Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
FILOSOFIA Renan Costa Valle Scarano A filosofia cristã Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as concepções filosóficas do pensamento cristão. Comparar as correntes de pensamento no período de influência do cristianismo. Analisar a relação entre filosofia e religião. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a filosofia cristã. Você também vai co- nhecer as múltiplas vertentes filosóficas da Idade Média. O período da filosofia medieval corresponde aos séculos V a XV d.C. Esse período foi marcado pela influência do cristianismo, que intervém não só na filosofia, mas também na organização política e social — sobretudo a partir do ano 380, quando a religião cristã se torna a religião oficial do Império Romano. Portanto, a estrutura eclesiástica não se manteve apenas na esfera religiosa, mas invadiu a política, a economia e a cultura. Como você vai ver, a filosofia medieval foi influenciada significativa- mente pela filosofia grega, mas possuiu aspectos próprios, advindos do pensamento cristão. Outra característica que merece destaque é o fato de que muitos dos filósofos medievais, como você deve imaginar, eram também padres ou clérigos da Igreja. O pensamento cristão e as suas concepções filosóficas Vasconcellos (2014) sugere que o pensamento cristão tem início com os padres da Igreja. A fi losofi a medieval é comumente dividida em duas correntes: patrís- tica e escolástica. “A Patrística consiste no pensamento dos chamados Padres da Igreja, isto é, os pais, os fundadores do pensamento cristão” (VASCON- CELLOS, 2014, p. 11). Essa corrente situa-se entre os anos 100 d.C. — época considerada o fi m da era apostólica, isto é, após a escrita do Apocalipse de João (o último dos livros bíblicos) — e o século V. Já a escolástica se inicia por volta do século V e se estende até o início do Renascimento, ou seja, o século XIV (VASCONCELLOS, 2014). De acordo com Vasconcellos (2014), a Idade Média se inicia por volta do ano 476, com a queda do Império Romano do Ocidente, e termina em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos povos turcos e a consequente queda do Império Romano do Oriente. No entanto, “[...] se adotássemos uma periodização mais afeita à divisão histórica, colocaríamos a Patrística no final da Antiguidade” (VASCONCELLOS, 2014, p. 11). Isso significa pensar o Medievo, do ponto de vista filosófico, como um período marcado pela relação entre a filosofia grega e o pensamento cristão, judeu ou árabe; tal período se estende por um tempo demarcado, “[...] mais ou menos do ano 100 até 1500” (VASCONCELLOS, 2014, p. 11). Dizer que há a construção de um pensamento filosófico nesse período significa apontar que houve uma reflexão que fincou raízes na Antiguidade, mas que buscou dar respostas aos problemas de seu tempo, “[...] um tempo em que as questões religiosas não são relegadas a um segundo plano” (VASCONCELLOS, 2014, p. 12). O período histórico designado como Idade Média é dividido em três mo- mentos: Alta Idade Média (séculos V a X); Idade Média Central (séculos XI a XIII) e Baixa Idade Média (século XIV). O período da Alta Idade Média corresponde à: [....] época da formação dos reinos bárbaro-romanos e do feudalismo, no Ocidente, da permanência do Império Bizantino e da formação dos Estados eslavos, no Oriente, da forte expansão e progressiva consolidação do Islã nas terras banhadas pelo Mediterrâneo e da primeira unificação da Europa: o Império Carolíngio (SANTOS; COSTA, 2015, p. 9). No período da Idade Média Central, mais precisamente no século XIII, ocorre o desenvolvimento das escolas universitárias. É nesse período que surge a escolástica, cuja origem está relacionada à criação das escolas. A esse período corresponde também a entrada dos textos de Aristóteles no Ocidente, fato responsável por mudanças na filosofia medieval (SANTOS; COSTA, 2015). O período da Baixa Idade Média corresponde aos séculos de transição; no final do século XIII, começam as primeiras investigações científicas. Nesse período, sobretudo com a filosofia de Guilherme de Ockham, já há traços da Modernidade. A filosofia cristã2 Como você já viu, do ponto de vista filosófico, há duas grandes tradições que marcam a filosofia no período medievo, que são a patrística e a escolástica. A religião cristã, desde o início, buscou transmitir uma mensagem de salvação, estabelecer certos valores e postular certas crenças. Porém, o cristianismo demorou certo tempo para conceber o seu conjunto