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MIGUEL ANGELO SILVA DE MELO ANTONIEL DOS SANTOS GOMES f ILHO ZULEIDE FERNANDES DE OUEIROZ (Organizadores) P:'- 'T' n W •••'.'. -"i-í ríi- |3|ÍI[l]l[lM EH! CONFRONTO NO DIREITO REINVENÇÕES, RESSIGN IFIC AÇÕES E REPRESENTAÇÕES A PARTIR DA INTERDISCIPLINARIDADE i l l l Livro comemorativo aos 5 anos do LIEV •-- - ^ - C ' - r S i : . Copyright O da Editora CRV Ltda. Editor-chefe: Railson Moura Diagramação e Capa: Editora CRV Arte da capa: José Mario Pontes de Vasconcelos Filho Revisão: Os Autores DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) CATALOGAÇÃO NA FONTE EP64 Epistemologías em confronto no direito: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade. / Miguel Ângelo Silva de Melo, Antoniel dos Santos Gomes Filho, Zuleide Fernandes de Queiroz (Organizadores). - Curitiba: CRV, 2017. 478 p. Bibliografia ISBN 978-85-444-1551-1 DOI 10.24824/978854441551.1 1. Sociologia 2. Direitos humanos 3. Antropologia jurídica 4. Sociologia jurídica 5. Estudos pós-coloníais 6. Filosofia e estudo de gênero I. Melo, Miguel Ângelo Silva de. org. II. Gomes Filho, Antoniel dos Santos, org. II. Queiroz, Zuleide Fernandes de. org. III. Título IV Título. CDD 340 índice para catálogo sistemático 1. Sociologia jurídica 340.115 2. Direitos humanos 341.27 3. Antropologia jurídica 340.12 ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL EM FORMATO DIGITAL. CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO! k . DISPONÍVEL NO Google Play Baixar na App Store 2017 Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br mailto:sac@editoracrv.com.br http://www.editoracrv.com.br CAPITULO XXIV "SOBRE O PODER SIMBÓLICO": instrumento de pensamento necessário para a construção de uma ciência rigorosa do direito? Francysco Pablo Feitosa Gonçalves1 João Paulo Allain Teixeira1 Luysa Gabrielly de Araújo Morais1 "Uma ciência rigorosa do direito distingue-se daquilo a que se chama geralmente «a ciência jurídica» pela razão de tomar esta última como objeto" (BOURDIEU, 2012, p. 209) Considerações iniciais Este trabalho tem por objetivo tecer breves considerações sobre o poder simbólico - conceito tipicamente bourdieusiano - enquanto instrumento de pen- samento necessário para a construção de uma ciência rigorosa do direito. Para a consecução desse objetivo, falaremos, inicialmente, sobre a proposta de Bourdieu para uma ciência social reflexiva, abordando brevemente seus pressupostos epis- temológicos e metodológicos, o que nos permitirá compreender de que proposta de ciência estamos falando. Posteriormente, falaremos sobre o poder simbólico em si, e, a fim de facili- tar a sua compreensão, mencionaremos algumas das formas como ele é exercido no campo jurídico, no campo da educação, nas relações de comunicação etc. Para, ao fim, apresentarmos nossas considerações finais. Metodológicamente, o presente trabalho foi construído a partir do diálogo e da identificação das zonas de interseção entre as pesquisas da autora e dos dois autores, a partir da análise e discussão dos dados de tais pesquisas - e nos refe- rimos tanto aos pressupostos teóricos comuns, quanto, sobretudo, à análise dos dados empíricos das referidas pesquisas - pudemos construir as homologías que permitiram à escrita do presente trabalho. Antes de passar ao trabalho propria- mente dito, advertimos, entretanto, que não pretendemos esgotar nenhum dos temas ou questões que serão suscitadas. Nossa pretensão consiste muito mais em 152 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/ PPGD). Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO). 153 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/ PPGD). 154 Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO). 358 apresentar o poder simbólico como instrumento que permite pensar e compreen- der essa estranha eficácia baseada na opinião e na crença; de colocar esse instru- mento de pensamento no foco das investigações e debates, do que propriamente de apresentar quaisquer conclusões pretensamente definitivas sobre ele. Bourdieu: (in)compreensões Bourdieu foi, muito provavelmente, o pensador social mais citado no mundo na primeira década do corrente século155, e, curiosamente, aspectos importantes de sua obra permanecem, em grande, parte desconhecidos por aqueles que o estudam. A apropriação da obra de Bourdieu - sobretudo no Direito156 - muitas vezes, é feita de forma equivocada e, em alguns casos, até mesmo mutiladora. Alguns autores se apropriam de elementos de sua teoria social, desconsiderando suas im- plicações epistemológicas e metodológicas; outros mergulham nas implicações epistemológicas, mas não fazem nenhuma abordagem empírica, o que, possivel- mente, se relaciona ao que Bourdieu criticava como sendo a "preocupação de não sujar as mãos nas cozinhas da pesquisa empírica" (BOURDIEU, 2004, p. 32); e, o que talvez seja o mais criticável, autores que usam passagens de Bourdieu de forma teoricista, apenas como argumento de autoridade, o que contradiz a própria proposta da obra dele. Há ainda, os que parecem demandar da obra de Bourdieu algo que ela não se propõe a fazer, e aqui podemos mencionar aqueles que a rotulam como uma obra conservadora ou reprodutivista, e aqueles que, de forma análoga, parecem demandar do autor uma teoria emancipator ia. Apenas a título de exemplo, po- demos citar Luckesi (1994) e Saviani (1999) os que classificam a abordagem bourdieusiana como sendo uma tendência reprodutivista, ou uma teoria crítico- -reprodutivista, na qual a função própria da educação é a reprodução da sociedade da qual ela faz parte. Tais críticas, além de ignorar que a sociedade de fato se reproduz, também, através da educação formal, demandam do autor algo que ele não se propôs a realizar, como diz Jessé Souza: Existe um certo tipo de crítica, que se passa por científica, que imagina poder legitimamente desvalorizar o trabalho de autor a partir do fato de que existem questões não respondidas adequadamente na sua obra. Assim, Bourdieu é sistematicamente criticado por ter apenas visto a "reprodução e não a mudança" na sociedade. O problema como este tipo de crítica não é simplesmente não perceber que a "reprodução" perfaz 99% da vida so- cial cotidiana e permite desvelar precisamente o que a mantém enquanto 0 fato de que Bourdieu foi o sociólogo mais citado do mundo é amplamente conhecido e, até onde sabemos, jamais foi contes- tado. Sobre pesquisas específicas, nesse sentido, vale lembrar o levantamento feito por Santoro, que demonstrou — baseando- -se, sobretudo, em dados do ISI Web of science—que Bourdieu foi o pensador social mais citado no mundo entre 1999 e 2007, (SANTORO, 2008). Franck Poupeau, em entrevista à Revista Cuit, em 2012, mencionou que "Faz bastante tempo que Bourdieu é o sociólogo mais citado no mundo. Se você pegar, por exemplo, o American Journal of Sociology, não há praticamente um só artigo que não faça referência a seu trabalho." Há quem considere, por exemplo, que basta conhecer A ¡orça do Direito. EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinarídade 35g realidade que se reproduz cotidianamente de modo opaco para seus mem- bros. O problema é o desejo "infantil" (afinal, é da relação paterna arcaica que se constróem essas fantasias) de imaginar obter todas as respostas que