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0 UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA UM OLHAR SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA PABLO PITÁGORAS STEIN DOS SANTOS Ijuí – RS 2013 1 PABLO PITÁGORAS STEIN DOS SANTOS UM OLHAR SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para a obtenção do título de Psicólogo. Orientadora: Elisiane Felzke Schonardie Ijuí – RS 2013 2 PABLO PITÁGORAS STEIN DOS SANTOS UM OLHAR SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA Banca Examinadora: __________________________________________________ Profª Ms. Elisiane Felzke Schonardie __________________________________________________ Profª Ms. Silvia Cristina Segatti Colombo Ijuí, dezembro de 2013 3 APRESENTAÇÃO O Trabalho de Conclusão de Curso está formatado de acordo com as Normas Atualizadas da ABNT, apresentadas por Furasté (2013) (ANEXO A). 4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais, Jules Pitágoras dos Santos e Sirlei Teresinha Stein Dos Santos, que sempre acreditaram em mim, me apoiaram nas horas difíceis e com muito amor e sacrifício dedicaram grande parte de seus esforços para auxiliar-me em minha formação. 5 AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus, que sempre esteve presente em minha caminhada acadêmica, a meus pais Jules Pitágoras Dos Santos e Sirlei T. Stein dos Santos pelo encorajamento, esforço, apoio e suporte financeiro que sempre tive. A minha noiva Juliane Bohringer, que com muito amor sempre esteve ao meu lado, abdicando de seu tempo para poder me ajudar aos finais de semana, emprestando seu escritório aos sábados, fazendo almoço, e lanche, para que eu pudesse dedicar tempo exclusivo para escrever esse trabalho, pelas risadas, e toda atenção, carinho e compreensão. Aos colegas que estiveram junto ao longo desta jornada, e em destaque a turma de 2011 onde o amor, amizade e carinho ficarão para sempre guardados em minha memória, Adriane Costa Beber, Nairana Melo, Patrícia Trentin, Renan Zanon Bock, Luciana Mai, Flávia Gai, Fabiana Campos, Karla Krapf, Cristina Decian, Carise Lenhardt, Fabiana Garlet, Josiane Amaral, Andréia Pelisson e Priscila Mohr, “Temo Junto Forever”. Aos Professores que com muita competência e dedicação sempre se empenharam em seu trabalho no intuito de melhor passar o conhecimento, em especial a minha orientadora Elisiane Felzke Schonardie, pelas orientações e sua dedicação, e todo o tempo em que pudemos discutir, elaborar e pensar este trabalho. 6 UM OLHAR SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA Pablo Pitágoras Stein dos Santos1 Orientadora: Elisiane Felzke Schonardie RESUMO A família sempre foi alvo de pesquisa para as mais variadas áreas do saber. O presente trabalho tem como objetivo fazer um breve levantamento histórico da família, bem como, esta foi evoluindo e como foi se modificando ao longo dos tempos, até chegarmos à família contemporânea. Esta, carregada de tradições vindouras do modelo de família tradicional burguesa, está elaborada nos moldes de padrões higienistas impostos pelo estado e pelas descobertas das ciências, que por sua vez, destituem o saber familiar outrora desempenhado pelo pai, encontradas no modelo de família tradicional. Fazendo um enlace com a cultura do capital, que joga a família em uma busca pela satisfação imediata, um consumismo desenfreado, as longas jornadas de trabalho que retiram o tempo de convívio familiar onde às trocas subjetivas, a educação e os limites, fundamentais a estruturação do sujeito, devam ocorrer. Nesse sentido, apresentamos esta relação encontrada na família contemporânea, que por sua vez, depara-se com a destituição de seu saber impostas pelas normatizações estatais, sua analogia com a lógica do capital, e suas problematizações. Palavras Chave: Família contemporânea; Capitalismo; vulnerabilidade. 1Acadêmico do Curso de Psicologia da UNIJUÍ – Campus Ijuí. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8 1 A FAMÍLIA DESTITUÍDA EM SEU SABER ............................................................ 10 2 A FAMÍLIA TORNA-SE VULNERÁVEL ................................................................. 19 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 26 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 28 ANEXO ...................................................................................................................... 30 8 INTRODUÇÃO Vivemos em uma época distinta, onde novas configurações familiares estão surgindo. O modelo de família patriarcal, onde o homem é o centro da organização familiar, provedor do sustento, já não é mais referência. Sabemos que as verdades mudam de tempos em tempos, e assim novas formas de conceber a família estão emergindo, podendo hoje ser elas monoparentais, homoafetivas, para citar alguns exemplos. Além disso, na atualidade, o capitalismo impera com suas promessas de felicidade imediata embutida nas mais variadas formas de satisfação que podemos encontrar: nas propagandas de automóveis, nas telenovelas, nas musicas populares, como exemplo de um gozo que pode ser adquirido com uma quantia satisfatória de dinheiro. Como diz Tyler Durden, personagem do filme “Clube da Luta” (1999), “temos empregos que odiamos para comprar merdas que não precisamos”. Nessa relação sujeito e capital podemos observar que algumas famílias acabam em uma busca desenfreada pelo prazer imediato, envolvendo-se com a prostituição, roubo e tráfico, uma vez alienadas ao discurso imperativo, não vêm outra forma de ascensão social e acabam em um caminho delituoso. Acompanhado de todo esse fado discursivo ainda podemos perceber nessas famílias, uma precariedade simbólica, uma falta de recursos simbólicos para resolver as situações corriqueiras de um cotidiano onde o real impera a todo instante. Diante de todo este contexto, entendemos que a família fica vulnerável. O presente trabalho visa, então, discutir a desautorização do saber familiar imposta pelo estado e sua relação com a sociedade capitalista, e para tal, organiza-se em dois capítulos. 