fundamental de princípios e doutrinas. Nesse sentido, os padres da Igreja tiveram um importante papel por meio da patrística (VASCONCELLOS, 2014). Os padres da Igreja primitiva eram conhecidos como “apologetas” e foram os primeiros sistematizadores do pensamento cristão. Há uma divisão entre os padres gregos e os padres latinos. Conforme Gilson (2001), a literatura cristã latina começou em Roma no fim do século II e no início do III. Mas só em meados do século III o latim substituiu a língua grega. Entre os padres latinos, encontram-se Tertuliano, Minúcio Félix, Cipriano de Cártago, Clemente de Roma, entre outros. Entre os padres gregos, destacam-se Justino, João Crisóstomo e a escola de Alexandria, cujos principais expoentes foram Clemente de Alexandria e Orígenes. Clemente “[...] via na filosofia grega uma espécie de revelação da verdade cristã, destinada aos pagãos” (VASCONCELLOS, 2014, p. 19). O nome mais significativo da patrística foi Agostinho de Hipona, que viveu entre os anos 354 e 430. Os seus escritos abordam de forma não sistemática temas da teologia, da filosofia, da psico- logia, da antropologia e da política. Agostinho defendia a interioridade como o caminho privilegiado para o encontro com Deus. De acordo com Abbagnano (2007, p. 175): “segundo S. Agostinho, o homem pode conhecer Deus porquanto ele mesmo é a imagem de Deus. Memória, inteligência e vontade, em sua unidade e distinção recípocra, reproduzem no homem a trindade divina de Ser, Verdade e Amor” (De Trin., X, 18). Nesse sentido, o conhecimento de Deus só pode ocorrer pela fé, ou seja, a razão não atinge Deus de imediato. Já “A alma, o homem interior, no entanto, pode ser conhecida pela razão e é partindo dela que o homem poderá, no en- contro consigo mesmo, encontrar também a Deus” (VASCONCELLOS, 2014, p. 22). Portanto, o tema central de Agostinho é a busca por Deus, e essa busca se faz pela fé. O caminho que o próprio Agostinho faz em sua vida, narrada na obra Confissões, para chegar até Deus é o percurso de fora para dentro; isto é, é na alma que Deus se revela. Essa é a descoberta de Agostinho; logo, procurar Deus e a alma significa procurar a si mesmo. Nesse viés, Deus está dentro do homem, de fora para dentro e de dentro para Deus. Assim, “Fundamentado teoricamente no neoplatonismo, Agostinho enten- derá que Deus é uma luz que está acima do espírito, só podendo ser atingida pelo homem na medida em que este transcende o que há de mais elevado 3A filosofia cristã nele” (VASCONCELLOS, 2014, p. 23). Percebe-se, portanto, uma influência neoplatônica no pensamento de Agostinho. Platão afirmava que o mundo das ideias era o mundo da verdade, indicava que o suprassensível, o racional, seria o lugar da verdade. Essa influência platônica marcou também o pensamento de Agostinho acerca do mal. Ao buscar a natureza do mal, o filósofo descobriu que se tratava de uma ausência do bem. Para Agostinho, “[...] todas as coisas são boas, sendo o mal, portanto, uma privação do bem, porque não poderia originar-se de Deus” (VASCONCELLOS, 2014, p. 24). O caminho ao interior é o caminho até a verdade, o retorno a si, à interio- ridade. É o que se pode ver no livro De Vera Religione: Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendestua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão. Aonde pode chegar, com efeito, todo bom pensador senão até a verdade? Se a verdade não é atingida pelo próprio raciocínio, ela é, justamente, a finalidade da busca dos que raciocinam (AGOSTINHO apud VASCONCELLOS, 2013, p. 24). A procura pela verdade não é apenas uma busca intelectual, mas existencial. Exige-se do homem que se recline sobre si mesmo, submergindo na interio- ridade para obter o reconhecimento de si e de seu Deus (VASCONCELLOS, 2014). Dessa forma, Agostinho chama a atenção para as verdades eternas e absolutas que estão presentes na mente humana, mas que estão além da razão. Deus aparece como uma realidade que transcende a razão e a fé, como o prin- cípio norteador do pensamento filosófico-teológico (VASCONCELLOS, 2014). A fé em Agostinho é um fator que precisa de compreensão, ou seja, não é uma crença ingênua, tola. Ao contrário: é algo em que a razão se faz necessária na forma de um auxílio. Vasconcellos (2014) comenta que, para Agostinho, o caminho consiste em aceitar a fé pela revelação e, a partir de então, a razão exerce o seu papel. Uma discussão muito presente na época de Agostinho era a relacionada ao mal. No entanto, tal debate já existia em Clemente de Alexandria e em Orígenes; para