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llllllllllllllllllllllllllllllllllllllll 22819 LISTA DOS AUTORES PIERRE BouRDIEu, College de France FRANçors BREssoN, École des hautes études en sciences sociales H.oGER C!JARTTER, École des hautes études en sciences sociales ROBERT DARNTON, Universidade de Princeton DANIEL F ABRE, École des hautes études en sciences sociales ]EAN MARTE GomEMoT, Universidade de Tours e Instituto Univer- sitário da França ]EAN HÉBRARD, Serviço de História da Educaçào, INRP e CNRS Lorns MARTN, École des hautes études en sciences sociales DANJEL Roem, Universidade de Paris-I e École des hautes études en sciences sociales Uma iniciativa de Alain Paire sob a direçao de Roger Chartier PRÁTICAS DA LEITURA Tradução Cristiane Nascimento Introdução Alcir Pécora 5ª edição • Estocão Liberdade Publicado originalmente sob o título Pratiques de la lecture pela Éditions Rivages, © 1985; © 1993 Éditions Payot & Rivages, Paris, para a edição de bolso ©da Introdução: Alcir Pécora, 1996 © 1996, 1998, 2001, para esta edição Revisão de texto Marcelo Rondinelli e Angel Bojadsen Composição Marcelo Higuchi /Estação Liberdade Capa Nuno Bittencourt /Letra & Imagem Ilustrações da capa Jan Vermeer, Moça lendo carta, óleos/ tela, c. 1657, Gemiilde-Galerie, Dresden; Giuseppe Maria Crespi, Estante de biblioteca com partituras encadernadas, Conservatório de Música, Bolonha Editores Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Práticas da Leitura/ sob a direção de Roger Chartier ; uma iniciativa de Alain Paire ; tradução de Cristiane Nascimento ; introdução de Alcir Pécora. - 5'. ed. - São Paulo; Estação Liberdade, 2011. Título original: Pratiques de la lecture. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-85865-14-6 1. Leitura 2. Leitura - História 3. Livros e leitura I. Chartier, Roger. II. Paire, Alain. III. Pécora, Alcir. 01-0183 Índice para catálogo sistemático: 1. Leitura : Linguística 418.4 2. Prática da leitura : Linguística 418.4 CDD-418.4 ESTE LIVRO, PUBLICADO NO ÂMBITO DO PROGRAMA DE PARTICIPAÇÃO À PUBLICAÇÃO, CONTOU COM O APOIO DO MINISTÉRIO FRANCÊS DAS RELAÇÕES EXTERIORES Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 - 01155-030 - São Paulo - SP Te!.: (11) 3661 2881 Fax: (11) 3825 4239 http://www.estacaoliberdade.com.br SUMÁRIO 9 INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA ALcIR PÉCORA: O campo das práticas da leitura, segundo Chartier 19 PREFÁCIO RoGER CHARTIER 23 APRENDIZADOS 25 FRANÇOIS BRESSON: A leitura e suas dificuldades 35 JEAN HÉBRARD: O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler? 75 FIGURAS DA LEITURA 77 RoGER CHARTIER: Do livro à leitura 107 JEAN MARIE GouLEMOT: Da leitura como produção de sentidos 117 Lours MARIN: Ler um quadro - uma carta de Poussin em 1639 141 LEITORES COMUNS 11+:1 ROBERT DARNTON: A leitura rousseauista e um leitor "comum" do século XVIII 177 DANIEL RocHE: As práticas da escrita nas cidades francesas do século XVIII 201 DANIEL FABRE: O livro e sua magia 229 A LEITURA: UMA PRÁTICA CULTURAL Debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier 2')') ÜRIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA (1985-1992) O campo das práticas da leitura, segundo Chartier Introdução de Alcir Pécora à edição brasileira A presente coletânea reúne os trabalhos de estudiosos de diferen- tes áreas que compareceram a um encontro a propósito do tema da k·itura realizado há cerca de dez anos e que, por isso mesmo, resume 11 m momento precioso das discussões em torno de algo que hoje, talvez rapidamente demais, já ganha ares de produto cultural mais ou lllL'nos estável. Naquele momento, a questão para os pesquisadores 1 iresentes ao encontro era promover o confronto de seus diferentes t r;1halhos de modo a obter-se uma visão mais ampla do campo dos ( ·st udos referentes às práticas da leitura. Está perfeitamente evidente < 111e, de todos os autores presentes, é o diretor do encontro, Roger < :ilartier, quem mais se empenha no sentido de ajustar cada um dos ( ·st udos como um ponto de um mapa em construção, de considerar ( lt ·senvolvimentos distintos e assimilar contribuições mútuas favoráveis .ll> dL:senho mais preciso, mas também mais inclusivo, da nova área. Em termos resumidos, seguindo-se a pista lançada pelo próprio < :1l:1rtier, o campo da história das práticas da escrita avança por três 'li1qúes distintas, mas não contraditórias, capazes de abranger o con- 1111110 dos estudos da coletânea. Assim, a primeira dessas perspecti- ' :1s, de matriz fundamentalmente histórica, pretende levantar maneiras ( 1( · ler que já não ocorrem sistematicamente no presente; trata-se de , 'instituir, por assim dizer, um corpus de "atitudes antigas" diante ela 1( ·it ura, em que as suas diferentes formas apenas se configurem no i11tl·rior de práticas datadas. Estudar a leitura por esta via é, pois, repor :1., rd(:r0ncias históricas de uma pragmática já dissolvida no presente. 9 ALCIR PÉCORA Para chegar ao estabelecimento desse corpus, Chartier propõe descobrir nos próprios textos a permanência de certos índices da antiga pragmática que os suscitara. E os vestígios privilegiados, aí, aqueles para os quais tem mais faro, são aqueles a que se refere como "protocolos de leitura", basicamente de dois tipos, ambos importantes para a reconstituição dessas atitudes antigas das práticas do ato de ler. O primeiro remonta aos elementos que determinado autor dissemina pelo texto de modo a assegurar, ou ao menos indicar, a correta inter- pretação que se deveria dar a ele. Em outros termos, poder-se-ia dizer que tais protocolos de leitura inscrevem no texto a imagem de um "leitor ideal", cuja competência adequada decodificaria o sentido preciso com que o autor pretendeu escrevê-lo. Assim, o artigo de Louis Marin a pro- pósito de uma carta de Poussin para Chantelou, comitente de um de seus quadros mais célebres, o Maná, é particularmente esclarecedor, embora referindo-se a um tipo de objeto específico em que as práticas de leitura guardam relações próximas com a contemplação de um quadro. Marin mostra como Poussin, esse modelo de "pintor-filósofo'', concebe em seu quadro uma série de elementos composicionais, cuja função básica é colocar o espectador na posição de um leitor, capaz de decodificar seus signos e figuras, invisíveis para quem não se dê ao trabalho de considerá-los adequadamente. A partir de uma análise minuciosa do quadro, Marin mostra que a figura do velho, a primeira que é pintada à esquerda do quadro - que por si só privilegia a posição textual, em que a tradição ocidental manda que se comece a leitura -, representa o lugar do comitente e, em termos mais gerais, de todo espectador. A partir do olhar particular do velho sobre outra cena parcial, em que uma jovem mãe, pintada como uma Caridade romana, é proposta como anúncio ou figura do Maná e da Eucaristia, Poussin orienta o ponto de vista mais conveniente para a apreciação do quadro global. A figura ensina que o quadro deve ser visto a partir de duas leituras que lhe estariam subjacentes (a narrativa escriturai do Êxodo e o Livro V do Dictorum factorumque memorabilium, de Valério Máximo) e até o afeto justo que deveria presidir a esse reconhecimento. Quer dizer, baliza-se o percurso do observador de modo a que tome para si a função de um leitor cuidadoso e possa chegar a uma interpretação do quadro que seu autor julga a única correta. 10 < INTRODUÇÃO Outro tipo de protocolo de leitura que interessa a Chartier é o que se produz na própria matéria tipográfica, em geral de responsa- bilidade do editor, de modo a favorecer certa extensão da leitura e a caracterizar o seu "leitor ideal'', que não precisa assemelhar-se àquele originariamente suposto pelo autor. O exemplo mais interessante aqui, referido por vários artigos, é o da "Biblioteca Azul'', série editada em Troyes, ao longo do século XVII, que reunia textos bem diferentesl'ntre si, não exclusivamente populares, mas todos uniformizados em l'dições que pretendiam baratear ao máximo seu custo e alcançar o maior número possível de leitores. Os procedimentos que demarcavam l'Sse objetivo, vale dizer, que pretendiam facilitar o acesso de um leitor que se pretendia comum, operavam o texto de sorte a aumentar o número de capítulos, diminuir o tamanho dos parágrafos, abreviar ou nirtar certas passagens e, no caso de textos mais antigos, modernizar :1 ortografia. O curioso é que, muitas vezes, isso se fazia à custa do (·e ltnprometimento do próprio sentido básico do texto, o que parece indicar que, pelo menos em relação a tais leitores, a articulação dos e ·e mteúdos nem sempre tem o primeiro papel no interesse prático da k·itura. Enfim, o que os protocolos de edição ou impressão evidenciam é que, no tipo de história buscada por Chartier, a reflexão a propósito c lc) suporte material do sentido é fundamental para a determinação e k· sua efetuação nas práticas. A materialidade do suporte passa a .';l'r inalienável do espírito das representações a que seus usos deram 111argem. Daí que, para Chartier, fazer a história das práticas de leitura indui privilegiadamente o levantamento dos usos históricos do livro e· das várias formas particulares do impresso. O seu materialismo dos 111l'ios o faz falar da "ordem do livro", antes da "ordem do discurso", , · menos da ordem dos livros que daquela que existe na aparente ck·sordem dos seus usos. Comentando essa mesma "operação de < :l1:1rtier'', João A. Hansen observa que não se trata aqui de "uma nova tc·xtualização da subjetividade entendida como efeito determinado pda estrutura da língua ou do inconsciente, como ainda sugere o h n 1cault de L'ordre du