9 No primeiro capitulo, fazemos um breve esboço do significado da palavra família, e trabalhamos com alguns conceitos de autores, para falar da importância da família para a constituição do sujeito. Seguimos o percurso fazendo um relato da história social da família e da criança, e do termo “infância” que é um termo usado recentemente, não muito antigo. Como se sucederam essas mudanças com o passar dos tempos, e como a criança foi tomando um lugar importante no núcleo familiar, onde um sentimento de amor e de cuidado fez com que esta passasse a ser o centro das vivências. Partimos destas ideias para chegarmos à família do século XX, que se torna alvo das ideias eugênicas e higienistas, aparecendo destituída em seu saber pelas normatizações e padronizações impostas pelas ciências e pelo estado, onde o modelo a ser seguido é o da família burguesa, e vamos até a família contemporânea que se vê envolta por políticas publicas que regem o convívio familiar e a criação da prole.No segundo capitulo trabalhamos a relação entre a família contemporânea e o capitalismo, entendendo que este retira o tempo de convívio familiar, tão essencial na formação do sujeito, pois é na família que os vínculos são estabelecidos e as trocas subjetivas são feitas, e onde toda a transmissão cultural deve ocorrer. Estamos em um momento transitório de mudanças desse modelo de família patriarcal, e carregamos em nossa cultura uma forte tradição. Como trabalhar estas questões onde o sujeito contemporâneo se vê destituído em seu saber e fortemente influenciado por uma cultura individualista, que gira em torno do capital? Quais são os efeitos dessa cultura na família contemporânea? Estas foram às questões que nortearam a construção deste trabalho. 10 1 A FAMÍLIA DESTITUÍDA EM SEU SABER Conforme Silva (1999, p. 347) a origem etimológica da palavra família, deriva-se “do latim família, defamel (escravo, doméstico), é geralmente tido, em sentido restrito, como a sociedade conjugal.” De acordo com o Dicionário Larousse da Língua Portuguesa (2001, p. 427), a palavra família define-se como: “grupo de pessoas ligadas entre si por laços de casamento ou de parentesco; pai, mãe e filhos; grupo de parentes mais ou menos próximos; conjunto dos ancestrais ou os descendentes de um indivíduo; linhagem; filhos, prole”. Dando continuidade a esta ideia, podemos citar mais duas palavras e seus significados, que são derivadas da palavra família, a saber, familiar e familiaridade. A primeira, familiar segundo Larousse (2001, p. 427) significa: “relativo ou pertencente à família; doméstico, familial; que goza do convívio ou da intimidade de alguém; íntimo”. A segunda, familiaridade, conforme Larousse (2001, p. 428) significa: “qualidade do que é familiar, intimidade; franqueza, confiança”. Segundo ATKINSON e MURRAY (cit. por VARA, 1996), a família é um sistema social uno, composto por um grupo de indivíduos, cada um com um papel atribuído e, embora diferenciados, consubstanciam o funcionamento do sistema como um todo. O conceito de família, ao ser abordado, evoca obrigatoriamente, os conceitos de papéis e funções. Roudinesco (2003 apud Claude Lévi-Straus, “La Famille”, Paris, Gallimard, 1979, p. 95), diz: A vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distantes dos nossos. Depois de terem afirmado, durante aproximadamente cinquenta anos, que a família, tal como a conhecem as sociedades modernas, não podia ser senão um desenvolvimento recente, resultado de longa e lenta evolução, os antropólogos inclinam-se agora para a convicção oposta, isto é, que a família, ao repousar sobre a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, de uma mulher e de seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de sociedades. A família tem em sua função primeira a transmissão da tradição, dos valores e dos costumes, conforme a cultura a qual corresponde, e como vimos anteriormente, apresenta-se em praticamente todas as sociedades. Segundo Roudinesco (2003, p. 10), a família é “célula de base da sociedade”. É nela que os 11 papeis que cada indivíduo irá desempenhar são estabelecidos, e os vínculos são formados, e é nesse convívio que a criança terá seus instintos reprimidos, e nesse sentido também é que a célula base da sociedade, a família, possibilitará a diferenciação, no que nos distingue entre o ser homem e o ser animal. Será essa estrutura cultural da família humana inteiramente acessível aos métodos da psicologia concreta: observação e análise? Sem dúvida, estes métodos bastam para colocar em evidência traços essenciais, como a estrutura hierárquica da família, e para reconhecer nela o órgão privilegiado desta coação do adulto sobre a criança, coação à qual o homem deve uma etapa original e as bases arcaicas de sua formação moral (LACAN, 1984, p. 12). Nesta passagem Lacan coloca que a formação moral do individuo perpassa pela família, poderíamos dizer que, o ensinamento moral em que o sujeito se depara ao nascer é antes ensinado, transmitido no núcleo familiar. Sua organização, seus deveres, seus limites são estabelecidos dentro deste núcleo. As primeiras impressões, as primeiras normatizações, tem por característica a demarcação desse sujeito, fazer limite, é uma função familiar, função por nos definida como paterna que opera dentro deste meio, “Os pais constituem para a criança pequena a autoridade única e a fonte de todos os conhecimentos” (FREUD, 1950, p. 219). Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, que é a base dos sentimentos, segundo Schand; mais amplamente, ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência (LACAN, 1984, p. 13). Seria a família o primeiro esboço de sociedade ao qual o sujeito “criança” irá se deparar? Podemos afirmar que, para a criança a família representa a primeira imersão na cultura, e é nesse meio que o sujeito irá se desenvolver. Toda sua constituição depende de como essa relação, essas trocas irão acontecer, dentro de um vinculo real, simbólico e imaginário, conforme aponta Lacan. 