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i n a r d ~ a Semíramis Guimarães O gênero Giardia inclui flagelados parasitos do intesti- no delgado de mamíferos, aves, répteis e anfíbios, tendo sido, possivelmente, o primeiro protozoário intestinal huma- no a ser conhecido. A primeira descrição do trofozoíto tem sido atribuída a Anton van Leeuwenhoek (í681), que notou "animalúnculos móveis" em suas próprias fezes, porém foi Larnbl, em 1859, quem o descreveu mais detalhadamente. O gênero foi criado por Kunstler (1882) ao observar um flagelado presente no intestino de girinos de anfíbios muros. Giardia e giardíase têm sido extensivamente estu- dadas e, apesar dos esforços, várias questões fundamentais ainda continuam sem respostas. A própria taxonomia ainda C controversa, e a determinação das espécies de Giardia tem sido feita considerando-se o hospedeiro de origem e características morfológicas. Segundo alguns autores, con- siderar o hospedeiro de origem não constitui um critério vá- lido, uma vez que, pela análise de DNA, espécies de Giardia de diferentes hospedeiros apresentam-se idênticas, enquanto aquelas de um mesmo hospedeiro podem ser marcantemente diferentes. Muitos autores utilizando crjté- rios morfológicos, principalmente o aspecto do corpo media- no, propuseram a existência de pelo menos três espécies de Giardia: Giardia duodenalis que infecta vários mamíferos, inclusive humanos, aves e répteis; Giardia muris que infecta roedores, aves e répteis e Giardia agilis que infecta anfíbios. A partir de estudos empregando microscopia ele- trônica, duas outras espécies foram propostas: Giardia psittaci e Giardia ardeae, descritas em periquitos e garças azuis, respectivamente. Recentemente, aliando informações obtidas em estudos de microscopia eletrônica e de análise do RNA, foi proposta a existência da espécie Giardia microti, encontrada em roedores conhecidos como rato alrniscarado e camundongo-do-campo. A dificuldade em se determinar precisamente as espécies de Giardia isoladas de diferentes hospedeiros tem sido um fator limitante para o estabelecimento do potencial zoonótico da giardíase e para esclarecer a possibilidade da existência de animais que pos- sam participar como reservatórios de Giardia. As denorni- nações W r d i a lambl ia ,~ Giardia duodenalis e Giardia intestinalis têm sido empregadas como sinonímia, particu- larmente para isolados de origem humana. O desenvolvimen- to do cultivo axênico de Giardia lamblia, isto é, o estabele- cimento e o crescimento do parasito em meios de cultura isen- tos de outros organismos, tem possibilitado estudos mais aprofundados dessa espécie, reconhecida, atualmente, como um dos principais parasitos humanos, principalmente, nos países em desenvolvimento. Nessas áreas, a giardíase é uma das causas mais comuns de diarréia entre crianças, que em conseqüência da infecção, muitas vezes, apresentam proble- mas de má nutrição e retardo no desenvolvimento. Além dis- so, nos países desenvolvidos, Giardia é o parasito intestinal mais comumente encontrado nos humanos. MORFOLOGIA Giardia apresenta duas formas evolutivas: o trofozoíto e o cisto. O trofozoíto tem formato de pêra, com simetria bi- lateral e mede 20pm de comprimento por 10pm de largura. A face dorsal é lisa e convexa, enquanto a face ventral é côn- cava, apresentando uma estrutura semelhante a uma vento- sa, que é conhecida por várias denominações: disco ventral, adesivo ou suctorial. Abaixo do disco, ainda na parte ven- tral, é observada a presença de uma ou duas formações pa- ralelas, em forma de vírgula, conhecidas como corpos medi- anos. No interior do trofozoíto, e localizados na sua parte frontal, são encontrados dois núcleos. O trofozoíto possui ainda quatro pares de flagelos que se originam de blefaroplastos ou corpos basais situados nos pólos anteri- ores dos dois núcleos, a saber: um par de flagelos anterio- res, um par de flagelos ventrais, um par de tlagelos posteri- ores e um par de flagelos caudais. O cisto é oval ou