discours. Também não é uma interpretação ou ill'rmenêutica, como um comentário ou uma subjetivação da textuali- < i;f( k· que, ao entender os objetos culturais como relação intersubjetiva 11 ALcm Pü:oRA ele consciências, abstrai seu meio material" 1 • Nessa clireçào, concebe- -se a importância elo artigo ele Daniel Rache, por exemplo, que busca rastrear a multiplicidade elas formas impressas praticadas em algumas cidades francesas elo século XVIII. Também na atenção extraordinária dada à opacidade elo meio talvez se possa ver quanto esse projeto quase arqueológico alimenta-se da própria experiência do presente, quando ler ou entender um texto implica antes conhecer o programa que o imprima ou convirta. A opacidade elos meios nunca esteve tào clara para nós quanto agora, e nào ele um ponto ele vista teórico ou epistemológico, como o podíamos formular há tempos, mas prático, cotidiano, em que saber operar o s~ftware parece resolver boa parte da questào essencial da dificuldade ele escrita e leitura. Mas isto é apenas uma obvieclade (e, como tal, possivelmente falsa). Uma segunda via levantada pelos artigos da coletânea para uma possível história das práticas da leitura refere-se às "apropriações'' elo texto pelo leitor, que, muitas vezes, como todos os estudos vào acentuar, escapam completamente ao controle ou previsões signifi- cativas elo texto, submetendo-o a desvios semânticos e imprevistos pragmáticos notáveis. Para conhecer essas apropriações, o caminho mais imediato que se oferece é o da confidência elos leitores a respeito de seus modos de ler, dos sentidos que descobrem nos textos. É o que faz Darnton, por exemplo, quando revela e analisa a correspondência ele um típico leitor de Rousseau, na La Rochelle do século XVIII, que reconhece no filósofo o "amigo Jean-Jacques", jamais um autor de ro- mance ou sequer um autor, e lê nas epístolas ela Nova Heloísa jamais ficçào ou retórica, mas conselhos sinceros ele um semelhante mais sábio, mas íntimo, que vive longe, mas de que se tem notícia cotidiana, miúda, familiar. Aqui, aliás, os protocolos ele leitura levantados por Darnton vão todos na direção cio estabelecimento de uma maquinaria muito eficaz, cujo efeito máximo é justamente o da "sinceridade", uma invenção retórica que mascara radicalmente a sua própria existência e postula com êxito a comunicaçào ele coração-a-coração, sem inter- mediários desviantes. Ora, numa perspectiva historiográfica em que 0 1. "Leitura de Chartier", Revista de História, 133, l' semestre de 1995. Citaç;!o na p. 125. 12 [NTRODU<,:ÃO parti pris é a determinação material elo suporte, suas análises jamais parecem mais implacáveis elo que quando se aplicam a objetos de extração romântica. Tudo o que neles parecia negar o meio revela-se agora como protocolar, cleterminaçào implícita da autoridade elo autor a propósito da maneira adequada de ler. Entretanto, pelo que é dado ver de várias passagens de Chartier, e também ela fala de Pierre Bourdieu no debate anexado ao final da coletânea, nào é esta a tendência que mais parece agradar aos historiadores da cultura franceses. Admitindo, embora, que tais confidências possam ser úteis para determinar-se a distância que vai do ''leitor ideal", proposto pelo autor ou editor, ao "leitor real", consideram problemática a sua confiabilidade. Levá-las em conta exige igualmente descobrir os seus mecanismos de busca de legitimação no cerne da própria cultura erudita ;1 que pretendem ascender, ou descrever as situações precisas em que se realizam, muitas delas sob coação e censura. De qualquer modo, as apropriações dos textos pelo leitor implicam .~empre a consciência de que a possibilidade ele leitura efetua-se por um processo de aprendizado particular, de que resultam competên- cias muito diferentes. Cabe distinguir, portanto, em primeiro lugar, a competência daqueles que aprendem a ler nas situações escolares institucionais e a elos autodidatas, que remonta por vezes ao que Jean Hébrard vai chamar de "procedimento selvagem" de acesso ao escrito. É dele justamente o estudo sobre o autodidatismo de Valentin Jamerey-Duval, um caso do início do século XVIII. Fica evidente aí que as considerações autobiográficas constituem-se a partir de certas balizas que, mais do que serem fidedignas enquanto enunciado, são í nelices ele seu esforço para obter uma "autenticação" de seu acesso por inteiro ao mundo da escrita, o que, no caso de um autodidata, implica a passagem para um mundo socialmente tomado como supe- rior. Assim, em sua autobiografia, Jamerey-Duval procura apagar toda a presença do escrito - difusa, é verdade, mas presente - em seu meio de origem, ele modo a dar a entender que sua alfabetização decorre ele uma ruptura radical com esse meio e elo cumprimento irresistível ele uma disposição natural para o aprendizado. Porém, como o demonstra l lébrard, ao longo ela autobiografia e a despeito elos cuidados que toma em seu desejo ele autenticaçào elo novo status ele letrado, revelam-se 13 ALCIR PÉCORA em seu texto muitos traços que patenteiam certa inadequação entre a capacidade de leitura adquirida e o "capital cultural" suposto nessa leitura dos textos. Admitido o interesse exemplar desses relatos, está claro que, para Chartier, a proposta de uma história das práticas de leitura não poderia resumir-se a uma coleção de casos. As análises particulares necessariamente teriam que avançar até o ponto de reconhecimento dos elementos estruturais dos textos capazes de funcionar seja como protocolos de autoria ou edição, seja como índices de apropriações mais ou menos criativas e desviadas em relação aos protocolos. Quer dizer, embora os estudos de leitura remetam inevitavelmente a circuns- tâncias e usos em que a sua prática se constrói, a ideia subjacente a eles é que a pragmática em que se inserem seja constitutiva do produto cultural, e não elemento exterior que se ajunta superficialmente a ele em situações dadas. Outra vez: reconhecer os traços das práticas no cerne das próprias representações e seus suportes é a pedra de toque do tipo de investigação ambicionada por Chartier. Também pode-se depreender dos estudos da coletânea uma terceira viapara a história ela leitura, que trata fundamentalmente de observar ou descrever os múltiplos empregos do termo "leitura'', pluralidade cujo reconhecimento proporciona a vantagem de romper com a ideia monolítica e homogênea que se tem comumente do seu processo, dado como natural e espontâneo. O artigo de François Bresson desenvolve-se inteiro de modo a contestar essa perspectiva tradicional. Contudo, a compreensão da complexidade do ato de ler, que sempre demanda a inserção não formalizável em práticas distin- tivas, não deve conduzir ao equívoco de uma generalização tal que a ideia de "leitura" já não contenha senão uma alusão metafórica a processos que guardam pouca ou nenhuma relação com a prática de decifração letrada suposta nela. O risco é apontado de maneira franca por Pierre Bourdieu ao fim do volume, quando mostra que a genera- lidade excessiva na aplicação do termo não apenas pode indistinguir práticas muito diversas, como também propiciar uma espécie de desvio intelectualista em todo exame de práticas, como se não fossem senão discurso, e seu propósito fosse exclusivamente o conhecimento ou a informação. Ciente do risco, Chartier parece concentrar seu interesse 14 INTRODUÇÃO relativo às fronteiras da leitura nas relações historicamente dadas entre texto e imagem. Quando fala em "figuras" do ler, o seu horizonte é o da investigação das possibilidades de relação estrutural entre o legível e o visível, na decodificação, por exemplo, de certos livros e quadros. O seu próprio texto, o de Jean Marie Goulemot e o de L. Marin, já citado, trabalham nessa direção. O resultado mais interessante, a meu ver, como disse, é o deste último, quando mostra de maneira muito convincente que, no caso de Poussin, seus protocolos de leitura do quadro fazem supor que não pode haver verdadeira compreensão dele sem que o observador conheça e ajuste a imagem que vê de acordo com as referências letradas que deve ler. Delineado dessa forma o mapa possível da história das práticas da leitura, é preciso ver que o seu traçado não apenas inclui, mas exclui certas vias. Já vimos alguns desses caminhos recusados por Chartier, faltaria talvez mencionar a sua crítica severa de uma sociologia histórica da cultura que associa diretamente os diferentes produtos culturais a -grupos sociais precisos, classificando-os um pelo outro de maneira bastante rígida. Nesse sentido, interessam-lhe dados distribucionais apenas quando, como os trazidos por F. Bresson ou D. Rache, produzem levantamentos da variedade de formas do apren- dizado da escrita e dos usos efetivos que esta adquire nos meandros da cidade. Essas pesquisas evidenciam a existência de uma apropria- ção desigual da escrita no interior dos mesmos meios sociais, assim como, na perspectiva inversa, a circulação de um mesmo produto cultural em diferentes meios ou grupos sociais. Ou seja, tudo vai no sentido de recusar a assimilação do livro, enquanto produto cultural, à operação exclusiva de uma classe determinada, para favorecer, ao contrário, o reconhecimento de práticas de leitura distintivas e muitas vezes imprevistas, seja pelo autor, como vimos, seja pelas formas de legitimação dos grupos sociais. O conceito-chave de Chartier refere-se à "apropriação" do livro pela leitura, e não à expropriação do leitor pelo livro. Embora aproximar-se dele, como refere o último ensaio da coletânea, o de Daniel Fabre, sempre produza os seus terrores, à maneira dos livros antigos de feitiçaria. Para encerrar, uma pequena palavra sobre a apropriação de Chartier no Brasil. De imediato, dois riscos e dois possíveis ganhos. 