Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 SSoobbrree oo NNaasscciimmeennttoo ddaa PPooppuullaaççããoo ddee RRuuaa trajetórias de uma questão social Daniel De Lucca Reis Costa 1 A crescente presença de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo tem promovido inúmeras opiniões sobre o tema. São reações que vão da piedade à hostilidade, da curiosidade ao repúdio, mas que, no entanto, apóiam-se num solo comum: o sentimento de que viver nas ruas é algo intolerável, inaceitável. Podendo ser apreciada a olho nu, a franca exposição da miséria e da precariedade nas ruas garante uma exibição incômoda, onde se tornam visíveis o pauperismo extremo e os efeitos sociais mais deletérios da maior metrópole brasileira neste século que entra. Contudo, o que haveria de novo aí? Tratar-se- ia de uma nova configuração de pobreza ou apenas mais uma outra roupagem para a velha prática da mendicância? Nem totalmente um nem totalmente outro, este artigo busca apontar a atualidade da população de rua, sua singularidade histórica, a partir da produção das idéias, narrativas e práticas voltadas a ela. A diferença entre o novo e o velho será aqui colocada não propriamente no “mendigo” ou no “morador de rua” em si, mas nas formas de inteligibilidade e racionalidade que conduziram à configuração de um novo campo especializado de intervenção: a população de rua, espécie de objeto técnico-político de gestão na cidade. Partindo da hipótese de que a população de rua tal como hoje é entendida e se manifesta não existiu desde sempre, sendo invenção histórica recente e bem datada em nosso país, este artigo busca descrever e problematizar seu aparecimento como questão social na cidade de São Paulo nos últimos trintas anos do século vinte 2. Através de uma abordagem do tipo nominalista e genealógica, que se opõe a um desdobramento universal a respeito da origem desta realidade, pretendo contribuir para aquilo que seria uma história da população de rua. Uma história que deveria incluir a transformação de suas práticas concretas, de suas definições, de seus nomes, de suas medidas, das instituições destinadas a falar sobre ela, por ela, a conhecê- la, contabilizá- la, reduzi- la, 1 Daniel De Lucca Reis Costa é graduado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e graduando em Geografia pela Universidade de São Paulo. Desde 2003 é pesquisador do CEBRAP no CEM (Centro de Estudos da Metrópole), tendo experiência de pesquisa nos circuitos que articulam a política, o mundo da rua e do lixo na região central de São Paulo. 2 Este artigo integra pesquisa mais extensa de caráter etnográfico e condensa os principais argumentos do primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado, onde os eventos e as trajetórias dos atores aqui apresentados podem ser encontrados com mais detalhes (DeLucca, 2007b). Aproveito para agradecer meus interlocutores de campo sem os quais a reconstrução desta história seria definitivamente impossível. 2 socorrê- la e protegê- la. Tal como pratica Michel Foucault (2002), este seria um modo de investigação preocupado em decifrar como a inteligibilidade atual deste fenômeno constitui uma forma de experiência historicamente determinada por uma intrincada rede de conexões na qual se articulam a própria elaboração da população de rua como um problema a ser enfrentado, as complicações e dificuldades colocadas por esta questão, as racionalidades políticas envolvidas e as resoluções práticas mobilizadas para solucioná- la. No entanto, está muito além do alcance deste artigo fazer uma sistematização detalhada da cadeia de mediações e dos múltiplos agenciamentos enredados nesta história. Utilizando-me de elementos da historia oral, a proposta é reconstituir o nascimento da população de rua por um conjunto de conexões parciais, tendo por lastro principal trajetórias e percursos que ajudaram a tecer a trama desta história, que dela participaram e que nela se enredaram. A estratégia, portanto, é colocar o processo histórico numa perspectiva mais próxima aos atores e suas práticas, buscando apreciar as ações humanas como engajamentos sucessivos que, mobilizando competências diversas, realizam uma adequação à situação presente (Lepetit, 2001). Remontando processos micro-históricos através de cenas descritivas, é possível relatar os caminhos pelos quais os atores se envolveram em diferentes momentos, ativando laços, engendrando relações, construindo significados, sendo investidos e captados por fenômenos mais amplos e gerais (Telles; Cabanes, 2006). Isso, pois como nos diz Michel de Certeau (1982), o próprio relato é uma trajetória. Trata-se de um tipo de travessia em um campo de relações, um modo de tratamento, inserção e exposição destas relações. Através das narrativas, os atores exibem mundos sociais pelos quais passaram, apresentam enredos de travessias, expõem jogos de linguagem e revelam categorias culturais disponíveis no meio que circulam. A idéia é que estes registros narrativos forneçam um lastro descritivo adequado para a construção de um texto capaz de contar uma história que reintroduz permanentemente as regras do jogo no próprio relato do jogo. Não se busca, portanto, decifrar os atores ou aquilo que supostamente residir ia por trás de seus relatos, mas compreender os significados presentes na elaboração de suas experiências preocupando-se mais com as contribuições que as narrativas enunciam e deixam entrever do que com os supostos limites de suas afirmações. Esta heterogeneidade de experiências nos ajuda a compreender a população de rua como uma forma de problematização singular, ou seja, a entender de perto como a população de 3 rua pôde ser elaborada como um domínio de problemas para os quais diversas práticas, nomeações e reflexões lhe forneceram consistência como objeto para ação e para o pensamento. Na Periferia do Centro Definir um ponto de partida sempre é algo complicado, senão enganoso, visto que não existe sempre um acontecimento fundante na história, mas conjunturas e momentos que ampliam o quadro dos possíveis. Deste modo não há outra forma que o tatear para aprender tais configurações. Comecemos então de algum início possível, iniciemos contando parte da trajetória de Fortunata. Nascida no final da década de 1920, no sertão pernambucano, Fortuna, como também é conhecida, veio de uma família grande e muito pobre. Tendo estudado em escola católica e tornado-se a primeira professora na colônia agrícola que sua família instalara-se, Fortuna desde pequena interessou-se pela religião. Mais tarde, quando toda família vai para Recife, Fortuna começa a fazer parte do coro da Igreja e conhece Padre Ignácio, oriundo de Montevidéu e pregador de “estranhas idéias” sobre como ter uma vida religiosa junto aos mais pobres. Este sacerdote havia sido capelão do hospital do Brás em São Paulo e membro fundador da OAF – Organização do Auxílio Fraterno. De caráter religioso-caritativo, esta organização, fundada na década de 50, era basicamente composta por leigos e irmãs da Ordem de São Bento. Essas freiras eram “bem diferentes das outras”, como diz Fortuna, pois além de não vestirem hábitos, desenvolviam atividades não muito convencionais com “os mais abandonados”, justamente numa época em que freiras e mulheres religiosas não costumavam andar junto com certas classes de pessoas, tais como prostitutas e crianças sem família. Não por acaso essas irmãs, que diziam dedicar- se incondicionalmente aos mais necessitados e pobres, se auto-intitulavam como “Oblatas”, cujo significado remete à “oferecidas” e “vida em ofertório a Deus”. A narrativa de Fortuna aponta o encontro com este padre como uma virada em sua vida. Padre Ignácio, que então tinha sido nomeado capelão da igreja matriz de Recife, convida Fortuna para trabalharjunto com as irmãs de São Bento. Com o tempo, ela decide fazer os votos de castidade, obediência e pobreza para entrar na Fraternidade de São Bento e trabalhar com os pobres de São Paulo, bem longe da família. “Minha família vivia em Recife e não ia aceitar de jeito nenhum que eu trabalhasse com gente marginal”. Entretanto, Fortuna só chega em São Paulo para se juntar com as outras 4 Oblatas em março de 1968, quatro anos depois da morte de Padre Ignácio em Pernambuco. Em São Paulo, Nenuca, a principal condutora das Oblatas, logo a manda trabalhar numa fábrica. A experiência operária era uma vivência constantemente pregada e que fazia parte das regras de aprendizado das noviças da OAF. O valor moral atribuído à classe trabalhadora e à experiência operária era muito forte não só entre as Oblatas, que também eram chamadas de “Oblatas Operárias”, mas igualmente importante entre outras práticas político-religiosas que no período começavam a despontar nas periferias de São Paulo. No entanto, trabalhar numa grande indústria de tecelagem não foi coisa muito fácil para Fortuna, além disso, ninguém na fábrica sabia ou podia saber que ela era religiosa. Após o “estágio” de um ano, Fortuna começa a se dedicar mais diretamente às práticas desenvolvidas pela OAF e estas eram voltadas aos “marginais”, termo este amplamente utilizado na época. Isso era em parte decorrente das vigentes teorias da marginalidade social como maneira de qualificar, entre outras coisas, a enorme massa de migrantes, desempregados e trabalhadores que então se colocavam “à margem” do mercado e das possibilidades de vida na cidade (Berlinck, 1977, Perlman, 1977). Independentemente da multiplicidade de concepções que estavam inscritas no uso do termo, é importante ressaltar que sua utilização, ao operar uma importante diferença entre “marginalidade” e “criminalidade”, passou na época a ser manuseada por outros atores sociais tais como sindicatos, organizações