elipsóide, medindo cerca de 12pm de comprimento por 8pm de largura. O cisto, quando corado, pode mostrar uma deli- cada membrana destacada do citoplasma. No seu interior en- contram-se dois ou quatro núcleos, um número variável de fibrilas (axonemas de flagelos) e os corpos escuros com for- ma de meia-lua e situados no pólo oposto aos núcleos. Es- tes últimos, geralmente, são confundidos pelos autores com os corpos medianos. A rnicroscopia eletrônica trouxe novas informações sobre as estruturas e a possível função das várias organelas do trofozoíto e do cisto. O disco ventral é Capitulo 14 121 uma estrutura complexa formada de rnicrotúbulos e microfi- lamentos. Os numerosos microtúbulos se dispõem paralela- mente e em espiral, formando uma espécie de prato adjacen- te à membrana plasmática ventral do trofozoíto. Em volta do disco adesivo, observa-se um fino lábio citoplasmático, de- nominado franja ventrolateral. O disco tem sido considera- do uma importante estrutura para a adesão do parasito à mucosa, por meio da combinação de forças mecânicas e hidrodinâmicas. Uma das hipóteses que explicava a adesão dos trofozoítos sobre as microvilosidades da mucosa era de que os batimentos dos flagelos ventrais seriam responsáveis pelo aparecimento de uma força de pressão negativa abai- xo do disco, provocando sua adesão, que seria auxiliada pela franja ventrolateral. A observação da presença de pro- teínas contráteis no disco ventral sugeriu outra hipótese al- ternativa ou auxiliar para explicar tal adesão: essas proteínas estariam envolvidas na modulação da forma e do diâmetro do disco que, através de movimentos de contração e des- contração, permitiria a adesão e o desprendimento dos trofozoítos na mucosa. O corpo mediano contêm microtúbu- 10s e proteínas contráteis, e sua função não está bem esta- belecida. Abaixo da membrana citoplasmática do trofozoíto existem numerosos vacúolos que, acredita-se, tenham papel na pinocitose de partículas alimentares. No citoplasma do trofozoito observamos, ainda, a presença de retículo endo- plasmático, ribossomas, aparelho de Golgi e vacúolos de glicogênio. Não se observa, entretanto, mitocôndna. No cis- to, todas as estruturas descritas são vistas, embora de for- ma desorganizada. As estruturas em forma de meia-lua e es- Fig. 14.1 - Giardia larnblia. A) cisto tetranucleado; 6) trofozoíto (face ven- tral); C) trofozoíto (face lateral). curas, observadas em microscopia óptica e confundidas com o corpo mediano, provavelmente, são primórdios do disco suctorial (Figs. 14.1 e 14.2). G. lamblia é um parasito monoxeno de ciclo biológico dueto. A via normal de infecção do homem é a ingestão de cistos. Embora tenha sido demonstrado, experimentalmente, que infecções em animais se iniciem com trofozoítos, não há evidências de que este seja um importante modo de trans- missão para o homem. Em voluntários humanos, verificou- se que um pequeno número de cistos (de 10 a 100) é sufi- ciente para produzir infecção. Após a ingestão do cisto, o desencistamento é iniciado no meio ácido do estômago e completado no duodeno e jejuno, onde ocorre a colonização do intestino delgado pelos trofozoítos. Os trofozoítos se multiplicam por divisão binária longitudinal: após a nucleo- tomia (divisão nuclear) e duplicação das organelas, ocorre a plasmotomia (divisão do citoplasma), resultando assim dois trofozoítos binucleados. O ciclo se completa pelo encistamen- to do parasito e sua eliminação para o meio exterior. Tal pro- cesso pode se iniciar no baixo íleo, mas o ceco é considera- do o principal sítio de encistamento. Não se sabe se os estí- mulos que conduzem ao encistamento ocorrem dentro ou fora do parasito. Entre as hipóteses sugeridas, tem-se a influência do pH intestinal, o estimulo de sais biliares e o destacamen- to do trofozoíto da mucosa. Este último parece ser o gatilho que provocaria tal mudança e tem sido sugerido que a respos- ta imune local sejaresponsável pelo destacamento do trofozoíto e seu conseqüente encistamento. Ao redor do