15 ALCIR PÉCORA O primeiro risco, que é também uma experiência muito vivida entre nós, é o de tomar todo novo estudo como o único possível a partir de então, num constante abandono das referências da tradição, o que evidentemente dilui a própria contribuição específica da novidade. Temos o péssimo hábito, tipicamente periférico, de pensá-la não como obra recente de iluminação de um ângulo ou via no centro de uma área mais antiga, de contornos irregulares, mas como paideuma ou panaceia universal. Então, o que era um método, ou menos que um método, alguns resultados de casos, tornam-se moda exclusiva, totalizante, e, como moda, passam à vulgaridade, antes mesmo de assegurar-se dos resultados que podem realmente ser obtidos a partir de seus instrumentos. O segundo risco é o de submergir, não propriamente na moda, mas no mundo subletrado das produções paradidáticas, pedagogizantes, demasiado ativas no mercado brasileiro e que sempre aparentam tomar o lado destemido do mais fraco, da desmistificação, da dessacralização, ou o simpático do popular, da literatura infantil, da história literária dos autores minúsculos, tudo em nome da apropriação heroica que resiste à ordenação autoritária do autor, da cultura erudita e das classes dominantes. Que não vá se fazer de Chartier, tampouco, "linguística da libertação". Os ganhos, para encerrar de maneira otimista: sem ser empirista, é evidente que a investigação de Chartier e do grupo de estudiosos reunido em Saint-Maximin, depende fundamentalmente do exame de material primário, da visita aos arquivos e do levantamento de dis- positivos finos de leituras desses mundos aparentemente arruinados ou mortos. Necessidade de constituição de corpus cada vez mais complexos, eis o que reafirma o tipo de história cultural pensada à maneira de Chartier. Se isso obviamente não basta para estancarmos de vez nossa prolífica e decantada veia ensaística, ao menos que sirva para lhe darmos um caráter mais convincente e menos anacrônico. Segundo ganho: o de desconfiarmos da naturalidade essencial com que a tradição crítica brasileira tem lidado com as questões das represen- tações letradas. Se é ruim ignorarmos as referências de tradição para tomarmos toda a crítica pela última contribuição, igualmente ruim é a insistência em mantermos as categorias críticas fora do exame de seus empregos particulares e datados. Sobretudo pensando-se nos 16 INTRODUÇÃO estudos referentes a práticas letradas anteriores ao romantismo, tem- -se uma nítida ideia da relevância da reflexão em torno das categorias de "prática" e de "representação'', decisivas nos trabalhos de Chartier: "elas permitem que se dissolva a naturalidade da presença dos resí- duos [dessas práticas arcaicas, sobretudo] no cânone literário, também permitindo criticar a naturalidade das suas interpretações dominantes, por exemplo, quando se evidencia que sua inclusão no cânone é o resultado de longos encadeamentos de apropriações polêmicas e con- traditórias (...)"2 . As representações alertam-nos, pois, para o risco das generalizações que tomam por substância psicológica ou tendência étnico-nacional tais encadeamentos que, muitas vezes, podem não ter coisa alguma em comum, a não ser a sua própria abertura a certa prática datada de leitura. 2. Idem, p. 126. Alcir Pécora Departamento de Teoria Literária / üNICAMP julho de 1996 17 PREFÁCIO À memória de Louis Marin Este livro nasceu de um projeto conjunto: o de uma dezena de pesquisadores ligados a disciplinas diversas, desejosos de elucidar os modelos e efeitos, a história e o presente de uma prática cultural tão imediata, que parece não poder jamais ter sido outra coisa senão aquela que é hoje para nós. Com efeito, por um longo período, a lei- tura parece não ter colocado qualquer questão: não é ela o resultado mais universalmente partilhado da aprendizagem escolar? Não implica sempre uma relação íntima entre o leitor solitário e o livro ou o jornal que é a sua leitura? Uma prática cultural, portanto, mas que naturalmente é a de (quase) todos e para todos idêntica. Além disso, podemos reconhecer o contraste entre grandes leitores e leitores de ocasião, entre lectores profissionais, para os quais ler é sempre mais ou menos gesto de trabalho, e todos aqueles para quem o encontro com os textos é simples informaçãoou puro divertimento. Os primeiros, não há dúvida, têm dificuldade em aceitar que existem outras leituras além da sua, ou ainda em conceber que entre sua leitura de doutos e as da maioria existem outras diferenças afora estas: ler muito ou pouco, rápido ou lentamente. Questionar esta representação comum: tal era o objetivo primeiro do colóquio realizado no Convento Real de Saint-Maximin, de onde saiu este livro. Os caminhos para se fazer isto eram diversos. Um deles consistia em remontar a história e descobrir modos de leitura inteiramente estranhos aos de nosso tempo. De um século XVIII cam- ponês, em que a relação com o livro de magia enuncia as dificuldades 19 1 1' ROliER CF-L"RTIER e exigências que são as de toda leitura, qualquer que seja ela, a um século XIX citadino, que conhecia uma pluralidade de usos, coletivos ou individuais, decifradores de textos ou imagens que são confrontados ao livro ou, mais imediatamente, com todos os escritos semeados pela cidade, constituiu-se um primeiro corpus de atitudes antigas, onde as formas de ler não estão, de maneira alguma, separadas das práticas de escrita ligadas a elas, seja porque através ela cópia permitem domar e sujeitar os perigos do escrito, seja porque multiplicam no cotidia- no urbano os materiais manuscritos de uma leitura íntima, secreta e possi\·elmente subversiva. Estas figuras antigas da leitura estão dadas, ao mesmo tempo, dentro e fora dos textos. Com efeito, todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude ele leitura. Que seja explici- tamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela maquinaria cio texto, inscrita na letra ela obra como também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo da leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado elo texto, ao mesmo tempo em que esboça seu leitor ideal. Deste último, autores e editores têm sempre uma clara representação: são as competências que supõem nele que guiam seu trabalho de escrita e de edição; são os pensamentos e as condutas que desejam nele que fundam seus esforços e efeitos de persuasão. É possível, portanto, interrogando de novo os textos e os livros, revelar as leituras que pretendiam produzir, ou aquelas tidas como aptas para decifrar o material que davam a ler. Daí a identificação ele leitores contrastantes e ele práticas clesse- melhantes: o leitor visado por Rousseau não é aquele dos romances ele moela; a leitura suposta pelos editores da Biblioteca Azul não é, de modo algum, aquela elos virtuoses do impresso. Isto significa que uma história das leituras pode contentar-se com esses balizamentos nos textos e objetos impressos, com essas identificações escriturais ou tipográficas de leituras desejadas ou supostas? Evidentemente não, uma vez que cada leitor, a partir ele suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria. Reencontrar esse fora-do-texto não é tarefa fácil, pois são raras as confidências elos leitores comuns 20 PRHÁCIO sobre suas leituras. Nas sociedades do Antigo Regime, elas podiam ser encontradas ao fim de uma existência, na narrativa autobiográ- fica que desfia a trajetória de uma viela, como a de Jamerey-Duval, pastor que se tornou erudito, ou então ao longo ele uma correspon- dência que não separa comentários sobre os livros e as notícias elo cotidiano familiar, como a de Jean Ranson, negociante ele La Rochelle, leitor fiel de Rousseau. Com estes testemunhos em primeira pessoa, pode-se ter uma medida da distância (ou da identidade) existente entre os leitores virtuais, inscritos em filigrana nas páginas do livro, e aqueles ele carne e osso que o manuseiam, assim como podem ser diferenciadas, no concreto das práticas, as habilidades leitoras, os estilos de leitura e os usos do impresso. Mas ler aprende-se. Daí uma outra série de interrogações visando a descobrir formas e processos de acesso ao escrito. Daí também todo um conjunto de contrastes discernido tanto no material históricoquanto na observação contemporânea. O primeiro opõe as aprendizagens escolares ordenadas, institucionais, da leitura, àquelas aprendiza- gens selvagens do autodidatismo, elo qual Jamerey-Duval fornece uma figura exemplar. Fora da escola e ele suas peclagogias formalizadas, a conquista do saber ler supõe, ao mesmo tempo, a entrada em uma cul- tura já penetrada e trabalhada pelo escrito, mesmo se este for conhecido apenas pela mediação de uma palavra e pelo conhecimento memori- zado dos textos, depois reconhecidos, recortados e decifrados no livro. Nas sociedades tradicionais, os leitores formados pela instituição elevem ser confrontados com aqueles que conquistaram o escrito com grande luta e cuja competência, se não é certificada e controlada pelos letrados, corre sempre o risco ele produzir leituras fora das normas, improváveis ou rebeldes. A esse primeiro crivo acrescenta-se um outro: aquele que distingue os leitores que também dominam a escrita e os outros leitores somente leitores que deixaram a escola ou interromperam sua aprendi- zagem antes de saber escrever ou assinar, decifradores esforçados do impresso, mas que ignoram a circulação do escrito à mão. A partir da investigação histórica coloca-se, então, uma questão central difícil: nas aprendizagens da leitura, qual o peso respectivo das estruturas perceptivas e cognitivas do homem e dos condicionamentos histórica e socialmente variáveis que regem as aquisições? 