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Práticas da leitura ( PDFDrive )

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llllllllllllllllllllllllllllllllllllllll 
22819 
LISTA DOS AUTORES 
PIERRE BouRDIEu, College de France 
FRANçors BREssoN, École des hautes études en sciences sociales 
H.oGER C!JARTTER, École des hautes études en sciences sociales 
ROBERT DARNTON, Universidade de Princeton 
DANIEL F ABRE, École des hautes études en sciences sociales 
]EAN MARTE GomEMoT, Universidade de Tours e Instituto Univer-
sitário da França 
]EAN HÉBRARD, Serviço de História da Educaçào, INRP e CNRS 
Lorns MARTN, École des hautes études en sciences sociales 
DANJEL Roem, Universidade de Paris-I e École des hautes études 
en sciences sociales 
Uma iniciativa de 
Alain Paire 
sob a direçao de 
Roger Chartier 
PRÁTICAS DA LEITURA 
Tradução 
Cristiane Nascimento 
Introdução 
Alcir Pécora 
5ª edição 
• Estocão Liberdade 
Publicado originalmente sob o título Pratiques de la lecture pela Éditions Rivages, 
© 1985; © 1993 Éditions Payot & Rivages, Paris, para a edição de bolso 
©da Introdução: Alcir Pécora, 1996 
© 1996, 1998, 2001, para esta edição 
Revisão de texto Marcelo Rondinelli e Angel Bojadsen 
Composição Marcelo Higuchi /Estação Liberdade 
Capa Nuno Bittencourt /Letra & Imagem 
Ilustrações da capa Jan Vermeer, Moça lendo carta, óleos/ tela, c. 1657, 
Gemiilde-Galerie, Dresden; Giuseppe Maria Crespi, 
Estante de biblioteca com partituras encadernadas, 
Conservatório de Música, Bolonha 
Editores Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
Práticas da Leitura/ sob a direção de Roger 
Chartier ; uma iniciativa de Alain Paire ; 
tradução de Cristiane Nascimento ; introdução de 
Alcir Pécora. - 5'. ed. - São Paulo; Estação 
Liberdade, 2011. 
Título original: Pratiques de la lecture. 
Vários autores. 
Bibliografia. 
ISBN 978-85-85865-14-6 
1. Leitura 2. Leitura - História 3. Livros e 
leitura I. Chartier, Roger. II. Paire, Alain. III. 
Pécora, Alcir. 
01-0183 
Índice para catálogo sistemático: 
1. Leitura : Linguística 418.4 
2. Prática da leitura : Linguística 418.4 
CDD-418.4 
ESTE LIVRO, PUBLICADO NO ÂMBITO DO PROGRAMA DE PARTICIPAÇÃO À PUBLICAÇÃO, 
CONTOU COM O APOIO DO MINISTÉRIO FRANCÊS DAS RELAÇÕES EXTERIORES 
Todos os direitos reservados à 
Editora Estação Liberdade Ltda. 
Rua Dona Elisa, 116 - 01155-030 - São Paulo - SP 
Te!.: (11) 3661 2881 Fax: (11) 3825 4239 
http://www.estacaoliberdade.com.br 
SUMÁRIO 
9 INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA 
ALcIR PÉCORA: O campo das práticas da leitura, segundo Chartier 
19 PREFÁCIO 
RoGER CHARTIER 
23 APRENDIZADOS 
25 FRANÇOIS BRESSON: A leitura e suas dificuldades 
35 JEAN HÉBRARD: O autodidatismo exemplar. Como Valentin 
Jamerey-Duval aprendeu a ler? 
75 FIGURAS DA LEITURA 
77 RoGER CHARTIER: Do livro à leitura 
107 JEAN MARIE GouLEMOT: Da leitura como produção de sentidos 
117 Lours MARIN: Ler um quadro - uma carta de Poussin em 1639 
141 LEITORES COMUNS 
11+:1 ROBERT DARNTON: A leitura rousseauista e um leitor "comum" 
do século XVIII 
177 DANIEL RocHE: As práticas da escrita nas cidades francesas do 
século XVIII 
201 DANIEL FABRE: O livro e sua magia 
229 A LEITURA: UMA PRÁTICA CULTURAL 
Debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier 
2')') ÜRIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA (1985-1992) 
O campo das práticas da leitura, 
segundo Chartier 
Introdução de Alcir Pécora à edição brasileira 
A presente coletânea reúne os trabalhos de estudiosos de diferen-
tes áreas que compareceram a um encontro a propósito do tema da 
k·itura realizado há cerca de dez anos e que, por isso mesmo, resume 
11 m momento precioso das discussões em torno de algo que hoje, 
talvez rapidamente demais, já ganha ares de produto cultural mais ou 
lllL'nos estável. Naquele momento, a questão para os pesquisadores 
1 iresentes ao encontro era promover o confronto de seus diferentes 
t r;1halhos de modo a obter-se uma visão mais ampla do campo dos 
( ·st udos referentes às práticas da leitura. Está perfeitamente evidente 
< 111e, de todos os autores presentes, é o diretor do encontro, Roger 
< :ilartier, quem mais se empenha no sentido de ajustar cada um dos 
( ·st udos como um ponto de um mapa em construção, de considerar 
( lt ·senvolvimentos distintos e assimilar contribuições mútuas favoráveis 
.ll> dL:senho mais preciso, mas também mais inclusivo, da nova área. 
Em termos resumidos, seguindo-se a pista lançada pelo próprio 
< :1l:1rtier, o campo da história das práticas da escrita avança por três 
'li1qúes distintas, mas não contraditórias, capazes de abranger o con-
1111110 dos estudos da coletânea. Assim, a primeira dessas perspecti-
' :1s, de matriz fundamentalmente histórica, pretende levantar maneiras 
( 1( · ler que já não ocorrem sistematicamente no presente; trata-se de 
, 'instituir, por assim dizer, um corpus de "atitudes antigas" diante ela 
1( ·it ura, em que as suas diferentes formas apenas se configurem no 
i11tl·rior de práticas datadas. Estudar a leitura por esta via é, pois, repor 
:1., rd(:r0ncias históricas de uma pragmática já dissolvida no presente. 
9 
ALCIR PÉCORA 
Para chegar ao estabelecimento desse corpus, Chartier propõe 
descobrir nos próprios textos a permanência de certos índices da 
antiga pragmática que os suscitara. E os vestígios privilegiados, aí, 
aqueles para os quais tem mais faro, são aqueles a que se refere como 
"protocolos de leitura", basicamente de dois tipos, ambos importantes 
para a reconstituição dessas atitudes antigas das práticas do ato de ler. 
O primeiro remonta aos elementos que determinado autor dissemina 
pelo texto de modo a assegurar, ou ao menos indicar, a correta inter-
pretação que se deveria dar a ele. Em outros termos, poder-se-ia dizer 
que tais protocolos de leitura inscrevem no texto a imagem de um "leitor 
ideal", cuja competência adequada decodificaria o sentido preciso com 
que o autor pretendeu escrevê-lo. Assim, o artigo de Louis Marin a pro-
pósito de uma carta de Poussin para Chantelou, comitente de um de seus 
quadros mais célebres, o Maná, é particularmente esclarecedor, embora 
referindo-se a um tipo de objeto específico em que as práticas de leitura 
guardam relações próximas com a contemplação de um quadro. Marin 
mostra como Poussin, esse modelo de "pintor-filósofo'', concebe em 
seu quadro uma série de elementos composicionais, cuja função básica 
é colocar o espectador na posição de um leitor, capaz de decodificar 
seus signos e figuras, invisíveis para quem não se dê ao trabalho de 
considerá-los adequadamente. A partir de uma análise minuciosa do 
quadro, Marin mostra que a figura do velho, a primeira que é pintada 
à esquerda do quadro - que por si só privilegia a posição textual, em 
que a tradição ocidental manda que se comece a leitura -, representa 
o lugar do comitente e, em termos mais gerais, de todo espectador. 
A partir do olhar particular do velho sobre outra cena parcial, em que 
uma jovem mãe, pintada como uma Caridade romana, é proposta 
como anúncio ou figura do Maná e da Eucaristia, Poussin orienta o 
ponto de vista mais conveniente para a apreciação do quadro global. 
A figura ensina que o quadro deve ser visto a partir de duas leituras 
que lhe estariam subjacentes (a narrativa escriturai do Êxodo e o Livro 
V do Dictorum factorumque memorabilium, de Valério Máximo) e até 
o afeto justo que deveria presidir a esse reconhecimento. Quer dizer, 
baliza-se o percurso do observador de modo a que tome para si a 
função de um leitor cuidadoso e possa chegar a uma interpretação do 
quadro que seu autor julga a única correta. 
10 
< 
INTRODUÇÃO 
Outro tipo de protocolo de leitura que interessa a Chartier é o 
que se produz na própria matéria tipográfica, em geral de responsa-
bilidade do editor, de modo a favorecer certa extensão da leitura e a 
caracterizar o seu "leitor ideal'', que não precisa assemelhar-se àquele 
originariamente suposto pelo autor. O exemplo mais interessante aqui, 
referido por vários artigos, é o da "Biblioteca Azul'', série editada em 
Troyes, ao longo do século XVII, que reunia textos bem diferentesl'ntre si, não exclusivamente populares, mas todos uniformizados em 
l'dições que pretendiam baratear ao máximo seu custo e alcançar o 
maior número possível de leitores. Os procedimentos que demarcavam 
l'Sse objetivo, vale dizer, que pretendiam facilitar o acesso de um leitor 
que se pretendia comum, operavam o texto de sorte a aumentar o 
número de capítulos, diminuir o tamanho dos parágrafos, abreviar ou 
nirtar certas passagens e, no caso de textos mais antigos, modernizar 
:1 ortografia. O curioso é que, muitas vezes, isso se fazia à custa do 
(·e ltnprometimento do próprio sentido básico do texto, o que parece 
indicar que, pelo menos em relação a tais leitores, a articulação dos 
e ·e mteúdos nem sempre tem o primeiro papel no interesse prático da 
k·itura. 
