “livr” (morfema lexical). Esta é a principal característica da ação dos morfemas derivacionais. É importante que vocês saibam que algumas gra- máticas, inclusive vários livros didáticos, colocam morfemas diminutivos e aumentativos entre os morfemas flexionais. Nestes capítulos, optamos por deixá-los entre os morfemas derivacionais por entendermos que eles fornecem muito mais do que “alterações no tamanho” dos seres. Acre- ditamos que a carga semântica deles extrapola a classificação gramatical. É o que o exemplo acima nos ilustra com muita propriedade. Revejam o sig- nificado de livreco e comparem-no ao sentido que damos a livrinho: Livreco (s.m.): 1. pequeno livro; 2. (pej.) livro sem importância. Livrinho (s.m.): livro pequeno 2 Verbete: neste caso, vem a ser o conjunto de notas explicativas sobre uma palavra listada em um dicionário ou enciclopédia (Houaiss) 25Capítulo 2 Muito embora “eco” e “inho” sejam considerados morfemas responsáveis pela atribuição de grau diminutivo, não veiculam o mesmo sentido. O diminutivo “eco”, considerando o exemplo, traz uma carga pejorativa (pej.) ausente em sua variante “inho”. Comparem os enunciados: a) Comprei este livrinho na Bienal deste ano. (li- vro pequeno) b) Comprei este livreco na Bienal deste ano. (li- vro de qualidade duvidosa) c) Quem escreveu este jornalzinho? (jornal peque- no) d) Quem escreveu este jornaleco? (jornal de qua- lidade duvidosa) Foi o uso no cotidiano vivo da língua que confe- riu diferentes valores para “eco” e “inho”. Assim como foi o uso que “decretou” que o “inha”, em “mulherzinha”, também portaria uma carga pejo- rativa. Por esses motivos, os morfemas marcadores de grau aumentativo e diminutivo farão parte, nes- te material, dos morfemas derivacionais. 2. processos de derivação das palavras do portuGuÊs (1ª parte) Considerando tudo o que já foi dito aqui sobre morfemas flexionais e lexicais, trataremos de reu- nir exemplos que mostrem as diversas possibilida- des de combinações morfológicas na formação das palavras. Para isso, partiremos dos modelos pro- postos por Souza e Silva & Koch (2009, p.38): No português, encontramos vocábulos constituí- dos a partir da soma dos seguintes “pedacinhos”: 3 O asterístico (*) sinaliza aqueles itens que podem aparecer ou não naquela palavra. 4 O elemento de ligação pode ser uma vogal ou consoante. Estes elementos não têm valor de morfema, mas realizam a união do morfema lexical com os respectivos morfemas derivacionais. Sua função é a de facilitar certas composições. É o caso do chá (morfema lexical) + eira (morfema derivacional)= chaleira. Esta consoante “l” é apenas um termo de ligação. O mesmo papel desempenha o “o” de gasoduto. 1. Apenas um morfema lexical (formas livres) Ex.: mar, sol, feliz, azul3. Ex.: alun-a-s; menin-o-; part-í-sse-mos; not-a-ram. 2. Morfema lexical vogal temática (*) morfemas flexionais Como os modelos mais detalhadamente apresentados em 3.1; 3.2 e 3.3 Ex.: in-feliz; des-em-palh-a-r; in-apt-o-s. 3. Morfema lexical morfemas derivacionais morfemas flexionais (*) 3.1. Prefixo(s) morfema lexical morfemas flexionais (*)vogal temática (*) Ex.: mur-alh-a; cant-eir-o-s; habitu-al; levanta-ment-o; menina-zinh-a-s. 3.2 Morfema lexical sufixo morfemas flexionais (*)vogal temática (*) Ex.: in-feliz-mente; re-prov-a-ção; des-content-a-ment-o-s; para-qued-ista-s. 3.3 Prefixo(s) morfema lexical sufixo(s) elementode ligação4 (*) vogal temática (*) morfemas flexionais (*) É o caso das palavras compostas. Ex.: couv-e_flor; guard-a _ chuv-a; terç-a-s _feir-a-s. 4. Morfema lexical Vogal Temática (*) morfema lexical morfemas flexionais (*) vogal temática morfemas flexionais (*) 26 Capítulo 2 À primeira vista, pode parecer