a realidade nos apresenta a partir de um único autor (SOUZA, 2007, p. 55). Essas críticas além trazer, de forma subjacente, uma fé ingênua no potencial emancipatório da construção de teorias - que mais das vezes são debatidas apenas no campo acadêmico, e, às vezes, nem isso - , contém uma profunda incompre- ensão da obra de Bourdieu, cuja proposta consistia precisamenteno rigor e no compromisso com a pesquisa empírica, nas palavras do próprio Bourdieu: La théorie n'est pas une sorte de discours prophétique ou programmatique, né de la dissection ou de l'amalgame de théories (dont le meilleur exemple reste le scheme AGIL de Parsons que certains tentent de ressusciter au- jourd'hui). La théorie scientifique telle queje la conçois se présente comme un programme de perception et d'action, un habitas scientifique, si vous préférez, qui se dévoile seulement dans le travail empirique où elle se ré- alise. En conséquence, on a plus à gagner en s'affrontant à de nouveaux objets qu'en s'engageant dans des polémiques théoriques qui ne font que nourrir un métadiscours auto-engendré et trop souvent vide à propos de concepts traités comme des totems intellectuels. Traiter la théorie comme un modus operandi qui guide et structure pratique- ment la pratique scientifique implique évidemment que l'on abandonne la complaisance un peu fétichiste que les théoriciens théoricistes lui accordent. C'est pourquoi je n'ai jamais éprouvé le besoin de retracer la généalogie des concepts que j'ai forgés ou réactivés, comme ceux d'habitus, de champ ou de capital symbolique. N'étant pas issus d'une parthénogenèse théorique, ces concepts ne gagnent pas beaucoup à être resitués par rapport aux usages an- térieurs. C'est dans la pratique de la recherche que ces concepts nés des diffi- cultés pratiques de l'entreprise de recherche doivent être évalués. La fonction des concepts que j'emploie est d'abord et avant tout de désigner, de manière sténographique, une prise de position théorique, un principe de choix métho- dologique, négatif autant que positif. La systématisation vient nécessairement ex post, à mesure que des analogies fécondes émergent, à mesure que les pro- priétés utiles du concept sont énoncées et mises à l'épreuve (BOURDIEU, 1992, p. 136-137)157. 157 Tradução livre: "A teoria não deve ser um tipo de discurso profético ou programática, nascido da dissecção ou 0 fusão de outras teorias (o melhor exemplo é o esquema ÁGIL de Parsons que algumas pessoas estão tentando ressuscitar hoje em dia). A teoria científica, tais como eu a concebo, é um programa de percepção e ação, um habitus cientifico, se preferirem, que se revela apenas no trabalho empírico no qual se realiza. Consequentemente, ganhamos mais confrontando novos objetos do que nos engajando em polêmicas teóricas que apenas alimentam um metadiscurso autoaflrmativo mais das vezes estéril em tomo de conceitos tratados como totens intelectuais. Tratar a teoria como um modus operandi que guia e estrutura prática científica implica, obviamente, que abdiquemos da de- ferencia fetichista que os teóricos teoricistas lhe concedem. É por essa razão que eu nunca senti a necessidade de rastrear a genealogía dos conceitos que estabeleci, ou reativei, tais como habitus, campo ou capitai simbólico. Uma vez que tais conceitos não nasceram de uma partenogênese teórica, eles não ganham multa coisa sendo reposicionados com seus usos anteriores. Tais conceitos, nascidos das dificuldades práticas da realização da pesquisa, devem ser avaliados na prática da pesquisa. A função dos conceitos que emprego é, sobretudo, para designar de forma estenográfica, uma tomada de posição teórica, um princípio de escolha metodológica, tanto negativo quanto positivo. A sístematização vem necessariamente exposf, na forma de analogias fecundas que emergem à medida em que as propriedades úteis do conceito são postas à prova." 360 A passagem acima, que mostra muito da ciência social de Bourdieu, propõe dá-nos, também, o mote necessário para aprofundar alguns pressupostos de na- tureza epistemológica e metodológica, a fim de tentar contribuir para desfazer os mal-entendidos que perpassam a apropriação da obra de Bourdieu, já que mostra como a teoria é construída pela e para a prática da pesquisa. É certo que um trabalho tão breve quanto o presente não tem como abordar tais pressupostos, adequadamente, mas eles precisam ao menos ser mencionados a fim de que quem porventura pretenda fazer uso da sua obra para orientar pesquisas possa ao menos estar ciente da existência dos referidos pressupostos. Sobre a teoria do conhecimento do objeto Bourdieu, Chamboredon e Passeron enfatizam a necessidade de estarmos conscientes da distinção entre a teoria do conhecimento do objeto (teoria do co- nhecimento sociológico) e a teoria do objeto (teoria do sistema social), e adver- tem para a necessidade de não confundir a exigência de uma necessária teoria do conhecimento do objeto (sociológico) com a exigência descabida de uma teoria universal das sociedades. Os autores advertem, ainda, para o fato de que precisa- mos estar vigilantes em relação a tais teorias, a fim de que possamos construir o objeto de pesquisa adequadamente: "Quanto menos consciente for a teoria implí- cita em determinada prática - teoria do conhecimento do objeto e teoria do objeto - maiores serão as possibilidades de que ela seja mal controlada, portanto, mal ajustada ao objeto em sua especificidade" (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2013, p. 53). Diante dessa advertência, vamos mencionar en passant os dois autores que parecem ter contribuído mais decisivamente para a construção da teoria do conhecimento do objeto de Bourdieu: Bachelard e Cassirer (cf. GONÇALVES, 2016)158. O próprio Bourdieu, mencionando o que seria essencial à sua obra, se refere a: [...] une philosophie de la science que l'on peut dire relationnelle, en ce qu'elle accord le primat aux relations: bien que, si l'on en croit des auteurs aussi di- fférents que Cassirer ou Bachelard, elle soit celle de toute la science moderne, cette philosophie n'est que trop rarement mise en oeuvre dans les sciences so- ciales (BOURDIEU, 1994, p. 9)159. 158 Esse ponto de vista parece ser compartilhado por Vandenberghe, quando ele diz que "Bourdieu não é um pensador sincrético, mas sintético e herético. Ele se apoia em Durkheim, Marx, Weber e outros, mas, na medida em que os corrige criticamente, poderíamos descrevê-lo também como um durkheimiano anti-durkheimiano, um weberiano anti-weberiano ou um marxista antimarxista. Poderíamos até dizer que eie pensa com Althusser contra Althusser e contra Habermas com Habermas, mas não - e essa é provavelmente a única exceção- que ele pensa com Bachelard contra Bachelard. [-1 Bourdieu, que publicou Cassirer nas coleções que ele dirigiu nas Editions de Minuit, é possivelmente o sociólogo mais influen- ciado pelo autor neo-kantiano [...]" (VANDENBERGHE, 2010, p. 281-282). 159 Tradução livre: "[.••] uma filosofia da ciência que poderia ser chamada de relacionai, porquanto atribui primazia às relações; apesar de que, de acordo com autores tão diversos como Cassirer ou Bachelard, ela seja parte de toda a ciência moderna, esta filosofia é muito raramente implementada nas ciências sociais, [...]. EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade 351 Comecemos com Cassirer. Em Substance and Function, o filósofo da cul- tura da Escola de Marburgo mostra como a forma de, tradicionalmente, com- preendermos o processo de construção dos conceitos, desde Aristóteles, estava equivocada. Usualmente, pensava-se que os conceitos eram construídos a partir de referências a características essenciais às coisas (substancialismo), mas, na realidade, o processo de conceituação é muito mais gerativo e proposicional, quando construímos um conceito as coisas a que ele se refere podem ser pen- sadas como variáveis em uma função proposicional, ou, dito de outra forma, os objetos passam a estar relacionados entre si pelo fato de satisfazer uma deter- minada condição. A ciência social bourdieusiana incorpora, radicalmente, esse pensamento relacionai. A própria realidade é pensada e estudada não em uma perspectiva substancialista, mas em uma perspectiva relacionai. "O racionalismo não pre- tende penetrarna individualidade de uma existência. Ele só começa a pensar ao estabelecer relações" (BACHELARD, 1977, p. 212). Diretamente relacionado a essa perspectiva relacionai de ciência, está o fato de que os conceitos que Bourdieu articula, por outro lado, são relacionais, a forma mais adequada de pensar conceitos bourdieusianos como habitas, campo e capital é de forma re- lacionai; assim, o habitus enquanto esquemas de percepção e ação dos agentes, deve ser pensado em relação ao campo, enquanto microcosmo social dotado de lógica própria, espaço de relações objetivas entre posições definidas pela distri- buição de espécies de capital. Além disso, dentre outras homologías entre as obras de Cassirer e Bourdieu, está o fato de que o projeto do primeiro consistia na construção de uma filosofia das formas simbólicas e o do segundo em uma sociologia das formas simbólicas e, também, a influência - nem sempre tão óbvia quanto se pensa - da filosofia da cultura de Cassirer em conceitos como capital simbólico, violência simbólica e, claro, poder simbólico bem como, de certa forma, a própria compreensão da ciência como xana forma simbólica dentre outras tantas - retomaremos o conceito de forma simbólica oportunamente. Quanto a Bachelard, a influência talvez seja ainda mais marcante. Como sabemos, o projeto epistemológico de Bachelard consistia em dar à ciência con- temporânea a filosofia que ela merece. Uma ciência marcada por desenvolvi- mentos como a teoria da relatividade, mecânica de Dirac, mecânica matricial de Heisenberg etc., os quais, em muitos aspectos representam uma verdadeira ruptu- ra com a ciência anterior - e.g. a física newtoniana - , de forma que a ciência não podia mais ser explicada com base nas teorias tradicionais (e.g. Bacon, Descartes, Locke, Comte etc.). Diversas noções importantes da obra de Bourdieu encontram formulações homólogas em Bachelard. A noção de que a teoria é construída pela epara a prá- tica da pesquisa que vimos anteriormente, encontra um paralelo na alternância obrigatória que Bachelard identifica entre teoria é prática, "o empirismo precisa 362 de ser compreendido; o racionalismo precisa de ser aplicado. [...] O valor de uma lei empírica prova-se fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se um racio- cínio fazendo dele a base de uma experiência" (BACHELARD, 1972, p. 10). A própria ideia de que a teoria orienta a prática e de que os instrumentos de pesquisa são teorias materializadas pode ser considerada tipicamente bachelardiana. A vigilância epistemológica que Bourdieu propõe, por sua vez, encontra um paralelo na vigilância intelectual de si proposta por Bachelard (para um aprofundamento, convém comparar: BACHELARD, 1977 e BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2013). A compreensão da ciência como um trabalho coletivo e polêmico também está presente nos dois autores, em Bourdieu, na sua análise do campo científico, e em Bachelard, na noção de cidade científica. De fato, uma característica marcante da epistemología de Bachelard é a concepção de ciência como um trabalho coletivo, como ele diz: "no tenemos derecho a la construcción solitaria; una construcción solitaria no es una cons- trucción científica" (BACHELARD, 2005, p. 56). Em Bourdieu, por seu turno, o trabalho coletivo acaba sendo condição da objetivação - que nao se confunde com a objetividade positivista - que assegura um conhecimento rigoroso. Como diz Wacquant (1992, p. 35-36): "Grâce à la dialogique du débat public et de la critique mutuelle, le travail d'objectivation du sujet objectivant est effectué, non pas par son seul auteur, mais par les occupants de toutes les positions antagonistes et complémentaires qui constituent le champ scientifique"160. Dentre as demais homologías entre os dois autores há, por fim, pelo menos mais uma característica comum que não pode deixar de ser mencionada e que consiste na ruptura que ambos identificam entre o conhecimento científico e o conhecimento comum. Esta é uma concepção potencialmente controvertida, so- bretudo se a confrontarmos com o posicionamento daqueles que, a exemplo de Boaventura de Souza Santos (2008) acreditam que o diálogo entre conhecimento científico e senso comum pode ter um potencial libertador, ou quem propõe que a ciência seja engajada, já que uma ciência que se pretenda neutra vai trabalhar a favor do status quo. Certamente, não temos como explorar essa questão detalhadamente no pre- sente trabalho, de qualquer forma, tais críticas, se aplicadas a Bourdieu, são algo homólogas às que mencionamos anteriormente - quanto a ser uma teoria reprodu- tivista. O ponto importante a ser percebido no que concerne à ruptura entre senso comum e conhecimento cientpifico é que se a concepção de vida {Weltanschauung) das pessoas que estão andando nas ruas foi - como quer Bertalanffy (1971) - construída por Newton, Locke, Darwin, Adam Smith, Freud (etc.), ainda que tais pessoas nunca tenham ouvido falar deles, é inegável que tais autores não são exatamente acessíveis ou conhecidos pela maioria, e essa ruptura entre o conhe- cimento comum e o erudito e, sobretudo, entre o senso comum e o conhecimento 160 Tradução livre: "Graças ao dialogismo do debate público e à crítica mútua, o trabalho de objetivação do sujeito objetivante é feito não só pelo seu autor, mas pelos ocupantes de todas as posições antagônicas e complementares que constituem o campo científico," EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade 353 propriamente científico, é uma realidade da ciência atual. O que é característico, aliás, da própria formação dos campos eruditos e da conseqüente diferenciação entre os iniciados e os leigos - abordaremos essa questão, posteriormente, no que se refere ao campo jurídico -, sendo inegável que, numa sociedade estratificada, também o conhecimento científico e seus usos podem ocasionar formas de segre- gação, legitimadas pelos segregados, inclusive. Estamos falando, portanto, de uma ciência social comprometida com a ruptura com o senso comum, no sentido de pesquisar com seriedade, de construir uma ciên- cia rigorosa, rompendo, inclusive, com os modismos em termos de escolha de mé- todos e temas. Como diz o próprio Bourdieu, alguns sociólogos apenas substituem a doxa do senso comum pela doxa do senso comum douto, e, por