Enfim, o que os protocolos de edição ou impressão evidenciam é 
que, no tipo de história buscada por Chartier, a reflexão a propósito 
c lc) suporte material do sentido é fundamental para a determinação 
e k· sua efetuação nas práticas. A materialidade do suporte passa a 
.';l'r inalienável do espírito das representações a que seus usos deram 
111argem. Daí que, para Chartier, fazer a história das práticas de leitura 
indui privilegiadamente o levantamento dos usos históricos do livro 
e· das várias formas particulares do impresso. O seu materialismo dos 
111l'ios o faz falar da "ordem do livro", antes da "ordem do discurso", 
, · menos da ordem dos livros que daquela que existe na aparente 
ck·sordem dos seus usos. Comentando essa mesma "operação de 
< :l1:1rtier'', João A. Hansen observa que não se trata aqui de "uma nova 
tc·xtualização da subjetividade entendida como efeito determinado 
pda estrutura da língua ou do inconsciente, como ainda sugere o 
h n 1cault de L'ordre du discours. Também não é uma interpretação ou 
ill'rmenêutica, como um comentário ou uma subjetivação da textuali-
< i;f( k· que, ao entender os objetos culturais como relação intersubjetiva 
11 
ALcm Pü:oRA 
ele consciências, abstrai seu meio material" 1 • Nessa clireçào, concebe-
-se a importância elo artigo ele Daniel Rache, por exemplo, que busca 
rastrear a multiplicidade elas formas impressas praticadas em algumas 
cidades francesas elo século XVIII. Também na atenção extraordinária 
dada à opacidade elo meio talvez se possa ver quanto esse projeto 
quase arqueológico alimenta-se da própria experiência do presente, 
quando ler ou entender um texto implica antes conhecer o programa 
que o imprima ou convirta. A opacidade elos meios nunca esteve tào 
clara para nós quanto agora, e nào ele um ponto ele vista teórico ou 
epistemológico, como o podíamos formular há tempos, mas prático, 
cotidiano, em que saber operar o s~ftware parece resolver boa parte 
da questào essencial da dificuldade ele escrita e leitura. Mas isto é 
apenas uma obvieclade (e, como tal, possivelmente falsa). 
Uma segunda via levantada pelos artigos da coletânea para uma 
possível história das práticas da leitura refere-se às "apropriações'' 
elo texto pelo leitor, que, muitas vezes, como todos os estudos vào 
acentuar, escapam completamente ao controle ou previsões signifi-
cativas elo texto, submetendo-o a desvios semânticos e imprevistos 
pragmáticos notáveis. Para conhecer essas apropriações, o caminho 
mais imediato que se oferece é o da confidência elos leitores a respeito 
de seus modos de ler, dos sentidos que descobrem nos textos. É o que 
faz Darnton, por exemplo, quando revela e analisa a correspondência 
ele um típico leitor de Rousseau, na La Rochelle do século XVIII, que 
reconhece no filósofo o "amigo Jean-Jacques", jamais um autor de ro-
mance ou sequer um autor, e lê nas epístolas ela Nova Heloísa jamais 
ficçào ou retórica, mas conselhos sinceros ele um semelhante mais 
sábio, mas íntimo, que vive longe, mas de que se tem notícia cotidiana, 
miúda, familiar. Aqui, aliás, os protocolos ele leitura levantados por 
Darnton vão todos na direção cio estabelecimento de uma maquinaria 
muito eficaz, cujo efeito máximo é justamente o da "sinceridade", uma 
invenção retórica que mascara radicalmente a sua própria existência 
e postula com êxito a comunicaçào ele coração-a-coração, sem inter-
mediários desviantes. Ora, numa perspectiva historiográfica em que 0 
1. "Leitura de Chartier", Revista de História, 133, l' semestre de 1995. Citaç;!o na 
p. 125. 
12 
[NTRODU<,:ÃO 
parti pris é a determinação material elo suporte, suas análises jamais 
parecem mais implacáveis elo que quando se aplicam a objetos de 
extração romântica. Tudo o que neles parecia negar o meio revela-se 
agora como protocolar, cleterminaçào implícita da autoridade elo autor a 
propósito da maneira adequada de ler. Entretanto, pelo que é dado ver 
de várias passagens de Chartier, e também ela fala de Pierre Bourdieu 
no debate anexado ao final da coletânea, nào é esta a tendência que 
mais parece agradar aos historiadores da cultura franceses. Admitindo, 
embora, que tais confidências possam ser úteis para determinar-se a 
distância que vai do ''leitor ideal", proposto pelo autor ou editor, ao 
"leitor real", consideram problemática a sua confiabilidade. Levá-las 
em conta exige igualmente descobrir os seus mecanismos de busca 
de legitimação no cerne da própria cultura erudita ;1 que pretendem 
ascender, ou descrever as situações precisas em que se realizam, muitas 
delas sob coação e censura. 
De qualquer modo, as apropriações dos textos pelo leitor implicam 
.~empre a consciência de que a possibilidade ele leitura efetua-se por 
um processo de aprendizado particular, de que resultam competên-
cias muito diferentes. Cabe distinguir, portanto, em primeiro lugar, 
a competência daqueles que aprendem a ler nas situações escolares 
institucionais e a elos autodidatas, que remonta por vezes ao que 
Jean Hébrard vai chamar de "procedimento selvagem" de acesso ao 
escrito. É dele justamente o estudo sobre o autodidatismo de Valentin 
Jamerey-Duval, um caso do início do século XVIII. Fica evidente aí 
que as considerações autobiográficas constituem-se a partir de certas 
balizas que, mais do que serem fidedignas enquanto enunciado, são 
í nelices ele seu esforço para obter uma "autenticação" de seu acesso 
por inteiro ao mundo da escrita, o que, no caso de um autodidata, 
implica a passagem para um mundo socialmente tomado como supe-
rior. Assim, em sua autobiografia, Jamerey-Duval procura apagar toda 
a presença do escrito - difusa, é verdade, mas presente - em seu meio 
de origem, ele modo a dar a entender que sua alfabetização decorre ele 
uma ruptura radical com esse meio e elo cumprimento irresistível ele 
uma disposição natural para o aprendizado. Porém, como o demonstra 
l lébrard, ao longo ela autobiografia e a despeito elos cuidados que toma 
em seu desejo ele autenticaçào elo novo status ele letrado, revelam-se 
13 
ALCIR PÉCORA 
em seu texto muitos traços que patenteiam certa inadequação entre 
a capacidade de leitura adquirida e o "capital cultural" suposto nessa 
leitura dos textos. 
Admitido o interesse exemplar desses relatos, está claro que, 
para Chartier, a proposta de uma história das práticas de leitura não 
poderia resumir-se a uma coleção de casos. As análises particulares 
necessariamente teriam que avançar até o ponto de reconhecimento 
dos elementos estruturais dos textos capazes de funcionar seja como 
protocolos de autoria ou edição, seja como índices de apropriações 
mais ou menos criativas e desviadas em relação aos protocolos. Quer 
dizer, embora os estudos de leitura remetam inevitavelmente a circuns-
tâncias e usos em que a sua prática se constrói, a ideia subjacente a 
eles é que a pragmática em que se inserem seja constitutiva do produto 
cultural, e não elemento exterior que se ajunta superficialmente a ele 
em situações dadas. Outra vez: reconhecer os traços das práticas no 
cerne das próprias representações e seus suportes é a pedra de toque 
do tipo de investigação ambicionada por Chartier. 
Também pode-se depreender dos estudos da coletânea uma 
terceira viapara a história ela leitura, que trata fundamentalmente 
de observar ou descrever os múltiplos empregos do termo "leitura'', 
pluralidade cujo reconhecimento proporciona a vantagem de romper 
com a ideia monolítica e homogênea que se tem comumente do seu 
processo, dado como natural e espontâneo. O artigo de François 
Bresson desenvolve-se inteiro de modo a contestar essa perspectiva 
tradicional. Contudo, a compreensão da complexidade do ato de ler, 
que sempre demanda a inserção não formalizável em práticas distin-
tivas, não deve conduzir ao equívoco de uma generalização tal que 
a ideia de "leitura" já não contenha senão uma alusão metafórica a 
processos que guardam pouca ou nenhuma relação com a prática de 
decifração letrada suposta nela. O risco é apontado de maneira franca 
por Pierre Bourdieu ao fim do volume, quando mostra que a genera-
lidade excessiva na aplicação do termo não apenas pode indistinguir 
práticas muito diversas, como também propiciar uma espécie de desvio 
intelectualista em todo exame de práticas, como se não fossem senão 
discurso, e seu propósito fosse exclusivamente o conhecimento ou a 
informação. Ciente do risco, Chartier parece concentrar seu interesse 
14 
INTRODUÇÃO 
relativo às fronteiras da leitura nas relações historicamente dadas entre 
texto e imagem. Quando fala em "figuras" do ler, o seu horizonte é o 
da investigação das possibilidades de relação estrutural entre o legível 
e o visível, na decodificação, por exemplo, de certos livros e quadros. 
O seu próprio texto, o de Jean Marie Goulemot e o de L. Marin, já 
citado, trabalham nessa direção. O resultado mais interessante, a meu 
ver, como disse, é o deste último, quando mostra de maneira muito 
convincente que, no caso de Poussin, seus protocolos de leitura do 
quadro fazem supor que não pode haver verdadeira compreensão dele 
sem que o observador conheça e ajuste a imagem que vê de acordo 
com as referências letradas que deve ler. 
Delineado dessa forma o mapa possível da história das práticas 
da leitura, é preciso ver que o seu traçado não apenas inclui, mas 
exclui certas vias. Já vimos alguns desses caminhos recusados por 
Chartier, faltaria talvez mencionar a sua crítica severa de uma 
sociologia histórica da cultura que associa diretamente os diferentes 
produtos culturais a -grupos sociais precisos, classificando-os um pelo 
outro de maneira bastante rígida. Nesse sentido, interessam-lhe dados 
distribucionais apenas quando, como os trazidos por F. Bresson ou 
D. Rache, produzem levantamentos da variedade de formas do apren-
dizado da escrita e dos usos efetivos que esta adquire nos meandros 
da cidade. Essas pesquisas evidenciam a existência de uma apropria-
ção desigual da escrita no interior dos mesmos meios sociais, assim 
como, na perspectiva inversa, a circulação de um mesmo produto 
cultural em diferentes meios ou grupos sociais. Ou seja, tudo vai no 
sentido de recusar a assimilação do livro, enquanto produto cultural, 
à operação exclusiva de uma classe determinada, para favorecer, ao 
contrário, o reconhecimento de práticas de leitura distintivas e muitas 
vezes imprevistas, seja pelo autor, como vimos, seja pelas formas de 
legitimação dos grupos sociais. O conceito-chave de Chartier refere-se 
à "apropriação" do livro pela leitura, e não à expropriação do leitor 
pelo livro. Embora aproximar-se dele, como refere o último ensaio 
da coletânea, o de Daniel Fabre, sempre produza os seus terrores, à 
maneira dos livros antigos de feitiçaria. 