populares e pela própria Igreja Católica. E é com esse público “marginal” e “abandonado” que Fortuna passa a trabalhar mais diretamente agora, quando se muda e vai viver junto com as outras Oblatas num cortiço localizado no bairro do Brás, no Centro de São Paulo. Tratava-se, como Fortuna diz, de uma tentativa de “convivência mais autêntica e missionária entre o povo pobre”, buscando fornecer apoio direto “àqueles que não tinham para onde ir no centro da cidade”. No meio em que viviam, as Oblatas se negavam a se apresentar como freiras, diziam serem “moças da OAF”. Além disso, vendiam doces, balas e cafezinho de maneira a interagir com os adultos e “conquistar a meninada das ruas”. Nesse processo de imersão nas ruas e viadutos, cortiços e ocupações, as Oblatas vão descobrindo a existência de todo um mundo de relações “marginais” no centro da cidade. E esta descoberta se faz justamente num momento da história brasileira em que a população urbana, pela primeira vez no país, ultrapassava a 5 metade da população nacional. Era uma época em que a grande questão que se impunha na cidade era a da migração. À época, diariamente inúmeras famílias saíam do campo e se colocavam a caminho de São Paulo (Durham, 1985). E neste deslocamento, antigas formas de sociabilidade eram colocadas em xeque, alterando-se parcialmente. Algumas práticas e relações sociais tradicionais reterritorializavam-se na crescente periferia da cidade, através de loteamentos freqüentemente ilegais, mutirões e auto-construções de casas próprias, constituindo tudo aquilo que posteriormente a literatura especializada tratou de detalhar e descrever chamando pelo nome de “padrão periférico de crescimento urbano” (Kowarick, 1993). Entretanto, nem todos aqueles que se colocavam a caminho da cidade realizavam em São Paulo o tão esperado projeto de vida. E foi com alguns destes desterritorializados que Fortuna e outros participantes da OAF começaram, então, a trabalhar na região central da cidade. Naqueles meados da década de setenta, num momento em que não existiam ONGs disseminadas pelo território da cidade e tampouco havia ocorrido o boom do terceiro setor – que posteriormente se viu na década de noventa –, a OAF era uma organização com várias atividades e que contava com um considerável quadro de funcionários e colaboradores. “Colaboradores, porque na época não se falava essa coisa de voluntariado”. A organização desenvolvia inúmeras atividades, coordenava um espaço de trabalho coletivo, a Oficina São Bento; uma residência para meninos, a Casa dos Jovens; um abrigo noturno para pessoas em situação de transitoriedade que, posteriormente e sob outra coordenação, ficou conhecido como albergue Ligia Jardim; além disso, desenvolvia a já citada Ronda Noturna, quando então se saía na noite com instrumentos (Fortuna cantava e tocava violão), alimentos e se conversava e se interagia com meninos de rua, migrantes desempregados, mulheres solteiras e outros personagens da noite; também se tinha várias atividades durante o dia, como o acompanhamento dos doentes nos hospitais, o apoio no processo legal de alguns prisioneiros, bem como encaminhamentos e conversas no interior das prisões (onde, inclusive, numa rebelião Fortuna tornou-se refém dos prisioneiros). Mais adiante, no final da década de setenta, os participantes da OAF escrevem conjuntamente um livro, intitulado Somos um povo que quer viver, que só é publicado em 1982. Esta obra, espécie de testemunho-relato das experiências e da transformação pela qual a organização passou, é feita na “esperança de que outros conheçam e também 6 se comprometam” (OAF, 1982:8)3. Este livro também explicita o deslocamento coletivo para uma nova causa de ação, estabelecendo, assim, os contornos e as formas iniciais sobre uma realidade que até então era informe: Quando pensamos nos pobres como povo, nos vem à idéia o povo situado na periferia da cidade. Na nossa missão, porém, o povo faz parte de uma periferia especial; sua demarcação não é geográfica, mas sociológica, é “a periferia do centro”. Aqui, os pobres não são notados, sua presença está escondida. A simples vista não percebe que atrás da porta de uma antiga mansão mora, talvez, uma centena de pessoas, nem que outras centenas de homens e mulheres transitam pelas ruas, sem destino (OAF, 1982:97). Este trecho, retirado da citada obra, atesta uma preocupação com uma figura da pobreza que até então permanecia invisível aos olhos da época. É aquela “marginalidade” situada na região central da cidade que, agora sobre as fortes influências religiosas e políticas da época, vai ser reconhecida também como um “povo” que vive em outra periferia, a do centro. E mais a frente, serão estes pequenos saberes, formas de reconhecimento e práticas experimentais desenvolvidas por esta organização religiosa que se tornarão as principais referências na invenção e instauração dos dispositivos institucionais voltados a essa realidade. Rua, terra de missão À época, as atividades desenvolvidas pela OAF eram vistas por seus integrantes como um verdadeiro movimento cristão, uma prática missionária voltada aos mais destituídos, muito mais do que uma ONG ou uma instituição filantrópica. Aquela heterogeneidade de ações, ainda de caráter caritativo, promovidas pela organização, a partir do final da década de setenta começa a ser revista dentro de um quadro de reavaliação institucional. Aos poucos, as maneiras de fazer, bem como seus alvos, vão sendo melhor delimitados e a trajetória deste coletivo religioso passa por uma importante inflexão, radicalizando suas práticas e redefinindo seu campo de ação, cada vez mais em direção ao “povo sofrido e sem casa da região central”. 3 A trajetória e a experiência de trabalho da OAF estão registradas em dois livros organizados pela principal condutora destas Oblatas,que atendia pelo nome de “Nenuca”. Estes dois livros – cujos títulos são Somos um povo que quer viver (OAF, 1982) e Quantas vidas eu tivesse, tantas vidas eu daria (Castelvecchi, 1985) – possuem o caráter de um testemunho religioso e de vida, e foram escritos na passagem dos anos setenta para os oitenta, um pouco antes da morte da autora. Ambas as obras contam com depoimentos de muitas outras pessoas, sendo que algumas destas serão aqui citadas. Utilizei -me destes livros como fontes documentais na confecção do artigo. 7 Entre Oblatas, colaboradores e funcionários é feita uma apreciação crítica das atividades desenvolvidas. E a partir daí uma série de mudanças começam a ser instituídas: os recursos públicos e privados que a organização recebia foram cortados, todo o corpo de funcionários e técnicos é demitido, fecham-se os espaços de trabalho e todos os serviços existentes são encerrados. Vemos agora uma importante virada na própria trajetória coletiva da OAF. Antes conectadas mais aos padrões formais e institucionais de assistência, as irmãs e os colaboradores que permaneceram na organização passam então a desenvolver um trabalho evangelizador diretamente ligado à dinâmica das ruas. Acreditava-se que o “binômio evangelho- instituição” colocava os participantes num impasse, pois a instituição impedia a prática do evangelho que só “podia ser vivido em comunidade” (OAF, 1982:47). As críticas às formas institucionais de ação se assentavam pelo menos em dois eixos: a instituição opera mediante o trabalho individual, impossibilitando assim o trabalho coletivo e comunitário, que então passava cada vez mais a ser uma importante referência; e a instituição é intermediária da caridade, sendo responsável pela manutenção da distância entre classes e grupos sociais, pois “aquele que manda o dinheiro de cima não se compromete com aquele de baixo ” (Castelvecchi, 1985). O “abandono da instituição”, como a transformação é narrada, produziu enormes atritos entre os participantes do grupo. E as discussões e os dissensos não ocorreram só entre os profissionais e colaboradores, mas principalmente entre os “assistidos” da OAF que acreditavam ter perdido a acolhida e o usufruto de seus serviços. Este deslocamento para uma “linha mais comunitária”, “foi das coisas mais arriscadas que fizemos”, afirma Nenuca, a principal mentora do grupo (Castelvecchi, 1985:107). Atitude arriscada, pois a proposta agora era a de formar grupos, trabalhar em grupos para a “conscientização de que a situação é social e não individual”. Tratava-se de tentar dar corpo e unidade, “formar comunidade” entre os “maloqueiros-sofredores”. E esta passagem do tratamento individual para o coletivo é vista com muita desconfiança na época. Não se acreditava na possibilidade de trabalho e formação de grupos com os então mendigos. No entanto, esta inflexão que a OAF e seus participantes atravessam está em consonância direta com o seu tempo histórico, época em que novas formas de mobilização coletiva e ação política pipocavam por toda cidade. Na virada para os oitenta, momento em que era possível ver todo “o povo em movimento” (Singer; Brant, 1983), a Igreja Católica e suas bases de articulação locais tiveram um papel 8 fundamental. Organizados por vertentes da Igreja ligadas à Teologia da Libertação, os grupos pauperizados das periferias de São Paulo passaram a reivindicar melhorias sociais objetivas em seus bairros. Também o movimento sindical e o ideário operário ganhavam força na esteira das mobilizações dos metalúrgicos do ABC, bem como as agremiações estudantis de classe média e as elites intelectuais que passaram então a se envolver diretamente em greves, manifestações e reuniões, buscando ampliar os marcos do que era então concebido como fazer política. Estes três elementos – a Igreja Católica, o sindicalismo e o marxismo universitário – comporiam a matriz discursiva daquilo