21 RoGER CHARTIER Uma tal questão, que convida ao aprofundamento do diálogo com psicólogos e pedagogos, está também subjacente ao terceiro caminho de pesquisa tomado por esta compilação. Ele parte da constatação que reconhece os empregos múltiplos, fora das relações com os textos, do próprio termo da leitura. Com efeito, o que é "ler" uma imagem, seja ela simples figura ou composição complexa, quadro ele mestre ou linhas e cores jogadas ao acaso? A identificação elas diferenças entre os tipos de percepção em funcionamento deve evitar qualquer deslize indevido e não controlado do léxico. Entretanto, as estreitas relações estabelecidas na tradição ocidental entre textos e imagens, leitura do escrito e "leitura" do quadro, incitam a colocar como centrais as rela- ções entre as duas formas de representação, que sempre se excedem uma à outra, mas que também, como testemunha Poussin, sempre articulam o visível sobre o legível. Uma última palavra ao fim deste protocolo de leitura que, esperamos, será revolvido por cada um dos leitores que trilharão seu caminho através dos textos reunidos. As oito contribuições e o diálogo aqui publicados não devem ser tomados como peças justa- postas: de um a outro circulam os mesmos problemas e as mesmas referências, as mesmas certezas e também as mesmas interrogações. Certamente, os pontos de vista podem diferir, como os enfoques e materiais, mas desejamos que seja perceptível, ao longo destas pági- nas, a conivência intelectual e amigável que permitiu reunir num dia de setembro de 1983, em Saint-Maximin, dez leitores preocupados em situar suas próprias atitudes na longa história e no leque aberto das práticas de leitura. Roger Chartier PS.: Gostaríamos de agradecer à Radio France, que autorizou a reprodução de um debate gravado no programa Diálogos, de Rogcr Pillaudin; a Alain Paire, organizador paciente do encontro de Saint- -Maximin, e a todos aqueles que enriqueceram com suas intervenções a reflexão realizada em conjunto. 22 APRENDIZADOS A leitura e suas dificuldades François Bresson Quando falamos de leitura, pensamos imediatamente nos textos compostos segundo nossas maneiras de escrever por meio de um alfabeto. Esta não é a única maneira de transcrever linguagem: assim, a língua chinesa utiliza um outro tipo de grafia, que não se baseia no alfabeto. Essas duas formas de grafia não apresentamos mesmos tipos de dificuldades, como sabemos hoje a partir dos estudos realizados tanto sobre nossos hábitos de leitura quanto sobre os dos japoneses. Entretanto, nós nos limitaremos às dificuldades particulares que colo- cam as escritas alfabéticas. Sabemos que estas foram inventadas apenas uma vez na história da humanidade, enquanto que as escritas ideográ- ficas ou silábicas puderam ser descobertas várias vezes. Certamente, este argumento tem apenas um valor relativo, pois, se a história dos grafismos remonta ao paleolítico, a história da escrita é muito mais curta, recobrindo somente uns cinco mil anos: é muito pouco para dar ocasião a uma pluralidade de invenções, sobretudo se notarmos que as escritas que funcionam são, ao mesmo tempo, bastante estáveis e objetos de uma rápida difusão; as invenções paralelas, portanto, só podem aparecer em lugares suficientemente distantes para que os sistemas estabelecidos possam desenvolver-se independentemente. A escrita constitui uma codificação da linguagem oral, única forma da língua que é "natural", no sentido de que sua utilização na produção do discurso não requer nenhum procedimento de instrução ou educa- ção. A aquisição de uma determinada língua implica, evidentemente, um processo de aquisição e um contato com a palavra de outro no curso 25 FRANÇOIS BRESSON dos primeiros meses de vida, mas esta forma de prática não precisa ser explicitamente organizada e socialmente dirigida. O mesmo não ocorre em relação à escrita e à leitura, que não podem ser objetos de um procedimento espontâneo de aquisição: trata-se aí, necessariamente, <le práticas sociais instituídas em que o simples contato com os escritos e a observação das leituras, silenciosas ou não, não são suficientes para transmitir. A passagem da forma oral primitiva da língua a uma forma gráfica codificada nunca é imediata, e é útil perguntar-se por que, mesmo em sociedades como a nossa, completamente alfabetiza- das e onde o escrito é constantemente colocado sob nossos olhos, a aprendizagem da leitura e da escrita requer ensino: não é suficiente que em nossa vida cotidiana o cartaz, a embalagem, os sinais de trân- sito ou as paradas de ônibus ou metrô sejam oferecidas aos nossos olhares desde a mais tenra idade. Esse caráter instituído do escrito e a necessidade de seu ensino são independentes da forma da codificação: o problema é o mesmo na China ou no Japão, onde os processos de escrita são muito diferentes dos nossos e onde a abundância do escrito é da mesma ordem. Acreditou-se frequentemente que as dificuldades da escrita e da leitura deviam ser procuradas nas formas do grafismo e sua organização sequencial de direção. Orton, nos anos 1940, atribuiu as dificuldades patológicas encontradas na aprendizagem da leitura (dislexias) a dificul- dades na organização do espaço, dificuldades que então acreditava-se mais frequentes nos canhotos que nos destros e que tornaram mais difícil o tratamento das sequências de caracteres orientados. Invocavam-se, entre outros argumentos em favor de sua tese, as ocorrências da escrita em espelho, que teriam sido mais frequentemen- te observadas nos canhotos que nos destros. As pesquisas sistemáticas não confirmaram essas conjecturas. A identificação dos grafismos não parece ser um obstáculo maior que sua direção. Com efeito, esta é necessária e constitui um traço singular dos grafismos escriturais. Um objeto de ponta-cabeça conserva sua identidade, ele é o mesmo objeto de cima até embaixo. Um rosto visto de seu perfil esquerdo ou direito conserva sua identidade. Levamos tão longe essa identificação dos objetos tridimensionais independentemente de sua direção, que identificamos conosco nossa imagem invertida no espelho, mesmo 26 A LEITURA E SUAS DIFICULDADES que a direita e a esquerda aí estejam ao inverso da imagem que vería- mos em um gêmeo nosso. O mesmo não ocorre com as letras: elas devem ser lidas no sentido correto, mesmo se soubermos ler ao inverso ou no espelho; neste caso, devemos fazer um exercício de restabe- lecimento do sentido para chegar a reconstituir o texto. As letras são, portanto, necessariamente orientadas, como as cifras, e pelas mesmas razões. São orientadas em relação à linha, seja ela reta ou não, seja percorrida da direita à esquerda, da esquerda à direita ou de alto a baixo. A direção da linha, com seu início e seu fim, encadeia os ele- mentos sucessivos do discurso escrito como a palavra se encadeia em seus momentos sucessivos. O tempo do percurso da linha reproduz a crônica dos acontecimentos constituída pela sequência das palavras. A linha escrita deve, portanto, marcar por um signo ou uma con- venção de disposição onde é o seu começo. A disposição correlativa das letras vizinhas explicita esta orientação. Deve-se notar que os sentidos de leitura não são todos igualmente representados e que, nos textos de várias linhas, a disposição orientada de baixo para cima parece ausente. Aprender a dispor os caracteres sucessivos sobre o suporte de papel, argila, cera ou pedra é, portanto, uma necessidade da escrita que faz disto mais que uma simples figuração; os gravadores bem sabem que devem inverter seu traço. Deve-se notar também que este encadeamento de uma sucessão de traços não é unidimensional; há ordem total dos caracteres, que podem ser complexos e exigir uma leitura com um sentido de percurso diferente daquele da sequência <los caracteres. Isto é evidente na escrita chinesa, onde cada um dos caracteres sucessivos está inscrito em um quadrado (portanto clara- mente em duas dimensões) e requer um percurso determinado tanto da leitura corno de sua escrita. O problema da leitura não está ligado à identificação dos traçados dos caracteres e de suas regras de encadeamento, corno está agora bem estabelecido. Assim corno as dificuldades da aritmética não dependem da grafia das cifras. Ou antes, são apenas dificuldades mínimas, e erros tais corno as grafias em espelho não entravam mais a leitura do que as gralhas de impressão. Contudo, é necessário notar que o problema não é o mesmo numa escrita alfabética que comporta apenas um pe- queno número de signos (26 letras de base, mais as letras acentuadas, 27 FRANc;rns BRESSON o trema, a cedilha, o apóstrofo e as letras compostas, ou seja, para 0 francês, uma quarentena de signos em escrita unicamente minúscula) e numa escrita silábica que pode comportar várias centenas deles, ou em caracteres ideográficos como os do chinês, que são vários milhares ou mesmo dezenas de milhares. Deve-se ainda notar que, mesmo em uma escrita alfabética, a composição dos caracteres elementares - letras com ou sem acento ou letras compostas - diminui a variedade dos grafismos em relação à variedade dos sons representados; as escritas ideográficas têm também sistemas complexos ele composição que re- duzem consideravelmente o número de grafias elementares distintas e têm, além disso, um valor de motivação dos signos compostos, em que a composição não é arbitrária, mas significante. O que é necessário é que as grafias mantenham-se suficientemente distintas e identificáveis nas variações elas escritas