Para encerrar, uma pequena palavra sobre a apropriação de 
Chartier no Brasil. De imediato, dois riscos e dois possíveis ganhos. 
15 
ALCIR PÉCORA 
O primeiro risco, que é também uma experiência muito vivida entre 
nós, é o de tomar todo novo estudo como o único possível a partir 
de então, num constante abandono das referências da tradição, o que 
evidentemente dilui a própria contribuição específica da novidade. 
Temos o péssimo hábito, tipicamente periférico, de pensá-la não 
como obra recente de iluminação de um ângulo ou via no centro de 
uma área mais antiga, de contornos irregulares, mas como paideuma 
ou panaceia universal. Então, o que era um método, ou menos que 
um método, alguns resultados de casos, tornam-se moda exclusiva, 
totalizante, e, como moda, passam à vulgaridade, antes mesmo de 
assegurar-se dos resultados que podem realmente ser obtidos a 
partir de seus instrumentos. O segundo risco é o de submergir, não 
propriamente na moda, mas no mundo subletrado das produções 
paradidáticas, pedagogizantes, demasiado ativas no mercado brasileiro 
e que sempre aparentam tomar o lado destemido do mais fraco, da 
desmistificação, da dessacralização, ou o simpático do popular, da 
literatura infantil, da história literária dos autores minúsculos, tudo 
em nome da apropriação heroica que resiste à ordenação autoritária 
do autor, da cultura erudita e das classes dominantes. Que não vá se 
fazer de Chartier, tampouco, "linguística da libertação". 
Os ganhos, para encerrar de maneira otimista: sem ser empirista, 
é evidente que a investigação de Chartier e do grupo de estudiosos 
reunido em Saint-Maximin, depende fundamentalmente do exame de 
material primário, da visita aos arquivos e do levantamento de dis-
positivos finos de leituras desses mundos aparentemente arruinados 
ou mortos. Necessidade de constituição de corpus cada vez mais 
complexos, eis o que reafirma o tipo de história cultural pensada à 
maneira de Chartier. Se isso obviamente não basta para estancarmos 
de vez nossa prolífica e decantada veia ensaística, ao menos que sirva 
para lhe darmos um caráter mais convincente e menos anacrônico. 
Segundo ganho: o de desconfiarmos da naturalidade essencial com que 
a tradição crítica brasileira tem lidado com as questões das represen-
tações letradas. Se é ruim ignorarmos as referências de tradição para 
tomarmos toda a crítica pela última contribuição, igualmente ruim é 
a insistência em mantermos as categorias críticas fora do exame de 
seus empregos particulares e datados. Sobretudo pensando-se nos 
16 
INTRODUÇÃO 
estudos referentes a práticas letradas anteriores ao romantismo, tem-
-se uma nítida ideia da relevância da reflexão em torno das categorias 
de "prática" e de "representação'', decisivas nos trabalhos de Chartier: 
"elas permitem que se dissolva a naturalidade da presença dos resí-
duos [dessas práticas arcaicas, sobretudo] no cânone literário, também 
permitindo criticar a naturalidade das suas interpretações dominantes, 
por exemplo, quando se evidencia que sua inclusão no cânone é o 
resultado de longos encadeamentos de apropriações polêmicas e con-
traditórias (...)"2 . As representações alertam-nos, pois, para o risco das 
generalizações que tomam por substância psicológica ou tendência 
étnico-nacional tais encadeamentos que, muitas vezes, podem não 
ter coisa alguma em comum, a não ser a sua própria abertura a certa 
prática datada de leitura. 
2. Idem, p. 126. 
Alcir Pécora 
Departamento de Teoria Literária / üNICAMP 
julho de 1996 
17 
PREFÁCIO 
À memória de Louis Marin 
Este livro nasceu de um projeto conjunto: o de uma dezena de 
pesquisadores ligados a disciplinas diversas, desejosos de elucidar 
os modelos e efeitos, a história e o presente de uma prática cultural 
tão imediata, que parece não poder jamais ter sido outra coisa senão 
aquela que é hoje para nós. Com efeito, por um longo período, a lei-
tura parece não ter colocado qualquer questão: não é ela o resultado 
mais universalmente partilhado da aprendizagem escolar? Não implica 
sempre uma relação íntima entre o leitor solitário e o livro ou o 
jornal que é a sua leitura? Uma prática cultural, portanto, mas que 
naturalmente é a de (quase) todos e para todos idêntica. Além disso, 
podemos reconhecer o contraste entre grandes leitores e leitores de 
ocasião, entre lectores profissionais, para os quais ler é sempre mais ou 
menos gesto de trabalho, e todos aqueles para quem o encontro com 
os textos é simples informaçãoou puro divertimento. Os primeiros, 
não há dúvida, têm dificuldade em aceitar que existem outras leituras 
além da sua, ou ainda em conceber que entre sua leitura de doutos 
e as da maioria existem outras diferenças afora estas: ler muito ou 
pouco, rápido ou lentamente. 
Questionar esta representação comum: tal era o objetivo primeiro 
do colóquio realizado no Convento Real de Saint-Maximin, de onde 
saiu este livro. Os caminhos para se fazer isto eram diversos. Um 
deles consistia em remontar a história e descobrir modos de leitura 
inteiramente estranhos aos de nosso tempo. De um século XVIII cam-
ponês, em que a relação com o livro de magia enuncia as dificuldades 
19 
1 
1' 
ROliER CF-L"RTIER 
e exigências que são as de toda leitura, qualquer que seja ela, a um 
século XIX citadino, que conhecia uma pluralidade de usos, coletivos 
ou individuais, decifradores de textos ou imagens que são confrontados 
ao livro ou, mais imediatamente, com todos os escritos semeados pela 
cidade, constituiu-se um primeiro corpus de atitudes antigas, onde as 
formas de ler não estão, de maneira alguma, separadas das práticas 
de escrita ligadas a elas, seja porque através ela cópia permitem domar 
e sujeitar os perigos do escrito, seja porque multiplicam no cotidia-
no urbano os materiais manuscritos de uma leitura íntima, secreta e 
possi\·elmente subversiva. 
Estas figuras antigas da leitura estão dadas, ao mesmo tempo, 
dentro e fora dos textos. Com efeito, todo autor, todo escrito impõe 
uma ordem, uma postura, uma atitude ele leitura. Que seja explici-
tamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela 
maquinaria cio texto, inscrita na letra ela obra como também nos 
dispositivos de sua impressão, o protocolo da leitura define quais 
devem ser a interpretação correta e o uso adequado elo texto, ao 
mesmo tempo em que esboça seu leitor ideal. Deste último, autores 
e editores têm sempre uma clara representação: são as competências 
que supõem nele que guiam seu trabalho de escrita e de edição; são 
os pensamentos e as condutas que desejam nele que fundam seus 
esforços e efeitos de persuasão. É possível, portanto, interrogando de 
novo os textos e os livros, revelar as leituras que pretendiam produzir, 
ou aquelas tidas como aptas para decifrar o material que davam a 
ler. Daí a identificação ele leitores contrastantes e ele práticas clesse-
melhantes: o leitor visado por Rousseau não é aquele dos romances 
ele moela; a leitura suposta pelos editores da Biblioteca Azul não é, 
de modo algum, aquela elos virtuoses do impresso. 
Isto significa que uma história das leituras pode contentar-se 
com esses balizamentos nos textos e objetos impressos, com essas 
identificações escriturais ou tipográficas de leituras desejadas ou 
supostas? Evidentemente não, uma vez que cada leitor, a partir ele suas 
próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, 
dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, 
aos textos de que se apropria. Reencontrar esse fora-do-texto não 
é tarefa fácil, pois são raras as confidências elos leitores comuns 
20 
PRHÁCIO 
sobre suas leituras. Nas sociedades do Antigo Regime, elas podiam 
ser encontradas ao fim de uma existência, na narrativa autobiográ-
fica que desfia a trajetória de uma viela, como a de Jamerey-Duval, 
pastor que se tornou erudito, ou então ao longo ele uma correspon-
dência que não separa comentários sobre os livros e as notícias elo 
cotidiano familiar, como a de Jean Ranson, negociante ele La Rochelle, 
leitor fiel de Rousseau. Com estes testemunhos em primeira pessoa, 
pode-se ter uma medida da distância (ou da identidade) existente 
entre os leitores virtuais, inscritos em filigrana nas páginas do livro, 
e aqueles ele carne e osso que o manuseiam, assim como podem 
ser diferenciadas, no concreto das práticas, as habilidades leitoras, 
os estilos de leitura e os usos do impresso. 
Mas ler aprende-se. Daí uma outra série de interrogações visando 
a descobrir formas e processos de acesso ao escrito. Daí também todo 
um conjunto de contrastes discernido tanto no material históricoquanto 
na observação contemporânea. O primeiro opõe as aprendizagens 
escolares ordenadas, institucionais, da leitura, àquelas aprendiza-
gens selvagens do autodidatismo, elo qual Jamerey-Duval fornece uma 
figura exemplar. Fora da escola e ele suas peclagogias formalizadas, a 
conquista do saber ler supõe, ao mesmo tempo, a entrada em uma cul-
tura já penetrada e trabalhada pelo escrito, mesmo se este for conhecido 
apenas pela mediação de uma palavra e pelo conhecimento memori-
zado dos textos, depois reconhecidos, recortados e decifrados no livro. 
Nas sociedades tradicionais, os leitores formados pela instituição elevem 
ser confrontados com aqueles que conquistaram o escrito com grande 
luta e cuja competência, se não é certificada e controlada pelos letrados, 
corre sempre o risco ele produzir leituras fora das normas, improváveis 
ou rebeldes. A esse primeiro crivo acrescenta-se um outro: aquele que 
distingue os leitores que também dominam a escrita e os outros leitores 
somente leitores que deixaram a escola ou interromperam sua aprendi-
zagem antes de saber escrever ou assinar, decifradores esforçados do 
impresso, mas que ignoram a circulação do escrito à mão. A partir 
da investigação histórica coloca-se, então, uma questão central difícil: 
nas aprendizagens da leitura, qual o peso respectivo das estruturas 
perceptivas e cognitivas do homem e dos condicionamentos histórica 
e socialmente variáveis que regem as aquisições? 