ambos, o mal era identificado com o não ser. Mas é com Agostinho que A filosofia cristã4 tal investigação ganha proporções maiores. Explicar a questão do mal era um problema central para o pensamento cristão. O que era o mal? A conclusão a que Agostinho chega em suas Confissões é a de que o mal é a ausência de bem, ou seja, o mal não é uma substância. Mas se isso for admitido, como então explicar o mal? “A fim de explicar os motivos que tornam possível a manifestação do mal, [Agostinho] estabelece uma distinção ontológica entre o criador e a criatura” (VASCONCELLOS, 2014, p. 32). Enquanto o criador é o sumo bem, a criatura que provém do criador pode ser boa, mas não sumamente boa. Assim, a oscilação do bem ou a sua diminuição já é um mal. O tema do livre- -arbítrio entra nessa discussão quando Agostinho explica o conceito de pecado: “O pecado reside, pois, na separação estabelecida entre o que o homem é, enquanto criatura, e aquilo que ele quis ser, por vontade própria, pelo exercício do seu livre-arbítrio” (VASCONCELLOS, 2014, p. 32). O mal é nesse ponto resultado de uma escolha do homem, uma possibilidade dada por Deus por meio do livre-arbítrio: “Pelo livre-arbítrio, o homem pode permanecer no bem, mesmo podendo aderir ao mal” (VASCONSELLOS, 2014, p. 33). Como você pode notar, Agostinho foi um dos maiores filósofos de seu tempo e o principal pensador da patrística. O alcance de seu pensamento extrapolou os limites da religiosidade. Embora naque época não se tivesse acesso aos textos de Aristóteles, o neoplatonismo foi um aspecto influenciador da patrística. No período que sucede a patrística, desenvolve-se a escolástica. Nesse período, mais precisamente nos séculos XII e XIII, em Bolonha e em Paris, surgem as primeiras universidades (REALE; ANTISERI, 2003). Um dos mais influentes filósofos e inaugurador desse período foi Severino Boécio (480–527). O texto A consolação da Filosofia foi um dos mais lidos pelos filósofos medievais (VASCONCELLOS, 2014). Outro fator enquadra Boécio como o pensador que inaugura uma nova forma de filosofar: o fato de que as primeiras traduções que se conhece de Aristóteles foram realizadas por ele. Boécio conhecia latim e grego; a sua intenção era não só traduzir, mas comentar as obras de Platão e Aristóteles. Além disso, ele pretendia mostrar que os dois pontos centrais da filosofia grega possuíam mais concordâncias do que discordâncias (VASCONCELLOS, 2014). 5A filosofia cristã O problema dos universais, questão presente em grande parte da Idade Média, interessou a Boécio. De acordo com Leite Júnior (2001), o conteúdo central do problema gira em torno do estatuto ontológico dos universais. Nesse sentido, o problema dos universais: [...] investiga sobre a possibilidade da existência ou não existência dos univer- sais. Ora, tal questão remete a uma segunda inquirição, a saber: admitindo-se que os universais existam, pergunta-se: que tipo de existência possuem? Em outras palavras: se existem, sua existência é real ou meramente mental (pensada)? (LEITE JÚNIOR, 2001, p. 15). A grosso modo, pode-se dizer que o universal é aquilo que é comum a muitos. Boécio tratou do problema dos universais sobretudo em seu comentário à obra Categorias, de Aristóteles. De acordo com Leite Júnior (2001), Boécio reconhece que o fundamento para que algo possa ser considerado universal não é encontrado fora da realidade, mas nas próprias coisas sensíveis; contudo, a noção de universal que for- mamos na mente se dá por abstração, a partir do conhecimento que temos da semelhança presente nos objetos sensíveis. Em verdade, os universais são produzidos na mente apenas pelo fato de que há algo comum a muitos, presente na realidade, junto ao que é sensível (LEITE JUNIOR, 2001, p. 38). Outro filósofo do período da escolástica que merece destaque é Anselmo de Aosta (1033–1109). Com Anselmo, há uma valorização da razão natural, sem que isso implique demérito da fé (VASCONCELLOS, 2014). A razão é entendida por Anselmo não como um impedimento da fé, nem como uma alternativa contraposta, mas “[...] como um outro meio de acesso ao conteúdo da revelação, meio este, contudo, indissociado da fé” (VASCONCELLOS, 2014, p. 58). O autor ressalta que a razão, entendida como um modo de se fazer filosofia, não deve ser confundida pela compreensão que é feita dela na filosofia moderna. A razão humana não substitui a fé, tampouco se opõe a ela, mas tem a capacidade de conduzir a fé à verdade. Anselmo dedicou a sua filosofia ao problema da prova da existência