que ficou conhecido posteriormente pela literatura especializada como “campo movimentista”, um complexo discursivo plural que, numa aliança conjuntural, articularia ações na possibilidade de expressar identidades e interesses em oposição aos propostos e impostos pelo regime militar que então vigorava no país (Sader, 1988). Num momento em que quase metade da população da cidade morava em favelas, cortiços ou áreas irregulares, novos atores passaram a entrar em cena, carregando como pressuposto o forte nexo entre democracia política e justiça social. Neste contexto, o Estado autoritário era visto como o principal adversário a ser combatido, imaginando-se que as injustiças sociais viriam a ser suplantadas pela democratização. Luis Kohara, colaborador da OAF que participou ativamente deste período4, comenta a influência desta efervescência movimentista no trabalho das Oblatas e na transformação da organização. Naquela época fomos visitar várias comunidades de base de alguns lugares para ver como se organizavam, ver se era possível trazer um pouco da riqueza das CEBs para trabalhar com a rua. Então eu acho que tudo isso, num processo, em 78, isso daí começou a questionar a estrutura da OAF, que era uma instituição grande, com mais de 50 funcionários, albergues, casas com adolescentes e outras casas (...) Até porque uma preocupação era a de colocar esta realidade da rua dentro do contexto mais amplo, e não um contexto apenas do pobre que está na rua e que precisa de alguém, precisa ser ajudado. Então acho que, assim, a riqueza de reflexão deste momento veio também desta agitação política. (...) Partindo das experiências das comunidades de base, a partir do que colocava a Teologia da Libertação, a libertação vindo dos pobres, onde você via a pedagogia de Paulo Freire, onde reconhecia o saber de cada um, um saber que tem que ser desenvolvido, que tem valor, que tem competência. Competência também já era uma palavra nova na época. O processo era o de reconhecer naquela pessoa da rua uma capacidade e também reconhecê-la dentro de uma estrutura social.(Luis Kohara) 4 Tendo participado das práticas desenvolvidas pela OAF nas décadas de 70 e 80, Luiz Kohara hoje é integrante do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, ONG que atua no centro de São Paulo e que desempenha um importante papel na articulação dos movimentos de moradia da região, bem como de outras categorias de atores provindos das classes populares, tais como os catadores de materiais recicláveis e moradores de rua. 9 Em 1978, a OAF e seus colaboradores conseguem um espaço para convivência e celebração, “onde as pessoas pudessem estar manifestando sua fé da forma que quisessem”. Este casarão abandonado, localizado ao lado do Mosteiro de São Bento e cedido temporariamente pelos Beneditinos, vai ser a primeira “Casa de Oração”, lugar onde se organizará pela primeira vez a “Missão da comunidade”, momento este de reflexão e aprofundamento sobre quem são estas pessoas que vivem nas ruas. Assim, são criados espaços e tempos específicos para fazerem as pessoas falarem de si e exporem seus problemas individuais. Imaginava-se que da troca de experiências poder- se-ia estabelecer elos comuns capazes de fomentar uma consciência à “classe dos maloqueiros”5. Nestas experimentações vão aparecendo novos nomes e titulações capazes de promover deslocamentos semânticos. Como comenta Regina Maria Manoel, Oblata integrante da OAF6. E aí nós fizemos um teatro uma vez. Neste teatro, as pessoas que representavam quem não era da rua chamavam os da rua de maloqueiro, e aí eles respondiam que eles não eram maloqueiros, eles eram sofredores. E isso ficou muito forte para gente, e essa denominação de sofredores veio deles. (...) Para nós era muito mais a visão do Servo Sofredor, aquele que resiste. É uma passagem da bíblia. O Servo Sofredor, que é a figura daquele que resiste apesar de todo osofrimento, apesar de todo o escárnio que sofre, quando chutam e cospem no corpo dele. E toda a resistência de não perder a vontade, essa altivez. E aí então ficou a Comunidade dos Sofredores da Rua. E na época havia muitas formas de expressão, havia teatro, havia música e isso foi se divulgando. Então a Missão que fizemos ficou como Missão da Comunidade, Missão dos Sofredores. E fizemos a primeira Missão na Casa de Oração lá na Florêncio de Abreu, quando ficávamos dois, três dias fazendo convivência. Nesse tempo também havia contato com o pessoal das favelas, das ocupações, dos cortiços, havia um intercâmbio. (...) Quando em 79 fizemos a primeira Missão já apareceram reivindicações. Tinha uma mulher chamava Natália, uma das reivindicações dela era ter privada e banheiro na rua, então já começava uma consciência. Isso numa assembléia. (...) Em 80 a gente fez a Missão novamente em setembro e decidimos fazer a primeira caminhada. Foi aí que decidimos sair para rua. Até então a gente nunca ia para rua, até então era mais um trabalho ainda mais local. Aí depois nós fomos para rua, tinha a sopa aqui na rua. No viaduto, porque um dos objetivos era esse de dar visibilidade.(Regina) 5 Designação utilizada até hoje no universo das ruas, “maloqueiro” possui um caráter negativo e estigmatizante. Sua interessante etimologia me foi exp licada por um morador de rua: maloqueiro na verdade vem de „maloca‟, que é onde a gente vive, e de „maluco‟, que é o cara „locão‟ e que não se comporta direito. Por isso nem todo mundo que tá na rua é maloqueiro . Utilizada corriqueiramente como uma categoria de acusação, o “maloqueiro” é um estereótipo das ruas que aponta de modo geral para a extravagância dos comportamentos – arruaceiros, imprevisíveis e incivis. 6 Irmã Regina teve contato com o trabalho da OAF e tornou-se Oblata no final da década de setenta. Junto com Irmã Ivete, são as duas únicas Oblatas que até hoje permanecem trabalhando na OAF em São Paulo. 10 Além de todas as reflexões e discussões que já ocorriam no interior da organização, também em 1979, Dom Paulo Evaristo Arns, então Cardeal Arcebispo Metropolitano, pede à OAF que “tragam, quando puderem, o programa de Puebla para o centro de São Paulo” (OAF, 5:1982). E assim as Oblatas começam a articular e trazer para o centro da cidade todo um conjunto de referências ligadas à Conferência de Puebla, momento histórico em que a Igreja Católica da América Latina reformulou suas diretrizes de ação, lançando os elementos que iriam incitar ainda mais a proliferação das Comunidades Eclesiais de Base que então se multiplicavam pela periferia de toda São Paulo. Só que diferente das CEBs, as Oblatas vão fundar uma comunidade de base em outra periferia urbana: na periferia do centro. No entanto, o desafio que se colocava era o mesmo, fazer com que as mazelas sociais deixassem de ser figuradas como fracassos individuais e passassem a serem vistas como resultado de uma ordem social injusta. A gente trabalhava muito essa questão da idéia de povo, contrapondo às palavras mendigos, maloqueiros. Então valeu bastante a questão do Povo da Rua. Eu acho que não é uma questão à toa. A comunidade começou a chamar sofredores da rua e tinha um caráter de reconhecer o sofrimento, mas a gente questionava muito, porque tem um aspecto de resignação quando se fala sofredor. Não é tão legal esta questão de sofredor, mas ficou porque a população logo pegou. Mas serviu também para reconhecer que ele não era maloqueiro, ele era sofredor, que ele não era sozinho, era parte de um povo e de uma reflexão de fundo e que dava bastante sustentação a esta questão (...) Três anos depois, se discute que precisava ter uma identidade a partir do positivo, eu lembro da reunião que a gente criou a frase, “Somos um povo que quer viver” e depois isso virou o livro, quando a gente começou a sair na rua (...) Esta frase era pra reforçar o aspecto positivo. Quem é esta população? É a população que quer viver e que está sendo impedida de viver. (Luis Kohara) Parte do grupo vai morar na Baixada do Glicério, localidade próxima à Praça da Sé numa pequena casa na Rua dos Estudantes, e ali começa a se envolver mais diretamente com as relações próprias ao universo da rua. Para “viver e levar o evangelho” eles dormem nas ruas e em albergues, alguns vão catam papelão, outros vendem cafezinho nas ruas e passam a visitar com mais freqüência “mocós”, “malocas” e outras ocupações da região central. Sob o desejo de considerar a “c lasse sofredora em seu conjunto”, começa-se a querer transformar os pobres e marginalizados do centro em “Povo”, vencendo a dispersão característica da rua, reunindo as pessoas e formando comunidade em busca de uma transformação social. Alderon Costa 7, outro importante participante deste período, relata: 7 Tendo também participado da Comunidade dos Sofredores de Rua, Alderon Costa foi um dos principais fundadores do CDCM (Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados) que se tornou 11 Era muito intenso todas essas questões e a gente acreditava ainda que podia transformar o mundo. Acreditávamos nesta coisa de louco. Pensar que aquela população poderia também colaborar nessa transformação do mundo, isso para nós era, assim, uma coisa muito clara. E íamos contra a corrente. Porque todo mundo achava que isso era loucura, “como esse povo bêbado, vai poder colaborar com isso?” Aí tinha discussões e discussões em cima dessa questão. Porque nós acreditávamos. E tinha todo o movimento de São Bernardo, dos metalúrgicos, que era forte. Coisa assim, a revolução vai vir, a transformação social e tudo mais. Mas era tudo lá, era para o lado de lá. Mas enfim, a gente acreditava e apostava muito nessa transformação, pouco a pouco, passo a passo, e principalmente porque a gente não acreditava muito numa sociedade