21 
RoGER CHARTIER 
Uma tal questão, que convida ao aprofundamento do diálogo com 
psicólogos e pedagogos, está também subjacente ao terceiro caminho 
de pesquisa tomado por esta compilação. Ele parte da constatação que 
reconhece os empregos múltiplos, fora das relações com os textos, 
do próprio termo da leitura. Com efeito, o que é "ler" uma imagem, 
seja ela simples figura ou composição complexa, quadro ele mestre ou 
linhas e cores jogadas ao acaso? A identificação elas diferenças entre 
os tipos de percepção em funcionamento deve evitar qualquer deslize 
indevido e não controlado do léxico. Entretanto, as estreitas relações 
estabelecidas na tradição ocidental entre textos e imagens, leitura do 
escrito e "leitura" do quadro, incitam a colocar como centrais as rela-
ções entre as duas formas de representação, que sempre se excedem 
uma à outra, mas que também, como testemunha Poussin, sempre 
articulam o visível sobre o legível. 
Uma última palavra ao fim deste protocolo de leitura que, 
esperamos, será revolvido por cada um dos leitores que trilharão 
seu caminho através dos textos reunidos. As oito contribuições e o 
diálogo aqui publicados não devem ser tomados como peças justa-
postas: de um a outro circulam os mesmos problemas e as mesmas 
referências, as mesmas certezas e também as mesmas interrogações. 
Certamente, os pontos de vista podem diferir, como os enfoques e 
materiais, mas desejamos que seja perceptível, ao longo destas pági-
nas, a conivência intelectual e amigável que permitiu reunir num dia 
de setembro de 1983, em Saint-Maximin, dez leitores preocupados 
em situar suas próprias atitudes na longa história e no leque aberto 
das práticas de leitura. 
Roger Chartier 
PS.: Gostaríamos de agradecer à Radio France, que autorizou a 
reprodução de um debate gravado no programa Diálogos, de Rogcr 
Pillaudin; a Alain Paire, organizador paciente do encontro de Saint-
-Maximin, e a todos aqueles que enriqueceram com suas intervenções 
a reflexão realizada em conjunto. 
22 
APRENDIZADOS 
A leitura e suas dificuldades 
François Bresson 
Quando falamos de leitura, pensamos imediatamente nos textos 
compostos segundo nossas maneiras de escrever por meio de um 
alfabeto. Esta não é a única maneira de transcrever linguagem: assim, 
a língua chinesa utiliza um outro tipo de grafia, que não se baseia no 
alfabeto. Essas duas formas de grafia não apresentamos mesmos tipos 
de dificuldades, como sabemos hoje a partir dos estudos realizados 
tanto sobre nossos hábitos de leitura quanto sobre os dos japoneses. 
Entretanto, nós nos limitaremos às dificuldades particulares que colo-
cam as escritas alfabéticas. Sabemos que estas foram inventadas apenas 
uma vez na história da humanidade, enquanto que as escritas ideográ-
ficas ou silábicas puderam ser descobertas várias vezes. Certamente, 
este argumento tem apenas um valor relativo, pois, se a história dos 
grafismos remonta ao paleolítico, a história da escrita é muito mais 
curta, recobrindo somente uns cinco mil anos: é muito pouco para dar 
ocasião a uma pluralidade de invenções, sobretudo se notarmos que 
as escritas que funcionam são, ao mesmo tempo, bastante estáveis e 
objetos de uma rápida difusão; as invenções paralelas, portanto, só 
podem aparecer em lugares suficientemente distantes para que os 
sistemas estabelecidos possam desenvolver-se independentemente. 
A escrita constitui uma codificação da linguagem oral, única forma 
da língua que é "natural", no sentido de que sua utilização na produção 
do discurso não requer nenhum procedimento de instrução ou educa-
ção. A aquisição de uma determinada língua implica, evidentemente, um 
processo de aquisição e um contato com a palavra de outro no curso 
25 
FRANÇOIS BRESSON 
dos primeiros meses de vida, mas esta forma de prática não precisa 
ser explicitamente organizada e socialmente dirigida. O mesmo não 
ocorre em relação à escrita e à leitura, que não podem ser objetos de 
um procedimento espontâneo de aquisição: trata-se aí, necessariamente, 
<le práticas sociais instituídas em que o simples contato com os escritos 
e a observação das leituras, silenciosas ou não, não são suficientes 
para transmitir. A passagem da forma oral primitiva da língua a uma 
forma gráfica codificada nunca é imediata, e é útil perguntar-se por 
que, mesmo em sociedades como a nossa, completamente alfabetiza-
das e onde o escrito é constantemente colocado sob nossos olhos, a 
aprendizagem da leitura e da escrita requer ensino: não é suficiente 
que em nossa vida cotidiana o cartaz, a embalagem, os sinais de trân-
sito ou as paradas de ônibus ou metrô sejam oferecidas aos nossos 
olhares desde a mais tenra idade. Esse caráter instituído do escrito e a 
necessidade de seu ensino são independentes da forma da codificação: 
o problema é o mesmo na China ou no Japão, onde os processos de 
escrita são muito diferentes dos nossos e onde a abundância do escrito 
é da mesma ordem. 
Acreditou-se frequentemente que as dificuldades da escrita e da 
leitura deviam ser procuradas nas formas do grafismo e sua organização 
sequencial de direção. Orton, nos anos 1940, atribuiu as dificuldades 
patológicas encontradas na aprendizagem da leitura (dislexias) a dificul-
dades na organização do espaço, dificuldades que então acreditava-se 
mais frequentes nos canhotos que nos destros e que tornaram mais 
difícil o tratamento das sequências de caracteres orientados. 
Invocavam-se, entre outros argumentos em favor de sua tese, as 
ocorrências da escrita em espelho, que teriam sido mais frequentemen-
te observadas nos canhotos que nos destros. As pesquisas sistemáticas 
não confirmaram essas conjecturas. A identificação dos grafismos não 
parece ser um obstáculo maior que sua direção. Com efeito, esta é 
necessária e constitui um traço singular dos grafismos escriturais. 
Um objeto de ponta-cabeça conserva sua identidade, ele é o mesmo 
objeto de cima até embaixo. Um rosto visto de seu perfil esquerdo ou 
direito conserva sua identidade. Levamos tão longe essa identificação 
dos objetos tridimensionais independentemente de sua direção, que 
identificamos conosco nossa imagem invertida no espelho, mesmo 
26 
A LEITURA E SUAS DIFICULDADES 
que a direita e a esquerda aí estejam ao inverso da imagem que vería-
mos em um gêmeo nosso. O mesmo não ocorre com as letras: elas 
devem ser lidas no sentido correto, mesmo se soubermos ler ao inverso 
ou no espelho; neste caso, devemos fazer um exercício de restabe-
lecimento do sentido para chegar a reconstituir o texto. As letras são, 
portanto, necessariamente orientadas, como as cifras, e pelas mesmas 
razões. São orientadas em relação à linha, seja ela reta ou não, seja 
percorrida da direita à esquerda, da esquerda à direita ou de alto a 
baixo. A direção da linha, com seu início e seu fim, encadeia os ele-
mentos sucessivos do discurso escrito como a palavra se encadeia em 
seus momentos sucessivos. O tempo do percurso da linha reproduz a 
crônica dos acontecimentos constituída pela sequência das palavras. 
A linha escrita deve, portanto, marcar por um signo ou uma con-
venção de disposição onde é o seu começo. A disposição correlativa 
das letras vizinhas explicita esta orientação. Deve-se notar que os 
sentidos de leitura não são todos igualmente representados e que, 
nos textos de várias linhas, a disposição orientada de baixo para cima 
parece ausente. Aprender a dispor os caracteres sucessivos sobre o 
suporte de papel, argila, cera ou pedra é, portanto, uma necessidade 
da escrita que faz disto mais que uma simples figuração; os gravadores 
bem sabem que devem inverter seu traço. Deve-se notar também que 
este encadeamento de uma sucessão de traços não é unidimensional; 
há ordem total dos caracteres, que podem ser complexos e exigir uma 
leitura com um sentido de percurso diferente daquele da sequência 
<los caracteres. Isto é evidente na escrita chinesa, onde cada um dos 
caracteres sucessivos está inscrito em um quadrado (portanto clara-
mente em duas dimensões) e requer um percurso determinado tanto 
da leitura corno de sua escrita. 
O problema da leitura não está ligado à identificação dos traçados 
dos caracteres e de suas regras de encadeamento, corno está agora bem 
estabelecido. Assim corno as dificuldades da aritmética não dependem 
da grafia das cifras. Ou antes, são apenas dificuldades mínimas, e erros 
tais corno as grafias em espelho não entravam mais a leitura do que 
as gralhas de impressão. Contudo, é necessário notar que o problema 
não é o mesmo numa escrita alfabética que comporta apenas um pe-
queno número de signos (26 letras de base, mais as letras acentuadas, 
27 
FRANc;rns BRESSON 
o trema, a cedilha, o apóstrofo e as letras compostas, ou seja, para 0 
francês, uma quarentena de signos em escrita unicamente minúscula) 
e numa escrita silábica que pode comportar várias centenas deles, ou 
em caracteres ideográficos como os do chinês, que são vários milhares 
ou mesmo dezenas de milhares. Deve-se ainda notar que, mesmo em 
uma escrita alfabética, a composição dos caracteres elementares - letras 
com ou sem acento ou letras compostas - diminui a variedade dos 
grafismos em relação à variedade dos sons representados; as escritas 
ideográficas têm também sistemas complexos ele composição que re-
duzem consideravelmente o número de grafias elementares distintas e 
têm, além disso, um valor de motivação dos signos compostos, em que 
a composição não é arbitrária, mas significante. O que é necessário é 
que as grafias mantenham-se suficientemente distintas e identificáveis 
nas variações elas escritas cursivas e que as ocorrências de cada tipo 
permitam sempre reconhecê-lo. 