12 A história nos mostra que ao longo dos anos a família tem se modificado. Em seu livro, “A história social da criança e da família”, Philippe Áries (1978), faz uma explanação sobre isso. Em primeiro lugar temos que estabelecer que segundo ele, a criança na velha sociedade tradicional tinha um período de infância reduzido à sua fragilidade. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ÁRIES, 1978, p. 17). Logo que conseguia desenvolver-se a criança era misturada aos adultos e aos seus afazeres diários, trabalhos e jogos, não tinha um espaço reservado à juventude. Então poderíamos, segundo o autor, entender essa criança sob o aspecto de um adulto em miniatura. Todo o processo de socialização e aprendizagem não era assegurado pela família e sim transmitido, nesse momento, pelo convívio com os adultos. Um sentimento, o qual o autor chama de “paparicação”, era reservado à criança em seus primeiros anos de vida. A “criança”, então, era vista como uma criaturinha engraçada, algo para os adultos se divertirem, e se morresse não havia muito sentimento de perda, pois logo outra criança tomaria seu lugar. Essa família antiga tinha por missão-sentida por todos- a conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver, e ainda, nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas. Ela não tinha função afetiva (ÁRIES, 1978). Isso não significava que não havia amor dentro dessas famílias, mas as trocas afetivas se davam no âmbito social, nas festas e encontros. Segundo o autor, algo foi se modificando no decorrer dos tempos e essa família passa por alterações, principalmente na relação com a criança. Um ponto importante marcado no relato de Aries diz do “aparecimento do retrato da criança morta no século XVI, que marca um momento muito importante na história dos sentimentos” (ÁRIES, 1978, p. 23). Outro ponto citado pelo autordiz respeito ao século XVII em que “os retratos de crianças sozinhas se tornaram comuns. Foi também nesse século que os retratos de família, muito mais antigos, tenderam a se organizar em torno da criança, que se tornou o centro da composição” (ARIES, 1978, p. 28). Isso modifica um pouco a imago social representativa da criança. Nesse período também houve mudanças significativas 13 nos trajes de uso habitual. Na idade medieval não tínhamos distinção nos trajes das crianças para os adultos, algo que começa a aparecer também pelo século XVII. No final do século XVII, com a criação das instituições de ensino, a criança que antes tinha o saber apreendido no âmbito social com a divisão de sua vida com os adultos, passa agora a aprender na instituição escolar que era fomentada pelos órgãos estatais e que tinham como pressuposto o embasamento religioso. A educação, o ensino da moralidade, passa a modificar os núcleos familiares com o consentimento da mesma, gerando um sentimento afetivo entre os cônjuges em relação à criança, devido ao dever de educação. Nesse movimento a partir do século XIX e XX, a criança toma um novo lugar na família: passa a ser o centro do núcleo. Antes, nem vista, agora, com toda atenção voltada a ela, de tal forma que, a sua perda torna-se insubstituível, o que leva a uma maior atenção aos filhos, reduzindo- se assim, consideravelmente, o seu numero, visto que a necessidade de cuidados e atenção passa a ser cada vez maior. Então, podemos entender que, em um primeiro momento, na família tradicional, o poder familiar girava em torno do pai. Esse que ditava as leis e regia as normas que eram asseguradas pelo laço social. O pai, enquanto figura real imperava em seu âmbito familiar, e seguia uma tradição transmitida pelos seus antecessores. Toda normatização e lei eram asseguradas a esse pai que tinha o dever de manter a ordem e organização familiar. As funções eram bem definidas: o chefe patriarcal comandava, transmitia a lei, buscava o sustento de sua família com a ajuda de sua prole. Por isso, antigamente podíamos encontrar famílias numerosas. Não havia o sentimento de infância. Logo que podiam, estas já iam se misturar aos adultos em seus afazeres diários, e trabalhar. A mulher, por sua vez, tinha por tarefa a procriação e os afazeres domésticos. O modelo de família patriarcal foi se modificando ao longo dos anos. Há em um período um deslocamento e uma supervalorização do ensino da família à institucionalização. Uma passagem, uma mudança nos modos de ensino, outrora desempenhados pelo pai em seu âmbito familiar, e depois pelas instituições. Isto tem um efeito significativo na constituição psíquica do sujeito e acaba por destituir o poder patriarcal. Com o advento das escolas, as crianças tomam um novo significado social. É preciso procriar menos para dar mais atenção e cuidados a esse novo sujeito. O estado, junto com as instituições passa a educar e garantir a transmissão do saber que antes era assegurado pela família. 14 Então temos todo esse movimento que ocorre no laço social, que vai dar um novo lugar à criança e, por sua vez, uma nova funcionalidade a família. Podemos entender que isto gera uma mudança significativa nos laços sociais, conjugais, e na forma de conceber a criança socialmente. Esta que, por sua vez, toma um espaço, um lugar, ao qual antes não existia. O fenômeno citado que marcou com mais fervor esse movimento foi o da institucionalização do ensino. Neste momento, há segundo Áries (1978), uma supervalorização do mesmo. Então, desloca-se, nesse sentido, a atenção, para o cuidado da prole, esta que agora deve passar pelo regime da educação institucionalizada. Isto gera, por sua vez, um novo sentimento dos pais para com os filhos: a criança passa a ser assistida, a ser o centro das atenções e seu desenvolvimento depende disto. O afeto e as relações entre os pares, pai e mãe se modificam. Um sentimento de amor passa a reger a família. Este afeto é fundamental para entendermos esta mudança que, por sua vez, é direcionado à criança, e com isso temos o advento do que podemos chamar de infância. Observando os movimentos históricos, constatamos um momento marcante e de corte no modelo de família patriarcal que ocorre com a revolução francesa e seus propósitos que pregavam: igualdade, liberdade e fraternidade. Liberdade esta que logo depois irá fomentar a liberdade entre os sexos. A partir do