que não incluísse essa população, quer dizer, que sociedade é essa que não pode incluir esta gente? Para se ter uma sociedade diferente, tem que incluir essa população e nós temos que estar preparados para isso. (Alderon) Tratava-se, pois, de levar o evangelho para as ruas com vistas a conduzir o Povo de Deus à salvação, o que se misturava com a própria possibilidade de se levar a classe dos sofredores à revolução. A sobrevivência nas ruas era por si só interpretada como uma atitude de resistência e de luta pela vida. Por isso, a presença irredutível da vida neste lugar de morte, destruição e violência que é a rua, testemunhava a própria presença de Deus ali. A vida dos sofredores era vista como um sinal divino e, ao mesmo tempo, a possibilidade extrema de negação do mundo material e capitalista que se impunha. A experiência de rua passa, então, a ser vista não só como eixo articulatório na delimitação de um conjunto de vidas, mas também passa a ser vista como um elemento positivo na afirmação destas vidas. Como a presença de Deus se fazia na rua junto dos sofredores, “os miseráveis entre os mais miseráveis”, aproximar-se dali era aproximar-se do próprio Criador. Mas era também rejeitar uma ordem social tida como injusta. Aquele trabalho, não à toa, era visto como “algo verdadeiramente profético”, como Alderon conta. Não se tratando mais simplesmente de maloqueiros, vagabundos ou mendigos, mas de um povo sofredor que vive nas ruas da cidade e que deve encontrar seu caminho como rebanho escolhido, a rua torna-se terra de missão. Uma missão que busca denunciar as violências praticadas e anunciar as boas novas, delatando a morte que espreita a rua e afirmando publicamente a existência de uma vida que lá resiste e insiste em sobreviver. Uma missão que luta para “fazer justiça séria para acabar com a miséria do povo que é sofredor”, como diz o refrão de uma canção do grupo. É uma missão queposteriormente Associação Rede Rua, atualmente responsável pela gestão de vários equipamentos e projetos sociais voltados à população de rua na cidade. Hoje Alderon é editor chefe d‟O Trecheiro, “o jornal do povo da rua”, e também integra o editorial da rev ista OCAS, meio de comunicação também voltado para ao universo das ruas em São Paulo. 12 se apresenta, portanto, como um ideal simultaneamente religioso e político, articulando uma narrativa salvacionista e socialista na qual as referências à Cristo e Marx ajudam a compor um poder pastoral imbuído por uma teleologia de coloração democrático- popular. Trabalho nas ruas De família pobre do interior do Estado de São Paulo, Carlos Fabrízio chega na capital paulistana em 1975 em busca de trabalho. Habilidoso com as mãos, faz de tudo: é soldador, pedreiro, carpinteiro, pintor e “mais o que precisar fazer”. Trabalha em vários lugares, empresas, indústrias e construções. E é justamente essa sua trajetória profissional segmentada que permite que aprenda as “novas manhas” dos serviços, até então desconhecidos. Só que na passagem para a década de oitenta, fica cada vez mais difícil de conseguir um emprego. Então arruma um serviço como soldador em Cubatão e este é o último trabalho registrado de que possui lembrança. Depois disso, não consegue mais nenhum serviço e a explicação ele mesmo tem: “É, Daniel, você deve saber melhor que eu que foi no começo dos oitenta que o desemprego apertou”. E em seguida é só “tropeço”, como ele mesmo fala. Faz um bico aqui, outro ali, mas “um serviço decente mesmo” não arranja. Com trinta anos de idade, no auge de sua força produtiva, Carlinhos, como também é conhecido, vira um morador de rua: “Fui parar no meio da rua”. Arranja um “mocózinho” debaixo do viaduto, faz uns conhecidos por ali e continua fazendo uns bicos, “tentando, né?”. “Trabalhador que não deu certo” (Neves, 1983), Carlinhos integra aquela enormidade de “casos sociais” que vão encontrar nas ruas da cidade uma forma de vida nada usual, apesar de crescente. A rua transforma-se, então, num espaço de “viração”, espaço social onde se é possível viver e sobreviver na adversidade. A trajetória de Carlinhos segue, até então, todas as características básicas apontadas pelos estudos sobre moradores de rua: um itinerário de perdas sucessivas que o leva à rua, o coloca distante da família, próximo da bebida e longe do mundo do trabalho (Escorel, 1999, Rosa, 2005). Nos dizeres de Robert Castel (1998), ele seria o desfiliado em pessoa. Seria, se nós parássemos por aí a história, ou melhor, se Carlinhos parasse aí sua história. O mesmo processo de perdas e rupturas que o levou à rua, também foi um processo de aquisição de novas referências. De modo que a inserção de Carlinhos neste novo meio, “no meio da rua”, fez com que ele se envolvesse em muitas relações, 13 aprendesse outros códigos, conhecendo pessoas, coisas e uma nova forma de trabalho, ainda que não muito reconhecida. É ali, junto à proliferação do lixo, nas sobras lançadas ao espaço público pelos citadinos, que descobre uma fonte de renda, aprendendo “na própria pele” que viver na rua também é viver da rua. Com isso, Carlinhos descobre a catação e junto com ela descobre também toda uma trama de mediações articulando materiais recicláveis, lugares de coleta, depósitos clandestinos, preços variáveis, carroças, catadores, além de manhas e truques na negociação das complicadas regras morais que dão liga e sustentação entre estes diversos elementos. E circulando entre os depósitos e até mesmo dormindo em alguns, é que aprende a fazer carroças com alguns dos materiais encontrados nas ruas. Reempregando as competências de suas “habilidosas mãos”, Carlinhos, além de catar material reciclável, também começa a vender carroças por encomenda. “Fiz tanta carroça que eu nem me lembro quantas”. Inclusive faz uma carroça para si e começa a dormir debaixo dela. Junto ao aumento do desemprego da década de oitenta, o infortúnio das ruas se expõe mais na paisagem urbana e na mídia impressa. O levantamento de periódicos efetuado por Cleisa Moreno Maffei Rosa (1999) aponta o impressionante crescimento das reportagens sobre os mendigos e as pessoas vivendo sob viadutos, marquises, casas abandonadas, calçadas e jardins. Juntamente com as notícias, avança também a multiplicidade das nomeações sobre tais figuras: desabrigados, homeless, pobres de rua, gente morando na rua, indigentes, exército de rejeitados, deserdados, cidadãos da rua 8. Nos jornais, cada vez mais o reforço da imagem da miséria nas ruas embaraça-se com a figura do desempregado e a catação é colocada como uma atividade reconhecida de subsistência. Assim, o catador passa a se diferenciar em relação aos mendigos, pois agora, as ruas não são mais só dos vagabundos, anunciam os jornais, mas também daqueles que não encontram lugar no mundo do trabalho9. Em torno dos resíduos lançados diariamente pelas lojas, empresas e órgãos públicos da região central começa a se montar uma trama de interesses econômicos. O 8 Ao analisar as reportagens da década de setenta e oitenta, Frangella, comenta que cinco tipos de notícias agrupariam discursivamente o universo midiático que tratou da questão do morador de rua em São Paulo: “o aumento desta população; sua pauperização socioeconômica e a sucessão de rupturas que o leva àquela direção; os mecanis mos disciplinares e controladores do Estado que agem sobre ele; o apoio em torno de sua vulnerabilidade; e por fim, os depoimentos e histórias de vida de „gente de rua” (Frangella, 73:2005). 9 Stoeffels (1977), em Os mendigos na cidade de São Paulo (o primeiro estudo sociológico sobre o tema que se tem referência no país), afirma que, depois da tradicional mendicância, a principal forma de geração de renda para aqueles que viviam nas ruas era o trabalho na construção civil, ainda que temporário e transitório. Daí o fato de parte dos trabalhadores que participaram do processo de construção e verticalização de moradias, que se viu na década de setenta e oitenta em São Paulo, serem pessoas que não possuíam casa. 14 lixo e os restos que a cidade produz e que sempre foram vistos como expediente possível para os mais miseráveis, deixa de ser uma fonte ocasional de recursos para a se tornar riqueza a ser explorada permanentemente e, cada vez mais, sistematicamente. As novas embalagens e o descarte do consumo tornam-se o ganha pão dos “inempregáveis”. Graças a estes “inúteis para o mundo” uma abundância de objetos, também tidos como “inúteis”, passa a readquirir utilidade econômica ao ser inserido à cadeia da reciclagem e de transformação destes materiais. Seja como for, a entrada de Carlinhos neste ramo informal de trabalho se faz justamente pelo espaço de relações em que sua vida passa a se circunscrever. É que o viaduto que ele escolheu para dormir era um lugar de “movimento”: Na verdade, quando eu vim para rua eu vim para o viaduto (da Baixada) do Glicério e aqui comecei a catar papel e papelão para vender. Porque na época, em 80, 82, tinha a rodoviária do Glicério aqui. Tinha o maior movimento de gente aqui na época. Então era melhor ficar por aqui, porque tinha a catação e a rodoviária. E assim foi indo. Eu dormia debaixo do viaduto aí na rua. Então eu dormia lá. E depois eu passei a dormir nuns caminhões velhos numa rua que tem aqui perto. E para comer, eu ia numas “bocas de rango” que tinham. Naquela época não tinha nenhum serviço da prefeitura A gente ia no corpo de bombeiros. Lá eles davam uns pratos de comida. Às vezes íamos nos restaurantes e tinham também outros lugares para ir. Nada de prefeitura. E assim foi, até que em 83 para 84 eu conheci a Comunidade dos Sofredores de Rua e aí foi melhorando. (Carlinhos) Carlinhos considera que o contato com a Comunidade dosSofredores de Rua foi aquilo