vezes, acham que estão fazendo ciência ao apenas transcrever o discurso do senso comum: De facto, é toda uma tradição douta da sociologia que é necessário pôr constantemente em dúvida, e da qual há que desconfiar incessantemente. Daí, esta espécie de double bind a que todo o sociólogo digno deste nome está constantemente exposto: sem os instrumentos de pensamento oriundos da tradição douta, ele não passa de um amador, de um autodidacta, de um sociólogo espontâneo - e nem sempre o mais bem colocado, tão evidentes são, freqüentemente, os limites da sua experiência social"51 - , mas estes instrumentos fazem que ele corra um perigo permanente de erro, pois se arrisca a substiUiir a doxa ingênua do senso comum pela doxa do senso comum douto, que atribui o nome de ciência a uma simples transcrição do discurso de senso comum. E aquilo a que chamo o efeito Diafoirus: observei freqüentemente, sobretudo nos Estados Unidos, que, para se com- preender verdadeiramente aquilo de que este ou aquele sociólogo fala, é preciso (e basta) ter lido o New York Times da semana ou do mês anteriores, que ele retraduz nessa terrível linguagem-barreira, nem verdadeiramente concreta nem verdadeiramente abstracta, que lhe é imposta, sem ele mes- mo saber, pela sua formação e pela censura do establishment sociológico (BOURDIEU, 2012, p. 44-45). Trata-se, portanto, de romper não apenas com o senso comum, mas também com o senso comum erudito. Numa perspectiva bachelardiana, poderíamos dizer que se trata de uma ruptura com a experiência primeira, com o conhecimento imediato e com a realidade dada, uma rupturaque é necessária para a própria construção do objeto propriamente científico. Todas essas questões, embora não possam ser aprofundadas como seria desejável, precisam ser ao menos mencionadas, já que não é possível conhecer 161 Esta passagem entre os travessões foi modificada para a versão em língua francesa {BOURDIEU, 1992 p. 217), a qual serviu como base para a versão em língua portuguesa que transcrevemos. No original em língua inglesa, entretanto, observamos que ela parece ser dotada de mais significado: "and certainly not the best equipped of all lay sociologists, given the evidently limited span of the social experiences of most academics" (BOURDIEU, 1992, p. 248), que poderíamos traduzir livremente como "e, certamente, não é o melhor equipado de todos os sociólogos leigos, dada a evidente limitação das experiências sociais da maioria dos acadêmicos". Ou seja, no original, fica mais claro que se trata de uma observação crítica ao distanciamento que a maioria dos acadêmicos tem em relação à vida social. 364 adequadamente a ciência social reflexiva de Bourdieu sem o conhecimento desses pressupostos epistemológicos. Metodológicamente, Bourdieu rompe com a cisão entre teoria e prática, e ignora solenemente as fronteiras disciplinares, além de desfazer oposições e dua- lidades tão freqüentes no imaginário e nas práticas dos pesquisadores, como, por exemplo, objetivismo e subjetivismo, entre quantitativo e qualitativo, macrosso- ciologia e microssociologia etc. Um dos fundamentos dessa ruptura com esses dualismos reside no que poderíamos chamar - parafraseando Alicia Gutiérrez (2012) - de percepção de que o social tem uma dupla existência, nas coisas e nos corpos. Necessário advertir, contudo, que embora se trate de uma perspectiva comprometida com questões epistemológicas e metodológicas, Bourdieu não se prende aos metodologismos: «É proibido proibir» ou «Livrai-vos dos cães de guarda metodológicos». Evidentemente, a liberdade extrema que eu prego, e que me parece ser de bom senso, tem como contrapartida uma extrema vigilância das condições de utilização das técnicas, da sua adequação ao problema posto e as condições do seu emprego. Acontece-me freqüentemente descobrir que os nossos pais- -do-rigor-metodológico se revelam bem laxioristas, e até relaxados, na uti- lização dos próprios métodos de que se têm por zeladores... (BOURDIEU, 2012, p. 26). Trata-se, portanto, de uma liberdade considerável na escolha dos métodos, mas um grande cuidado no seu uso, uma vigilância epistemológica constante, realizada pelo próprio pesquisador e pelos demais pesquisadores que atuam no mesmo campo. Bourdieu não propõe, pois, um método de pesquisa, ele indica, em vez disso, os passos necessários para a realização de um estudo sobre um de- terminado campo, são eles: a) a análise do campo em relação ao Campo do poder; b) traçar um mapa da estrutura objetiva dos agentes e instituições que competem pela autoridade específica do campo; c) analisar os habitus dos agentes162. Sobre o poder simbólico Mencionamos, anteriormente, a questão da ruptura do conhecimento cien- tífico com o senso comum, inclusive o senso comum douto. Nesse sentido, é interessante observar que o próprio interesse de Bourdieu em tomar o poder como tema de pesquisa pode ser pensado, de certa forma, como uma ruptura com as 162 "Une analyse en termes de champ implique trois moments nécessaires et connectés entre eux (1971a). Premièrement, on doit analyser la position du champ par rapport au champ du pouvoir. On découvre ainsi que le champ littéraire, par exemple, est inclus dans le champ du pouvoir (1983c), où il occupe une position dominée. (Ou, dans un langage beaucoup moins adéquat : les artistes et les écrivains, ou les intellectuels plus généralement, sônFuhe « fraction dominée de la classe domi- nante », Deuxièmement, on doit établir la structure objective des relations entre les positions occupées par les agents ou les institutions qui sont en concurrence dans ce champ. Troisièmement, on doit analyser les habitus"des agents, les différents systèmes de dispositions qu'ils ont acquis à travers l'intériorisation d'un type déterminé de conditions sociales et économi- ques et qui trouvent dans une trajectoire définie à l'intérieur du champ considéré une ocasión plus ou moins favorable de s'actualiser." (BOURDIEU, 1992, p. 80). EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, resslgnificações e representações a partir da interdisciplinaridade 3g5 abordagens usuais em relação ao poder. O poder enquanto tema163 é relevante para os cientistas sociais pelo menos desde Weber, com sua conhecida reflexão sobre as três razões que justificam a dominação: o poder tradicional, o poder carismático e o poder legal (WEBER, 1993, p. 57)164. É comum vermos trabalhos partindo de Weber e abordando Arendt (2005)165, Habermas - inclusive o célebre artigo criticando Arendt (HABERMAS, 1980)166 - , Luhmann (1995)167, Foucault (2012)168 e Bourdieu. As obras e teorias em questão, muitas vezes, são colocadas escolásticamen- te como críticas ou consertos umas em relação às outras, o poder em Arendt é visto como uma crítica ou complemento da concepção weberiana de poder169; Habermas, por seu turno, critica Arendt, mas é influenciado pela noção arendtiana de poder comunicativo {cf. HABERMAS, 1997, p. 185); e poderíamos seguir escolásticamente estabelecendo concordâncias e discordancias entre as obras anteriormente mencionadas, mas não pretendemos incorrer no teoricismo que Bourdieu criticava, o que pretendemos é mostrar como Bourdieu - já dissemos acima - aborda o poder de uma forma diferente do que os teóricos costumavam fazê-lo, como ele próprio diz: [...] num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que - sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de «círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma» - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 2012, p. 7-8). 