trofomíto é secretada pelo parasito uma membrana cística re- sistente, que tem quitina na sua composição. Dentro do cis- to ocorre nucleotomia, podendo ele apresentar-se então com quatro núcleos. Atualmente, os processos de desencista- mento e encistamento podem ser induzidos in vitro, permi- tindo a obtenção do ciclo completo do parasito em labora- tório. Não se têm informações se todos os cistos são infec- tantes e se há necessidade de algum tempo no meio exteri- or para se tomarem infectantes. Os cistos são resistentes e, em condições favoráveis de temperatura e umidade, podem sobreviver, pelo menos, dois meses no meio ambiente Quan- do o trânsito intestinal está acelerado, é possivel encontrar trofozoítos nas fezes. Como já dissemos, a via normal de infecção do homem é a ingestão de cistos maduros, que podem ser transmitidos por um dos seguintes mecanismos: ingestão de águas su- perficiais sem tratamento ou deficientemente tratadas (ape- nas cloro); alimentos contaminados (verduras cruas e frutas mal lavadas); esses alimentos também podem ser contami- nados por cistos veiculados por moscas e baratas; de pes- soa a pessoa, por meio das mãos contaminadas, em locais de aglomeração humana (creches, orfanatos etc.); de pessoa a pessoa entre membros de uma família ou em creches, quan- do se tem algum indivíduo infectado; através de contatos homossexuais e por contato com animais domésticos infec- tados com Giardia de morfologia semelhante à humana. Este último mecanismo ainda é discutível, apesar de a OMS considerar a giardíase uma zoonose. Capitulo 14 Flg. 14.2 - A) Face ventral do trofozoíto de Giardia lamblia (esquema idealizado visto por microscopia de varredura). DA, disco adesivo; FVL, franja ventrolateral; fa, par de flagelos anteriores; fp, flagelos posteriores; fv, flagelos ventrais; fc, flagelos caudais. 6) Ultra-estrutura do trofozoíto de Giardia lamblia (esquemática) aderida a mucosa intestinal. DA, disco adesivo; FVL, franja ventrolateral; N, núcleos; vacúolos; af, axonemas de flagelos; mvi, microvilo- sidades intestinais. Observações epidemiológicas, clínicas e experimentais têm demonstrado evidências de desenvolvimento de imuni- dade protetora na giardíase. Contudo, relativamente pouco ainda é sabido sobre como o hospedeiro responde à infec- ção por Giardia e como o parasita sobrevive aos mecanis- mos de defesa do hospedeiro. Apesar de uma imunidade protetora ainda não ter sido demonstrada de forma conclu- siva nas infecções humanas por Giardia, o desenvolvimen- to de resposta imune tem sido sugerido a partir de evidên- cias, como: (1) a natureza autolimitante da infecção; (2) a detecção de anticorpos específicos anti-Giardia nos soros de indivíduos infectados; (3) a participação de monócitos citotóxicos na modulação da resposta imune; (4) a maior suscetibilidade de indivíduos imunocomprometidos à infec- ção, principalmente os que apresentam hipogamaglobuline- mia; (5) a menor suscetibilidade dos indivíduos de áreas endêmicas à infecção, quando comparados com os visitan- tes; (6) a ocorrência de infecção crônica em modelos animais atírnicos ou tratados com drogas que deprimem a resposta humoral. Anticorpos IgG, IgM e IgA anti-Giardia têm sido detectados no soro de indivíduos com giardíase, em diferen- tes regiões do mundo. Além dos anticorpos circulantes, es- tudos têm relacionado a participação de IgA secretória na imunidade local a nível de mucosa intestinal. A função exa- ta da IgA na resposta imune local ainda não é bem conhe- cida, mas evidências sugerem que este anticorpo diminua a capacidade de adesão dos trofozoítos à superfície das cé- lulas do epitélio intestinal. O aumento da freqüência de giardíase em indivíduos com alterações na imunidade humo- ral, particularmente nas deficiências de IgA e IgG, sugere que estas imunoglobulinas participem da eliminação de Giardia. Somente nos últimos anos, tem sido dada maior atenção à participação dos mecanismos imunes celulares na giardía- se, embora esta resposta tenha sido muito mais