que permitiu que mudasse sua visão de mundo. Esta comunidade constituía, no período, o único espaço de referência e trabalho voltado especificamente para o universo das ruas de São Paulo. Ainda não se havia construído um saber formal e especializado sobre a população que vivia nas ruas, também não existiam órgãos ou serviços públicos que trabalhassem especificamente com o tema das vidas de rua10. Carlinhos começa, então, a participar das “sopas comunitárias” debaixo do viaduto, quando coletivamente se ia à feira pegar os restos de alimentos, cozinhava-se e comia- 10 Até a gestão de Erundina, havia apenas três equipamentos que eram utilizados pela população sem casa na cidade de São Paulo. O mais importante era o CETREN (Centro de Triagem e Encaminhamento), localizado próximo à antiga rodoviária do Glicério, o DAIS (Departamento de Amparo e Integração Social), situado na antiga hospedaria do Brás, e o albergue Lig ia Jard im, localizado na Avenida Vinte e Três de Maio. No entanto, estes três espaços institucionais tinham como público prioritário uma população marcada pela migração e pela doença, sendo que a figura do “mendigo” aí se misturava. A presença destes equipamentos é marcante nas narrativas dos atores mais históricos do campo, contudo as fontes documentais sobre os mes mos são escassas, uma das poucas exceções é Nasser (2001). Stoeffels (1977) também aponta para a existência na década de setenta de outros serviços públicos utilizados: ambulatoriais, para-hospitalares, previdenciários e órgãos de repressão, este último, agora sim, voltado especialmente para os “vagabundos”, como a Delegacia da Vadiagem da Secretaria da Segurança Pública. 15 se, tudo junto, “comunitariamente”. Ali, também começa a freqüentar as reuniões e as dinâmicas do Centro Comunitário localizado no Glicério. Carlinhos fala: “Na época, a Comunidade dos Sofredores de Rua já dava uma alternativa para gente, porque lá a gente ficava sabendo das coisas, ouvia as coisas que estavam acontecendo na rua”. As reuniões efetuadas no Centro Comunitário, além de desenvolverem atividades culturais, também promoviam discussões coletivas sobre alguns temas que apareciam. E obviamente um tema constante era o do desemprego e do trabalho. Alguns participantes trouxeram sua experiência com a prática da catação e aquilo foi ficando no grupo. Até que se colocou a questão: “se a gente tivesse um carrinho, a coisa poderia ser diferente, nós poderíamos ganhar mais”. E “como primeiro passo, a própria comunidade comprou duas rodas e o grupo fez a sua carroça”. A partir daí o processo foi longo, com muito trabalho e debate. Mas foi somente numa Missão, momento de organização e reflexão conjunta, que veio a idéia de se fundar uma Associação de Catadores: A idéia da Associação (de catadores) apareceu foi numa Missão, quando a gente fazia uma vaquinha e cada um dava um pouco. O dinheiro era nosso mesmo, do Povo de Rua, tudo para conseguir fazer a Missão. Então a gente se juntava para fazer vários trabalhos. Cada um trabalhava do jeito que dava. Tinha o grupo do café, da marretagem na rua, os flanelinhas e também outras contribuições individuais. E dentro disso já tinha um grupinho de catadores de papel organizado. Eram uns 10 catadores que a gente fazia este trabalho conversando junto, mas não comercializava junto. E para Missão, isso exigia que a gente comercializasse junto, fizesse tudo junto, unido. Aí pedimos emprestado um espaço numa casa aqui velha, abandonada. A gente pediu para o senhor que tomava conta da casa, para usar o espaço e ele deixou usar a casa. Aí juntamos todo aquele material e no dia da venda para a Missão, recebemos o dinheiro. Aí depois a gente se encontrou, para fazer a avaliação da Missão (...) Aí quando terminou a Missão, na reunião, vimos que dos trabalhos o nosso grupo dos catadores foi o que deu mais dinheiro porque a gente juntou tudo, a gente não vendeu cada um separado. Aí no final da avaliação, pensamos “por que não continuamos nós? Juntos assim dá mais dinheiro”. Aí continuamos juntos, tudo na mesma casa, arrumamos uma balança, para dividir o material de cada um, dividir o dinheiro (...). E a gente foi assim trabalhando. Depois surgiu esta casa aí, que tava abandonada na época (atual sede da OAF). Entramos na casa, ocupamos, e depois começamos a juntar o material lá, começamos a arrumar tudo. Quando tava tudo legal apareceu o dono rapidamente para reclamar. Depois em 85 viramos associação. Aí a Luiza Erundina já era vereadora e ajudava a gente. Então ela veio aqui no Glicério na fundação da Associação. (Carlinhos) O apoio da vereadora Erundina constituía uma verdadeira exceção. Num momento em que o país estava em franco processo de democratização e o Estado ainda era marcado pela truculência do autoritarismo, a relação dos agentes públicos com o universo das ruas era baseada unicamente em práticas repressivas de remoção e expulsão do espaço público. Isso, quando não era exercida pela agressão aberta da 16 polícia, que ao abordar nas ruas algum indivíduo pobre, mal vestido, sem documento e revirando materiais considerados lixo, ou seja, ao abordar algum “vagabundo”, o método básico era a violência. Para com bárbaros, atitudes bárbaras. Esse tipo de abordagem ficou particularmente marcado na gestão municipal de Jânio Quadros, prefeito de São Paulo entre 1985 e 1988. No começo de seu governo inicia-se uma intensa e sistemática perseguição às pessoas que viviam e trabalhavam nas ruas da cidade. Tendo a vassourinha como principal emblema de campanha, a intenção política era varrer a cidade através de uma intervenção urbana fundada numa limpeza estética das ruas (Frangella, 2005). Considerando que os catadores sujavam as ruas ao vasculhar lugares em busca de material, Jânio Quadros também deu continuidade ao cerco dos viadutos, prática esta que começara a ocorrer já na gestão municipal anterior de Mario Covas (1983-1985), quando então foi desativado o Terminal Rodoviário do Glicério, também localizado debaixo de um viaduto. A presença maciça de pessoas vivendo nas ruas e trabalhando com o lixo era coisa muito recente na cidade, pelo menos na escala que a questão começou a adquirir a partir de então. A catação apareceu então, não só para os participantes da Comunidade dos Sofredores de Rua, mas também para outras figuras da pobreza que rondavam as ruas do centro da cidade (região com grande concentração de lojas e serviços, e com alta produção de “lixo de qualidade”), como uma grande possibilidade de trabalho e vida. Neste contexto, em que as ruas da região central vão transformando-se cada vez mais em um lugar “normal” para se viver e trabalhar, é que a Associação de catadores é formada e ganha força, tendo Carlinhos como seu primeiro presidente. No decorrer dos anos oitenta, os catadores da Associação participam ativamente da organização das Missões, quando então se faziam verdadeiros “cortejos de carroças”, que atravessavam o centro da cidade chamando a atenção e dando maior visibilidade para a questão. E nessas Missões, os catadores também tentavam expressar diferenças em relação aos chamados “mendigos” ou “maloqueiros”, aderindo de forma mais contundente às manifestações de protesto ao sofrimento nas ruas, estimuladas pela OAF e seus colaboradores. Na trajetória coletiva destes catadores, da qual Carlinhos desponta como um personagem de destaque, a entrada de Luiza Erundina na prefeitura municipal promove todo um rearranjo nas relações de forças. A mudança de gestão acompanha, portanto, uma importante inflexão no percurso destes trabalhadores antes perseguidos. Logo em 1989, a Associação transforma-se na primeira cooperativa de materiais recicláveis do Brasil, a Coopamare 17 (Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis),também sob a presidência de Carlinhos. Além disso, através da prefeitura, a cooperativa consegue um espaço em Pinheiros e um convênio com a Secretaria Municipal do Bem- Estar Social. Também em 1990, através de um decreto, a prefeitura reconhece oficialmente o trabalho dos catadores de papel na cidade de São Paulo. Este decreto, além de formalizá- los como uma categoria de trabalhadores não mais clandestinos na cidade, possibilitou seu registro como autônomos na prefeitura, independentemente de estarem ou não vinculados a uma cooperativa. Naquele momento se questionou muito se este tipo de relação com o poder público deveria ou não ser mediado pela assistência. Implícita a esta dúvida, apresentava-se uma interrogação que até hoje permanece: os catadores devem ser interpretados como uma categoria profissional ou como uma categoria de assistidos? Seja como for, a catação, que antes era apenas vista como uma forma sobrevivência junto às sobras da cidade, lentamente foi transformando-se em uma profissão, ainda que altamente precária. Assim, no decorrer da década de noventa a catação tornar-se-á um foco de luta política pela profissionalização e pelo “direito ao trabalho nas ruas”11. E aos poucos, a figura do catador vai assumir uma posição permanente e mais definida neste circuito informal e instável da economia urbana que passa a se estruturar em torno do lixo, que como Carlinhos bem explica, “não é bem lixo, mas material reciclável”. Caixa de ressonância Surpreendendo as previsões gerais que se tinha na época, Luiza Erundina ganha a eleição para a prefeitura de São Paulo. Essa imprevista vitória, além de alterar potencialmente o universo das práticas e relações envolvidas com a rua, gerou toda uma reconfiguração nos horizontes de possibilidades das organizações populares da cidade. A nova prefeita não tinha apenas um vínculo político e religioso com os movimentos e 11 Haveria que indagar mais detalhadamente sobre as relações entre