As dificuldades das escritas não são, portanto, fundamentalmente, 
aquelas do reconhecimento elas grafias distintas enquanto formas es-
paciais. Muito pelo contrário, elas estão no sistema de correspondência 
entre a sequência gráfica e a sequência falada: é isto que faz com que 
essas sequências gráficas sejam a linguagem, que representem de 
maneira quase unívoca um discurso. 
Uma escrita constitui uma forma ele análise da palavra, que 
abstrai dela traços suficientes para que, independentemente cios 
lugares e tempos, cada leitor possa restituir praticamente as mes-
mas palavras ou que as mesmas palavras possam ser traduzidas 
praticamente nas mesmas grafias. É necessário notar que "quase 
unívoca" ou "praticamente" marcam ocaráter sempre aproximativo 
dessa codificação, mas também que as regras de correspondência, 
quando são conhecidas e aplicadas, quando, portanto, sabemos ler 
e escrever, fazem com que a aproximação, ela própria, seja regrada 
e permaneça fixada a uma taxa de variação possível de leituras 
ou escritas muito limitadas. Escrever a palavra ou ler a escrita da 
linguagem não tem jamais o rigor estrito das correspondências de 
leituras e escritas de números (ou, o que dá no mesmo, da álgebra 
ou da lógica), mas conserva sempre uma estabilidade funcional: a 
redundância própria da linguagem faz com que essas aproximações 
28 
A LEITURA E SUA:i D!F!Cl:LDADES 
não ocasionem mais erros na correspondência grafismo-palavra ou 
palavra-grafismo que na correspondência falar-ouvir. 
Existem inúmeras maneiras de assegurar a correspondência entre 
palavra e grafia. O objetivo, de início, é evidentemente conservar, 
nessa transformação, o sentido, que é a função da linguagem. Em 
seguida, conservar a propriedade combinatória: é uma condição da 
propriedade de produtividade ela linguagem, capacitada para produ-
zir textos em número ilimitado e que podem ser inteiramente novos 
enquanto textos. Esta última condição é essencial: ela implica que a 
grafia seja a ele elementos e, portanto, que se escolha um modo de 
análise, ele segmentação ela linguagem. Ora, existem várias soluções 
para esse problema de segmentação que permitem uma combinató-
ria que conserva o sentido. Essas soluções apresentam vantagens e 
inconvenientes diferentes e mostram-se mais ou menos compatíveis 
com a estrutura da língua falada. 
A solução chinesa consiste em compor sentidos elementares, 
lexemas, independentemente ou bastante independentemente, elos 
sons ela palavra. Certamente, cada lexema será lido em voz alta com 
os sons que correspondem ao seu sentido, mas esta leitura não implica 
a estabilidade elos sons: a escrita pode conservar seu sentido através 
das diferentes maneiras ele falar, e os chineses do Norte leem mas não 
falam a mesma língua que os chineses do Sul. Essa solução está adapta-
da a uma língua cuja segmentação oral é ele tipo silábica. Unidades de 
sentido e unidades ele som andam juntas e é possível codificar direta-
mente sentidos, podendo as famílias de sentido motivar as composições 
no interior elos caracteres. O custo, já vimos, é a multiplicação elos 
caracteres distintos: vários milhares. O custo é também a dificuldade 
de ordenar essas grafias, mesmo aquelas que compõem os caracteres, 
para organizar um dicionário: não é possível existir ordem alfabética, 
assim como não existe no repertório dos sinais de trânsito, por exemplo. 
Há dificuldades também na mecanização de uma tal escrita. Sabe-se, 
entretanto, que essas dificuldades são todas superáveis, pois essas 
l'.Scritas funcionam e são igualmente objetos escolares, em condições 
análogas àquelas que conhecemos para nossas próprias escritas. 
A escolha alternativa é codificar os sons da linguagem, o 
significante. É a solução adotada pelas escritas silábicas e alfabéticas. 
29 
FRAN(_:OIS BRESSON 
Essa escolha é paradoxal, à primeira vista, pois codifica-se o signi-
ficante, e não o sentido. Quando compreendemos as palavras ou as 
articulamos, nós nos atemos aos sons que as conduzem apenas em 
situações particulares: poesia, trocadilhos, enigmas, lapsos. De outra 
maneira, temos a impressão de tratar-se apenas de sentido, mesmo 
se, de fato, foi a partir dos sons que esse sentido foi estabelecido, através 
de uma sequência complexa de processos mentais. As escritas silábi-
cas ou alfabéticas invertem esse processo, uma vez que será necessário 
ir dos grafemas ao sentido, estabelecendo o sistema de sons. Situan-
do a combinatória no nível dos significantes (o segundo sistema de 
articulação), reduz-se de maneira drástica o número dos componentes: 
algumas centenas para as sílabas, algumas dezenas para os fonemas. 
O custo encontra-se deslocado das operações de reconhecimento e 
memorização das figuras de sentido para as operações de recomposição 
das unidades significantes por meio de regras de correspondências 
grafemas-fonemas (ou sílabas) e de regras de composições de fonemas 
(ou sílabas) em unidades significantes. Essas operações implicam, de 
início, saber como irá estabelecer-se a segmentação das diversas uni-
dades às quais irão ser aplicadas as regras de composição: é a chave 
dos aprendizados da leitura. 
Na palavra, a segmentação é obtida pela utilização de diferentes 
marcas que não são diretamente codificadas numa grafia. Para reali-
zar suas propriedades e substituir a extensão pela duração, o texto, 
independente dos lugares e tempos, transportável, que constitui 
o escrito, deverá fazer aparecer uma codificação da segmentação, 
totalmente diferente daquelas às quais recorre a palavra. Assim, em 
francês, a segmentação das unidades - palavras (para ater-se a uni-
dades intuitivas, suficientemente claras para esta análise), sintagmas, 
frases (ou enunciados) - assenta-se particularmente sobre a melodia 
da entonação, sobre as variações das durações relativas (em relação 
ao débito) das vogais (pode-se distinguir le musca pm:fumé de le 
muscat paifumé), sobre as sequências consonantais que nunca se 
encontram no interior das palavras. Assim, os brancos que separam 
nossas palavras escritas, o signo espaço das máquinas de escrever, 
são caracteres que não têm correspondentes simples na linguagem: as 
marcas intersegmentais podem ser os silêncios, mas isso não constitui 
30 
A LEITURA E SUAS DIFICULDADES 
o caso geral, e os silêncios (ou pausas) na fala têm funções diversas, 
mas não são assimiláveis ao signo intervalo da escrita. É necessário, 
aliás, notar que esse signo intervalo nem sempre foi utilizado nas escri-
tas, assim, como os signos de pontuação: se ele parece indispensável 
às nossas escritas e nossas leituras, não é uma necessidade da escrita. 
De qualquer maneira, as marcas melódicas, ditas suprassegmentais 
por uma linguística que partia da escrita, desaparecem do escrito, e os 
brancos, os intervalos apagam as sequências consonantais final-inicial. 
o leitor-aprendiz não tem que aprender a segmentar, mas a codificar 
uma segmentação conhecida numa segmentação que não assimila os 
brancos às pausas. A criança aprendeu muito cedo essas marcas de 
segmentação da fala: desde que ela começa a falar, produz unidades 
que implicam a aplicação de regras de segmentação. No estágio da 
palavra-frase, trata-se exatamente de palavras segmentadas: nomes 
sem determinantes ou verbos sem marcas de flexão. Ela aprendeu 
muito cedo também a produzir as variações vocálicas que assinalam 
os finais. Portanto, não conhecemos produção de linguagem oral que 
não realize segmentações no nível dos significantes lexemas. Mas será 
necessário, para passar à escrita, aprender que a criança pequena 
implica uma separação entre cada uma dessas três unidades e que a 
ligação possível (e a articulação das formas masculina e feminina) será 
marcada na ortografia de pequena: a leitura em voz alta deverá restituir 
a ligação melódica das três unidades em um grupo segmentado, mas 
unificado em uma única respiração. 
A segunda dificuldade de segmentação é própria das escri-
tas alfabéticas: trata-se de dividir a sílaba para extrair o fonema. 
A fragmentação silábica é espontânea, como comprovam as charadas 
e trocadilhos. Muito precocemente, praticamente desde os inícios da 
fala, as crianças sabem produzir jogos silábicos sobre as sonoridades 
da linguagem; isto não significa que saibam, em todos os casos, operar 
uma segmentação silábica, mas que sabem descobri-la espontanea-
mente, em certos casos. As primeiras escritas do significante foram 
silábicas. Com efeito, as línguas comportam um grande número de 
palavras monossilábicas. Estas, como nas charadas, podem ser isola-
das como conteúdos em palavras polissilábicas. Uma figuração dessas 
palavras monossilábicas encadeadas pela ordem de seu aparecimento 
31 
FRANÇOIS BRESSONpolissilábico constitui um enigma: é uma solução adotada desde a 
Suméria e o antigo Egito, isto é, há cinco mil anos. O fato de que as 
línguas semíticas possuam um sistema de alternância consonantal-
-vocálico, que não exige a notação das vogais, faz com que uma escri-
ta silábica se torne escrita consonantal: nessas condições, o alfabeto 
exige apenas um passo para ser descoberto. Mas a análise fonética 
que requer não é fácil. Pesquisas experimentais estabeleceram bem 
que se a fragmentação silábica era fácil, a fragmentação fonemática 
constituía o obstáculo mais temível do aprendizado da leitura. E isto 
é verdadeiro tanto para as crianças que iniciam sua escolaridade 
quanto para os adultos que devem ser alfabetizados. 
Essa dificuldade fundamental é aumentada pelo fato de que a co-
dificação não é aquela dos sons proferidos, mas dos fonemas, unidades 
abstratas: tipos independentes de suas variações locais. Escreveremos 
o mesmo sinal e para representar sons diferentes tais como le cheval, 
donne-le !ui, donne-le livre*. Ademais, nas línguas de ortografia com-
plexa como o francês, o mesmo fonema receberá grafias diferentes: 
a mesma letra c corresponde a sons e tipos de sons diferentes no ce, 
cri, broche, second, broc*• e, o mesmo fonema, o por exemplo, pode 
receber uma dezena de grafias diferentes. 