complicado. Mas o que vemos acima nada mais é do que um resumo das estruturas das palavras do português. Pensemos em um vocábulo qualquer: FORNALHAS Como você dividiria esta palavra? Consegue distin- guir o morfema lexical (radical)? Identifica a presen- ça de algum morfema derivacional ou flexional? Ou será esta palavra constituída de um único morfema lexical, como uma forma livre única? Analisá-la-emos conjuntamente: FORN-ALH-A-S FORN = morfema lexical (base comum de: forno, fornada,..) ALH= morfema derivacional (sufixo) A= vogal temática S= morfema flexional de número Considerando a classificação apresentada no início deste subitem, com qual das estruturas apresenta- das se parece a constituição da palavra “fornalhas”? morfema lexical + sufixo + vogal temática + morfema flexional Comparem-na às demais estruturas apresentadas e identifiquem o número correspondente. Concor- dam que o modelo 3.2 é o que mais se aproxima des- ta composição? Agora, a título de treinamento, realizem o mesmo processo com as palavras abaixo. Primeiro, decompo- nham as palavras. Em seguida, façam a classificação morfológica de suas partes e, por último, identifi- quem o número correspondente (segundo a proposta anteriormente apresentada): a. Inconscientemente b. conta-gotas c. parachoque d. suburbano e. gás f. gasodutos 2.1 forMas siMples e coMpostas A partir da observação das estruturas dos vocábulos do português, podemos tirar algumas conclusões: • os vocábulos representados pelas estruturas 1 e 2 são formas simples e primitivas; • as palavras formadas a partir da estrutura 3 (3.1; 3.2; 3.3) são vocábulos simples, mas derivados; • a situação apresentada na estrutura 4 refere-se às palavras compostas de nossa língua, uma vez que contêm mais de um morfema lexical. Portanto, as palavras de nossa língua podem ser sim- ples ou compostas. Tudo depende da existência de um ou mais morfemas lexicais. As formas simples podem ser primitivas ou derivadas. As primitivas não se origi- nam de outras e servem de base (radical) para a for- mação das derivadas. A maior parte das novas palavras que se formam na língua provém de derivação ou então de composição. Na derivação, os morfemas lexicais recebem o acrés- cimo de afixos (prefixos, sufixos ou ambos ao mesmo tempo). Mas atenção: nem sempre é fácil distinguir uma palavra primitiva de uma derivada. Muitas vezes, o morfema lexical já se tornou “irreconhecível” den- tro do português moderno. É o caso, por exemplo, das palavras que apresentam morfemas lexicais muito próximos de sua forma latina. Nesses casos, alguns estudiosos recomendam considerar estas palavras como primitivas e não derivadas de seu radical latino. Exemplifiquemos: • demitir = de + mitir (do latim de + mittere: deixar partir, enviar) • conduzir = com + duzir (do latim cum + ducere: conduzir) São casos em que o morfema lexical já não é facil- mente reconhecido, como, por exemplo, o “mit” (radical aportuguesado de “mitt” do latim), pre- sente em “demitir”. Em função desta “estranheza”, um falante do português do séc. XXI terá dificul- dades de reconhecer este grupo de palavras como derivadas do mesmo morfema lexical latino “mit”, que, em sua origem latina, transmite (olha aí o trans + mittere!!) a ideia de enviar, lançar, projetar... FORN morfema lexical ALH Morfema deriv. A vogal temática S morfema flexional 27Capítulo 2 Observe: • Remeter (remittere: lançar para trás) • Prometer (promittere: lançar para diante; com- prometer-se com algo no futuro) • Demitir (demittere: deixar partir, enviar) • Permitir (permittere: deixar ir; enviar através de; confiar) Nada impede que vocês se decidam por estudar, a fundo, a origem latina (ou grega) das palavras do português e reconstituam essas famílias de pala- vras em seu estágio mais primitivo. Aqueles que se dedicam a essas pesquisas trabalham dentro dos chamados estudos diacrônicos5 da língua portu- guesa. São estudiosos que buscam a etimologia6 dos vocábulos de nossa língua. Mas, para este momento, é suficiente que aceite- mos o fato de que alguns radicais (morfemas lexi- cais) da língua portuguesa já tenham sua origem “perdida no tempo” e que, por isso, certas palavras apareçam classificadas como primitivas em vez de derivadas. 