estudada na giardíase em camundongos do que na infecção humana. Al- gumas observações em experimentos com modelos animais sugerem a participação de mecanismos T-dependentes: (1) estudos com camundongos atímicos, infectados com Giardia, demonstraram que apenas aqueles capazes de de- senvolver resposta linfoproliferativa, evoluíram para a cura e (2) a ocorrência de aumento na relação de linfócitos T au- xiliares/supressores na lâmina própria do jejuno em camun- dongos durante a fase de cura. Além disso, tem-se obser- vado a capacidade de monócitos, macrófagos e granulóci- tos em participar da destruição de trofozoítos, em reações de citotoxicidade anticorpo-dependentes (ADCC). A defe- sa do organismo se daria, portanto, em dois níveis: após o desencistamento, trofozoítos na luz intestinal tornam-se aderentes ao epitélio e podem invadir a mucosa quando en- contram os macrófagos que são espontaneamente citotóxi- cos para os parasitos. Neste nível, a defesa, que pode ser aumentada pelas linfocinas (produzidas por linfócitos T), é Capítulo 14 123 suficiente para destruir os parasitos na maioria dos indiví- duos. Se os trofozoítos escapam dessa resposta, outras cé- lulas (granulócitos) irão interagir com os trofozoítos, na pre- sença de anticorpo anti-Giardia (IgG). Este mecanismo pa- rece ser muito importante em infecções prolongadas. O desenvolvimento de resposta imune para o controle da infecção por Giardia pode estar associado ao reconhe- cimento de antígenos relevantes do parasita. Desta forma, muitos antígenos têm sido identificados e caracterizados, principalmente, entre as proteínas de superfície dos trofozoítos. O conhecimento desses antígenos tem revela- do diferenças antigênicas entre cepas de Giardia, que po- dem estar relacionadas com a patogenicidade do parasita. SINTOMATOLOGIA A giardíase apresenta um espectro clínico diverso, que varia desde indivíduos assintomáticos até pacientes sinto- máticos que podem apresentar um quadro de diarréia aguda e autolimitante, ou um quadro de diarréia persistente, com evidência de má-absorção e perda de peso, que muitas ve- zes não responde ao tratamento específico, mesmo em in- divíduos imunocompetentes. Aparentemente, essa variabi- lidade é multifatorial, e tem sido atribuída a fatores asso- ciados ao parasito (cepa, número de cistos ingeridos) e ao hospedeiro (resposta imune, estado nutricional, pH do suco gástrico, associação com a microbita intestinal). Em alguns casos há evidências marcantes de que uma deter- minada cepa de Giardia pode apresentar maior potencial de causar doença. A maioria das infecções é assintomática e ocorre tanto em adultos quanto em crianças, que muitas vezes podem eliminar cistos nas fezes por um período de até seis meses (portadores assintomáticos). Entre alguns pacientes que desenvolvem sintomas, a giardíase pode apresentar-se sob forma aguda. Geralmente, em indivídu- os não-imunes, isto é, na primoinfecção, a ingestão de um elevado número de cistos é capaz de provocar diarréia do tipo aquosa, explosiva, de odor fétido, acompanhada de gases com distensão e dores abdominais. Muco e sangue aparecem raramente nas fezes. Essa forma aguda dura pou- cos dias e seus sintomas iniciais podem ser confundidos com aqueles das diarréias dos tipos vira1 e bacteriano. Essa forma é muito comum entre viajantes originários de áreas de baixa endemicidade que visitam áreas endêmicas. Apesar da infecção ser autolimitante na maioria dos indivíduos sadios, 30 a 50% podem desenvolver diarréia crônica acompanha- da de esteatorréia, perda de peso e problemas de má-absor- ção. As principais complicações da giardíase crônica estão associadas à má absorção de gordura e de nutrientes, como vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K), vitamina B,,, ferro, xilose e lactose. Essas deficiênciasnutricionais raramente produzem danos sérios nos adultos, contudo em crianças, podem ter efeitos graves. PATOGENIA Os mecanismos pelos quais a Giardia causa diarréia e má absorção intestinal não são