163 E nos referimos mais à palavra em si (poder, pouvoir, power, macht etc.) e às propostas do que hoje são vistas como sendo de teorías do poder, do que propriamente a teorizações, que poderiam ser consideradas, de aiguma forma, como, por exemplo, sobre a autoridade, dominação, persuasão etc. 164 Originalmente, publicado em 1919. É interessante observar que embora Weber tenha utilizado a palavra Herrschan (Charismatische Herrschañ, Traditionale Herrschaft etc. cf. Weber, 1994 [1919], p. 37), que também pode ser traduzida como dominação, mas é freqüentemente traduzi- da como poder, as traduções em língua francesa e portuguesa, por exemplo, traduzem respectivamente como pouvoir e poder (cf. WEBER, 1963; WEBER, 1993). Importante observar também que partimos de Weber como pioneiro na teorização sobre o poder- e não Platão, Maquiavel, Marx ou qualquer outro autor - porque esse parece ser um lugar-comum entre os que se propõem a abordar a temática do poder. 165 Originalmente, publicado em 1970. O tema do poder parece ganhar espaço no discurso acadêmico especialmente a partir de meados anos 1970, vide as datas das publicações originais dos autores citados. 166 Originalmente, publicado em 1976. 167 Originalmente, publicado em 1975. 168 Microfisica do poder é uma coletânea de trabalhos de Foucault e não um livro sistemático destinado a criar uma teoria do poder ou algo do tipo, de qualquer forma, é significativo, por exemplo, que em 1976 ele estivesse ministrando um curso sobre Genealogiae poder no Collège de France (cf. FOUCAULT, 2012, p. 262-277). 169 Arendt na verdade faz poucasreferencias a Weber, mas, de fato, discorda dele no que concerne a uma equiparação entre poder e violência: "«Toda la política es una lucha por el poder; el último género de poder es la violencia», ha dicho O Wright Mills, haci- éndose eco de la definición del Estado de Max Weber: «El dominio de los hombres sobre los hombres basado en los medios de la violencia legitimada, es decir, supuestamente legitimada». Esta coincidencia resulta muy extraña, porque equiparar el poder político con «la organización de la violencia» sólo tiene sentido si uno acepta la ¡dea marxista del Estado como instrumento de opresión de la clase dominante" (ARENDT, 2012, p. 4849). 366 A passagem transcrita mostra, portanto, como o poder simbólico se refere justamente a esta forma ou aspecto oculto do poder. A abordagem do poder sim- bólico foge, como vemos, das abordagens tradicionais que consideram apenas as manifestações mais evidentes do poder, e, com isso, temos uma primeira noção do que é o poder simbólico; poder invisível que depende da cumplicidade daque- les em quem é exercido. Essa concepção é melhor compreendida se lembrarmos que parte considerável da obra sociológica de Bourdieu pode ser pensada justa- mente como uma sociologia das formas simbólicas, e, dentro da tradição neokan- tiana, queremos fazer referência especificamente a Cassirer, que como já vimos, influenciou profundamente a obra de Bourdieu. Uma das dificuldades do estudo da obra de Cassirer é que ele não esquematiza o que e quais seriam as formas simbólicas, uma das definições mais precisas que encontramos é a que se segue, extraída de Wesen und Wirkung des Symbolbegriffs: Unter einer "symbolischen" Form soll jede Energie des Geistes verstan- den werden, durch welche ein geistiger Bedeutungsgehalt an ein konkre- tes sinnliches Zeichen geknüpft und diesem Zeichen innerlich zugeordnet wird. In diesem Sinne tritt uns die Sprache, tritt uns die mythisch-reli- giöse Welt und die Kunst als je eine besondere symbolische Form ent- gegen. Denn in ihnen allen prägt sich das Grundphänomen aus, daß unser Bewußtsein sich nicht damit begnügt, den Eindruck des Äußeren zu empfangen, sondern daß es jeden Eindruck mit einer freien Tätigkeit des Ausdrucks verknüpft und durchdringt. Eine Welt selbstgeschaffener Zeichen und Bilder tritt dem, was wir die objektive Wirklichkeit der Dinge nennen, gegenüber und behauptet sich gegen sie in selbständiger Fülle und ursprünglicher Kraft (CASSIRER, 1965, p. 175-176)170. Como vemos, o indivíduo, ou, melhor dizendo, o agente social não apreende passivamente a realidade objetiva {objektive Wirklichkeit), ela é permeada e con- frontada pelas estruturas cognitivas que ele possui. Nossa relação com o mundo é mediada pelas formas simbólicas, que Bourdieu chama também de princípios de visão e divisão. Como lembra Rafael Garcia, um princípio básico da Escola de Marburgo - da qual Cassirer é considerado um expoente - é o de que "O conhecimento é efe- tivamente produzido como experiência, da mesma forma que o geómetra constrói o triângulo com o qual o físico mede as dimensões da natureza" (GARCIA, 2010, p. 30), ou, aproveitando esse exemplo dado por Garcia, é possível imaginar no de- senho de um triângulo, ou qualquer outro desenho ou conjunto de linhas, e pensar que ele "pode ser concebido como uma obra de arte para o pensamento estético, 170 Tradução livre: Por "forma simbólica" compreende-se qualquer energia da mente pela qual um conteúdo espiritual de significado é estabelecido a um signo sensível concreto e este signo é atribuído internamente. Neste sentido, a linguagem, o mundo mítico- -religioso e a arte são importantes formas simbólicas. Isso porque, em todas elas, caracteriza-se o fenômeno básico de que a nossa consciência não se contenta em receber a impressão do exterior, mas associa e permeia cada impressão com uma atividade livre de expressão. Aquilo que chamamos de realidade objetiva das coisas é confrontada por um mundo de signos e imagens autocriadas, com sua riqueza independente e força original. EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade 357 como uma figura mágica para o pensamento mítico, como uma função lógica para a matemática" (FERNANDES, 2006, p. 25). As formas simbólicas podem ser pensadas, portanto, instrumentos de co- nhecimento e de construção do mundo dos objetos, e, nessa perspectiva, elas po- dem ser permeadas por relações simbólicas de poder. Aproveitando o exemplo do parágrafo anterior, e desenvolvendo-o mais um pouco, um desenho ou um texto poderá ser uma obra de arte nobre ou medíocre, ou como algo sacro ou herético, dependendo dos princípios de visão e divisão do agente. O poder simbólico não é, portanto, não é facilmente percebido, ele permeia o nosso próprio entendimen- to, conta com a nossa cumplicidade e, dificilmente, poderá ser desvelado se o pesquisador não estiver munido dos pressupostos teóricos e epistemológicos que mencionamos anteriormente. Um signo, enquanto algo sensível e dotado de algum significado, pode evocar relações de poder simbólico, podemos pensar no devoto diante do texto religioso ou o jurista - sobretudo o juspositivista - diante do texto legal, e po- demos pensar, sobretudo, na divisão entre os iniciados e os leigos. É possível aludir, inclusive, tanto os cerimoniais e ritos dos cultos e das audiências, o recurso ao latim remetendo ao desconhecido e ao passado, como forma de, ao mesmo tempo, separar os sacerdotes dos leigos