de Deus. Por meio de quatro provas, ele busca mostrar como se pode chegar até Deus. A primeira prova “[...] deriva da consideração de que cada qual tende a se apoderar das coisas que julga boas [...] a bondade em virtude da qual as coisas são boas só pode ser uma” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149). A segunda prova diz respeito à grandeza qualitativa: “A variedade dessa grandeza, por nós A filosofia cristã6 constatada, exige a suma grandeza, da qual todas as outras são participação gradual” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149). A terceira prova fala do ser propriamente: Tudo aquilo que existe, existe em virtude de alguma coisa ou em virtude de nada. Mas nada existe em virtude de nada [...] do nada não provém o nada. Assim, ou se admite a existência do ser em virtude do qual as coisas existem ou nada existe. Mas, como existe algo, existe o ser supremo (REALE; AN- TISERI, 2003, p. 150). A quarta prova da existência de Deus deriva da constatação dos graus de perfeição, “[...] apoia-se sobre a hierarquia dos seres e exige que exista uma perfeição primeira e absoluta” (REALE; ANTISER, 2003, p. 150). Essas provas, por meio das quais Anselmo conclui que Deus é “[...] aquilo do qual nada de maior se pode pensar” (REALE; ANTISER, 2003, p. 150), estão em sua obra denominada Monologion. Tomás de Aquino (1225–1274) foi um dos maiores filósofos do Medievo. Ele estudou as obras de Aristóteles com seu mestre e catedrático Alberto Magno (1193–1280). Magno preocupou-se em distinguir filosofia e teologia. Ele considerou algumas diferenças para demonstrar que o conhecimento filosófico e o teológico não são a mesma coisa. No conhecimento filosófico, utiliza-se somente a razão; a filosofia parte de premissas que são evidentes, ou seja, que devem ser conhecidas por si mesmas; a filosofia parte da experi- ência das coisas criadas; e, por fim, a filosofia é um procedimento puramente teorético. Já sobre o conhecimento teológico, Alberto diz que, em primeiro lugar, trata-se da fé, que vai além da razão. Por meio da fé, chega-se a coisas que influenciam a razão, ou seja, que não aparecem de imediato à razãoe que sem a fé seriam impensáveis. Outra diferença é que a fé parte de Deus, que revela a verdade. A quarta diferença é que por meio da razão não é possível dizer o que é Deus; somente pela fé pode-se chegar nele. Por fim, a fé comporta um processo intelectivo e afetivo “[...] pois envolve a existência do homem no amor de Deus” (REALE; ANTISER, 2003, p. 203). Tomás de Aquino foi um profundo conhecedor do debate filosófico e teológico de seu tempo. Ele concebe a filosofia de forma independente da teologia, ao contrário, por exemplo de Boaventura, filósofo e contemporâneo de Tomás. Para Tomás, filosofia e teologia são modos diferentes de se buscar a verdade e de se opor ao erro. O filósofo não coloca superioridade nem na razão, nem na fé; ambas provêm de Deus (VASCONCELLOS, 2014). Nas conhecidas cinco vias de acesso a Deus desenvolvidas por Tomás, o filósofo, 7A filosofia cristã por meio da razão, elabora uma série de argumentos para demonstrar que por meio da razão é possível chegar à existência de Deus. A seguir, veja em que consistem essas cinco vias. O primeiro argumento diz que “[...] tudo o que se move é movido por outro; por conseguinte, também o que moveu foi movido e assim ocorre sucessivamente” (VASCONCELLOS, 2014, p. 76). Esse movimento não pode se suceder infinita- mente; assim, é necessário que exista um primeiro motor que move e esse motor é Deus. A segunda via versa sobre a causalidade como ponto de partida. Tudo o que existe deve ter uma causa e assim por diante; desse modo, chega-se à causa primeira, que é Deus. Tomás estrutura a terceira via a partir de coisas possíveis e coisas necessárias: “No mundo sensível encontram-se coisas que podem ser e também podem não ser. São, pois, contingentes” (VASCONCELLOS, 2014, p. 77). Dessa forma, se algo foi gerado, significa que não existia antes da geração; a existência de uma coisa também segue o mesmo raciocínio. A conclusão de Tomás é que “[...] a existência de um ser necessário, por si mesmo, [...] é a causa da necessidade para os outros” (VASCONCELLOS, 2014, p. 77). Esse ser necessário para a existência dos outros é Deus. A quarta via versa sobre o grau de perfeição existente nas coisas. Há coisas boas e outras não tão boas, existe o mais verdadeiro e o menos verdadeiro. Dessa forma, conclui o filósofo, “[...] os diferentes graus de perfeição, existente nas coisas, supõem