bem conhecidos. Quando se examinam biópsias intestinais de indivíduos infectados atra- vés de microscopia óptica, observa-se que podem ocorrer mudanças na arquitetura da mucosa. Ela pode se apresen- tar completamente normal ou com atrofia parcial ou total das vilosidades. Mesmo que a mucosa se apresente morfologi- camente normal, tem-se detectado lesões nas microvilosida- des das células intestinais, através da microscopia eletrôni- ca. O grau de alteração morfológica da mucosa parece estar relacionado com o grau de disfunção da mucosa, como pode ser verificada pelos testes clínicos de absorção intestinal. O mecanismo pelo qual a mucosa intestinal é lesada não é bem conhecido. Empregando microscopia eletrônica, observa-se que os trofozoítos de Giardia aderidos ao epitélio intesti- nal podem romper e distorcer as microvilosidades do lado que o disco adesivo entra em contato com a membrana da célula. Além disso, há evidências sugerindo que o parasita produz, e possivelmente libera, substâncias citopáticas na luz intestinal. Na verdade, Giardia contém várias proteases, algumas delas capazes de agir sobre as glicoproteínas da superfície das células epiteliais e romper a integridade da membrana. Entretanto, a explicação mais plausível para a al- teração morfológica e funcional do epitélio intestinal é dada pelos processos inflamatórios aí desencadeados pelo para- sito, devido à reação imune do hospedeiro. Tem sido obser- vado, tanto no homem como em animais infectados, um au- mento de linfócitos intra-epiteliais antes mesmo de aparecer alteração das vilosidades. Por outro lado, verifica-se uma correlação entre a intensidade da infiltração linfocitária e a intensidade da má absorção. O parasito entra em contato com macrófagos que ativam os linfócitos T que, por sua vez, ativam os linfócitos B que produzem IgA e IgE. A IgE se liga aos mastócitos, presentes na superfície da mucosa intesti- nal, provocando a degranulação dessas células e a liberação de várias substâncias, entre elas a histamina. Desta forma, é desencadeada uma reação anafilática local (reação de hi- persensibilidade), que provoca edema da mucosa e contra- ção de seus músculos lisos, levando a um aumento da mo- tilidade do intestino, o que poderia explicar o aumento da renovação dos enterócitos. As vilosidades ficam assim re- pletas de células imaturas (deficientes em enzimas) levando a problemas de má absorção e, conseqüentemente, à diar- réia. Por outro lado, os mastócitos também liberam fatores ativadores de eosinófilos e neutrófilos, que agem mais tar- diamente, provocando um aumento dessas células no local da reação, dando origem a uma reação inflamatória local, que pode ocasionar a lesão das células epiteliais. Além dos aspectos associados às alterações morfológi- cas do intestino, outros fatores têm sido aventados para ex- plicar o aparecimento de diarréia e má absorção em alguns in- divíduos, como, por exemplo, o atapetamento da mucosa por um grande numero de trofozoítos impedindo a absorção de alimentos. Mesmo que tal fato ocorresse, como os trofozoítos se localizam mais na base das vilosidades, junto às criptas, ainda permaneceria livre uma área intestinal extensa por onde se daria a absorção. Atualmente, tem-se verificado que as pros- taglandinas podem estar implicadas na gênese de algumas síndromes diarréicas. Durante a infecção por Giardia, os mastócitos por ela ativados também liberam prostaglandinas. Por outro lado, os trofozoítos podem ativar monócitos que também liberam essas substâncias. As prostaglandinas agem diretamente sobre a motilidade intestinal ou através da esti- mulação da adenilciclase da mucosa, provocando o apareci- mento de diarréia. Além disso, existem evidências de que, em algumas situações, a giardíase sintomática possa estar asso- ciada ao crescimento de bactérias aeróbicas elou anaeróbicas na porção proximal do intestino delgado. Capitulo 14 Apesar dos vários estudos desenvolvidos, não há uma única explicação para a diarréia e a má absorção caracterís- ticas