e legitimar os conteúdos perante estes últimos. Uma forma de exclusão e inclusão ao mesmo tempo. O sacerdote e o fiel no caso da religião, ou, no caso do direito, os que têm a competência re- conhecida para dizer o que é o direito, competência esta que é objeto de disputa dentro do campo jurídico: O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição {nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tem- po social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhe- cida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 2012, p. 212). Esta competência atestada e reconhecida para dizer o que é o direito, espécie particular de capital cultural, existe de forma institucionalizada nos diplomas, objetivada nos livros, e incorporada nos próprios juristas, em sua hexis corporal - maneirismos, o socioleto jurídico - e, claro, nas próprias estruturas cognitivas de percepção, compreensão e ação no mundo. Trata-se, portanto, de algo complexo; não basta ter o diploma, toga ou livros; também não basta se comportar como jurista, ou mesmo pensar como jurista; é necessário que o agente conquiste essa competência dentro do campo o que depende, em grande parte, do reconhecimen- to (na forma de citações, homenagens etc.) dos outros agentes concorrendo pelo capital jurídico, o prestígio que o jurista goza diante dos seus pares e, em certa medida, das demais pessoas. Esse ideário propicia, inclusive, o distanciamento 368 entre os iniciados e os leigos, entre o jurista e o cliente, entre o professor e o alu- no etc., num processo que, vale relembrar, não é totalmente reflexivo, e, por isso, tende a ser tão eficiente. Esta competência se pauta justamente no poder simbólico, ela é exercida com a cumplicidade não consciente daqueles em quem ela é exercida. Em nos- sas pesquisas, identificamos diversas manifestações dessa cumplicidade nas in- terações no campo das faculdades de direito; por exemplo, o aluno que silencia diante da autoridade do professor171, os chamados à ordem reconhecidos como legítimos, dos quais um bom exemplo é a admoestação do orientador para com orientando que possui um tema ou proposta de pesquisa muito ambicioso e que se traduz na célebre frase "Quando você for doutor, aí você dizo que quiser!", ou no que disse um professor que estava na fase de elaboração de sua tese de doutorado: "Se um aluno de graduação diz que o ICMS é um imposto federal, você diz que ele é um idiota, mas quando é um doutor que diz isso, você pára e pensa: tem uma tese aí!"172 A legitimidade que esse tipo de chamado à ordem possui, a obediência que em regra ele desperta, e o que subjaz à comparação entre o aluno e o doutor nada mais é do que o poder simbólico. As relações de comunicação são também rela- ções de poder simbólico entre o orador e o auditório173. E o orador não necessa- riamente precisa detalhar seu currículo, ou apresentar formalmente seu diploma (capital cultural objetivado), a eventual fama que o precede, sua hexis corporal aliada ao fato de que a(s) pessoa(s) a quem se dirige também pertencer(em) ao campo já garantem que a frase sobre o ICMS seja considerada com mais serie- dade do que se dita por um estudante de graduação. A autoridade conta com a cumplicidade não consciente daqueles em quem ela se exerce. Como vemos, o poder simbólico é uma importante construção teórica, com grande potencial para ser aplicado na prática da pesquisa, mas os exemplos que demos até agora podem provocar a impressão de que se trata de um conceito apropriado apenas para desvelar as relações de poder nas interações interpessoais, o que seria incorreto. O poder simbólico também possui um potencial imenso para pesquisas cujos objetos sejam mais amplos, como, por exemplo, o Estado, 171 Inclusive a rebeldia, e em alguns casos a hostilidade, que alguns discentes têm para com a autoridade dos professores, so- bretudo nas chamadas faculdades populares, se relaciona com a questão do poder simbólico por diversas razões, seja porque o não reconhecimento da autoridade se relaciona ao fato de que tais discentes não possuem as disposições (adquiridas no convívio familiar, na sua vida escolar progressa etc.) para o reconhecimento de tal autoridade, o que inviabiliza a relação de po- der simbólico — que, como vimos, depende da cumplicidade não consciente de quem a ele está submetido — e com o fato de que a própria relação de tais discentes com a faculdade pode não ser exatamente a mesma dos alunos das "grandes escolas" (no caso de recife, onde realizamos nossa pesquisa, as duas Universidades tradicionais), e aqui nos referimos tanto ao que poderíamos chamar de ambições e metas dos alunos e ao que as instituições lhes promete, de forma expressa e, sobretudo, de forma tácita. Seria necessário considerar, ainda, a própria falta de preparo pedagógico e eventual autoritarismo dos professores, mas, nesse caso parece ser um fator menor, porquanto os mesmos docentes, com as mesmas posturas, podem enfrentar uma rebeldia menor nas "grandes escolas". 172 Os fragmentos entre aspas são transcrições de passagens da Entrevista 26 realizada na pesquisa que desenvolvemos junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE. 173 "[...] no hay que olvidar que esas relaciones de comunicación por excelencia que son los intercambios lingüísticos son tambi- én relaciones de poder simbólico donde se actualizan ¡as relaciones de fuerza entre los locutores y sus respectivos grupos" (BOURDIEU, 2001,p. 11). EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da ¡nterdisciplinarídade 359 relações internacionais etc. Dito de outra forma, o poder simbólico, na perspec- tiva boudieusiana, é uma construção teórica apropriada à pesquisa de estrutu- ras, práticas e relações tanto 110 nível macro e micro, quanto, sobretudo, numa perspectiva que englobe os dois níveis, já que "l'Etat, qui dispose des moyens d'imposer et d'inculquer des principes durables de vision et de division confor- mes à ses propres structures, est le lieu par excellence de la concentration et de l'exercice du pouvoir symbolique" (BOURDIEU, 2014, p. 117)174. Um bom exemplo de como o Estado funciona como produtor de principios de visão e de divisão é a organização e normatização da linguagem em uma língua oficial - e vale relembrar o que, como vimos acima, Cassirer coloca a linguagem (Sprache) como uma forma simbólica - e como isso permeia nossa compreensão e nossas ações no mundo, nos levando, inclusive, a ir contra o Estado por causa de princípios que nos foram dados pelo próprio Estado. Um bom exemplo disso é a rejeição e as críticas ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990115. O que estava - e ainda está - em jogo, em muitos casos, era uma defesa da ortografia anterior, que em algum momento já havia sido arbitrariamente definida e oficiali- zada pelo próprio Estado. Bourdieu dá um exemplo análogo ocorrido na França: Pour montrer à quel point est nécessaire et difficile la rupture avec la pensée d'Etat qui est présente jusqu'au plus intime de notre pensée, il faudrait ana- lyser la bataille qui a éclaté récemment, en pleine guerre du Golfe, à pro- pos de cet objet à première vue dérisoire qu'est l'orthographe : la graphie droite, désignée et garantie comme normale par le droit, c'est-à-dire par l'Etat, est un artefact social, très