século XIX, com a revolução industrial, a mão de obra torna-se escassa, o que por um lado faz com que as mulheres comecem a ganhar espaço nos postos de trabalho. Aqui temos um ponto fundamental para a mudança do modelo de família patriarcal, que é a saída da mulher para o mercado de trabalho. O homem já não é mais o único provedor do sustento familiar. Mudam-se as formas sociais de estabelecer e definir os papéis que outrora tinham outra significação. A questão do declínio da autoridade paterna e da escalada em intensidade do poder das mulheres é vista de forma normativa. Ora o reino do matriarcado é apresentado como fonte de caos, de anarquia e de desordem, opondo-se ao do patriarcado, sinônimo de razão e de cultura, ora é descrito como um paraíso original e natural que o patriarcado teria destruído para instaurar seu despotismo autoritário (ROUDINESCO, 2003, p. 41). Acompanhado de todo esse movimento feminista, junto da revolução industrial, temos a eclosão das ciências. Em seu livro “Ordem médica e norma familiar”, Jurandir Freire Costa (1979) vai tratar deste assunto. As ideias concebidas 15 nesse âmbito visavam servir como um modelo de normalidade às famílias. Baseado nas descobertas científicas da pedagogia, medicina, psicologia, enfim, foi se criando padrões e regras de como educar uma criança, qual seria a alimentação mais adequada, quanto tempo de esportes deveriam praticar. Em todos os aspectos, a família tradicional burguesa torna-se um modelo imperativo no social. Tanto a medicina quanto, a psicologia começa por suas descobertas científicas a fomentar e normatizar a família atuando junto as instituições governamentais para criar e estabelecer políticas publicas de padrões normativos higiênicos de cuidados e deveres para com seus cidadãos. A partir da terceira década do século passado, a família começou a ser mais incisivamente definida como incapaz de proteger a vida de crianças e adultos. Valendo-se dos altos índices de mortalidade infantil e das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor à família uma educação física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época (COSTA, 1979, p. 12). Ao mesmo tempo em que se estabelecem normas, condutas de como proceder com os cuidados familiares, estes por sua vez, acabam por destituir o saber que antes era da própria família. Todos esses modelos de ideias higienistas tratam de delimitar o que é certo, habitual e aceitável em uma “normal” estruturação familiar, mas ao mesmo tempo em que determinam padrões de normalidades, geram um deslocamento que por sua vez tem por intuito marcar o que não é normal, o que está fora deste padrão. Senão, vejamos os especialistas encarregados de reeducar terapeuticamente a família dão se conta de que a desestruturação familiar é um fato social, mas raramente percebem que as terapêuticas educativas são componentes ativos na fabricação deste fato (COSTA, 1979, p. 16). O estado, então, passa cada vez mais a normatizar e garantir os direitos e deveres no âmbito familiar, com isso tem-se a criação de instituições de ensino integral, de saúde da família, a criação de leis que visam normatizar os deveres dos pais para com os filhos. Toda essa normatização e institucionalização do saber ora indica como proceder, ora retira o saber familiar. Por isso podemos encontrar, não raramente, escolas com problemas relacionados ao comportamento ea educação. Por um fato, se transfere um saber que antes era da família para estas instituições. 16 Em resumo quando observamos os resultados da educação higiênica, uma conclusão se impõe: a norma familiar produzida pela ordem médica solicita de forma constante a presença de intervenções disciplinares por parte dos agentes de normatização. De fato, muitos dos fenômenos apontados, hoje em dia, como causas da desagregação familiar, nada mais são que consequências históricas da educação higiênica. Em outros termos, as famílias se desestruturam por ter seguido à risca as normas de saúde e equilíbrio que lhe foram impostas (COSTA, 1979, p. 15). A família contemporânea se vê perante uma destituição do saber. O estado cria normatizações, as instituições fazem o papel de educar que outrora pertencia à família. Elas delegam o saber ao estado e as instituições que, por sua vez, não sabem como lidar com esse novo sujeito. Assim sendo, podemos pensar que tanto as mudanças na sociedade, como as novas formas de conceber a família, evidenciam que esse saber é, e deve ser exercido pela família. Caso contrário o que teremos é isso que acaba eclodindo nas instituições como: mau comportamento, adolescentes infratores, sujeitos com dificuldades em lidar com limites. Por isto questionamos: - Será que nas novas configurações familiares desautorizadas em seu saber pelo estado estaria suscitando uma carência de vínculos em seu âmbito, uma falta, que por sua vez estaria levando as famílias contemporâneas ao caos, uma vez que entendemos que a função paterna, o corte, o limite tão fundamental para a estruturação psíquica do sujeito, pode ser dado por qualquer um dos pais, mas precisa acontecer no âmbito familiar e não nas instituições? Durante percurso de estagio pudemos acompanhar famílias, algumas nucleares, outras monoparentais, onde o que mais chamou atenção foi esse deslocamento do saber da família, para o estado e para as instituições. A partir de estudos podemos perceber que é esse o papel que as instituições estão fazendo, e que acabam por perpetuar uma desautorização do saber que antes era do âmbito familiar. Entendemos que o corte, o limite devem ser dados dentro do “seio” familiar e as instituições deveriam trabalhar como um suporte, ou seja, ensinando também, mas não desautorizando a família do seu lugar de saber sobre suas crianças. Mas na realidade não é isso que acontece, as instituições, na maioria das vezes, fazem o papel que deveria ser exercido pelos pais, não por quererem, mas em resposta a um desenvolvimento histórico que produziu este deslocamento, e hoje a família demanda à instituição o saber sobre seus filhos. 