a crescente profissionalização dos catadores de materiais recicláveis na década de noventa em São Paulo, com o mesmo fenômeno ocorrido em outras cidades do país (Oliveira 2005) e em outras cidades da América Lat ina (Schambler & Suárez, 2007). Contudo, se é verdade que a prática catação tem se constituído enquanto uma forma de trabalho permanente em grande parte das metrópoles Latino-americanas, vale ressaltar que é apenas nas regiões centrais de algumas poucas metrópoles (como São Paulo) que a relação entre “trabalhar com o lixo” e “viver nas ruas” estreita-se desta maneira, de modo que aqui, a história da profissionalização dos catadores mistura-se com a própria história da população de rua. Para um olhar mais detalhado sobre o surgimento da coopamare ver Rodrigues, 2006, e para uma análise conjuntural das cooperativas dos catadores da região central e sua relação com a dinâmica das ruas ver De Lucca, 2007a. 18 as comunidades de base de São Paulo, ela era parte integrante e fundamental da articulação destes movimentos (Feltran, 2005). Assim, este governo lançou para o interior da máquina pública uma série de demandas, que até então apenas haviam sido discutidas e debatidas longe do Estado. Entretanto, se é verdade que Erundina já conhecia um pouco da realidade das ruas do centro de São Paulo, por sua ligação com as Oblatas e seu apoio aos catadores como vereadora, também é verdade que parte desta realidade invadia cotidianamente os órgãos municipais – como também acontecia nas gestões anteriores – sob a forma de sucessivas reclamações, queixas e pedidos. O plantão da Secretaria do Bem-Estar Social da Região da Sé recebia diariamente um enorme número de demandas e pessoas com necessidades das mais variadas. Também, a prefeitura recebia permanentemente ligações telefônicas, cartas, ofícios e inúmeras solicitações com o objetivo de “remover as pessoas das ruas” (Vieira, Bezerra & Rosa, 1992:134). No entanto, a solução não era fácil. A não ser pelo próprio conhecimento dos atores ligados à Comunidade dos Sofredores de Rua, se sabia muito pouco sobre quem eram estas pessoas que viviam nas ruas. Não se sabia quantas pessoas eram, de onde vinham, o que faziam, por que estavam lá e, o mais importante de tudo, não se sabia o que se deveria fazer com toda essa gente. As respostas políticas e as práticas institucionais existentes não eram consideradas mais eficazes no tratamento deste público tão singular. A simples recolha das ruas para outro lugar (para a prisão, para a periferia ou para outra cidade) também já colocava dificuldades para a polícia visto o número de pessoas que vivia nas ruas. Agora a polícia começava já a não “botar todo mundo para fora” e simplesmente ordenava “circulando!” Além d isso, a resposta imediata e moralizante “vai trabalhar” se mostrava falaciosa já que o desemprego apresentava-se no período como fato intransponível. Impunha-se, então, a necessidade de saber mais sobre este universo e estabelecer estratégias institucionais adequadas para lidar com este público. Na época, a então supervisora regional da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social, Cleisa Maffei Rosa, organizou um Fórum Coordenador dos Trabalhos com a População de Rua que passou a se reunir periodicamente no interior da Secretaria. A proposta, como ela mesma diz, era “trazer para dentro do Estado aquilo que as organizações de base já tinham vivido”. E não só as Oblatas foram chamadas para participar deste Fórum, mas também outros atores, religiosos, militantes e profissionais ligados a este campo. Assim, o círculo de diálogo em torno do tema foi se ampliando e 19 se complexificando. Nesses intercâmbios, foi se tecendo uma linguagem capaz de articular uma rede de significados conectando gestores públicos, organizações sociais, práticas religiosas e experiências de rua. E no interior deste Fórum a categoria “população de rua” começa a ser manuseada pelos operadores políticos, uma categoria que até então era apenas utilizada esporadicamente pelas Oblatas. Na busca por se instaurar serviços especializados para a população de rua, a prefeitura passa a procurar organizações para fazer convênios. E a primeira organização conveniada foi a Comunidade São Martinho de Lima, localizada na Mooca e cujo principal nome era o do Padre Júlio Lancelotti, antigo colaborador da OAF e colega de Luiza Erundina. Começa aí a primeira Casa de Convivência conveniada pela prefeitura, um serviço público que tinha como fundamento justamente o Centro Comunitário da Baixada do Glicério criado pelos participantes da Comunidade dos Sofredores de Rua. A partir de então, não só o Centro Comunitário do Glicério como outras práticas adotadas pelas Oblatas tornam-se as principais referências para a intervenção estatal nesta realidade12. Contudo, as próprias Oblatas da OAF, que já haviam passado por um processo de desinstitucionalização, não desejavam fazer convênio com a prefeitura e só depois de muita conversa e “idas e vindas” é que o aceitaram13. Nesta gestão, também outros convênios são efetuados e surgem novas organizações, como o Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados (CDCM), responsável pela publicação d‟O Trecheiro14. Além disso, são feitos convênios com organizações de outras denominações religiosas como a Associação Evangélica Beneficente (AEB), que também abre uma casa de convivência, a Porto 12 A gente começou a reunir as pessoas que trabalhavam com a rua. Fizemos uma reunião em que eu chamei todo mundo que trabalhava com a rua, nós tínhamos que fazer convênios. Estávamos procurando organizações, indo atrás dos locais e das pessoas. Porque nós não entendíamos nada disso, e pela história da OAF, as Casas de Convivência são aquelas que mais corresponderiam ao trabalho, nós chegamos a essaconclusão, foi uma série de reuniões que a gente marcou com quem entendia disso na região. Eu falo isso porque nós não achávamos que os albergues deveriam ser expandidos. (Cleisa Maffei Rosa) 13 A explicação da recusa é feita por Irmã Regina, integrante da OAF. Nós não tínhamos convênio com a prefeitura, trabalhávamos por conta, não tínhamos nenhuma ligação institucional e demorou muito pra gente aceitar. A gente não queria se submeter a ninguém, nem ao bispo nem ao prefeito. A gente sempre trabalhou com muita autonomia e não queríamos mudar isso. (Regina Maria Manoel) 14 Logo no primeiro número do Jornal O Trecheiro, os objetivos do CDCM são anunciados: “1º Estar presente nas situações de conflitos, transformando-se em Notícia-denúncia e anúncio das realidades vividas pelo povo marginalizado, confrontando com a ideologia do poder normalmente veiculada pelos grandes meios de comunicação. 2º Ouvir, ver e sentir a realidade vivida por esta população, transformá -la em notícia, e promover sua veiculação nos meios de comunicação já existentes. 3º Propiciar um maior dinamis mo e integração entre os movimentos que trabalham com os marginalizados. 4º Fazer a documentação visual, auditiva e escrita dos momentos mais importantes do dia a dia vividos entre o Povo da Rua e nos diversos movimentos marginalizados” (Jorna l O Trecheiro, Agosto de 1991). Mais informações sobre O Trecheiro consultar www.rederua.org.br http://www.rederua.org.br/ 20 Seguro. A acolhida do frio, que as Oblatas praticavam no período de inverno, também se transforma numa ação política de responsabilidade da prefeitura. Em maio de 1991 é efetuado o primeiro Dia de Luta da População de Rua, manifestação que vai até a Câmara Municipal. É entregue uma carta aberta, exigindo do poder público direitos básicos para a “população de rua”, como moradias coletivas, atendimento médico sem discriminação, alojamento durante o inverno, tratamento digno e sem violência policial (Domingues Jr., 2003). Num movimento crescente, a questão vai se articulando cada vez mais em torno de demandas setoriais e em prol de políticas mais focais. Com o tempo, a Missão, que ocorria desde o final da década de setenta, deixa de existir e o Dia de Luta ganha força e se consolida enquanto evento especial de reivindicação da população de rua no mês de maio. Com o intuito de apresentar um quadro diagnóstico orientador das práticas políticas em andamento, a Prefeitura Municipal de São Paulo encomenda a primeira pesquisa sistemática e quantitativa efetuada no Brasil sobre a recém nomeada “população de rua”, contingente urbano que sequer figurava nos levantamentos nacionais do Censo. Participam desta pesquisa nada mais do que a quase totalidade das organizações sociais que, então, trabalhavam ou começavam a trabalhar com o tema em São Paulo. Elaborada no interior do Fórum Coordenador dos Trabalhos, este estudo além de refletir em si mesmo um certo retrato deste campo de relações específicas, é um acontecimento discursivo que produz um importante deslocamento nos antigos modos de apreciação do fenômeno. O próprio título do livro, quando publicado em 1992, explicita a intenção de se definir, por fim, a questão e os termos do debate: População de Rua: quem é, como vive, como é vista. Ao determinar a amplitude numérica desta população, a pesquisa redefine também a escala das práticas e políticas que deveriam ser implementadas. De uma estimativa inicial extremamente vaga, que variava de cinco mil a cem mil pessoas nas ruas, passa-se agora para uma “realidade mensurável” de 3.392 pessoas nas ruas do Centro de São Paulo. Outra importante transformação que esta obra opera no debate passa pela delimitação mais precisa do tema. A pesquisa mostra que a maioria desta população é constituída por homens que já estão há algum tempo em São Paulo: ao contrário do que se pensava, não são migrantes recém-chegados. Mostra, também, que esta população sem residência fixa possui uma trajetória de trabalho, apesar de ser uma trajetória profissional segmentada e precária, e que, além disso, muitos deles desenvolvem “bicos” e outras atividades mais pontuais nas ruas da cidade. 