imparfaitement fondé en raison logique et même linguistique, qui est le produit d'un travail de normalisation et de codification tout à fait analogue à celui que l'Etat opère aussi en bien d'autres domaines. Or lorsque, à un moment donné du temps, l'Etat ou tel de ses représentants, entreprend (comme ce fut déjà le cas, avec les mêmes effets, un siècle plus tôt) de réformer l'orthographe, c'est-à-dire de défaire par décret ce que l'Etat avait fait par décret, il suscite aussitôt la révolte indignée d'une forte proportion de ceux qui ont partie liée avec l'écriture, au sens le plus commun, mais aussi au sens qu'aiment à lui donner les écrivains. Et, chose remarquable, tous ces défenseurs de l'orthodoxie or- thographique se mobilisent au nom du naturel de la graphie en vigueur et de la satisfaction, vécue comme intrinsèquement esthétique, que procure l'accord parfait entre les structures mentales et les structures objectives, entre la forme mentale socialement instituée dans les cerveaux par l'ap- prentissage de la graphie droite et la réalité même des choses désignées par les mots adroitement graphies : pour ceux qui possèdent l'orthographe au point d'en être possédés, le ph parfaitement arbitraire de nénuphar est devenu si évidemment indissociable de la fleur qu'ils peuvent invoquer, 174 Tradução livre: "[...] o Estado, que dispõe de meios de impôr e de inculcar principios duráveis de visão e de divisão, conforme suas próprias estruturas, é o lugar por excelência da concentração e do exercício do poder simbólico." 175 Estabelecido mediante Tratado, ou seja, acordo formal de direito internacional público, e seria necessários um estudo das rela- ções de poder simbólico nas imposições desta dou daquela nomenclatura de acordo com os Interesses dos paises signatários. 370 en toute bonne foi, la nature et le naturel pour dénoncer une intervention de l'Etat destinée à réduire l'arbitraire d'une orthographe qui est de toute évidence le produit d'une intervention arbitraire de l'Etat (BOURDIEU, 2014, p. 103-104, tradução livre)"6. Ora, o fato de a alteração da grafia da palavra nénuphar se tornar uma ques- tão tão importante - ao menos para algumas pessoas - só mostra a força do poder simbólico exercido pelo Estado. A grafia anterior da flor estava tão enraizada no imaginário das pessoas, que parece natural que ela seja escrita dessa forma, e parece natural justamente por causa da coincidência que passa a existir entre a grafia correta, conforme lhes foi ensinada e, paulatinamente, incubada, e o objeto real, no caso a flor. Essa coincidência que passa a existir, entre a palavra e a coisa, está na base não apenas da rejeição às reformas ortográficas, mas também permite compreender uma certa perenidade no sentido de algumas palavras. Os filósofos, sobretudo os rotulados como analíticos, consideram que as pa- lavrasnão possuem outro significado além do que lhes é dado, são como rótulos que colocamos e garrafas, como diz John Hospers (1997, p. 12): When a word is used to name a class of things, the word is like the label on a bottle. The label tells you what's in the bottle, and if two bottles have different kinds of contents, it is important not to use the same label for both of them. The label has no importance in itself; it only indicates what is in the bottle177. De fato, as palavras não possuem um significado intrínseco, os analíticos estão corretos quanto a isso, mas quando essa questão, colocada apenas dessa for- ma, esquecemos que as palavras também podem estar relacionadas à própria me- mória coletiva justamente porque o social possui essa existência dupla, nas coisas e nos corpos. Caberia aqui uma outra questão importante, que reside no próprio fato de que a visão substancialista que compreende os conceitos como sendo construídos em referência às características essenciais das coisas - o conteúdo 176 "Para mostrar o quão difícil e necessária a ruptura com o pensamento de Estado que se faz presente no mais íntimo do nosso pensamento, devemos analisar a batalha que eclodiu recentemente, durante a guerra do Golfo, sobre este objeto à primeira vista risível, que é a ortografia: a grafia correta, designado como normal e garantida pelo direito, ou seja, pelo Estado, é um artefato social muito imperfeitamente fundado na lógica e na razão lingüistica que é o produto de um trabalho de normalização e codificação bastante semelhante com o que o Estado opera também em tantos outros domínios. Ou quando, há algum tempo, o Estado ou qualquer de seus representantes, tenta (como já foi o caso, com os mesmos efeitos, um século antes) reformar a ortografia, isto é, desfazer por decreto que o Estado tinha feito por decreto, ele imediatamente levanta a revolta indignada de uma alta proporção de pessoas que têm relações com a escrita, da forma mais comum, mas, também [relações] da forma mais apaixonada como os escritores. E, quão notável, todos os defensores da ortodoxia ortográfica se mobilizam em nome de ortografia natural em vigor e da satisfação, experimentada como intrinsecamente estética, na procura do acordo perfeito entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas, entre formas mentais socialmente instituídos nos cérebros pela aprendizagem da grafia correta e a realidade mesma das coisas designadas pelas palavras corretamente escritas: para aqueles que possuem a ortografia, a ponto de serem por ela possuidos, o ph perfeitamente arbitrário de nénuphar tornou-se tão obviamente indissoci- ável da flor que podem Invocar, de boa fé, a natureza e o natural para denunciar uma intervenção do Estado destinada a reduzir a arbitrariedade de uma ortografia que é, obviamente, o produto de uma Intervenção arbitrária do Estado." 177 Tradução livre: "Quando uma palavra é utilizada para nomear uma classe de coisas, a palavra é como um rótulo em uma gar- rafa. O rótulo te diz o que está na garrafa, e se duas garrafas têm diferentes conteúdos, é importante não usar o mesmo rótulo em ambas. O rótulo não tem importância em si mesmo: ele apenas indica o que está na garrafa." EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade 37-] das garrafas? - é imprecisa, já vimos, com Cassirer (1953) que os conceitos têm um potencial gerativo e, sobretudo, relacionai. É necessário mencionar - ainda que não possamos desenvolver a questão adequadamente aqui - ao próprio domínio da língua como forma de poder, o capital lingüístico que permite as correções, os chamados à ordem que conside- ramos naturais, como, por exemplo, o erro grosseiro que é usar o mim em vez do me, o desagrado que isso provoca e as admoestações que daí decorrem, tudo isso ignorando que as regras sobre o uso do mim e do me foram em algum momento estabelecidas dessa forma, como poderiam tê-lo sido de outra. Necessário fazer referência também aos movimentos, no campo dos estudos da linguagem, no sentido de reconhecer a língua como uma realidade em constante transformação e aceitar formas de fala e escrita tidas como erradas. Vale lembrar, aliás, que certos erros tidos como grosseiros, exempli gratia, transformar emRoL dos encontros consonantais - falar pronta em vez de planta, ingrês em vez de in- glês etc. - são, na realidade, tendências da língua portuguesa, trata-se do rotacismo, fenômeno que, inclusive, já originou palavras