17 Não se trata de dizer que a escola não tem sua importância, sabemos que a escola tem um papel fundamental na formação da criança, e uma grande função social, se é no âmbito familiar que devem ocorrer os primeiros ensinamentos, na escola é que eles vão aparecer, a escola tem por excelência o uso da pedagogia como fonte de inspiração. “A palavra Pedagogia tem origem na Grécia, paidós (criança) e agodé (condução). A palavra grega Paidagogos é formada pela palavra paidós (criança) e agogos (condutor). Portanto, pedagogo significa condutor de crianças, aquele que ajuda a conduzir o ensino” (HAMZE, s.d.). Se na família tradicional tínhamos os adultos como condutores da educação infantil, na contemporaneidade teremos a escola. Ai jaz uma grande dificuldade encontrada hoje pelas escolas, que tem haver com esse deslocamento do saber, para a instituição. Entendemos que escola tem como função principal ensinar, possibilitar o processo de aquisição da leitura e da escrita e o ensino das diversas áreas do conhecimento, tais como a matemática, português, história, geografia, enfim e ainda por transmitir princípios morais e de civilidade que precedem os convívios na sociedade. Mas não em sua totalidade, pois é na família que a educação primeira deve acontecer, é em seu âmbito que a primeira transmissão da lei deve operar. Entendemos que é isso que irá permitir á criança a inserção social via escolarização. Na atualidade o que podemos perceber são um pai e uma mãe fragilizados, desautorizados em seu saber, que por muitas vezes delegam o mesmo a instituição, e é muito comum vermos este pedido de educação que deve ser feito pela família à instituição. A partir da leitura da Roudinesco (2003), podemos entender que as novas configurações familiares não retiram da família o papel de educar e dar limites a uma criança. Tanto o pai quanto a mãe podem fazê-lo, mas é papel da família e não do estado ou da instituição. Então, logo pensamos que toda esta normatização leva a família a um não exercício do que poderíamos chamar de função familiar, que é a função de educar, ensinar, dar limite a esse sujeito contemporâneo, que se vê, ao mesmo tempo perdido em meio a tantas normas e regras delegadas pelo estado e pelas instituições e que ao mesmo tempo não as retém ou se vê desamparado. A partir daí, temos os grandes impasses da educação, crianças com problemas de concentração, de aprendizagem, adolescentes em conflito com a lei, etc., toda esta demanda que o estado tenta solucionar é produto das próprias ideias 18 higiênicas de normatização familiar. O ponto central da questão, o eixo central está na família e é nele que deve ser trabalhado. Que a família sofre e precisa ser ajudada, não há duvida! Não se trata de negar a desorientação e o sofrimento emocional que perseguem os indivíduos urbanos às voltas com seus dilemas familiares. A dúvida consiste em saber se os remédios propostos, ao invés de sanarem o mal, não iriam perpetuar a doença (COSTA, 1979, p. 17). Se todo o esforço em normatizar, educar e ensinar nas instituições falha denuncia que a própria pratica de políticas publicas higienistas voltadas à criança e à juventude não seria o modelo mais indicado a se seguir. Como citamos no inicio, é na família que acontecem as primeiras transmissões do saber, é nela que o sujeito se constitui, a lei, a transmissão da moralidade, do saber, do que é certo ou errado, se isso falha o sujeito se vê desamparado. Abrimos novos parâmetros para pensar que nossa sociedade se constitui na atualidade envolta dos saberes e das ciências das especificidades, e cada vez mais a família se vê desautorizada em seu saber, e não se trata aqui de dizer o que é melhor ou o que deveria ser melhor para esse sujeito contemporâneo, apenas de podermos abrir parâmetros de pensamentos para refletir no que tudo isso está ocasionando e quais são seus efeitos. É na transmissão da cultura pela tradição que o sujeito terá um lugar em sua família, apostamos que a construção de seus laços, seus vínculos e suas primeiras trocas afetivas devem ocorrer dentro do núcleo familiar, toda educação primeva deve ocorrer nesse lugar. O que podemos observar em nossa sociedade atual é algo que vai contra a essa premissa, pois cada vez mais cedo o sujeito é retirado de seu núcleo e passa a viver em instituições. Crianças com alguns meses já estão institucionalizadas, passam os dias dentro de creches e lugares de cuidados. Isto se dá pela necessidade de produção e de trabalho dos pais que se vêm enlaçados num modelo de produção. 19 2 A FAMÍLIA TORNA-SE VULNERÁVEL As relações sobre capital e subjetividade tem ocupado importante lugar na literatura psicanalítica. O que nos constitui psiquicamente e nos da possibilidade de sermos sujeitos em falta, segundo Freud (1905), acontece durante o complexo de castração. Freud utiliza-se da obra de Sófocles, denominada de Édipo Rei, para explicar a maneira como somos constituídos psiquicamente, e como a falta será inserida na relação entre pai, mãe e bebê. A falta entra em jogo nessa relação, deixando um buraco, um vazio, logo esse lugar será ocupado por objetos de satisfação parcial que para o sujeito,na idade adulta, podem ser adquiridos com uma considerável quantia em dinheiro. Segundo Freud, o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha de objeto. O complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano (JEAN, 2001, p. 77). Lacan ao fazer uma releitura do texto Freudiano, avança, introduzindo a noção de objeto a (objeto-causa-do-desejo). Tanto um quanto outro, explicam que primeiramente somos um ser único na relação com a mãe, e é o desejo materno que vai possibilitar as primeiras inscrições subjetivas no bebê. Posteriormente é necessário o deslocamento do desejo materno para um terceiro, algo ou alguém que tome esse lugar desejante, que possa fazer um corte na relação dual entre mãe e filho. A partir daí temos a inserção da falta, o bebê passa da situação de falo (objeto do desejo), a uma posição de perda. Algo cai nessa relação, e é isto que permite ao bebê ser também um sujeito desejante. A falta nos constitui, uma vez que temos como interditor do desejo materno