um máximo grau de perfeição, que é Deus” (VASCONCELLOS, 2014, p. 77). A quinta e última via de acesso que prova a existência de Deus diz que algumas coisas agem em vista de um fim, ou seja, há uma ordem perce- bida nas coisas do mundo: “Tal ordem supõe um ordenador [...] conclui Tomás que existe um ordenador inteligente que faz com que as coisas naturais sejam ordenadas a um fim. Tal ordenador é Deus” (VASCONCELLOS, 2014, p. 77). Em sua grande obra intitulada Suma Teológica, Tomás filosofa sobre diversos temas: teológicos, éticos e políticos, temas acerca da natureza do homem, a questão das virtudes, etc. Tomás discute também o problema do ser e da essência, portanto se debruça sobre a metafísica. Em uma de suas primeiras obras, O ente e a essência, o filósofo explicita os conceitos da me- tafísica. Nesse sentido, Tomás afirma que tudo o que existe é ente. Esse ente pode ser lógico ou puramente conceitual, como real ou extramental (REALE; ANTISERI, 2003). Tomás resgata a discussão acerca dos universais e se coloca como um pensador realista moderado, “[...] segundo o qual o caráter universal dos conceitos é fruto do poder de abstração do intelecto. O universal não é real, porque somente o indivíduo é real” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 216). No entanto, por meio do intelecto, é possível alcançar a universalidade das coisas, resultado da ação de abstração da inteligência. A filosofia cristã8 Sobre o ente e a essência, Tomás diz que tudo é ente, inclusive Deus, mas, em Deus, “[...] o ser se identifica com sua essência, razão pela qual também é chamado ‘ato puro’ e ‘ser subsistente’” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 216). Porém, na criatura, o ser se distingue da essência, no sentido de que, na criatura, a essência não é a sua existência, mas possui (tem) a existência. Já em Deus, a essência se identifica com o ser, ou seja, é ato puro. Nas criaturas, a essência é potência de ser, isto é, existe enquanto potência. Como você pode notar, a filosofia de Aristóteles é a grande influenciadora da filosofia de Tomás: “A filosofia tomista é uma filosofia cristã e seria singular equívoco esquecê-lo. O aristotelismo, nela, representa um caminho e um meio, sofrendo modificações tão profundas que chega a perder a sua fisionomia própria” (TRUC, 1968, p. 109). Aristóteles, em sua Metafísica, defendeu a teoria das quatro causas, que diz que tudo o que existe deriva de uma causalidade. Nessa obra, Aristóteles buscou investigar o ser enquanto ser. Ao contrário de Platão, ele levou em consideração em sua filosofia a natureza; nesse sentido, o filósofo percebeu que há movimento na natureza. Daí que o seu pensamento se direciona para o início do movimento da natureza. O primeiro motor imóvel é a ideia a que chega Aristóteles sobre o início das coisas; o motor imóvel é o responsável por colocar o movimento nas coisas. O motor imóvel é imaterial, eterno, possuidor de inteligência suprema e de suma bondade. Para Gilson (2006, p. 2), “[...] o espírito da filosofia medieval [...] é o espírito cristão, que penetra a tradição grega, trabalhando-a por dentro e fazendo-a produzir uma visão do mundo”. Nesse sentido, pode-se tomar como exemplo Agostinho e Tomás de Aquino. Inspirados nas filosofias de Platão e de Aristóteles, os filósofos cristãos produziram uma filosofia cristã à luz da filosofia grega. As correntes de pensamento filosófico que haviam no período de desenvolvimento do cristianismo Em qualquer período histórico, há uma infl uência circular, ou seja, nos dois sentidos. Se você admitir que o período medieval infl uenciou e determinou em boa parte a orientação geral da história fi losófi ca, também precisa consi- derar que tal período foi infl uenciado pela fi losofi a antiga. Coutinho (2008, p. 3) explica que o período medieval emerge na história como resultado de três fatores: “[...] o arruinamento do mundo clássico antigo, a barbarização do espaço europeu e o advento e difusão do Cristianismo”. A convergência desses três acontecimentos se dá não longe dos primeiros séculos da era cristã. 