Mas o problema da correspondência entre escrita e sentido é mais 
complexo ainda. Nosso conhecimento inicial de nossa língua materna 
é oral. Nosso saber apoia-se, portanto, sobre unidades combinacio-
nais que são ao mesmo tempo som e sentido. Falar ou compreender 
é atualizar o conhecimento das palavras, ao mesmo tempo som e 
sentido; em certos casos, apenas som, quando não sabemos "o que 
isso quer dizer". Essa dupla face dos signos na fala pode encontrar-
-se dissociada em decorrência de certas lesões cerebrais. Podem-se 
observar então dois tipos de doentes. Uns, quando lhes é pedido para 
ler, podem produzir uma palavra por outra, se a palavra pronunciada 
está ligada à palavra escrita pelo sentido, e não pelo som: é o que se 
chama dislexia profunda. Esses doentes têm uma enorme dificuldade 
para ler as palavras funcionais e as pseudopalavras desprovidas de 
32 
No português, verificável, por exemplo, em "estrela", "somente" e "parece". 
Nos casos de "cê", "crê", "broche", "caráter" e "Bic", por exemplo. (N. T.) 
A LEITURA E SUAS DIFICULDADES 
.~cntido. Os outros doentes, para os quais se fala em dislexia super-
jicial, apresentam uma perturbação contrária: leem foneticamente, 
pronunciando todas as letras, por exemplo, o t de lit, como se se 
tratasse da palavra lite. Esses doentes não têm nenhuma dificuldade 
L'tn ler as pseudopalavras, mas confundem chandail e chandelle [em 
português, por exemplo, nos casos de "vê lá" e "vê-la"]. Esses tipos 
de perturbações pós-lesionais e numerosas pesquisas experimentais 
levaram à conclusão de que o processo de leitura de nossas escritas 
alfabéticas implicava, ao menos bastante largamente, a utilização de 
um saber verbal organizado a partir dos sons. Isto não significa que 
haja aí uma articulação realizada ou esboçada pela leitura silenciosa: 
esta se desenvolve, para os bons leitores, em velocidades muito supe-
riores (duas a cinco vezes) àquelas que exigem a articulação da fala. 
Podemos ainda distinguir outros vínculos entre escrita e voz: se 
podemos ler poesia mesmo em silêncio, é porque continuamos a fazê-
-lo encontrando o ritmo e a melodia. Se, quando escrevemos, achamos 
que uma frase "cai" bem ou mal, é por causa de sua melodia, sua 
correspondência com os grupos normais de respiração. 
Se os autores de métodos de leitura opuseram uma técnica alfabé-
tica e silábica a uma técnica global, visando diretamente ao sentido, 
de fato, essas duas estratégias diferem apenas na ordem das etapas 
necessárias à aquisição do sistema. Os métodos clássicos ensinam, 
de início, uma decifração fonética, que, partindo o ritmo natural da 
palavra, pode levar a produzir corretamente os sons, mas não a des-
cobrir o sentido, como na dislexia superficial. Essas crianças saberão 
ler apenas quando os procedimentos de decifração puderem ser, de 
algum modo, esquecidos e o leitor aceder diretamente ao sentido, 
sem estar consciente das correspondências entre grafemas e fonemas. 
/\. segunda estratégia corresponde à aquisição de uma leitura de tipo 
"chinês": passa-se diretamente da grafia ao sentido. Os erros serão do 
tipo daqueles que se observam na dislexia profunda. Apenas numa 
segunda etapa esses leitores deverão aprender as regras de corres-
pondência grafema-fonema para poder fazer aproximações a palavras 
desconhecidas ou nomes próprios. Mesmo em sua leitura silenciosa, 
ainda que ela seja muito rápida, a língua aí compreendida permanecerá 
uma língua falada, ao menos em parte. 
33 
FRANÇOIS BRESSON 
A invenção da escrita exigiu apenas condições sociais: a escolha 
de estratégias de escrita estava ligada à estrutura da língua. O alfabeto 
mostra-se assim uma invenção surpreendente. O fato de um enorme 
número de escolares aprender a ler, aparentemente sem dificulda-
des muito consideráveis, é surpreendente também. O fato de nosso 
ambiente estar hoje repleto de escrito não toma menos surpreendente 
a possibilidade da leitura. Fenômeno cultural, portanto, e realmente 
pouco natural: não podemos prescindir de um ensino para ter acesso 
à leitura. 
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PYNTE,]. Lire ... Jdentijier, comprendre. Lille: Presses Universitaires de Lille, 
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34 
O autodidatismo exemplar. 
Como Valentin J amerey-Duval 
aprendeu a ler? 
Jean Hébrard 
PODE-SE APRENDER A LER? 
Para a escola, a possibilidade de aprender a ler é uma evidência. 
O ensino da leitura mostra-se ainda menos problemático, porque pare-
ce, ao longo de toda a história da instituição escolar, ter-se assentado 
sobre a mesma tecnologia, permanecendo bastante simples: no fim 
das contas, sob os diferentes vernizes das modas pedagógicas, trata-se 
apenas de colocar na memória, à força de repetição, uma combina-
tória elementar da qual nos serviremos para transformar os signos 
escritos em sons e vice-versa. Em princípio, só devem fracassar nisto 
os incapazes ou os preguiçosos. 
E é exatamente porque esse aprendizado, aos olhos do pedagogo, 
é sempre possível, desde que para isto sejam dados os meios, que ele é 
percebido como tendo um extraordinário poder de ação sobre as novas 
gerações, ou mesmo através delas, sobre alguns dos grupos sociais de 
que vieram. A suposta neutralidade cultural do ato de ler, sua aparente 
instrumentalidade, são as garantias de sua eficácia social: ele pode ser 
posto a serviço de todas as causas das sociedades alfabetizadas. Das 
Reformas no século das Luzes até as expansões escolares do século 
XIX, cada política educativa estava plenamente convencidadisso: o 
l'nsino da leitura é um meio de transformar os valores e os hábitos 
dos grupos sociais, que são o seu alvo. Com efeito, se o livro se presta 
aos rituais de coesão social, familiar ou mais ampla, pode também, 
para além das redes da sociabilidade tradicional, vir interpelar um 
35 
]EAN HÉBRARD 
leitor ou um grupo de leitores individualizados. Certamente, a leitura 
ritualizada pertence às áreas ele alfabetização restrita 1, enquanto que 
o encontro com o impresso no foro privado exige um saber ler com-
parável àquele das elites intelectuais. Mas as políticas ele alfabetização, 
quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: 
elas conhecem apenas uma modalidade, universal, da leitura, aquela 
que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transfor-
mar a cera mole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar 
a ler um grupo social até então analfabeto é apresentá-lo ao poder, 
com direito infinito, do livro. Apenas ele, pensamos2 , poderá destruir 
os modelos antigos, crenças ou superstições, no próprio coração dos 
quadros sociais que asseguram sua permanência. 
Certamente, semelhante política educativa supõe um controle 
estreito da produção e ela circulação cio escrito. Mas ele é mais fácil ele 
ser assegurado cio que o ela fala, seja através ele uma saturação cio mer-
cado (edição ele propaganda), seja através ele uma regulamentação 
da produção (censura, permissão para imprimir, etc.) ou ela difusão 
(organização da livraria, ela vencia ambulante ou, no século XIX, de 
bibliotecas populares ou escolares ... ), ou, ainda mais simplesmente, 
através ela censura não apenas cios livros mas elas leituras, missão 
eminente elas instituições escolares ou universitárias. Com certeza, 
toda tentativa ele educação através cio escrito pode ser desviada ele 
seus fins: seja porque os grupos sociais se apoderam por contágio elas 
1. O termo alfabetização restrita é utilizado aqui no sentido dado por Jack Goody 
(Literacy in Traditional Societies, Cambridge UP, 1968) para designar os modos 
de apropriação do escrito ainda inscritos nas redes ele comunicação da cultura 
oral. Será oposto, por nós, à alfabetização generalizada. As noções ele leitura 
intensiva e leitura extensiva utilizadas por Rolf Engelsing (Der Bürger als Leser. 
Lesergescbichte in Deutschland, 1500-JHOO, Stuttgart, 1974), a oposição entre 
ler somente e ler e escrever propostos por François Furet e Jacques Ozouf (Lire 
et écrire. L'alphabétisation des Français de Calvin à]ules Ferry, Paris, Écl. ele 
Minuit, 1977) podem ser aproximadas dela, sem recobri-la exatamente. 
2. A ideia cio "livro educador" inscreve-se perfeitamente na filosofia elas Luzes; 
mas permanece também um elos dados essenciais elo discurso pedagógico do 
século XIX. Um exemplo entre tantos outros: a tentativa de estabelecimento 
de bibliotecas escolares pelo ministério Rouland em 1862, com o objetivo de 
prolongar além da escola e de seu trabalho de alfabetização o esforço educa-
tivo do Estado. 
Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR 
práticas cio escrito (como mostra Daniel Rache a propósito cios meios 
da criadagem parisiense no século XVIIIº), seja porque um saber ler 
concedido conduz a "más leituras" (os exemplos são múltiplos). Mas 
mesmo que essa crença subsista em qualquer ator ele uma transfor-
mação social pela alfabetização', ela não é suficiente para moderar a 
crença, aí compreendida a contemporânea, no poder cio livro. 
Entretanto, a maior parte cios trabalhos desses dois últimos clecê-
n ios concernentes à leitura dão tanto ao pedagogo quanto ao político 
toda uma imagem bem diferente cio ler e ele sua aprendizagem. 
Para a sociologia elas práticas culturais, a leitura é uma arte de 
fazer que se herda mais cio que se aprende. E, por essa razão, ela tem 
mais frequentemente valor ele sintoma de enraizamento nos grupos 
sociais que praticam as formas dominantes ela cultura cio que valor 
de instrumento ela mobilidade cultural em direção a esses mesmos 
grupos. Colocando o acento sobre o ler mais cio que sobre o livro, 
sobre a recepção mais cio que sobre a posse, os pesquisadores demons-
traram amplamente que, na escola, não é a leitura que se adquire, mas 
são maneiras ele ler que aí se revelam. Ao aprender a ler, a criança 
contentar-se-ia em reinvestir no domínio cio escrito as práticas culturais 
mais gerais do seu meio imediato. A rigidez ela tecnologia pedagógica 
c a normatividade cios procedimentos ele avaliação mascarariam, por 
.~i só, a cliversiclacle cios resultados obtidos. 