o pai, sua falta poderia implicar em um desequilíbrio na harmonia familiar. Sabemos que as funções materna e paterna não, necessariamente, precisam ser exercidas, respectivamente, por um casal hetero, homem e mulher. Novas formas de conceber os matrimônios começam a existir das mais variadas maneiras. Há casais homo afetivos, heteros e também famílias no qual um indivíduo faz função materna e paterna. Na contemporaneidade, com esse novo formato de conceber as relações conjugais, é comum encontrarmos famílias nas quais vivem a mãe e os filhos, ou, os 20 pais e os filhos. São novas estruturas, novos padrões para conceber a família podendo as mesmas se apresentar como monoparentais, nucleares, unipessoais, homoparentais, recompostas, dentre outros. Retornando um pouco as ideias apresentadas na introdução deste capitulo, vivemos na lógica do capital, onde ter significa ser, (ter dinheiro especificamente e bens materiais), e assim, vivemos impregnados das mais variadas ofertas de satisfação imediata. Somos seres em falta. O que nos constitui é um enorme buraco existencial, então as grandes indústrias se aproveitam disso e criam uma ilusão com produtos, na tentativa de preencher este buraco, e a psicologia se faz presente nas grandes ideias de marketing, que vendem a imagem de algo, como se aquilo fosse imprescindível para nossa felicidade. O que acontece é que na maioria das vezes o sujeito não consegue responder a esse ideal, a esses modelos de felicidade impostos pelo marketing, e acaba adoecendo, ou encontrando em meios delituosos uma forma de chegar à ascensão social e adquirir esses objetos que lhe faltam para ser mais feliz. Nesse aspecto podemos presenciar vários problemas emergentes da lógica capitalista: o roubo, assassinatos, e os mais variados crimes, como produtos do próprio mercado. Em prática de estágio na ênfase de processos sociais, trabalhamos junto das famílias buscando o fortalecimento de seus vínculos através do resgate e reconstrução de suas histórias de vida. É comum encontrarmos fatores que são determinantes e que colocam estas famílias em um elevado grau de vulnerabilidade social como: baixo grau de escolaridade, baixa renda, local onde residem, altos índices de drogadição e tráfico. Nesta experiência, também presenciamos, núcleos familiares constituídos de duas pessoas, mãe e filha, por exemplo, ou mãe que vive com o namorado mais seis filhos, alguns de pais diferentes, mas que apesar de terem fatores sociais que os colocam em uma situação delicada, conseguem manter uma estabilidade e uma relação funcional, onde seus filhos tem um desenvolvimento “normal”. O mais interessante é que na cultura ainda o modelo patriarcal é referencia, há novas configurações familiares emergindo, vivemos em um momento transitório, e sabemos que cada cultura segundo Freud (1930) é responsável pelos seus sintomas. Não podemos nos abster da ideia de que a família contemporânea está envolvida pela lógica do capitalismo. Como foi citado, sabemos que esta mesma lógica pode colocar a família em um maior grau de vulnerabilidade. 21 E é o que podemos presenciar, não é raro vermos, em noticiários, famílias inteiras envolvidas com o trafico de drogas, indo parar dentro de presídios. Muitas vezes, isto é decorrente da própria imposição dessa lógica, que para ascender socialmente e adquirir certa forma de visibilidade social, um lugar, acabam por cometer atos que colocam em perigo as suas vidas. Os reflexos do capitalismo no âmbito familiar são expressamente visíveis em uma sociedade onde o dinheiro é o fomentador desta busca insaciável pelo prazer imediato. Vemos que esta moeda circundante de troca, tanto possibilita um lugar social como também serve para os mantimentos das mais básicas necessidades. Muitas famílias encontram dificuldades em buscar satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência, através de um trabalho que lhe gerara uma renda. O que pudemos presenciar também neste percurso de estágio, é que muitas famílias que vivem a margem das cidades encontram dificuldades em localizar um trabalho em que possam ter uma melhor rentabilidade, e que isto se da muitas vezes devido ao baixo nível de escolaridade ou formação técnica. Também pudemos notar certo preconceito cultural que as separam, e as colocam à margem da sociedade. Outro problema que se perpetua nestas famílias são os programas de assistencialismo oferecidos pelo estado, que por sua vez geram uma cultura maternal, como a bolsa família, criando uma situação de dependência. O valor destinado por este programa às famílias de baixa renda é variável e pede para que as famílias tenham acesso, que as crianças devam passar por um controle nutricional e educacional. Por um lado, esse programa permite que estas famílias tenham acesso a uma pequena renda e, por outro, gera uma cultura maternal, ou seja, o sujeito nessa situação pode se colocar em uma condição de dependência, uma acomodação que parece fugir dessa lógica do capitalismo, mas elas estão inseridas mesmo assim e acabam, então muitas vezes, encontrando na prostituição, no roubo ou no tráfico uma forma de ascensão social. A lógica do capitalismo empurra a família contemporânea cada vez mais a uma forma de produzir mais e buscar no dinheiro uma forma de viver. Como cita Birman (1999, p. 24), “os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas”. As trocas no social se esfacelam, em uma cultura regida pela lógica do capital, o individualismo impera, e isso ocorre dentro dos núcleos familiares também. Cada vez mais as famílias 22 passam a ter sua convivência ou os momentos de convívio em comum reduzidos. Muitas crianças, hoje, são colocadas, já nos seus primeiros meses de vida, em uma instituição porque os pais precisam trabalhar. Isto tudo tem efeito no sujeito. Segundo Roudinesco (2003), citando Lacan, “a família é organizada segundo imagos, um conjunto de representações marcadas pelos dois polos do paterno e do materno. Fora desse pertencimento, que caracteriza, dizia ele, a organicidade social da família, nenhuma humanização do indivíduo é possível” (p. 110). Quanto menos tempo os indivíduos que constituem o núcleo familiar passam em convívio, menos serão as trocas subjetivas, e se é no âmbito familiar que essas ocorrem, poderíamos dizer que isto levaria a uma precarização simbólica e também a uma maior vulnerabilidade familiar. Tempo este que não se encontra a venda, uma vez vivido, já é passado. 