cursivas e que as ocorrências de cada tipo permitam sempre reconhecê-lo. As dificuldades das escritas não são, portanto, fundamentalmente, aquelas do reconhecimento elas grafias distintas enquanto formas es- paciais. Muito pelo contrário, elas estão no sistema de correspondência entre a sequência gráfica e a sequência falada: é isto que faz com que essas sequências gráficas sejam a linguagem, que representem de maneira quase unívoca um discurso. Uma escrita constitui uma forma ele análise da palavra, que abstrai dela traços suficientes para que, independentemente cios lugares e tempos, cada leitor possa restituir praticamente as mes- mas palavras ou que as mesmas palavras possam ser traduzidas praticamente nas mesmas grafias. É necessário notar que "quase unívoca" ou "praticamente" marcam ocaráter sempre aproximativo dessa codificação, mas também que as regras de correspondência, quando são conhecidas e aplicadas, quando, portanto, sabemos ler e escrever, fazem com que a aproximação, ela própria, seja regrada e permaneça fixada a uma taxa de variação possível de leituras ou escritas muito limitadas. Escrever a palavra ou ler a escrita da linguagem não tem jamais o rigor estrito das correspondências de leituras e escritas de números (ou, o que dá no mesmo, da álgebra ou da lógica), mas conserva sempre uma estabilidade funcional: a redundância própria da linguagem faz com que essas aproximações 28 A LEITURA E SUA:i D!F!Cl:LDADES não ocasionem mais erros na correspondência grafismo-palavra ou palavra-grafismo que na correspondência falar-ouvir. Existem inúmeras maneiras de assegurar a correspondência entre palavra e grafia. O objetivo, de início, é evidentemente conservar, nessa transformação, o sentido, que é a função da linguagem. Em seguida, conservar a propriedade combinatória: é uma condição da propriedade de produtividade ela linguagem, capacitada para produ- zir textos em número ilimitado e que podem ser inteiramente novos enquanto textos. Esta última condição é essencial: ela implica que a grafia seja a ele elementos e, portanto, que se escolha um modo de análise, ele segmentação ela linguagem. Ora, existem várias soluções para esse problema de segmentação que permitem uma combinató- ria que conserva o sentido. Essas soluções apresentam vantagens e inconvenientes diferentes e mostram-se mais ou menos compatíveis com a estrutura da língua falada. A solução chinesa consiste em compor sentidos elementares, lexemas, independentemente ou bastante independentemente, elos sons ela palavra. Certamente, cada lexema será lido em voz alta com os sons que correspondem ao seu sentido, mas esta leitura não implica a estabilidade elos sons: a escrita pode conservar seu sentido através das diferentes maneiras ele falar, e os chineses do Norte leem mas não falam a mesma língua que os chineses do Sul. Essa solução está adapta- da a uma língua cuja segmentação oral é ele tipo silábica. Unidades de sentido e unidades ele som andam juntas e é possível codificar direta- mente sentidos, podendo as famílias de sentido motivar as composições no interior elos caracteres. O custo, já vimos, é a multiplicação elos caracteres distintos: vários milhares. O custo é também a dificuldade de ordenar essas grafias, mesmo aquelas que compõem os caracteres, para organizar um dicionário: não é possível existir ordem alfabética, assim como não existe no repertório dos sinais de trânsito, por exemplo. Há dificuldades também na mecanização de uma tal escrita. Sabe-se, entretanto, que essas dificuldades são todas superáveis, pois essas l'.Scritas funcionam e são igualmente objetos escolares, em condições análogas àquelas que conhecemos para nossas próprias escritas. A escolha alternativa é codificar os sons da linguagem, o significante. É a solução adotada pelas escritas silábicas e alfabéticas. 29 FRAN(_:OIS BRESSON Essa escolha é paradoxal, à primeira vista, pois codifica-se o signi- ficante, e não o sentido. Quando compreendemos as palavras ou as articulamos, nós nos atemos aos sons que as conduzem apenas em situações particulares: poesia, trocadilhos, enigmas, lapsos. De outra maneira, temos a impressão de tratar-se apenas de sentido, mesmo se, de fato, foi a partir dos sons que esse sentido foi estabelecido, através de uma sequência complexa de processos mentais. As escritas silábi- cas ou alfabéticas invertem esse processo, uma vez que será necessário ir dos grafemas ao sentido, estabelecendo o sistema de sons. Situan- do a combinatória no nível dos significantes (o segundo sistema de articulação), reduz-se de maneira drástica o número dos componentes: algumas centenas para as sílabas, algumas dezenas para os fonemas. O custo encontra-se deslocado das operações de reconhecimento e memorização das figuras de sentido para as operações de recomposição das unidades significantes por meio de regras de correspondências grafemas-fonemas (ou sílabas) e de regras de composições de fonemas (ou sílabas) em unidades significantes. Essas operações implicam, de início, saber como irá estabelecer-se a segmentação das diversas uni- dades às quais irão ser aplicadas as regras de composição: é a chave dos aprendizados da leitura. Na palavra, a segmentação é obtida pela utilização de diferentes marcas que não são diretamente codificadas numa grafia. Para reali- zar suas propriedades e substituir a extensão pela duração, o texto, independente dos lugares e tempos, transportável, que constitui o escrito, deverá fazer aparecer uma codificação da segmentação, totalmente diferente daquelas às quais recorre a palavra. Assim, em francês, a segmentação das unidades - palavras (para ater-se a uni- dades intuitivas, suficientemente claras para esta análise), sintagmas, frases (ou enunciados) - assenta-se particularmente sobre a melodia da entonação, sobre as variações das durações relativas (em relação ao débito) das vogais (pode-se distinguir le musca pm:fumé de le muscat paifumé), sobre as sequências consonantais que nunca se encontram no interior das palavras. Assim, os brancos que separam nossas palavras escritas, o signo espaço das máquinas de escrever, são caracteres que não têm correspondentes simples na linguagem: as marcas intersegmentais podem ser os silêncios, mas isso não constitui 30 A LEITURA E SUAS DIFICULDADES o caso geral, e os silêncios (ou pausas) na fala têm funções diversas, mas não são assimiláveis ao signo intervalo da escrita. É necessário, aliás, notar que esse signo intervalo nem sempre foi utilizado nas escri- tas, assim, como os signos de pontuação: se ele parece indispensável às nossas escritas e nossas leituras, não é uma necessidade da escrita. De qualquer maneira, as marcas melódicas, ditas suprassegmentais por uma linguística que partia da escrita, desaparecem do escrito, e os brancos, os intervalos apagam as sequências consonantais final-inicial. o leitor-aprendiz não tem que aprender a segmentar, mas a codificar uma segmentação conhecida numa segmentação que não assimila os brancos às pausas. A criança aprendeu muito cedo essas marcas de segmentação da fala: desde que ela começa a falar, produz unidades que implicam a aplicação de regras de segmentação. No estágio da palavra-frase, trata-se exatamente de palavras segmentadas: nomes sem determinantes ou verbos sem marcas de flexão. Ela aprendeu muito cedo também a produzir as variações vocálicas que assinalam os finais. Portanto, não conhecemos produção de linguagem oral que não realize segmentações no nível dos significantes lexemas. Mas será necessário, para passar à escrita, aprender que a criança pequena implica uma separação entre cada uma dessas três unidades e que a ligação possível (e a articulação das formas masculina e feminina) será marcada na ortografia de pequena: a leitura em voz alta deverá restituir a ligação melódica das três unidades em um grupo segmentado, mas unificado em uma única respiração. A segunda dificuldade de segmentação é própria das escri- tas alfabéticas: trata-se de dividir a sílaba para extrair o fonema. A fragmentação silábica é espontânea, como comprovam as charadas e trocadilhos. Muito precocemente, praticamente desde os inícios da fala, as crianças sabem produzir jogos silábicos sobre as sonoridades da linguagem; isto não significa que saibam, em todos os casos, operar uma segmentação silábica, mas que sabem descobri-la espontanea- mente, em certos casos. As primeiras escritas do significante foram silábicas. Com efeito, as línguas comportam um grande número de palavras monossilábicas. Estas, como nas charadas, podem ser isola- das como conteúdos em palavras polissilábicas. Uma figuração dessas palavras monossilábicas encadeadas pela ordem de seu aparecimento 31 FRANÇOIS BRESSONpolissilábico constitui um enigma: é uma solução adotada desde a Suméria e o antigo Egito, isto é, há cinco mil anos. O fato de que as línguas semíticas possuam um sistema de alternância consonantal- -vocálico, que não exige a notação das vogais, faz com que uma escri- ta silábica se torne escrita consonantal: nessas condições, o alfabeto exige apenas um passo para ser descoberto. Mas a análise fonética que requer não é fácil. Pesquisas experimentais estabeleceram bem que se a fragmentação silábica era fácil, a fragmentação fonemática constituía o obstáculo mais temível do aprendizado da leitura. E isto é verdadeiro tanto para as crianças que iniciam sua escolaridade quanto para os adultos que devem ser alfabetizados. Essa dificuldade fundamental é aumentada pelo fato de que a co- dificação não é aquela dos sons proferidos, mas dos fonemas, unidades abstratas: tipos independentes de suas variações locais. Escreveremos o mesmo sinal e para representar sons diferentes tais como le cheval, donne-le !ui, donne-le livre*. Ademais, nas línguas de ortografia com- plexa como o francês, o mesmo fonema receberá grafias diferentes: a mesma letra c corresponde a sons e tipos de sons diferentes no ce, cri, broche, second, broc*• e, o mesmo fonema, o por exemplo, pode receber uma dezena de grafias diferentes. Mas o problema da correspondência entre escrita e sentido é mais complexo ainda. Nosso conhecimento inicial de nossa língua materna é oral. Nosso saber apoia-se, portanto, sobre unidades combinacio- nais que são ao mesmo tempo som e sentido. Falar ou compreender é atualizar o conhecimento das palavras, ao mesmo tempo som e sentido; em certos casos, apenas som, quando não sabemos "o que isso quer dizer". Essa dupla face dos signos na fala pode encontrar- -se dissociada em decorrência de certas lesões cerebrais. Podem-se observar então dois tipos de doentes. Uns, quando lhes é pedido para ler, podem produzir uma palavra por outra, se a palavra pronunciada está ligada à palavra escrita pelo sentido, e não pelo som: é o que se chama dislexia profunda. Esses doentes têm uma enorme dificuldade para ler as palavras funcionais e as pseudopalavras desprovidas de 32 No português, verificável, por exemplo, em "estrela", "somente" e "parece". Nos casos de "cê", "crê", "broche", "caráter" e "Bic", por exemplo. (N. T.) A LEITURA E SUAS DIFICULDADES .