nas infecções por Giardia. Na verdade, todo o proces- so parece ser multifatorial, envolvendo fatores associados às alterações da mucosa, bem como fatores do próprio am- biente intestinal. Além disso, são fortes as evidências de que cepas de Giardia geneticamente diferentes possam va- riar quanto à habilidade de produzir mudanças morfológicas no intestino e interferir no transporte de fluidos e eletrólitos. Em crianças de oito meses a 10-12 anos, a sintomatolo- gia mais indicativa de giardíase é diarréia com esteatorréia, imtabilidade, insônia, náuseas e vômitos, perda de apetite (acompanhada ou não de emagrecimento) e dor abdominal. Apesar desses sintomas serem bastante característicos, é conveniente a comprovação por exames laboratoriais. Para confirmar a suspeita clínica, deve-se fazer o exame de fezes nos pacientes para a identificação de cistos ou trofozoítos nas fezes. Os cistos são encontrados nas fezes da maioria dos indivíduos com giardíase, enquanto o encon- tro de trofozoítos é menos frequente, e está, geralmente, as- sociado às infecções sintomáticas. Com isto, a observação do aspecto e consistência das fezes fornece informações sobre a forma evolutiva a ser pesquisada, uma vez que em fezes formadas e fezes diarréicas predominam cistos e trofozoítos, respectivamente. Fezes Formadas Cistos podem ser detectados em preparações a fresco pelo método direto; contudo, os métodos de escolha são os de concentração, principalmente, o método de flutuação pelo sulfato de zinco (método de Faust e cols.). Preparações com cistos podem ser coradas com Tricômio ou com Hema- toxilina Fémca. Fezes Diarréicas Como nas fezes diarréicas encontram-se trofozoítos, re- comenda-se colher o material no laboratório, e examiná-lo imediatamente, ou diluir as fezes em conservador próprio (MIE SAF, formo1 10%), uma vez que os trofozoítos sobre- vivem durante pouco tempo no meio externo (15-20 minu- tos). O exame das fezes pode ser feito pelo método direto e, caso seja necessário, podem ser feitos esfregaços corados pelo método da Hematoxilina Fémca. Um aspecto importante com relação ao diagnóstico da giardíase é o fato de que indivíduos parasitados não eliminam cistos continuadamente. Esta eliminação intermitente de cis- tos nas fezes denomina-se "penodo negativo" e pode durar em média dez dias. Além disso, o padrão de excreção de cis- tos varia de indivíduo para indivíduo, e nos baixos excretores as amostras de fezes podem permanecer negativas por 20 dias consecutivos. Desta forma, o diagnóstico por exame de fezes pode levar a resultados falso-negativos, principalmente, quan- do apenas uma amostra é coletada. Para contornar essas li- mitações, alguns autores têm sugerido o exame de três amos- tras fecais em dias alternados. De acordo com a nossa expe- riência, recomendamos o exame de três amostras com interva- lo de sete dias entre cada uma, conduta que aumenta a positividade da pesquisa de Giardia nas fezes. Em alguns pacientes com diarréia crônica, o exame de várias amostras de fezes mantém-se negativo, apesar da pre- sença de trofozoítos no duodeno. Nesses casos, é necessá- rio o diagnóstico pelo exame do fluido duodenal e biópsia jejunal, métodos muito invasivos e que, normalmente, reque- rem a realização de endoscopia. Atualmente, o método mais fácil para a obtenção do fluido duodenal é o "Entero-Test", que consiste num fio de náilon enrolado dentro de uma cáp- sula gelatinosa, com uma das extremidades livres. A cápsula é ingerida com água, estando o paciente em jejum. Após quatro horas, no mínimo, o fio é retirado pela ponta livre e o conteúdo intestinal (muco aderido ao fio) é examinado mi- croscopicamente. Omuco obtido pode ser examinado a fres- co ou corado com Hematoxilina Fémca. Quando se compa- ram os resultados obtidos pelo exame de fezes com aqueles do exame do fluido, biópsia e "Entero-Test", verifica-se que quando existe a dificuldade em se demonstrar o parasito no exame de fezes, existe também dificuldade para demonstrá- 10 por esses outros