1. Admiro-me quandovejo alguns pedindo tempo e aqueles a quem se pede serem complacentes; ambos consideram que o tempo pedido não é tempo mesmo: parece que nada é pedido e nada é dado. Joga-se com a coisa mais preciosa de todas, porém ela lhes escapa sem que percebam, já que é incorporal e algo que não está sob os olhos, por isso é considerada desprezível e nenhum valor lhe é dado. 2. Os homens recebem pensões e aluguéis com prazer e concentram nessas coisas suas preocupações, esforços e cuidados. Ninguém valoriza o tempo, faz-se uso dele muito largamente como se fosse gratuito. Porém, quando doentes, se estão próximos da morte, jogam-se aos pés dos médicos. Ou, se temem a pena capital, estão preparados para gastar todos os seus bens para viver, tamanha é a confusão de seus sentimentos! (SÊNECA, 2008, p. 44). Já a dois mil anos atrás Sêneca (2008), trabalhava a questão do tempo e sua relação com a vida cotidiana dos habitantes de Roma. Em seu percurso em uma de suas obras batizada com titulo “Sobre a brevidade da vida”, diz o quanto o tempo é precioso e já naquela época era utilizado para adquirir e juntar riquezas, bens matérias. E, que muitos habitantes romanos passavam toda sua vida trabalhando e gastando todo seu tempo nesse intuito, já velhos, sem tempo, tentavam recuperar o tempo perdido, ou compra-lo, mas ele não se encontrava a venda e ainda hoje não se encontra. Então podemos chegar a um pensamento, que desde os tempos primórdios em sociedades “civilizadas” o sujeito busca a satisfação, sempre parcial, de sua falta, adquirindo e juntando bens materiais através de seus esforços, e que todo tempo gasto para isso certamente é diminuído de seu convívio familiar. 23 Na contemporaneidade pode-se compreender que ter significa ser, vemos uma fragmentação nos laços sociais devido a uma busca desenfreada pela satisfação imediata, de um individualismo muito grande, um narcisismo marcado pelo capital, que “o que aparece é bom, e o que é bom aparece”. Nesse monopólio da aparência, tudo o que fica do lado de fora simplesmente não é”. (SIBÍLIA, 2008, p. 112). De acordo com Sibília (2008): Nesta cultura das aparências, do espetáculo e da visibilidade, já não parece mais haver motivos para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos abissais perdidos dentro de si mesmo. Em lugar disso, tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto. Cada vez mais, é preciso aparecer para ser. Pois tudo aquilo que permanece oculto, fora do campo da visibilidade – seja dentro de si, trancado no lar ou no interior do quarto próprio – corre o triste risco de não ser interceptado por olho algum. E, de acordo com as premissas básicas da sociedade do espetáculo e da moral da visibilidade, se ninguém vê alguma coisa é bem provável que essa coisa não exista (p.111). Essa cultura de aparências fomentada pelo capitalismo seria perigosa, uma vez que colocaria o sujeito em uma condição que o chama a aparecer, a ser, e que se não consegue via trabalho irá buscar em outros meios, colocando sua situação muitas vezes em risco e podendo se envolver em atos delituosos. Essa busca pela visibilidade, também tem efeitos na família enquanto retira o tempo de convívio familiar onde às trocas são feitas e os vínculos estabelecidos, pois para ser, o sujeito contemporâneo precisa buscar de alguma maneira, formas de ser, de existir socialmente, de ser percebido, sejam através do trabalho ou não. Os vínculos familiares são mantidos através das trocas subjetivas que ocorrem dentro de seu núcleo baseadas no convívio entre seus membros, onde todos os afetos irão percorrer seus caminhos em um laço que constitui e molda essa emaranhada célula familiar unida pelo sentimento de amor. E para que isso ocorra é preciso que a família participe das trocas, se envolva, ou encontre nelas um momento para a transmissão dos valores e saberes, das tradições, é nesse sentido que irão encontrar em suas próprias historias recursos simbólicos para lidar muitas vezes com um real assustador. 24 [...] a família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência de desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como se vêm estruturando. É a família que propicia os aportes afetivos e, sobretudo, materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na educação formal e informal, é em seu espaço que são absorvidos o valor ético e humanitário, e onde se aprofundam os laços de solidariedade (KALOUSTIAN, 1998, p. 11- 12). Arnold (2010) trabalha fazendo essa relação da contemporaneidade com a lógica do discurso capitalista, e o quanto essa lógica é perigosa, e colocaria as crianças em uma situação vulnerável. Segundo o autor, a correria que esse mercado competitivo impõe, de produção acelerada, de um consumismo desenfreado, onde o amor e o afeto deveriam predominar no espaço familiar são trocados por objetos, presentes, aos quais os pais dão aos seus filhos na tentativa de preencher suas ausências. Mas nenhum objeto, nenhum presente pode substituir ou suprir a convivência familiar, os momentos de lazer e descontração, de trocas afetivas, de amor, fundamentais ao desenvolvimento da criança e manutenção dos vínculos familiares. Em um mundo onde o dinheiro lança seu feitiço em todos os setores da vida pública e privada, o maior perigo para as crianças pode ser as lentes econômicas pelas quais elas são vistas. Ver as crianças como objetos de valor ou investimento financeiro é ser calculista demais, mas dado o grande número de conversas como a que vimos agora (retirada do recente livro de memórias de Martha Beck sobre ter um bebê em Harvard), é evidente a enorme tendência que os pais têm de vê-las de formas menos favoráveis: com um fardo, riscos ou dívidas. Obviamente vivemos em uma cultura que não somente