~cntido. Os outros doentes, para os quais se fala em dislexia super- jicial, apresentam uma perturbação contrária: leem foneticamente, pronunciando todas as letras, por exemplo, o t de lit, como se se tratasse da palavra lite. Esses doentes não têm nenhuma dificuldade L'tn ler as pseudopalavras, mas confundem chandail e chandelle [em português, por exemplo, nos casos de "vê lá" e "vê-la"]. Esses tipos de perturbações pós-lesionais e numerosas pesquisas experimentais levaram à conclusão de que o processo de leitura de nossas escritas alfabéticas implicava, ao menos bastante largamente, a utilização de um saber verbal organizado a partir dos sons. Isto não significa que haja aí uma articulação realizada ou esboçada pela leitura silenciosa: esta se desenvolve, para os bons leitores, em velocidades muito supe- riores (duas a cinco vezes) àquelas que exigem a articulação da fala. Podemos ainda distinguir outros vínculos entre escrita e voz: se podemos ler poesia mesmo em silêncio, é porque continuamos a fazê- -lo encontrando o ritmo e a melodia. Se, quando escrevemos, achamos que uma frase "cai" bem ou mal, é por causa de sua melodia, sua correspondência com os grupos normais de respiração. Se os autores de métodos de leitura opuseram uma técnica alfabé- tica e silábica a uma técnica global, visando diretamente ao sentido, de fato, essas duas estratégias diferem apenas na ordem das etapas necessárias à aquisição do sistema. Os métodos clássicos ensinam, de início, uma decifração fonética, que, partindo o ritmo natural da palavra, pode levar a produzir corretamente os sons, mas não a des- cobrir o sentido, como na dislexia superficial. Essas crianças saberão ler apenas quando os procedimentos de decifração puderem ser, de algum modo, esquecidos e o leitor aceder diretamente ao sentido, sem estar consciente das correspondências entre grafemas e fonemas. /\. segunda estratégia corresponde à aquisição de uma leitura de tipo "chinês": passa-se diretamente da grafia ao sentido. Os erros serão do tipo daqueles que se observam na dislexia profunda. Apenas numa segunda etapa esses leitores deverão aprender as regras de corres- pondência grafema-fonema para poder fazer aproximações a palavras desconhecidas ou nomes próprios. Mesmo em sua leitura silenciosa, ainda que ela seja muito rápida, a língua aí compreendida permanecerá uma língua falada, ao menos em parte. 33 FRANÇOIS BRESSON A invenção da escrita exigiu apenas condições sociais: a escolha de estratégias de escrita estava ligada à estrutura da língua. O alfabeto mostra-se assim uma invenção surpreendente. O fato de um enorme número de escolares aprender a ler, aparentemente sem dificulda- des muito consideráveis, é surpreendente também. O fato de nosso ambiente estar hoje repleto de escrito não toma menos surpreendente a possibilidade da leitura. Fenômeno cultural, portanto, e realmente pouco natural: não podemos prescindir de um ensino para ter acesso à leitura. BIBLIOGRAFIA ALEGRIA,]. & MORAIS,]. 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E é exatamente porque esse aprendizado, aos olhos do pedagogo, é sempre possível, desde que para isto sejam dados os meios, que ele é percebido como tendo um extraordinário poder de ação sobre as novas gerações, ou mesmo através delas, sobre alguns dos grupos sociais de que vieram. A suposta neutralidade cultural do ato de ler, sua aparente instrumentalidade, são as garantias de sua eficácia social: ele pode ser posto a serviço de todas as causas das sociedades alfabetizadas. Das Reformas no século das Luzes até as expansões escolares do século XIX, cada política educativa estava plenamente convencidadisso: o l'nsino da leitura é um meio de transformar os valores e os hábitos dos grupos sociais, que são o seu alvo. Com efeito, se o livro se presta aos rituais de coesão social, familiar ou mais ampla, pode também, para além das redes da sociabilidade tradicional, vir interpelar um 35 ]EAN HÉBRARD leitor ou um grupo de leitores individualizados. Certamente, a leitura ritualizada pertence às áreas ele alfabetização restrita 1, enquanto que o encontro com o impresso no foro privado exige um saber ler com- parável àquele das elites intelectuais. Mas as políticas ele alfabetização, quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: elas conhecem apenas uma modalidade, universal, da leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transfor- mar a cera mole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler um grupo social até então analfabeto é apresentá-lo ao poder, com direito infinito, do livro. Apenas ele, pensamos2 , poderá destruir os modelos antigos, crenças ou superstições, no próprio coração dos quadros sociais que asseguram sua permanência. Certamente, semelhante política educativa supõe um controle estreito da produção e ela circulação cio escrito. Mas ele é mais fácil ele ser assegurado cio que o ela fala, seja através ele uma saturação cio mer- cado (edição ele propaganda), seja através ele uma regulamentação da produção (censura, permissão para imprimir, etc.) ou ela difusão (organização da livraria, ela vencia ambulante ou, no século XIX, de bibliotecas populares ou escolares ... ), ou, ainda mais simplesmente, através ela censura não apenas cios livros mas elas leituras, missão eminente elas instituições escolares ou universitárias. Com certeza, toda tentativa ele educação através cio escrito pode ser desviada ele seus fins: seja porque os grupos sociais se apoderam por contágio elas 1. O termo alfabetização restrita é utilizado aqui no sentido dado por Jack Goody (Literacy in Traditional Societies, Cambridge UP, 1968) para designar os modos de apropriação do escrito ainda inscritos nas redes ele comunicação da cultura oral. Será oposto, por nós, à alfabetização generalizada. As noções ele leitura intensiva e leitura extensiva utilizadas por Rolf Engelsing (Der Bürger als Leser. Lesergescbichte in Deutschland, 1500-JHOO, Stuttgart, 1974), a oposição entre ler somente e ler e escrever propostos por François Furet e Jacques Ozouf (Lire et écrire. L'alphabétisation des Français de Calvin à]ules Ferry, Paris, Écl. ele Minuit, 1977) podem ser aproximadas dela, sem recobri-la exatamente. 2. A ideia cio "livro educador" inscreve-se perfeitamente na filosofia elas Luzes; mas permanece também um elos dados essenciais elo discurso pedagógico do século XIX. Um exemplo entre tantos outros: a tentativa de estabelecimento de bibliotecas escolares pelo ministério Rouland em 1862, com o objetivo de prolongar além da escola e de seu trabalho de alfabetização o esforço educa- tivo do Estado. Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR práticas cio escrito (como mostra Daniel Rache a propósito cios meios da criadagem parisiense no século XVIIIº), seja porque um saber ler concedido conduz a "más leituras" (os exemplos são múltiplos). Mas mesmo que essa crença subsista em qualquer ator ele uma transfor- mação social pela alfabetização', ela não é suficiente para moderar a crença, aí compreendida a contemporânea, no poder cio livro. Entretanto, a maior parte cios trabalhos desses dois últimos clecê- n ios concernentes à leitura dão tanto ao pedagogo quanto ao político toda uma imagem bem diferente cio ler e ele sua aprendizagem. Para a sociologia elas práticas culturais, a leitura é uma arte de fazer que se herda mais cio que se aprende. E, por essa razão, ela tem mais frequentemente valor ele sintoma de enraizamento nos grupos sociais que praticam as formas dominantes ela cultura cio que valor de instrumento ela mobilidade cultural em direção a esses mesmos grupos. Colocando o acento sobre o ler mais cio que sobre o livro, sobre a recepção mais cio que sobre a posse, os pesquisadores demons- traram amplamente que, na escola, não é a leitura que se adquire, mas são maneiras ele ler que aí se revelam. Ao aprender a ler, a criança contentar-se-ia em reinvestir no domínio cio escrito as práticas culturais mais gerais do seu meio imediato. A rigidez ela tecnologia pedagógica c a normatividade cios procedimentos ele avaliação mascarariam, por .