9A filosofia cristã Quando o pensamento cristão passa a se desenvolver na cultura, já existem correntes filosóficas presentes no campo em que ele exerce força hegemônica: “A Idade Média não enjeita o legado cultural do Classicismo greco-romano. Assume-o, porém, não na sua pureza clássica, mas submetendo-o ao espírito que lhe era próprio: medievaliza-o, quer dizer, barbariza-o e cristianiza-o” (COUTINHO, 2008, p. 6). A filosofia platônica exerceu grande influência sobre o campo filosófico, e tal influência não foi interrompida durante a Idade Média. Além disso, outras correntes filosóficas, tais como o helenismo, o neopitagorismo, o gnosticismo e o cabalismo, existiram no período em que o cristianismo se desenvolveu. Três escolas fizeram parte da filosofia helenística. São elas: o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo. O estoicismo compreende a reflexão acerca da natureza, das leis e das formas de relação entre elas. O estoicismo defende que o cosmos é formado pela harmonia das forças contrárias. Assim, a justa medida contemplada na natureza é aquela que deve ser buscada pelo filósofo, seja na vida política, seja nas ações morais (CÂMARA, 2014). Ulmann (2008) explica que a palavra “estoicismo” se origina da expressão grega stoá poikílê, cujo significado é “pórtico multicolorido”. Nesse pórtico, o filósofo Zenon de Cítio (336–264 a.C.) costumava ensinar seus discípulos. A filosofia estoica divide-se em três fases: “1. Estoicismo primitivo ou antigo, com seus três representantes — Zenon, Cleantes e Crisipo;2. Estoicismo médio, no qual se destacam Panécio e Posidônio; 3. Estoicismo romano, com Sêneca, Musônio Rufo, Epicteto e Marco Aurélio” (ULMANN, 2008, documento on- -line). Sêneca, um dos principais filósofos dessa escola, sugere que o mundo é dividido em quatro reinos ou naturezas viventes, além da matéria inerte. Existem as seguintes quatro naturezas: a das árvores, a dos animais, a do homem e a de Deus. As duas — homem e Deus — são racionais e possuem idêntica natureza; no entanto, distinguem-se, pois uma é imortal (Deus), a outra, mortal (SÊNECA apud ULMANN, 2008, documento on-line). Para os estoicos, o ser absolutamente perfeito é Deus: [...] o qual encerra toda a perfeição da natureza, integralmente. E a natureza, em sua integridade, é racional. Todo o resto caracteriza-se como relativamente perfeito, ou seja, cada ser em seu grau distingue-se por um traço de perfeição (ULMANN, 2008, documento on-line). A filosofia cristã10 A filosofia da natureza desenvolvida pelos estoicos considera que o logos é o princípio cósmico. O logos, a razão, é imanente no cosmos, assim tudo é racional (REALE; ANTISERI, 2003). Para os estoicos, todas as coisas são partes de um grande organismo: “Tal como no corpo humano toda modificação num membro é sentida em todos os outros, assim também no cosmo existe recíproca inter-relação (ULMANN, 2008, documento on-line). O epicurismo é outra corrente filosófica que exerce grande influência na cultura helênica. Epicuro de Samos fundou sua Escola em Atenas em 307/306 a.C. De acordo com Reale e Antiseri (2003), Epicuro retomou de Leucipo e Demócrito a teoria atomista, de Sócrates o conceito de filosofia como arte de viver, e dos Cirenaicos a estreita relação entre felicidade e prazer. Epicuro adotou substancialmente a tripartição de Xenocrates da filosofia em lógica, fisica e ética. De acordo com Reale e Antiseri (2003, p. 261), a lógica deve “[...] elaborar os cânones segundo os quais reconhecemos a verdade; a segunda estuda a constituição do real; a terceira, o fim do homem (a felicidade) e os meios para alcançá-la”. A lógica e a física devem ser elaboradas em função da ética. Nesse sentido: A ética, ponto de convergência de toda a doutrina de Epicuro, apresenta a forma em que os homens podem tornar-se felizes, livres das mazelas que os perturbam, sejam essas causadas pela política, sociedade ou advindas da religião (CÂMARA, 2014, documento on-line). Ao contrário de Platão, que afirma que a sensação confunde a alma e desvia o ser, Epicuro pontua que é pela sensação que se colhe o ser. Algumas correntes filosóficas se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo tanto no Oriente quanto no Ocidente. O gnosticismo foi a primeira tentativa de filosofia cristã, feita sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos míticos, neoplatônicos e orientais. Em geral, para os gnósticos o co- nhecimento era condição para a salvação, donde esse nome, que foi adotado pela primeira vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em numerosas seitas (ABBAGNANO, 2007, p. 485). 