21 Estes sujeitos passam então a serem reconhecidos, pelo próprio poder público, como trabalhadores alijados de seus direitos, uma nova racionalidade governamental que se instaura, se contrapõem e passa a conviver com a tradicional e corriqueira acusação moral de “vagabundos”, “preguiçosos” ou “gente que não que r trabalhar”. A rua como espaço de existência passa, então, a ser apresentada publicamente como uma condição forçada, e não como uma escolha voluntarista de supostos sujeitos desajustados. Assim, a explicação do fenômeno passa a se situar na desigual estrutura social e no competitivo mercado de trabalho, que seleciona os mais aptos, descartando aqueles que não se enquadram (Vieira, Bezerra & Rosa, 1994). O antigo mendigo começa a ser visto como um trabalhador irregular e sem um ganho bem definido que, devido a múltiplas determinações de ordem econômica e social, faz da rua seu lugar de abrigo. E nesta virada percebe-se que a causalidade da situação de rua abandona o sujeito e desloca-se para a estrutura que o coage. Nessa obra, assim como nos discursos das Oblatas, a “rua” é o elemento de singularização destas pessoas, o signo diacrítico e o principal eixo articulador da enorme heterogeneidade de vidas tidas como “de rua”. Contudo, o grau de aproximação e distância com a rua, é neste estudo, interpretado como o principal critério de estratificação no conjunto desta população, de modo que são identificadas três situações diferentes em relação à permanência na rua: ficar, estar e ser da rua. Cada uma destas situações corresponderia especificamente a um tipo de vínculo circunstancial, que iriam de um vínculo recente ao permanente com a rua. Estas três modalidades de relacionamento com a rua estariam dispostas num mesmo continuum, “tendo como referência o tempo de rua; à medida que aumenta o tempo, se torna estável a condição de morador” (Vieira, Bezerra & Rosa, 1994:94). Não é casa ou sua ausência, portanto, que passa a balizar a singularidade desta categoria populacional, mas sim o vínculo com a rua. Em junho de 1992 é realizado o Primeiro Seminário Nacional sobre População de Rua. Deste seminário participam vários pesquisadores, professores universitários, autoridades públicas, educadores e assistentes sociais, além de outras pessoas diretamente envolvidas com o tema. O seminário teve como proposta discutir e dar mais visibilidade à problemática através do cruzamento de experiências nacionais e internacionais, como atestou a presença de pesquisadores e profissionais canadenses. Este seminário também é publicado em forma de livro, três anos depois, sob o título de População de Rua: Brasil e Canadá (Rosa, 1995). 22 Com o governo de Erundina assistimos a uma institucionalização da população de rua como problema público. E a condição de possibilidade para isso foi a própria inserção institucional dos personagens que atuavam neste campo de ação. Estes atores começaram a participar da construção de políticas públicas, estabeleceram convênios com a prefeitura e assumiram a responsabilidade pela coordenação e gestão de serviços que, anos antes, eram reivindicados na forma de d ireitos sociais. Ao mesmo tempo em que outras organizações não-governamentais entram no jogo político e se começa a estruturar toda uma arena de interlocuções e mediações institucionais, a Organização do Auxílio Fraterno, principal matriz neste campo, deixa de ser a única e principal referência, cedendo terreno para outros atores e organizações, ainda que boa parte destes esteja, de uma modo ou outro, vinculados à OAF. A implicação direta destes personagens no governo e na administração dos problemas públicos fez com que o diagrama de negociaçõese resoluções existentes em torno da questão se tornasse mais complexo ainda. No entanto, o acesso direto ao Estado foi o que lhes ofereceu caixa de ressonância às demandas e reivindicações, fazendo com que o foco de suas lutas e discursos alcançasse uma esfera mais ampla de interlocutores. Assim, o problema da gestão da população de rua entrou definitivamente no domínio das práticas e reflexões governamentais. Daí, também, a publicização do tema, sua ampliação e amplificação. Os fóruns, debates, pesquisas, seminários e livros publicados produziram uma reorganização na família de significados que até então caracterizavam o fenômeno. Noções como “mendigo” e “indigente” começam a ser mais fortemente rejeitadas e mal- vistas, pelo menos na ordem dos discursos públicos em São Paulo. Em lugar de caracterizações pejorativas e morais, aparece uma nova forma de entendimento e nomeação do tema, aparentemente mais neutra e científica, também menos religiosa e cristã. Anunciada por uma linguagem autorizada capaz de qualificar mais precisamente a questão de maneira a torná- la compreensível e reconhecível num espaço social mais amplo, esta realidade, antes institucionalmente invisível, inumerável e anônima, ganha visibilidade, número e nome próprio: população de rua. Itinerário de uma lei A alteração do poder municipal, em 1993, muda o jogo de relações que havia começado a se consolidar e estruturar em torno da questão. O novo prefeito, Paulo Maluf, opositor político-partidário da gestão anterior de Erundina, trata os atores 23 diretamente ligados ao PT como seus próprios adversários e parte destes atores também o tratam assim. Ao mesmo tempo em que alguns convênios de atendimento à população de rua são rompidos ou têm suas verbas reduzidas, na esteira da municipalização dos serviços da assistência social, o campo do terceiro setor se multiplica e se amplia. Aparecem, então, outras organizações querendo convênios e em todas essas negociações, não só a filiação política, mas também a “questão financeira” e o “barateamento dos serviços” colocam-se como elementos de peso na seleção e na feitura das parceiras com as agências públicas. Também é na virada para os anos noventa que a imagem de Padre Júlio Lancelotti vai se projetando na cena paulistana como um agente ligado aos “interesses da população de rua”. Com o título de “Vigário do Povo da Rua”, é um dos responsáveis pela Pastoral da Rua e também pela Pastoral do Menor. A primeira destas atribuições só foi criada em meados da década de noventa, já a segunda foi elaborada no começo da década de oitenta15. Utilizando-se e reforçando esta posição de destaque, Padre Júlio colocou-se, muitas vezes, na frente dos embates políticos que se sucederam após a gestão Erundina, articulando e mobilizando entidades que trabalham com a questão16. Com a nova prefeitura, o antigo Fórum Coordenador dos Trabalhos, que até então era articulado no interior da Secretaria do Bem-Estar Social, sofre um deslocamento de posição e de nomeação. Apesar das reuniões entre as organizações continuarem a acontecer, elas não mais recebem o apoio do Estado. Também seu nome é alterado para Fórum das Organizações que Trabalham com a População de Rua, nome este que permanece até os dias de hoje. Contudo, este Fórum permaneceu contando com a presença de algumas autoridades públicas, tais como a então vereadora Aldaíza 15 A criação das primeiras Pastorais acompanhou o movimento de reforma da Igreja Católica na América Latina e foi definida na década de setenta. Contudo, à época, restringiam-se a quatro prioridades de ação: Pastoral do Mundo do Trabalho, Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, Pastoral da Periferia e Pastoral das Comunidades Eclesiais de Base (Singer; Brant, 1983). Só posteriormente é que foram criadas outras Pastorais pela Arquidiocese de São Paulo. 16 Padre Júlio Lancelotti até hoje vive, trabalha e atua nos bairros do Brás, da Mooca e do Belém, sendo que neste último é responsável por uma paróquia. Acompanha as atividades desenvolvidas pelas Oblatas desde a década de oitenta, quando conheceu Nenuca e quando, também, desenvolveu atividades no DAIS (Departamento de Amparo e Integração Social). Seu papel como “porta -voz” dos adultos e das crianças de rua, ainda que sempre promovesse fortes opositores e inimigos, foi publicamente abalado em 2007. Tendo denunciado à polícia dois jovens (que passaram pela FEBEM e pela Pastoral do Menor) como responsáveis por extorsão do qual era vítima sob ameaça de acusação de pedo filia , o caso, amplamente noticiado pela míd ia, gerou enormes controvérsias e mobilizou inúmeros discursos sobre o Padre. Ainda que os jovens tenham sido julgados e condenados pelo crime, a imagem de Padre Júlio como figura pública e porta voz dos direitos humanos, tornou-se alvo de fortes críticas por parte da grande imprensa. Ver, por exemplo, a cobertura ofensiva dada pela revista Veja a respeito do caso (www.veja.com). http://www.veja.com/ 24 Sposati. É neste Fórum que se esboça o primeiro projeto de Lei de Atenção à População de Rua, uma lei que só se apresentou como uma necessidade real com a saída da prefeita “aliada” e as dificuldades colocadas pela nova gestão 17. Nos encontros do Fórum, entre trabalhadores sociais, agentes religiosos, políticos e moradores de rua, a proposta era construir uma Lei que garantisse a defesa dos direitos mínimos a esta população, bem como regulasse e tornasse obrigatória a ação da prefeitura neste campo, com um orçamento definido, objetivos específicos e formas de trabalho e intervenção estabelecidas. Entretanto, esta lei, e sua regulamentação, atravessam uma longa e intrincada trajetória, passando por alterações do poder público municipal, bem como alterações do próprio poder eclesiástico. O projeto da lei foi aprovado na