métodos. Com o objetivo de simplificar e aumentar a sensibilida- de do diagnóstico da infecção por Giardia, uma variedade de métodos imunológicos tem sido proposta. Isto foi pos- sível devido ao desenvolvimento de culturas axênicas (cul- turas puras) de Giardia, que tem possibilitado a obtenção de antígenos puros. Os métodos imunológicos mais empre- gados são a imunofluorescência indireta e o método ELISA. A detecção de anticorpos anti-Giardia no soro tem apresen- tado problemas relacionados com a ocorrência de falso-po- sitivos e baixas sensibilidade e especificidade. Nessas rea- ções, anticorpos IgG permanecem elevados por um longo período, o que impede a distinção entre infecções passadas e recentes, dificuldando o diagnóstico nas áreas endêmicas. Desta forma, o diagnóstico sorológico pode auxiliar nos le- vantamentos epidemiológicos, contudo não tem demonstra- do sensibilidade e especificidade adequadas para o diag- nóstico individual. A detecção de antígenos nas fezes (copro-antígenos) empregando a técnica de ELISA tem demons- trado resultados satisfatórios. Atualmente, vários dos ensaios desenvolvidos são comercializados e têm demonstrado sensi- bilidade de 85% a 95% e especificidade de 90% a 100%. Mais recentemente, técnicas baseadas no reconhecimen- to do DNA de Giardia, como, por exemplo, PCR (poly- merase chain reaction), estão sendo padronizadas para a detecção deste parasita nas fezes. Essas técnicas são mui- to específicas e foram desenvolvidas, inicialmente, para a detecção de cistos em amostras de água. EPIDEMIOLOGIA A giardíase é encontrada no mundo todo, principalmente entre,crianças de oito meses a 10-12 anos. A alta prevalên- cia observada em crianças pode ser devida à falta de hábi- tos higiênicos nessa idade; quanto ao adulto, parece que uma infecção com esse parasito pode conferir certo grau de resistência às infecções subsequentes. Altas prevalências são encontradas em regiões tropicais e subtropicais e entre pessoas de baixo nível econômico. No nosso país a preva- lência é de 4% a 30%. Alguns aspectos atuais devem ser considerados na epidemiologia dessa parasitose: 1. Esta infecção é frequentemente adquirida pela inges- tão de cisto na água proveniente de rede pública, com de- feitos no sistema de tratamento ou águas superficiais de mi- nas, riachos ou reservatórios de água não-tratada ou insu- ficientemente tratada (só cloração). A disseminação da parasitose pode chegar a níveis epidêmicos, como tem sido relatado nos Estados Unidos. 2. Giardia tem sido reconhecido como um dos agentes etiológicos da "diarréia dos viajantes" que viajam para zo- nas endêmicas. 3. Um dos meios de transmissão recentemente descritos é a atividade sexual entre homossexuais, e que provavel- mente resulta da transmissão fecal-oral. 4. O encontro, em animais, de espécies de Giardia seme- lhantes à G. lamblia e a possibilidade de algumas dessas espécies infectarem experimentalmente o homem e o cão su- gerem a possibilidade da existência de reservatórios de Giardia para o homem, embora o papel desses animais na manutenção da endemia humana ou em casos de epidemi- as precise ser esclarecido. 5. O cisto resiste até dois meses no meio exterior, em boas condições de umidade e temperatura. É resistente ao processo de cloração da água e sobrevive durante muito tempo embaixo das unhas. 6. As crianças defecando no chão (dentro e fora das ha- bitações), aí brincando e levando a mão a boca se infectam com facilidade. 7. A giardíase é uma infecção frequentemente encontra- da em ambientes coletivos: enfermarias, creches, internatos etc., onde o contato direto de pessoa a pessoa é freqiiente e medidas de higiene difíceis de serem implementados. 8. As creches são ambientes que apresentam certas con- dições que favorecem a transmissão de Giardia. Nesses lo- cais, a prevalência da infecção entre crianças com 1-4 anos de idade pode ser de 20% a 60%. Mesmo que muitas des- sas crianças sejam assintomáticas, elas são importantes como fontes de infecção para outras crianças e funcionári- os da creche, bem como para os seus familiares. 