11A filosofia cristã De acordo com Abbagnano (2007), uma das teorias mais típicas de tal corrente filosófica é o dualismo dos princípios supremos. Nessa perspectiva, “A tentativa de união entre os dois princípios, bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se unem, mas com predomínio das trevas” ABBAGNANO, 2007, p. 486). O século II da era cristã é o momento em que aparecem os padres apolo- gistas ou apologetas, “[...] assim chamados porque suas obras principais são apologias da religião cristã” (GILSON, 2001, p. 2). As obras apologéticas serviam como forma de sustentação para se obter dos imperadores romanos o reconhecimento do direito legal dos cristãos a existirem num império que era oficialmente pagão (GILSON, 2001). Justino escreveu, no ano de 150, uma apologia destinada ao imperador Adriano e a Marco Aurélio (Segunda apologia). Justino era um pagão da religião grega que se converteu à religião cristã antes de 132. De acordo com Gilson (2001), ele buscava na filosofia uma religião natural. Frequentou a escola estoica, dirigiu-se aos peripatéticos, instruiu-se no pitagorismo e filiou-se aos discípulos de Platão. Em seu Diálogo com Trifão (sua terceira obra), Justino narra como encontrou na religião cristã as respostas às perguntas que lhe inquietavam. Gilson (2001) aborda a história de Justino para mostrar que a religião cristã “[...] oferecia uma nova solução para problemas que os próprios filósofos tinham levantado” (GILSON, 2001, p. 5). Filosofia e religião De acordo com Gilson (2001), a religião cristã tomou contato com a fi losofi a no século II. Já a fi losofi a medieval é marcada por uma íntima ligação com a religião, sobretudo a religião cristã, embora haja uma refl exão fi losófi ca oriunda dos árabes e judeus, de acordo com Vasconcellos (2014). Nesse sentido, é “[...] usual, no período medieval, a utilização da fi losofi a para tratar de temas que são, em si mesmos, teológicos” (VASCONCELLOS, 2014, p. 10). Portanto, há dois elementos que provocam discussões nos historiadores da fi losofi a: cristianismo e fi losofi a. Há uma fi losofi a cristã? Ou uma fi losofi a medieval? Como você sabe, a Bíblia não é um livro histórico, ou seja, ela não objetiva tratar de história, mas abordar uma mensagem de fé. Em algumas passagens do Novo Testamento, há sinais de que os primeiros cristãos se aproximaram da cultura filosófica grega com o intuito de se fazerem entender e também de conquistar povos que não pertenciam à cultura judaico-cristã, como os greco-romanos. Considere dois exemplos disso: o quarto evangelho, escrito A filosofia cristã12 provavelmente no ano 85 d.C. (SANTOS; XAVIER; ARAUJO, 2011), atribuído a são João; e algumas epístolas de Saulo de Tarso, tais como a primeira carta aos colossenses, a epístola aos romanos e a epístola aos tessalonicenses. O evangelho de João foi escrito originalmente em grego. Ele é diferente em relação aos outros três, pois traz uma linguagem simbólica, além de ele- mentos da filosofia grega, tais como a ideia de logos, como pode ser visto no capítulo 1: “No princípio [arché] era o verbo [logos]. E o verbo estava com Deus. E o verbo era Deus”. No original: “ Ἐλ ἀξχῇ ἦλ ὁ ιόγoν, kαὶ ὁ ιόγoν ἦλ πξὸο ηὸλ ζεόλ, θαὶ ζεὸο ἦλ ὁ ιόγoν” (SANTOS; XAVIER; ARAUJO, 2011, documento on-line). Note que, além de retomar a narrativa da origem do universo presente no livro do Genesis, o autor do evangelho traz dois termos, arché e logos, que estão presentes na filosofia grega desde os pré-socráticos. Arché é o termo utilizado para discutir a origem das coisas; e logos significa “[...] a razão enquanto substância causa do mundo” (ABBAGNANO, 2007, p. 630). O termo logos foi definido primeiramente pelo filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso (540–470 a.C.). Esse termo era utilizado para tratar da razão enquanto causa do mundo, mas no pensamento cristão logos é o termo utilizado para referir-se à pessoa divina (ABBAGNANO, 2007). Portanto, aqui, já se tem a influência da filosofia grega. Como você viu, arché é o termo que designa o princípio das coisas. Os filósofos pré-socráticos, entre eles Tales de Mileto, Heráclito de Éfeso e Pitágoras de Samos, atribuíram a origem do universo a diferentes fatores. Assim, ao se perguntar sobre qual era o fundamento das coisas, os filósofos procuravam tal fundamento na natureza e utilizavam a razão para investigar a origem do mundo. Ou seja, eles não designavam a fé como um elemento da filosofia e tampouco atribuíam o criacionismo como doutrina ou fator fundante das coisas. Já o pensamento cristão afirma que Deus é o ser que criou o universo e todas as coisas: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, Gn 1, 1). Esse pensamento que o cristianismo sustenta é herdado da cultura judaica. As cartas atribuídas a Saulo de Tarso, assim como os Atos dos Apóstolos,trazem elementos que sinalizam a aproximação