O mesmo ceticismo em relação à existência ele uma dinâmica 
cultural ligada ao acesso ao escrito caracteriza os modelos propostos 
pcla psicopeclagogia ou pela psicolinguística para a compreensão ela 
aprendizagem e da prática ela leitura. Com efeito, a conquista desses 
últimos anos, nesse domínio, consiste em considerar que o fato ele a 
comunicação escrita ser uma comunicação diferenciada dá ao leitor uma 
posição inteiramente distinta daquela ele simples receptor ou mesmo de 
decoclificaclor ela mensagem. O trabalho ele leitura é, em grande parte, 
:\. Daniel Roche, Le Peuple de Paris, Paris, Aubier, 1981. 
1. Os preceptores do século XIX não escapam a esse temor. Encontramos nu-
merosos testemunhos disso no Bulletin de la Société Franklin (1868-1927), em 
que os mais preocupados com uma educação popular através elo livro e ela 
biblioteca não cessam ele denunciar as "más leituras" ele seus antigos alunos. 
37 
]EAN HÉBRARD 
um processo de produção de sentido, no qual o texto participa mais 
como um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos 
em consideração) do que como estrita mensagem. A partir de então, 
pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico 
apoiam-se mais sobre a capitalização cultural específica de cada leitor 
do que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração5. 
Mas, além disso, se fica fácil compreender assim a maneira pela qual o 
leitor reativa, no seu ato de leitura, suas aquisições culturais anteriores, 
por outro lado, é muito mais difícil utilizar os mesmos modelos para 
explicar como o encontro com um texto pode remodelar um universo 
pessoal intelectual ou fantasmático. Logo, a leitura é mais facilmente 
pensada como processo de confirmação cultural do que como motor 
de um deslocamento ou de uma progressão no mesmo campo. 
Entretanto, existem aprendizagens exemplares da arte da leitura, 
irrupções no mundo do escrito que nada ou quase nada deixava prever, 
como é o caso de autodidatas trânsfugas das práticas culturais de 
seus círculos ou de comunidades e até mesmo de grupos sociais mais 
importantes. 
Dos primeiros, frequentemente, apenas é possível tomar conhe-
cimento através das "histórias de vida" que nos deixam depois que 
falam ou escrevem. A relação com os livros parece determinante na 
consciência que adquirem de sua trajetória; e essa relação articula-se, 
sempre, na imperícia conservada e nas suas ambivalências, com uma 
aprendizagem bem-sucedida da leitura - aprendizagem de modalida-
des complexas, escolares e não escolares. 
Dos segundos, as histórias de alfabetização, após as do barão 
Dupin e de Maggiolo, inventariariam com precisão os acessos sucessi-
vos às práticas culturais do escrito. Seguramente, a acumulação dos 
dados e a simplicidade dos critérios mantidos conduziram os pesquisa-
dores mais em direção à análise dos trends de alfabetização do que à 
caracterização das "irrupções" e de seus efeitos. Mas, se não quisermos 
5. Encontraremos uma boa bibliografia sobre a abordagem psicopedagógica dessa 
questão em Jacques Weiss, À la recherche d'une pédagogie de la lecture, Berna, 
Peter Lang, 1980. Do lado psicolinguístico, podemos nos referir a Georges 
Noizet, De la perception à la compréhension du langage, Paris, PUF, 1980. 
38 
Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR 
nos contentar com esses indicadores mínimos que são a assinatura ou 
a declaração diante das autoridades militares, não será impossível reins-
creveresses acontecimentos culturais em contextos mais qualitativos, 
que esclareçam sua especificidade e permitam compreender melhor 
as dinâmicas culturais das quais são os paradigmas privilegiados. 
É nessa direção que parecem dirigir-se alguns trabalhos recen-
tes, quer se tratem daqueles que Margaret Spufford consagrou aos 
puritanos ingleses do século XVII6 ou daqueles, menos historicistas 
mas metodologicamente mais novos, que Jacques Ranciere construiu 
em torno dos trabalhadores que tiveram contato com os missionários 
são-simonianos em Paris, durante o segundo terço do século XIX7• 
Em um e outro caso, ainda são narrações de vida, autobiografias 
que enunciam uma passagem bem-sucedida. Mas aí ainda, como nas 
experiências mais individuais e mais excepcionais às quais voltare-
mos, a acumulação de anotações consagradas às maneiras de ler e 
escrever, às condições de sua aprendizagem e àquilo que, aos olhos 
do autor, lhe assegurou o sucesso, assinala menos a precariedade 
do deslocamento cultural do que a surpresa diante de sua possibi-
lidade, ligada à firme intenção de tudo fazer para assegurar-lhe a 
perenidade. Nesse sentido, o autodidata testemunha não somente 
a possibilidade de aprender a ler, no sentido mais pleno do termo, 
mas também a necessidade de contar essa aprendizagem para dar-
-lhe a sua verdadeira dimensão, a de uma vitória contra a inércia das 
posições culturais, e, desse modo, torná-la irrevogável. 
Assim, o autodidatismo assinala-se e revela-se, em numerosos casos, 
através da autobiografia espontânea ou provocada. À exceção desse 
tipo de documento, ele corre um grande risco de escapar a qualquer 
investigação, mesmo no âmbito de uma sociologia ou de uma psicolo-
gia do fenômeno. A análise dessa fala que vêm fora de hora é uma via 
bastante obrigatória se quisermos tentar explicar uma aprendizagem 
da leitura que não seja a simples atualização de um capital herdado. 
6. Margaret Spufford, "First Steps in Literacy: the Reacling anel Writing Experiences 
of the Humblest Seventeenth Century Autobiographers", Social History, v. 4, 
n. 3, 1979, pp. 407-435. 
7. Jacques Ranciere, La Nuit des prolétaires, Paris, Librairie Artheme Fayard, 1981. 
39 
JEAN HÉBRARD 
O fato de que ela seja metodologicamente muito problemática é apenas 
um encorajamento suplementar para explorar suas possibilidades. 
É com esse espírito que gostaria de apresentar aqui uma tentativa 
de análise de um documento excepcional. Trata-se das Memórias de 
ValentinJamerey-Duval que Jean Marie Goulemot acaba de tornar nova-
mente disponíveis8, acompanhadas de uma introdução notável e de um 
aparato de notas cuja erudição servirá de barreira a qualquer abuso de 
interpretação. Esse documento nos remete à errância de um pequeno 
camponês do século XVIII, expulso de sua casa aos treze anos pela 
miséria e brutalidade de seu círculo familiar, não escolarizado, e que, 
entretanto, após "aventuras extraordinárias", torna-se aos vinte e cin-
co anos "professor de história e de antiguidades" na academia de 
Lunéville no ducado da Lorena. É verdade que verá ser-lhe oferecida 
por seus protetores uma estada na universidade de Pont-à-Mousson 
mas é bem antes, ao sabor de sua errância nos baixos vales do ri~ 
Vosges, da Lorena, que se constitui um saber quase enciclopédico num 
contato tão desordenado quanto assíduo com o escrito. A autobiografia 
que nos deixou diz, em sua narração como em sua escrita o que foi 
aos seus olhos, sua trajetória cultural. 
, , 
É verdade que o autodidata agasta seu leitor ou seu ouvinte: ele aí 
faz demasiado. Philippe Lejeune já mostrou9 como o gênero autobio-
gráfico, em si mesmo e independentemente de qualquer reivindicação 
autodidática, exige de seu público o reconhecimento da autenticidade 
do dizer, até mesmo a do homem que o sustenta com seu "eu". Nisso, 
a autobiografia seria menos um modo de escrita do que a exigência 
de um tipo de leitura específica, de um "pacto" entre autor e leitor. 
Jean-Jacques Rousseau é aqui incontornável. 
No caso da autodidatismo, a "bastardia cultural"1º do autor torna 
ainda mais necessária a submissão aos valores do mundo cultural de 
8. ValentinJamerey-Duval, Mémoires. Enfance et éducation d'un paysan auXVI!le 
siecle. Prefácio, introdução, notas e anexos de Jean Marie Goulemot, Paris, Le 
Sycomore, 1981. 
9. Philippe Lejeune, Le Pacte autobiographique, Paris, Le Seuil, 1975. 
10. Tomo esse termo de Jean Marie Goulemot, em sua introdução às Mémoires 
de Jamerey-Duval (ver nota n. 8). 
40 
Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR 
chegada: a autobiografia torna-se a prova e o sintoma da "passagem". 
Isto dá a esse tipo de escrito um valor documental bem específico. Se 
permanece inteiramente arriscado querer ler aí o reflexo do trajeto da 
aculturação do escritor, torna-se, pelo contrário, perfeitamente possível 
ver aí um momento desse mesmo trajeto. A autobiografia do autodidata 
tem um valor mais pragmático que representativo. Ela remete ao per-
formativo: é um ato de escrita. Não deve confundir-nos, portanto, o 
fato de que esse ato, pelo qual a "passagem" perde sua contingência 
e torna-se necessária, apresente-se como uma narrativa; essa narrativa 
é para ser lida, em sua ordenação cronológica, apenas como metáfora 
do autodidatismo, como ordenamento lógico deste, como se essa es-
truturação tardia do avanço fosse a mesma que poderia fazê-lo perder 
sua natureza de acontecimento e fundar sua irreversibilidade, ainda 
conservando nela seu caráter excepcional. Logo, a autobiografia do 
autodidata esboça uma "figura" da movimentação cultural através de 
sua narrativa. Recensear essas figuras poderia esclarecer-nos sobre as 
modalidades ela irrupção bem-sucedida nas práticas do escrito, talvez 
mesmo permitir-nos construir um modelo dela. 
Resta, entretanto, uma precaução metodológica a ser tomada. No 
contínuo cios materiais autobiográficos, que vão ele Jamerey-Duval ao 
Chateaubriand elas Memórias do além-túmulo ou ao Sartre das Pala-
vras, passando por Agricol Percliguier, Martin Naclaucl, Norbert Truquin, 
Antoine Sylvere ou Grenadou, onde situar o domínio cio autodidatismo? 
É bem evidente que a resposta mais imediata, que se fundaria sobre 
a alternativa escolarizada/não escolarizada, não somente é anacrônica, 
uma vez que se fica aquém ela obrigação escolar, mas, sobretudo, remete 
a essa concepção instrumental cio ler e ela escrita que recusamos. Mas, 
para tanto, podemos permanecer na simples apreciação, inteiramen-
te subjetiva, do caráter excepcional cio acesso ao mundo do escrito? 