~i só, a cliversiclacle cios resultados obtidos. O mesmo ceticismo em relação à existência ele uma dinâmica cultural ligada ao acesso ao escrito caracteriza os modelos propostos pcla psicopeclagogia ou pela psicolinguística para a compreensão ela aprendizagem e da prática ela leitura. Com efeito, a conquista desses últimos anos, nesse domínio, consiste em considerar que o fato ele a comunicação escrita ser uma comunicação diferenciada dá ao leitor uma posição inteiramente distinta daquela ele simples receptor ou mesmo de decoclificaclor ela mensagem. O trabalho ele leitura é, em grande parte, :\. Daniel Roche, Le Peuple de Paris, Paris, Aubier, 1981. 1. Os preceptores do século XIX não escapam a esse temor. Encontramos nu- merosos testemunhos disso no Bulletin de la Société Franklin (1868-1927), em que os mais preocupados com uma educação popular através elo livro e ela biblioteca não cessam ele denunciar as "más leituras" ele seus antigos alunos. 37 ]EAN HÉBRARD um processo de produção de sentido, no qual o texto participa mais como um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do que como estrita mensagem. A partir de então, pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apoiam-se mais sobre a capitalização cultural específica de cada leitor do que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração5. Mas, além disso, se fica fácil compreender assim a maneira pela qual o leitor reativa, no seu ato de leitura, suas aquisições culturais anteriores, por outro lado, é muito mais difícil utilizar os mesmos modelos para explicar como o encontro com um texto pode remodelar um universo pessoal intelectual ou fantasmático. Logo, a leitura é mais facilmente pensada como processo de confirmação cultural do que como motor de um deslocamento ou de uma progressão no mesmo campo. Entretanto, existem aprendizagens exemplares da arte da leitura, irrupções no mundo do escrito que nada ou quase nada deixava prever, como é o caso de autodidatas trânsfugas das práticas culturais de seus círculos ou de comunidades e até mesmo de grupos sociais mais importantes. Dos primeiros, frequentemente, apenas é possível tomar conhe- cimento através das "histórias de vida" que nos deixam depois que falam ou escrevem. A relação com os livros parece determinante na consciência que adquirem de sua trajetória; e essa relação articula-se, sempre, na imperícia conservada e nas suas ambivalências, com uma aprendizagem bem-sucedida da leitura - aprendizagem de modalida- des complexas, escolares e não escolares. Dos segundos, as histórias de alfabetização, após as do barão Dupin e de Maggiolo, inventariariam com precisão os acessos sucessi- vos às práticas culturais do escrito. Seguramente, a acumulação dos dados e a simplicidade dos critérios mantidos conduziram os pesquisa- dores mais em direção à análise dos trends de alfabetização do que à caracterização das "irrupções" e de seus efeitos. Mas, se não quisermos 5. Encontraremos uma boa bibliografia sobre a abordagem psicopedagógica dessa questão em Jacques Weiss, À la recherche d'une pédagogie de la lecture, Berna, Peter Lang, 1980. Do lado psicolinguístico, podemos nos referir a Georges Noizet, De la perception à la compréhension du langage, Paris, PUF, 1980. 38 Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR nos contentar com esses indicadores mínimos que são a assinatura ou a declaração diante das autoridades militares, não será impossível reins- creveresses acontecimentos culturais em contextos mais qualitativos, que esclareçam sua especificidade e permitam compreender melhor as dinâmicas culturais das quais são os paradigmas privilegiados. É nessa direção que parecem dirigir-se alguns trabalhos recen- tes, quer se tratem daqueles que Margaret Spufford consagrou aos puritanos ingleses do século XVII6 ou daqueles, menos historicistas mas metodologicamente mais novos, que Jacques Ranciere construiu em torno dos trabalhadores que tiveram contato com os missionários são-simonianos em Paris, durante o segundo terço do século XIX7• Em um e outro caso, ainda são narrações de vida, autobiografias que enunciam uma passagem bem-sucedida. Mas aí ainda, como nas experiências mais individuais e mais excepcionais às quais voltare- mos, a acumulação de anotações consagradas às maneiras de ler e escrever, às condições de sua aprendizagem e àquilo que, aos olhos do autor, lhe assegurou o sucesso, assinala menos a precariedade do deslocamento cultural do que a surpresa diante de sua possibi- lidade, ligada à firme intenção de tudo fazer para assegurar-lhe a perenidade. Nesse sentido, o autodidata testemunha não somente a possibilidade de aprender a ler, no sentido mais pleno do termo, mas também a necessidade de contar essa aprendizagem para dar- -lhe a sua verdadeira dimensão, a de uma vitória contra a inércia das posições culturais, e, desse modo, torná-la irrevogável. Assim, o autodidatismo assinala-se e revela-se, em numerosos casos, através da autobiografia espontânea ou provocada. À exceção desse tipo de documento, ele corre um grande risco de escapar a qualquer investigação, mesmo no âmbito de uma sociologia ou de uma psicolo- gia do fenômeno. A análise dessa fala que vêm fora de hora é uma via bastante obrigatória se quisermos tentar explicar uma aprendizagem da leitura que não seja a simples atualização de um capital herdado. 6. Margaret Spufford, "First Steps in Literacy: the Reacling anel Writing Experiences of the Humblest Seventeenth Century Autobiographers", Social History, v. 4, n. 3, 1979, pp. 407-435. 7. Jacques Ranciere, La Nuit des prolétaires, Paris, Librairie Artheme Fayard, 1981. 39 JEAN HÉBRARD O fato de que ela seja metodologicamente muito problemática é apenas um encorajamento suplementar para explorar suas possibilidades. É com esse espírito que gostaria de apresentar aqui uma tentativa de análise de um documento excepcional. Trata-se das Memórias de ValentinJamerey-Duval que Jean Marie Goulemot acaba de tornar nova- mente disponíveis8, acompanhadas de uma introdução notável e de um aparato de notas cuja erudição servirá de barreira a qualquer abuso de interpretação. Esse documento nos remete à errância de um pequeno camponês do século XVIII, expulso de sua casa aos treze anos pela miséria e brutalidade de seu círculo familiar, não escolarizado, e que, entretanto, após "aventuras extraordinárias", torna-se aos vinte e cin- co anos "professor de história e de antiguidades" na academia de Lunéville no ducado da Lorena. É verdade que verá ser-lhe oferecida por seus protetores uma estada na universidade de Pont-à-Mousson mas é bem antes, ao sabor de sua errância nos baixos vales do ri~ Vosges, da Lorena, que se constitui um saber quase enciclopédico num contato tão desordenado quanto assíduo com o escrito. A autobiografia que nos deixou diz, em sua narração como em sua escrita o que foi aos seus olhos, sua trajetória cultural. , , É verdade que o autodidata agasta seu leitor ou seu ouvinte: ele aí faz demasiado. Philippe Lejeune já mostrou9 como o gênero autobio- gráfico, em si mesmo e independentemente de qualquer reivindicação autodidática, exige de seu público o reconhecimento da autenticidade do dizer, até mesmo a do homem que o sustenta com seu "eu". Nisso, a autobiografia seria menos um modo de escrita do que a exigência de um tipo de leitura específica, de um "pacto" entre autor e leitor. Jean-Jacques Rousseau é aqui incontornável. No caso da autodidatismo, a "bastardia cultural"1º do autor torna ainda mais necessária a submissão aos valores do mundo cultural de 8. ValentinJamerey-Duval, Mémoires. Enfance et éducation d'un paysan auXVI!le siecle. Prefácio, introdução, notas e anexos de Jean Marie Goulemot, Paris, Le Sycomore, 1981. 9. Philippe Lejeune, Le Pacte autobiographique, Paris, Le Seuil, 1975. 10. Tomo esse termo de Jean Marie Goulemot, em sua introdução às Mémoires de Jamerey-Duval (ver nota n. 8). 40 Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR chegada: a autobiografia torna-se a prova e o sintoma da "passagem". Isto dá a esse tipo de escrito um valor documental bem específico. Se permanece inteiramente arriscado querer ler aí o reflexo do trajeto da aculturação do escritor, torna-se, pelo contrário, perfeitamente possível ver aí um momento desse mesmo trajeto. A autobiografia do autodidata tem um valor mais pragmático que representativo. Ela remete ao per- formativo: é um ato de escrita. Não deve confundir-nos, portanto, o fato de que esse ato, pelo qual a "passagem" perde sua contingência e torna-se necessária, apresente-se como uma narrativa; essa narrativa é para ser lida, em sua ordenação cronológica, apenas como metáfora do autodidatismo, como ordenamento lógico deste, como se essa es- truturação tardia do avanço fosse a mesma que poderia fazê-lo perder sua natureza de acontecimento e fundar sua irreversibilidade, ainda conservando nela seu caráter excepcional. Logo, a autobiografia do autodidata esboça uma "figura" da movimentação cultural através de sua narrativa. Recensear essas figuras poderia esclarecer-nos sobre as modalidades ela irrupção bem-sucedida nas práticas do escrito, talvez mesmo permitir-nos construir um modelo dela. Resta, entretanto, uma precaução metodológica a ser tomada. No contínuo cios materiais autobiográficos, que vão ele Jamerey-Duval ao Chateaubriand elas Memórias do além-túmulo ou ao Sartre das Pala- vras, passando por Agricol Percliguier, Martin Naclaucl, Norbert Truquin, Antoine Sylvere ou Grenadou, onde situar o domínio cio autodidatismo? É bem evidente que a resposta mais imediata, que se fundaria sobre a alternativa escolarizada/não escolarizada, não somente é anacrônica, uma vez que se fica aquém ela obrigação escolar, mas, sobretudo, remete a essa concepção instrumental cio ler e ela escrita que recusamos. Mas, para tanto, podemos permanecer na simples apreciação, inteiramen- te subjetiva, do caráter excepcional cio acesso ao mundo do escrito? Se é verclacle, como escreve Jean Marie Goulemot, que "nada anunciava no filho do relojoeiro ele Genebra ou no filho de camponeses pobres de Arthenay o intelectual cios Discursos ou o professor ela academia de Lunéville"11 , podemos dizer, por isso, que Jean-Jacques Rousseau e ValentinJamerey-Duval são, a mesmo título (o ela surpresa retrospectiva), 11. ]. M. Goulemot, op. cit., p. 44. 