fracassa repetidas vezes com as crianças como também abertamente as despreza (ARNOLD, 2010, p. 20). Trabalhar e trabalhar, consumir e consumir cada vez mais é o que o regime capitalista impõe sobre a sociedade. Mas a qual preço? Como Sêneca (2008) nos ensina, a vida é breve, mal percebemos e já estamos na terceira idade ou na melhor idade como alguns dizem. Mas uma coisa é certa, quem perde com tudo isso é a célula básica da sociedade, a família, no seu convívio privado, permanecendo com seus vínculos fragilizados, dissolvidos e envoltos por um discurso imperativo, quando esta deveria ser a fonte principal da transmissão da cultura, do saber, das trocas subjetivas fundamentadas no amor. 25 Vejo muitos pais de classe média, completamente imersos em seus trabalhos. Trabalhar de 40 a 60 horas semanais é uma maneira mais fácil de obter satisfação imediata do que passar tempo com os filhos. É muito mais fácil fazer parte de um sistema com regras e objetivos definidos e ser bem-sucedido no ambiente corporativo que no meio familiar (ARNOLD, 2010, p. 23). Nesse sentido podemos pensar que este descomprometimento dos pais com os filhos tanto é gerado pelas longas jornadas de trabalho, como também podemos relacionar com as ideias apresentadas no primeiro capitulo deste trabalho, uma vez que imbuídos ao sistema lógico do capital, esse acaba por decidir os rumos familiares, e por subsequente acaba destituindo também o saber familiar, pois dita as normas, rege a maneira do convívio, e dita como cada sujeito deve se apresentar perante aos olhares da sociedade. 26 CONSIDERAÇÕES FINAIS Destituídas em seu saber pelas normatizações impostas pelo estado e envoltas no discurso do capital, a família contemporânea se depara com a fragmentação e a fragilização de seus vínculos. O capitalismo influencia as políticas publicas deensino, e o que podemos notar é uma desagregação no meio familiar, os pais se retiram do lar para cumprir com a lógica do capital e os filhos ficam a mercê das instituições. Todo este movimento em que a família contemporânea se imbui, ao responder as normatizações estatais e ao discurso do capital, nos evidenciam que atualmente a família está deixando de ser uma entidade privada, fundamental para a constituição do sujeito e da sociedade. Uma vez que entendemos que a família é a célula mater da sociedade e é onde o sujeito se constitui, constrói sua identidade, se esta se fragmenta, fragiliza-se, o seu reflexo se evidenciará no social. Poderíamos então pensar na serie de problemas enfrentados hoje em vários setores da sociedade, exemplo, a grande dificuldade encontrada no meio educacional, onde professores não sabem como lidar com esses novos sujeitos hiperativos, o aumento da criminalidade, onde podemos evidenciar famílias inteiras envolvidas em atos delituosos. Se o que podemos observar é justamente esta desautorização da família contemporânea por parte do estado, e também observar com embasamento teórico que é no âmbito familiar, ou seja, é a família o órgão responsável pela transmissão do saber, das normas, da tradição, o que podemos constatar é que essa família contemporânea se encontra destituída de seu saber, perdida de certa forma em sua organização. Ela é antes resultado de um monte de saberes, política publica normativa, que dita o que é melhor e aceitável para o cuidado de seu núcleo e de 27 sua prole, e os efeitos dessa forma de conceber a família são observáveis e nos comprovam que essa destituição do saber, por sua vez, gera uma fragilização do núcleo familiar, e uma maior vulnerabilidade. A família contemporânea encontra-se então em um paradoxo de dilemas, perdida em seu papel funcional, fragmentada em um tempo onde cada vez mais a política publica direciona o que se deve fazer, e como se deve proceder na criação de sua prole, destituindo e desorientando os pais no que condiz ao convívio familiar. Então, os pais deslocam e delegam o saber as instituições, que por sua vez, também não sabem como proceder com esses novos sujeitos emergentes de uma cultura individualista, fomentada por um consumo desenfreado. Tanto a destituição do saber imposta pelas normatizações estatais quanto o tempo de convívio familiar reduzido pela lógica do capital, evidenciam que a família contemporânea se apresenta muitas vezes fragmentada, fragilizada, perdida na sua funcionalidade, e como diz Costa (1979) “A dúvida consiste em saber se os remédios propostos, ao invés de sanarem o mal, não iriam perpetuar a doença”. Não cabe a nós darmos os remédios que iriam sanar o “mal” que circunda as famílias contemporâneas, pois se assim o fizéssemos estaríamos por perpetuar ainda mais o que as ideias normativas impõem. Mas sim, podemos pensar que o produto da nossa sociedade que dita o que é melhor e aceitável as famílias que estão envoltas pelo capitalismo (que ora retira tempo essencial no convívio familiar), é o que podemos presenciar em prática de estágio, famílias fragmentadas, fragilizadas em seus vínculos, perdidas em sua função, que é a transmissão do saber, das normas e limites fundamentais a constituição de todo sujeito. 28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNOLD, J. C. Crianças em perigo. Rio de Janeiro: Propósito Eterno, 2010. BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 15-26. COSTA, F. J. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. DICIONÁRIO LAROUSSE DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Ática, 2001. FREUD, S. 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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. LAPLANCHE, J. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. SÊNECA, L. A. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: L&PM, 2008. SIBÍLIA, P. O show do eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 89-112. SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. 30 ANEXO 31 ANEXO A – Normas Atualizadas da ABNT Fonte: Furasté (2013). 32 Fonte: Furasté (2013). 33 Fonte: Furasté (2013). 34 Fonte: Furasté (2013). 35 Fonte: Furasté (2013). 36 Fonte: Furasté (2013).
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