hoje tidas como corretas, tais como igreja, praia, escravo etc. A admoestação à pessoa que fala errado ao transformar o L em R, mesmo que seja tomada como correta ou legítima pode estar escondendo, portanto, uma ignorância quanto ao próprio funcionamento da língua178. A questão da língua oficial, da própria existência de uma forma correta de falar e escrever, e os efeitos disso nas relações cotidianas - e.g. quando um pro- fessor corrige um aluno, ou quando um amigo censura outro que fala ou escreve errado - mostra, também, como há uma relação entre os aspectos macro e micro a que nos referimos anteriormente, já que o poder simbólico se manifesta nos dois exemplos vistos; nas decisões estatais (produto de um complexo jogo de interes- ses e pressões, por vezes antagônicas) e nas interações interpessoais; e em ambos os casos em relação a uma mesma coisa: a existência de uma língua oficializada. Em outras palavras, um dos efeitos do poder simbólico associado à insti- tuição do Estado é justamente a naturalização, sob forma de doxa, de pres- supostos mais ou menos arbitrários que estiveram na própria origem do Estado. Assim, só a pesquisa genética pode nos lembrar que o Estado, e tudo o que dele decorre, é uma invenção histórica, um artefato histórico, e que nós mesmos somos invenções do Estado, que nossos espíritos são invenções do Estado. Fazer uma história genética do Estado, e não uma "genealogía" no sentido de Foucault, é o único antídoto verdadeiro ao que chamo de "amnésia da gênese", inerente a toda institucionalização exitosa, a toda instituição que conseguiu se impor implicando o esquecimento de sua gênese. Uma instituição é exitosa quando conseguiu se impor [como algo óbvio]. Lembro a vocês a definição de instituição tal como a manejo: a instituição existe duas vezes, existe na objetividade e na subjetividade, nas coisas e nos cérebros. Uma instituição exitosa, que é portanto capaz de 178 Tanto para um aprofundamento quanto para exemplo das estratégias de aceitação do falar errado, cf. BAGNO, 2006. 372 existir tanto na objetividade dos regulamentos como na subjetividade de estruturas mentais atribuidas a esses regulamentos, desaparece como ins- tituição. Cessamos de pensá-la como ex instituto. (Leibniz, para dizer que a língua é arbitrária, dizia ex instituto, isto é, a partir de um ato de institui- ção.) Uma instituição exitosa se esquece e se faz esquecer como tendo tido um nascimento, como tendo tido um começo (BOURDIEU, 2014, p. 166). O poder simbólico é, portanto, um instrumento válido para investigar a gê- nese e funcionamento do próprio Estado, sobretudo se pensarmos na perspectiva do Estado ocidental moderno, nesse caso, trata-se de um estudo que pode revelar muito do que somos enquanto juristas, já que, os juristas criam o Estado e, nesse processo, criam a si mesmos enquanto corpo profissional179. Ainda a propósito do poder simbólico, e de como a nossa cumplicidade é necessária ao seu exercício, e do efeito de naturalização - na citação anterior re- ferindo-se à língua oficial, nesta última ao próprio Estado - decorrente da dupla existência do social, nas coisas e nos corpos, é interessante perceber que embora tenhamos mencionado apenas o Estado e algumas questões relacionadas ao ensino, esse efeito de naturalização e o poder simbólico em si podem ser instrumentos de pensamento apropriados ao estudo de toda uma série de instituições e relações, como por exemplo o mercado- que dificilmente pode ser dissociado do Estado no atual estágio do capitalismo -, uma determinada empresa, questões de gênero etc. O poder simbólico, ao consistir nesse "poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem giioseológica" (BOURDIEU, 2012, p. 9), pode ser empregado, portanto, como instrumento teórico para a construção do objeto de pesquisa no estudo do funcionamento do próprio Estado, relações entre Estados - práticas imperialistas e neocolonialistas, por exemplo, nem sempre se traduzem em violência material -, e para se compreender corretamente a manifestação do poder nas interações interindividuais. Considerações finais Iniciamos o presente trabalho abordando os pressupostos epistemológicos e metodológicos da sociologia de Bourdieu, dando ênfase na ciência relacionai de Cassirer e no racionalismo aplicado de Bachelard, vimos como Bourdieu constrói a sua proposta de uma ciência social reflexiva, rompendo com dualismos tradicio- nais, como objetivismo e subjetivismo, quantitativo e qualitativo, macro e micro etc. Uma ciência que rompe, também com os sensos comuns, aí incluído o senso comum douto. Em seguida, vimos como a abordagem de Bourdieu sobre o poder destoa de outras abordagens usuais, ao se propor a investigar e desvelar justamente o poder 179 "La nobleza de toga, cuyos herederos estructurales (y a veces descendientes) son los tecnócratas contenporàneos, es un cuerpo que se creó creando al Estado, que, para construirse, debió construir el Estado; es decir, entre otras cosas, una Filosofía política entera del "servicio público" como servicio al Estado, o a lo "público" —no sólo al rey, como la antigua nobleza -, y de ese servivio como actividad "desinteressada", orientada hacía fines universales" (BOURDIEU, 2013, p. 534-535). EPISTEMOLOGÍAS EM CONFRONTO NO DIREITO: reinvenções, ressignificações e representações a partir da interdisciplinaridade 373 simbólico, essa forma de poder cuja efetividade decorre justamente da cumplici- dade daqueles em quem ele é exercido. Para isso, retomamos brevemente a obra de Cassirer a fim de compreender as formas simbólicas, enquanto instrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos que podem ser permea- das por relações simbólicas de poder - e aqui entraria a proposta de Bourdieu de construir uma sociologia das formas simbólicas. Abordamos, por fim, o poder simbólico enquanto poder de construção da realidade apto a estabelecer uma ordem gnoseológica, fazendo algumas digres- sões sobre suas manifestações no direito, nas práticas lingüísticas, escolares etc. Fazendo, agora, um balance provisional de tudo o que foi dito, podemos perceber finalmente em que poderia consistir conceito de poder simbólico, enquanto ins- trumento de pensamento para a construção de uma ciência rigorosa do direito. Se, como registrado na epígrafe do presente trabalho, uma ciência rigorosa do direito deve tomar como objeto justamente a própria ciência do direito, a construção de tal ciência rigorosa pressupõe a objetivação das relações de poder simbólico exis- tentes na ciência jurídica e no direito como um todo. Temos consciência que um trabalho tão breve quanto o presente não tem como dar conta de todas as questões que suscitamos, acreditamos, entretanto, que ele pode ser tomado como um ponto de partida para a reflexão, debate e sobretudo investigação dessas questões. De qualquer forma, tudo o que foi vis- to, nas linhas anteriores, podemos adotar ao menos uma conclusão: desvelar o exercício do poder simbólico, inclusive na cumplicidade daqueles em quem ele se exerce é, portanto, uma etapa necessária na construção de uma ciência que pretenda ser rigorosa. 374 REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Sobre la violencia. Madrid: Alianza Editorial, 2005. BACHELARD, Gaston. 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