41 ]EAN HÉBRARD autodidatas? Aliás, sabemos bem que, quando é possível uma caracte- rização sociológica precisa do meio familiar, ela não garante em nada a qualidade das práticas culturais particulares desta ou daquela comuni- dade. Ainda aí, a crítica externa é difícil, e mesmo impossível. É também na autobiografia, ela mesma, que se devem procurar as justificativas da pertinência das escolhas efetuadas. De minha parte, ater-me-ei provisoriamente a um critério dado por Rousseau, cujo caráter judicioso parece-me adequar-se à situação bastante particular que este ocupa, tanto pela ambiguidade de sua condição social, quanto pela quase invenção que propõe do gênero autobiográfico. Ele escreve no livro I do Manuscrito de Neuchâtel das Confissões 12 : "Não sei como aprendi a ler; parece-me tê-lo sempre sa- bido". A distância cultural que ele marca ao longo de todo o seu texto, entre sua infância e a que supõe de seus leitores, e que culmina no episódio da entrada na aprendizagem, não se estende até a oposição entre saber ler e não saber ler. Jean-Jacquesnão tem que reivindicar um lugar no mundo cultural do escrito; ele "sempre" esteve aí. É a ex- pressão de uma conivência que exclui a consciência de uma educação autodidata. Poderia aproximá-la de outras modalidades, como a do maravilhamento de Sartre diante da facilidade da aprendizagem em As palavras13 ou a negligência com a qual Gide lembra esse episódio em Se o grão não morrer14. Seguramente, aí opõem-se a minúcia das anotações, a preocupação da exaustividade e a importância dada ao fenômeno emJamerey-Duval. Portanto, o critério do autodidatismo será aqui o estatuto de acontecimento dado pelo escrito autobiográfico ao primeiro processo de apropriação do escrito. O que fazer com esses materiais? Sua multiplicidade, da mesma maneira, não nos permite escapar à análise de caso, devido mesmo a essa natureza de acontecimento que lhes é essencial. Somos também 12. Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, CEuvres Completes, t. I, Paris, Galli- mard, Bibliotheque de la Pléiade, 1959, p. 1236, nota a. 13. Jean-Paul Sartre, Les Mots, Paris, Gallimard, 1964. [Ed. bras.: As palavras, Rio de janeiro, Nova Fronteira, 6ª ed., 1993.l 14. André Gide, Si le Grain ne meurt, Paris, Gallimard, 1955. [Ed. bras.: Se o grão não morrer, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.] 42 Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR levados, de maneira quase obrigatória, a emprestar da psicolinguística alguns de seus modos de aproximação. É preferível exibi-los a utilizá- -los de maneira implícita, como é o caso da maior parte dos trabalhos consagrados, fora dessa disciplina, à alfabetização. A dinâmica própria do autodidata pode, com efeito, ser comparada ao esforço que faz um leitor "legítimo" quando um escrito o confronta com um domínio cul- tural que não domina, ou seja, quando o ato de leitura não se assenta mais sobre o reconhecimento de um contexto partilhado com o autor. Como podemos ler aquilo que não conhecemos ainda? Como, pelo livro, podemos ter acesso ao que não se sabe? A ilusão das Luzes não se dissipou absolutamente. É difícil imaginar que o livro não possa ser o mais perfeito dos educadores e, portanto, debruçamo-nos muito pouco sobre a dificuldade do ler, a não ser nos tratados pedagógicos que afirmam que seria necessário apenas um pouco de atenção. Contudo, alguns trabalhos recentes10 mostram que o acesso aos textos "difíceis" depende de uma remo- delagem do feixe de hipóteses, de antecipações, a partir das quais tentamos interpretar os signos dispostos no texto. Nisto, eles propõem o mesmo tipo de interpretação que aquele pelo qual H. R. Jauss explica o acesso à modernidade estética16 . Somente uma formação do horizonte de expectativa do leitor permite-lhe aceder a outros escritos além daqueles que são constituídos como clássicos por esse mesmo leitor. Logo, o ato de leitura nesse caso particular distingue-se de um simples fenômeno de reconhecimento, de confirmação cultural, por um trabalho que deve ser operado pelo leitor sobre si mesmo, condição sine qua non de uma abertura ao novo e, portanto, de um processo de educação pelo livro. Ocorre o mesmo quando se trata não somente de ir além de suas leituras habituais, mas de aceder de maneira original ao escrito? O autodidata nos permite compreender, através de sua escrita autobiográfica, essa remodelagem de seu horizonte de expectativa que lhe permitirá saber, um dia, o que fazer com o escrito? 15. Cf., por exemplo, Ross Chambers, "Le texte 'difficile' et son lecteur", Lucien Dallenbach e Jean Ricardou (ed.), Proh!emes actuels de la lecture, Paris, Clancier-Guénaud, 1982, pp. 81-93. 16. Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. 43 ]EAN HÉBRARD Na "figura" que nos dá a ler ele sua mobilidade, Jamerey-Duval constrói uma teoria de seu deslocamento que não é contraditória com a ideia que dela fazem os psicolinguistas ou os pesquisadores da escola de Constance: trata-se de remodelar o horizonte cultural de referência, a fim de dar eficácia ao encontro com o escrito. E essa reestruturação se articula ao redor de três temas: - a evocação do campo cultural originário que é partilhado com a comunidade de pertença, seguramente iletrada, mas, da mesma ma- neira, atravessada mais ou menos por uma presença quase subliminar cio escrito; - a explosão desse terreno ele referências metodicamente operado por esse sujeito a surgir elas práticas escritas, esse "ainda não leitor"; - a aprendizagem cios signos da escrita. Mas essa alfabetização bem-sucedida não seria suficiente para pro- duzir um autodidatismo. De nada serve ter aprendido a ler, e ler bem, se essa capacidade não se torna o núcleo ele um hábito cultural novo. Aliás, Valentin Jamerey-Duval experimenta a necessidade ele contar não apenas sua alfabetização, mas também a inscrição desta nas regras maiores que regem o universo cultural ao qual ele acedeu: para ele, a abertura para o ler só se torna definitiva (e correlativamente lícita) ao dotar-se de seus próprios limites, de seu sistema de censura. Aos três motivos da irrupção no mundo do escrito vem, portanto, juntar- -se o da necessária "garantia" elas novas práticas ele leitura adquiridas. Trata-se apenas de encontrar uma resposta a essa questão que coloca o deslocamento dos valores culturais engendrados pelo próprio movi- mento do autodidatismo: por qual meio podemos garantir a verdade cio que foi lido, quando o caráter eminentemente privado do ato da leitura torna difícil o apelo às opiniões comuns sempre disponíveis nas trocas verbais da cultura oral ou na alfabetização restrita? Uma vez encontrada a resposta, o autodidatismo está assegurado pela sua irreversibilidade. Resta-lhe apenas expressar-se. 44 Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR A EXEMPLARIDADE DE UM AUTODJ[)ATTSMO Alguns pontos de referência biográficos 1695: nascimento de Valentin, filho de Valentin Jamerey, carpin- teiro ele carroças, em Arthonnay (região de Tonnerre). 1700: morte do pai, miséria. 1708: novo casamento da mãe, com um cervejeiro "muito brutal"; fuga (Valentin tem treze anos) para uma Paris mítica à qual não chegará, mas que o leva ele Tonnerre à abadia de Paraclet e Provins. 1709: Villers-Saint-Georges, onde o acometem uma pequena varíola e os rigores de um inverno particularmente rigoroso; resta- belecido, põe-se novamente em marcha, atravessa a Champagne, chega a Clézantaine (ao norte ele Épinal), onde encontra um emprego ele pastor e aprende a ler na Biblioteca Azul. Ele tem quatorze anos. 1710: descobre na interseção ele uma vida rural e de uma cultura mínima do escrito, a instituição eremítica. Passando de um ermitério a outro, chega a Deneuve, perto de Baccarat, onde sua posição de criado não o impede de ler as obras de devoção. 1712: está agora no ermitério de Saint-Anne, vizinho a Lunéville; aprende a escrever (ele tem dezoito anos) e, graças a alguns salários, forma, não sem conflitos com seus empregadores, uma minúscula biblioteca. 1716: encontro com o duque Leopoldo da Lorena; o duque maravilha-se por ver um selvagem sábio; Valentin ganha quatro luíses e compra mais alguns livros. 11 de maio de 1717: encontro decisivo com o barão de Pfützchner, preceptor do filho cio duque; o pedagogo toma o selvagem e o coloca sob sua proteção no castelo de Lunéville para realizar sua educação; Valentin aprende o latim (ele tem vinte anos). 1718: viagem a Paris. 1719-1720: estudos na universidade ele Pont-à-Mousson; gradua-se, sem grande convicção, em filosofia; prefere a numismática ... 1720: nomeado, sucessivamente, sub-bibliotecário, depois biblio- tecário e enfim professor de história e de antiguidades na academia de Lunéville, alcança sua independência financeira. 45 JEAN HÉBRARD 1737: segue Francisco III (que sucedeu Leopoldo, mas que trocou seu ducado pelo ela Toscana) até Florença, para onde a biblioteca ele Lunéville foi transportada; é certamente em torno desse período que trabalha mais ativamente na redação ele suas
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