2.2 os Quatro processos de derivação No português, reconhecemos quatro processos de derivação8 : PREFIXAL, SUFIXAL, PREFIXAL E SUFIXAL, PARASSINTÉTICA. Estes processos não se aplicam às palavras compostas. São fenôme- nos que ampliam as palavras primitivas. Vejamos separadamente cada um deles: Derivação prefixal Aqui o que ocorre é que prefixos (tipos de morfe- mas derivacionais colocados ANTES do morfema lexical) ajudam a formar novas palavras. Observem os exemplos a seguir. Neles, destacamos, em letra maiúscula, os prefixos e sublinhamos o morfema lexical: ilegal = Ilegal rever = Rever infeliz = INfeliz Derivação sufixal Neste caso, o morfema lexical recebe sufixos (tipos de morfemas derivacionais colocados DEPOIS do morfema lexical). Novamente, apresentamos exem- plos. Agora são os sufixos que aparecem evidencia- dos em letra maiúscula. Os morfemas lexicais se apresentam sublinhados: saboroso = saborOSO vozinha = vozINHA grandalhão = grandALHÃO É interessante observar que, às vezes, as palavras que recebem os sufixos mudam de classe gramati- cal. É o caso do substantivo que vira adjetivo; do verbo que passa a substantivo ou adjetivo, ou mes- mo, um adjetivo que se transforma em substantivo ao receber o sufixo. Os exemplos nos ajudarão a compreender este fenômeno. A seguir, seguem al- guns casos em que se verifica a mudança de classe e outros em que isso não ocorre: SAIBA MAIS! Para saber mais sobre morfemas lexicais latinos e gregos no portu guês... Se vocês nunca tivera m a oportunidade de ver a quantidade d e radicais latinos e gregos sobre os quais s e constroem muitas das palavras do nosso léxico, vale a pena conferir algumas “listas ” pra lá de curiosas. Uma boa amostra se enc ontra na gramática 7 de Nicola e Infante !! BÉLIco CRUCIficado FERRugem ESTRATOsfera TÉRMico CRIMINOlogia VITRIficar etc 5 Estudos voltados à compreensão do processo evolutivo e das mudanças sofridas por uma língua ao longo do tempo. 6 Estudo da origem e da evolução das palavras; 2. Ramo da Linguística que se dedica a esse estudo. (Dicionário Houaiss) 7 NICOLA, José de & INFANTE, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa. 15 ed. São Paulo: Scipione, 1998, p. 90-97.d 8 Vocês poderão encontrar uma relação dos principais prefixos e sufixos gregos e latinos usados na formação de nosso léxico em diferentes gramá- ticas e também em alguns endereços da Internet. Uma dessas listas, bastante completa, vocês também encontrarão na recém-citada gramática de NICOLA & INFANTE, entre as páginas 79-89. Confira! 28 Capítulo 2 Com mudança de classe triste (adjetivo) + eza = tristeza (substantivo) útil (adjetivo) + idade = utilidade (substantivo) ferro (substantivo) + eo = férreo (adjetivo) rosa (substantivo) + eo = róseo (adjetivo) poluir (verbo) + cão = poluição (substantivo) durar (verbo) + vel = durável (adjetivo) Sem mudança de classe papel (substantivo) + aria = papelaria (substantivo) boi (substantivo) + ada = boiada (substantivo) positivo (adjetivo) + ista = positivista (adjetivo) escrever (verbo) + inhar = escrevinhar (verbo) morder (verbo) + iscar = mordiscar (verbo) Derivação prefixal e sufixal
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