Câmara Municipal num acordo. O Maluf era o prefeito na época e vetou a lei. Mas num arranjo da Câmara, os vereadores resolveram derrubar os vetos (...) Aí fomos todos para Câmara. Manifestação, gente, o Povo da Rua e tal. Claro que o presidente da Câmara promulgou a lei. Mas quando ele promulgou a lei, já era passagem para o governo Pitta, que argüiu a le i por “inconstitucionalidade por vício de iniciativa”. A Câmara não poderia propor uma lei que gere gastos para o Executivo, essa figura se chama vício de iniciativa . (Padre Júlio Lancelotti) Posteriormente, inicia-se toda uma série de acusações de corrupção contra o prefeito Celso Pitta e, neste processo, começa-se a anunciar a possibilidade de seu impeachment. Após uma sucessiva cadeia de “acasos”, Padre Julio e Dom Paulo, ainda Cardeal Arcebispo Metropolitano, foram expostos publicamente no jornal como contrários ao processo de impeachment do então prefeito. Entretanto, foi justamente este “mal-entendido” que permitiu um maior compromisso do prefeito perseguido: E a Folha de São Paulo editou em duas páginas, em preto e branco, quem era contra e a favor do impeachment. Eu não sei por que a Folha fez aquilo e me puseram contra. Colocaram que eu era contra o impeachment. E o Pitta me telefonou, para agradecer. Ele estava muito agradecido com Dom Paulo, muito agradecido comigo. Aí o Pitta foi para uma reunião na casa de Dom Paulo, que me chamou para o encontro (...) Eu conversei com o Pitta sobre a lei e aquela coisa toda. E neste ínterim Dom Paulo já estava saindo de cena também e já tinha entrado o Dom Cláudio (novo Cardeal). Mas 17 A gente estava lutando para os projetos continuarem. A Erundina foi muito boa, mas não fechou nenhuma lei. Não tinha lei. Os projetos não tinham um amparo legal, assim, desde o legislativo. Porque se tivesse amparo legal, poderíamos pedir e se o prefeito Maluf quisesse encerrar os convênios não conseguiria. (...)E sendo das organizações que trabalham com a população de rua, a gente tinha um inimigo comum e fomos fortalecendo, se conhecendo. Como tinha um inimigo comum, a gente não brigava muito entre si. Porque a gente precisava um do outro. (Pastora Mabel, integrante da Associação Evangélica Beneficente) 25 ainda o Pitta estava com toda aquela história de que nós tínhamos defendido ele na Folha (...). No mês de maio de 1998, é efetuado o oitavo Dia de Luta da População de Rua, do qual participam o recém criado Vicariato do Povo da Rua encabeçado pelo próprio Padre Júlio Lancelotti, a Coopamare, as organizações que trabalham com a população de rua, políticos, usuários de equipamentos e moradores de rua. Nesta manifestação, pela primeira vez após a gestão Erundina, esses atores são recebidos pelo prefeito. Como resultado deste encontro com Pitta, além dele “desistir” da ação de inconstitucionalidade da Lei e abrir a primeira frente de trabalho para esta população, cria novas vagas em albergues, ampliando mais o conjunto dos serviços voltados a este público. Ele desistiu da ação de inconstitucionalidade, mas precisava a justiça homologar e aí a justiça homologou, só que até a justiça homologar, demorou e o Pitta não regulamentou a lei. Só que aí já estava na campanha eleitoral (para prefeitura) e nós convidamos a Luíza Erundina e a Marta Suplicy – não convidamos o Maluf porque ele já tinha vetado a lei – para que quem fosse eleito assumisse como primeiro ato, regulamentar a lei. A Marta ganhou e, realmente, o primeiro ato da Marta foi esse (...) E com o Cardeal presente, Dom Cláudio, ela regulamentou a lei. Agora, isso se você for ver foram três administrações até chegar na Marta.(Padre Júlio) O decreto assinado por Marta Suplicy foi o que possibilitou a regulamentação da Lei n° 12.316/97, um documento público que nomeou e codificou jurid icamente a “população de rua” como uma categoria social dotada de direitos. Contudo, a regulamentação desta lei não implicou num término dos conflitos entre organizações ligadas à população de rua. Implicou sim, numa redefinição dos embates, sendo que permanece a luta para o cumprimento da lei, uma peleja política que se arrasta até os dias de hoje. O itinerário para a regulamentação desta lei acompanhou as reivindicações das entidades que, no decorrer da década de noventa, tiveram como efeito um gradativo aumento dos serviços voltados à população de rua, em especial dos albergues. A Lei, no entanto, não prevê unicamente a codificação das formas e das condições de atendimento a este público, ela também postula a publicação do censo da população de rua no Diário Oficial. O gradual fortalecimento da rede de instituições que envolve o morador de rua na década de noventa, resultado direto dos conflitos entre poderes públicos e entidades de atendimento, acompanhou também os aumento dos discursos técnicos, das pesquisas e das contagens sobre esta população. Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas 26 Econômicas (FIPE, 2000, 2003), responsável pelos dois últimos levantamentos da população de rua, o número deste contingente – considerado nestas pesquisas basicamente como usuários de equipamentos e pessoas que pernoitam nas ruas – em 1994 eram 4.549, em 1996 eram 5.334, em 1998 foram contadas 6.453 pessoas, em 2000 eram 8.706 e em 2003 o número saltou para 10.394. Atualmente estima-se que este número alcance a casa dos 15.000 e, ainda segundo a FIPE, a maior parte desta população são homens que vivem respectivamente nos distritos da Sé, República, Brás e Liberdade18. As pesquisas e o aumento numérico que revelaram, consolidaram um discurso sobre a situação de rua como um fenômeno coletivo e de massa. Consolidaram, também, a população de rua como objeto estatístico na cidade, um tipo de conhecimento que, como nos lembra Foucault (2008), remete diretamente ao Estado e à razão de Estado. Assim, na virada para o novo milênio a miséria presente nas ruas assume feições de um problema público, permanente e estrutural, e os dispositivos governamentais e não-governamentais mobilizados para solucioná- lo operam igualmente em grande escala, através de um atendimento institucional mass ificado cuja principal finalidade é a tutela e a gestão da categoria. Movimento da rua Anderson Lopes nasceu em São Paulo no ano de 1975. Filho de migrantes, foi registrado apenas por sua mãe mato-grossense, que logo o abandonou com três meses. Vive a infância num orfanato do interior onde permanece até seus quinze anos. Sua experiência como alvo de caridade começa desde pequeno nesta instituição, “depósito de crianças”, como ele mesmo diz. Em 1990 vai para São Paulo encaminhado pelo orfanato, trabalhar e estudar. Adquire seu primeiro emprego carregando bagagens numa importante rede hoteleira. Ali mesmo tem sua primeira “queda”. É “passado para trás”, perde seu emprego e também sua vaga na república que morava 19. “Fui para o olho da 18 Foco de intervenção e realidade a ser admin istrada, a população de rua ganharia tratamento estatístico acompanhado por uma cuidadosa discussão metodológica sobre a própria categoria. No entanto, as metodologias empregadas nas contagens efetuadas sobre a população de rua em São Paulo variaram significativamente. Apresento os dados acima apenas com a intenção de expor e ilustrar a evolução numérica da problemática. Para maiores informações sobre as metodologias de pesquisa utilizadas nas contagens sobre a população de rua, consultar Schor & Artes, 2001, também FIPE, 2000 e 2003. 19 Eu tinha emprestado para o cara do trabalho (uma fita de vídeo) e ele não me devolveu. Ele vendeu para uma outra pessoa. Ele era malandro e eu não sabia da malandragem dele. E o cara do vídeo ficava ligando para o meu trabalho. E ficava ligando direto. Até que o gerente me chamou e falou: "Não dá 27 rua”. Começa a dormir em praças, catar latinhas, circular entre “bocas de rango”, perambular entre albergues e outras instituições. Com dezoito anos consegue seu segundo emprego, por indicação de uma conhecida do orfanato, e começa a trabalhar como office-boy. Também consegue uma vaga numa pensão, mas não gosta e nem se dá muito bem com o ambiente. Volta a dormir na rua. Quando o chefe “descobria que eu estava dormindo na rua mesmo trabalhando – é que eu chegava fedendo umas vezes –, ele vinha e me levava num centro espírita, para tomar passe”. Até que seu chefe arranja um emprego como cozinheiro de um restaurante. “Só exploração”, como ele diz, “quando pagava, pagava mal”. Consegue então outro trabalho num motel de estrada e, no começo de 1995, quando volta para São Paulo “cheio de dinheiro no bolso”, “cai” de novo20. Passa a freqüentar as instituições que já existiam na cidade (CETREN, Lígia Jardim e Albergue Pedroso) e inclusive se vê numa situação complicada, junto com um amigo, quando recebem uma proposta de emprego para trabalhar num parque de diversões da Zona Sul. Chegando lá, descobre que o salário era ínfimo, o “lugar era uma roubada, a gente sempre ficava devendo dinheiro para a mercearia que tinha lá”. Além disso, todos os seguranças andavam armados e não se podia sair do parque enquanto não se pagasse todas as dívidas. “Era trabalho escravo, por isso que eles iam pegar morador de rua lá no albergue para trabalhar”. Entre esta e outras, Anderson encontra na rua um papel, convidando pessoas para passar o dia de Páscoa debaixo do viaduto do Glicério. Nesta época Anderson estava dormindo debaixo do Viaduto da Avenida Rio Branco, na Barra Funda: Aí eu peguei minhas latinhas e escondi no buraco lá da Barra Funda e fui para o Glicério. Cheguei lá, estava a Ivete, a Regina, Padre Júlio, estava todo mundo ali. Só que eu não conhecia ninguém. Falaram: “entra, seja bem vindo”. Tinha comida, música. Comi, cantei, participei.
Compartilhar