Se é verclacle, como escreve Jean Marie Goulemot, que "nada anunciava 
no filho do relojoeiro ele Genebra ou no filho de camponeses pobres 
de Arthenay o intelectual cios Discursos ou o professor ela academia 
de Lunéville"11 , podemos dizer, por isso, que Jean-Jacques Rousseau e 
ValentinJamerey-Duval são, a mesmo título (o ela surpresa retrospectiva), 
11. ]. M. Goulemot, op. cit., p. 44. 
41 
]EAN HÉBRARD 
autodidatas? Aliás, sabemos bem que, quando é possível uma caracte-
rização sociológica precisa do meio familiar, ela não garante em nada a 
qualidade das práticas culturais particulares desta ou daquela comuni-
dade. Ainda aí, a crítica externa é difícil, e mesmo impossível. É também 
na autobiografia, ela mesma, que se devem procurar as justificativas da 
pertinência das escolhas efetuadas. 
De minha parte, ater-me-ei provisoriamente a um critério dado 
por Rousseau, cujo caráter judicioso parece-me adequar-se à situação 
bastante particular que este ocupa, tanto pela ambiguidade de sua 
condição social, quanto pela quase invenção que propõe do gênero 
autobiográfico. Ele escreve no livro I do Manuscrito de Neuchâtel das 
Confissões 12 : "Não sei como aprendi a ler; parece-me tê-lo sempre sa-
bido". A distância cultural que ele marca ao longo de todo o seu texto, 
entre sua infância e a que supõe de seus leitores, e que culmina no 
episódio da entrada na aprendizagem, não se estende até a oposição 
entre saber ler e não saber ler. Jean-Jacquesnão tem que reivindicar 
um lugar no mundo cultural do escrito; ele "sempre" esteve aí. É a ex-
pressão de uma conivência que exclui a consciência de uma educação 
autodidata. Poderia aproximá-la de outras modalidades, como a do 
maravilhamento de Sartre diante da facilidade da aprendizagem em 
As palavras13 ou a negligência com a qual Gide lembra esse episódio 
em Se o grão não morrer14. Seguramente, aí opõem-se a minúcia das 
anotações, a preocupação da exaustividade e a importância dada ao 
fenômeno emJamerey-Duval. Portanto, o critério do autodidatismo será 
aqui o estatuto de acontecimento dado pelo escrito autobiográfico ao 
primeiro processo de apropriação do escrito. 
O que fazer com esses materiais? Sua multiplicidade, da mesma 
maneira, não nos permite escapar à análise de caso, devido mesmo a 
essa natureza de acontecimento que lhes é essencial. Somos também 
12. Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, CEuvres Completes, t. I, Paris, Galli-
mard, Bibliotheque de la Pléiade, 1959, p. 1236, nota a. 
13. Jean-Paul Sartre, Les Mots, Paris, Gallimard, 1964. [Ed. bras.: As palavras, Rio 
de janeiro, Nova Fronteira, 6ª ed., 1993.l 
14. André Gide, Si le Grain ne meurt, Paris, Gallimard, 1955. [Ed. bras.: Se o grão 
não morrer, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.] 
42 
Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR 
levados, de maneira quase obrigatória, a emprestar da psicolinguística 
alguns de seus modos de aproximação. É preferível exibi-los a utilizá-
-los de maneira implícita, como é o caso da maior parte dos trabalhos 
consagrados, fora dessa disciplina, à alfabetização. A dinâmica própria 
do autodidata pode, com efeito, ser comparada ao esforço que faz um 
leitor "legítimo" quando um escrito o confronta com um domínio cul-
tural que não domina, ou seja, quando o ato de leitura não se assenta 
mais sobre o reconhecimento de um contexto partilhado com o autor. 
Como podemos ler aquilo que não conhecemos ainda? Como, pelo 
livro, podemos ter acesso ao que não se sabe? 
A ilusão das Luzes não se dissipou absolutamente. É difícil 
imaginar que o livro não possa ser o mais perfeito dos educadores e, 
portanto, debruçamo-nos muito pouco sobre a dificuldade do ler, a 
não ser nos tratados pedagógicos que afirmam que seria necessário 
apenas um pouco de atenção. Contudo, alguns trabalhos recentes10 
mostram que o acesso aos textos "difíceis" depende de uma remo-
delagem do feixe de hipóteses, de antecipações, a partir das quais 
tentamos interpretar os signos dispostos no texto. Nisto, eles propõem 
o mesmo tipo de interpretação que aquele pelo qual H. R. Jauss 
explica o acesso à modernidade estética16 . Somente uma formação do 
horizonte de expectativa do leitor permite-lhe aceder a outros escritos 
além daqueles que são constituídos como clássicos por esse mesmo 
leitor. Logo, o ato de leitura nesse caso particular distingue-se de um 
simples fenômeno de reconhecimento, de confirmação cultural, por 
um trabalho que deve ser operado pelo leitor sobre si mesmo, condição 
sine qua non de uma abertura ao novo e, portanto, de um processo de 
educação pelo livro. Ocorre o mesmo quando se trata não somente de ir 
além de suas leituras habituais, mas de aceder de maneira original ao 
escrito? O autodidata nos permite compreender, através de sua escrita 
autobiográfica, essa remodelagem de seu horizonte de expectativa que 
lhe permitirá saber, um dia, o que fazer com o escrito? 
15. Cf., por exemplo, Ross Chambers, "Le texte 'difficile' et son lecteur", Lucien 
Dallenbach e Jean Ricardou (ed.), Proh!emes actuels de la lecture, Paris, 
Clancier-Guénaud, 1982, pp. 81-93. 
16. Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. 
43 
]EAN HÉBRARD 
Na "figura" que nos dá a ler ele sua mobilidade, Jamerey-Duval 
constrói uma teoria de seu deslocamento que não é contraditória com 
a ideia que dela fazem os psicolinguistas ou os pesquisadores da escola 
de Constance: trata-se de remodelar o horizonte cultural de referência, 
a fim de dar eficácia ao encontro com o escrito. E essa reestruturação 
se articula ao redor de três temas: 
- a evocação do campo cultural originário que é partilhado com 
a comunidade de pertença, seguramente iletrada, mas, da mesma ma-
neira, atravessada mais ou menos por uma presença quase subliminar 
cio escrito; 
- a explosão desse terreno ele referências metodicamente operado 
por esse sujeito a surgir elas práticas escritas, esse "ainda não leitor"; 
- a aprendizagem cios signos da escrita. 
Mas essa alfabetização bem-sucedida não seria suficiente para pro-
duzir um autodidatismo. De nada serve ter aprendido a ler, e ler bem, 
se essa capacidade não se torna o núcleo ele um hábito cultural novo. 
Aliás, Valentin Jamerey-Duval experimenta a necessidade ele contar 
não apenas sua alfabetização, mas também a inscrição desta nas regras 
maiores que regem o universo cultural ao qual ele acedeu: para ele, 
a abertura para o ler só se torna definitiva (e correlativamente lícita) 
ao dotar-se de seus próprios limites, de seu sistema de censura. Aos 
três motivos da irrupção no mundo do escrito vem, portanto, juntar-
-se o da necessária "garantia" elas novas práticas ele leitura adquiridas. 
Trata-se apenas de encontrar uma resposta a essa questão que coloca 
o deslocamento dos valores culturais engendrados pelo próprio movi-
mento do autodidatismo: por qual meio podemos garantir a verdade 
cio que foi lido, quando o caráter eminentemente privado do ato da 
leitura torna difícil o apelo às opiniões comuns sempre disponíveis 
nas trocas verbais da cultura oral ou na alfabetização restrita? Uma 
vez encontrada a resposta, o autodidatismo está assegurado pela sua 
irreversibilidade. Resta-lhe apenas expressar-se. 
44 
Ü AUTODIDATISMO EXEMPLAR 
A EXEMPLARIDADE DE UM AUTODJ[)ATTSMO 
Alguns pontos de referência biográficos 
1695: nascimento de Valentin, filho de Valentin Jamerey, carpin-
teiro ele carroças, em Arthonnay (região de Tonnerre). 
1700: morte do pai, miséria. 
1708: novo casamento da mãe, com um cervejeiro "muito brutal"; 
fuga (Valentin tem treze anos) para uma Paris mítica à qual não chegará, 
mas que o leva ele Tonnerre à abadia de Paraclet e Provins. 
1709: Villers-Saint-Georges, onde o acometem uma pequena 
varíola e os rigores de um inverno particularmente rigoroso; resta-
belecido, põe-se novamente em marcha, atravessa a Champagne, 
chega a Clézantaine (ao norte ele Épinal), onde encontra um emprego 
ele pastor e aprende a ler na Biblioteca Azul. Ele tem quatorze anos. 
1710: descobre na interseção ele uma vida rural e de uma cultura 
mínima do escrito, a instituição eremítica. Passando de um ermitério 
a outro, chega a Deneuve, perto de Baccarat, onde sua posição de 
criado não o impede de ler as obras de devoção. 
1712: está agora no ermitério de Saint-Anne, vizinho a Lunéville; 
aprende a escrever (ele tem dezoito anos) e, graças a alguns salários, 
forma, não sem conflitos com seus empregadores, uma minúscula 
biblioteca. 
1716: encontro com o duque Leopoldo da Lorena; o duque 
maravilha-se por ver um selvagem sábio; Valentin ganha quatro luíses 
e compra mais alguns livros. 
11 de maio de 1717: encontro decisivo com o barão de Pfützchner, 
preceptor do filho cio duque; o pedagogo toma o selvagem e o coloca 
sob sua proteção no castelo de Lunéville para realizar sua educação; 
Valentin aprende o latim (ele tem vinte anos). 
1718: viagem a Paris. 
1719-1720: estudos na universidade ele Pont-à-Mousson; gradua-se, 
sem grande convicção, em filosofia; prefere a numismática ... 
1720: nomeado, sucessivamente, sub-bibliotecário, depois biblio-
tecário e enfim professor de história e de antiguidades na academia 
de Lunéville, alcança sua independência financeira. 
45 
JEAN HÉBRARD 
1737: segue Francisco III (que sucedeu Leopoldo, mas que trocou 
seu ducado pelo ela Toscana) até Florença, para onde a biblioteca ele 
Lunéville foi transportada; é certamente em torno desse período que 
trabalha mais ativamente na redação ele suas

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