9. Babás e manipuladores de alimentos cms (saladas, maioneses etc.) podem ser fonte de infecção. i PROFILAXIA Conforme visto na epidemiologia, a transmissão de giar- díase ocorre pela contaminação ambienta1 e de alimentos pelos cistos do parasito. Além disso, a transmissão direta de pessoa a pessoa é importante em aglomerados humanos. Dessa forma, são recomendadas medidas de higiene pessoal (lavar as mãos), destino correto das fezes (fossas, rede de esgoto), proteção dos alimentos e tratamento da água. Com relação a este último aspecto, pesquisas recentes sobre Giardia mostram evidências de que os filtros de areia e de terra de diatomáceas são capazes de remover os cistos de G. lamblia. É evidente que deve-se lembrar que a água pode ser contaminada (por exemplo, por esgotos) na sua distri- buição à população. Embora existam evidências de que os cistos resistem à cloração da água, eles são destruídos em água fervente. Como os animais domésticos, principalmen- te cão e gato, são infectados por Giardia morfologicarnen- te semelhante a do homem e levando-se em consideração evidências de que possa ocorrer transmissão direta entre esses hospedeiros (ainda não definitivamente comprovada), seria recomendável verificar o parasitismo por Giardia nes- ses animais e tratá-los. Alem disso, é importante o tratamen- to precoce do doente, procurando-se também diagnosticar a fonte de infecção (crianças sem sintomatologia, babás, manipuladores de alimentos, etc.) e tratá-la. TRATAMENTO Até recentemente, o tratamento da giardíase era feito com sucesso empregando-se a furazolidona (Giarlam); entre- tanto, em vista da resistência ao medicamento, novos pro- dutos têm sido indicados. Entre esses, temos: metronidazol (Flagil), tinidazol (Fasigyn), omidazol (Tiberal) e secnidazol (Secnidazol). Recentemente, alguns anti-helmínticos, do gru- po dos benzimidazóis (mebendazol e albendazol), têm sido empregados no tratamento da giardíase. Estudos têm sido desenvolvidos com o objetivo de se comparar albendazol e metronidazol quanto à segurança e à eficácia no tratarnen- to da giardíase em crianças. Diante dos resultados obtidos até o momento, alguns autores têm considerado que o albendazol é tão eficaz quanto o metronidazol no tratamen- to da infecção por Giardia, com a vantagem de apresentar poucos efeitos colaterais. Os esquemas terapêuticos para giardíase mais emprega- dos são: metronidazol (Flagil): 15 a 20mgfkg durante sete a dez dias consecutivos, para crianças, via oral. A dose para adultos e de 250mg, duas vezes ao dia; tinidazol (Fasigyn): dose única de 2g para adulto e lg para crianças, sob a forma líquida, este produto também é apresentado sob a forma de supositórios, com bons resultados; deve-se repetir a dose uma semana depois; furazolidona (Giarlam): 8 a 10mg por kg de peso por dia (máximo de 400mgldia) durante sete dias, para crian- ças. Para adultos, a dose e de 400mg em 24 horas, em duas ou quatro vezes por dia, durante sete dias; secnidazol (Secnidazol): a dose para adultos é de 2g, em dose única de quatro comprimidos, de preferência a noite, tomados em uma das refeições. Crianças com menos de cinco anos: 125mg, duas vezes em 24 horas, por cinco dias. Quando o parasito apresenta resistência à terapêutica, isto é, quando após o uso de determinado medicamento há remissão parcial dos sintomas e apenas redução do núme- ro de cistos, recomenda-se dar um intervalo de cinco a dez dias para eliminaçãodo primeiro medicamento e completar a terapêutica com outro princípio ativo. Os medicamentos contra a giardíase em geral não são bem aceitos pelas crianças devido ao gosto desagradável; alguns pacientes podem apresentar sintomas gastrointesti- nais e, raramente, vômitos. Deve-se evitar o uso de bebidas alcoólicas durante o tratamento. Em esquemas terapêuticos prolongados, têm-se observado efeitos carcinogênicos e mutagênicos em ratos. Capitulo 14
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