do movimento cristão dos primeiros séculos com a filosofia grega. Os Atos dos Apóstolos, capítulo 17, versículos 18 a 34, narram um episódio em que Saulo de Tarso, cidadão romano, discute com alguns filósofos gregos, entre estoicos e epicureus, no Areópago. A disputa versa sobre questões como a nova doutrina e assuntos teológicos. Com isso, tem-se uma ideia da aproximação da nova religião com a filosofia grega desde Saulo, ou seja, entre os anos 40 e 50 d.C. 13A filosofia cristã Quando se fala em filosofia cristã, não se podem perder de vista as discussões filosóficas já realizadas na Grécia Antiga e que prosseguiram em momentos históricos posteriores. A filosofia destaca-se por utilizar a razão para tratar de temas que dizem respeito à vida das pessoas, como a política, a ética, o homem, o conhecimento, a estética, entre outros. A razão, o diálogo e a discussão são elementos estruturantes da filosofia no que toca ao período grego. Outra característica da filosofia é que ela se desenvolveu numa determinada cultura, a grega, que tinha uma organização social e política própria. Do ponto de vista religioso, a sociedade grega adorava e cultuava deuses e deusas; portanto, era uma sociedade politeísta. Esses pontos impactam a cultura cristã e a sua herança judaica monoteísta. O grande ponto que é trazido para o campo das discussões filosóficas pelo pensamento cristão é a fé. Nesse sentido, houve todo um esforço para conciliar fé e razão durante a época medieval. Houve também filósofos que renegaram a razão e sustentaram que a fé era o único elemento a ser levado em conta quando se pensava em fazer filosofia. Definir o significado da filosofia não é tarefa fácil. De acordo com Ab- bagnano (2007), tal significado pode ser encontrado no livro Eutidemo, de Platão, e perpassa diferentes épocas até chegar à Modernidade. A filosofia é vista como o uso do saber em proveito do homem. No livro de Platão, a filosofia refere-se a “[...] uma ciência em que coincidam fazer e saber” (AB- BAGNANO, 2007, p. 442). De acordo com esse conceito, filosofia implica: “[...] posse ou aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível; [bem como] uso desse conhecimento em benefício do homem” (ABBAGNANO, 2007, p. 442). Esses dois elementos, aponta Abbagnano (2007), estão presentes desde a Antiguidade e perpassam a Modernidade, em Descartes, Hobbes e Kant. A filosofia trata-se, portanto, de um saber acessível ao homem. Esse saber é entendido: [...] tanto como revelação ou posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a reali- zação de retificações ou mudanças no mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 442). Assim, desde os gregos antigos, a filosofia transmite a ideia de um saber que é racional e que está a serviço do homem, ou seja, um conhecimento que lhe é útil; não se trata de um saber contemplativo. A filosofia, portanto, é um A filosofia cristã14 saber útil que serve para que o homem conheça o mundo, conheça a si mesmo, conheça o outro, conheça seu ambiente. Ela trata do conhecimento a serviço do homem (ABBAGNANO, 2007). Por outro lado, o cristianismo é um movimento religioso, advindo do judaísmo. Portanto, traz em si uma concepção monoteísta, adora um Deus como o criador do universo. Mas, diferentemente do judaísmo, o cristianismo defende que o messias já veio ao mundo e que seu nome é Jesus. A religião cristã é baseada nos evangelhos, que são escritos sobre a vida de Jesus e os seus ensinamentos. Os evangelhos são compostos de quatro livros, escritos por Marcos, Lucas, Matheus e João. A sua mensagem é a de que Jesus anunciou o reino de Deus, a salvação dos homens. A fé é o elemento central do cristianismo. Fé e razão são dimensões que se entrecruzam na filosofia cristã e também na filosofia medieval. O elemento da salvação também é abordado na filosofia grega e na religião cristã. No entanto, ambas abordam esse aspecto de formas diferentes. Gilson (2001) sintetiza essa diferença da seguinte maneira: “A filosofia é um saber que se dirige à inteligência e lhe diz o que são as coisas; a religião se dirige ao homem e lhe fala de seu destino” (GILSON, 2001, p. 16). Vale dizer que é a partir do encontro do cristianismo com a filosofia grega que se desenvolve a filosofia medieval. Gilson (2006) critica alguns comentadores e historiadores da filosofia que negam a existência de uma filosofia cristã. Tais autores defendem que retalhos de doutrinas gregas foram mais ou menos costurados a uma teologia; ou, ainda, salientam que os critãos retomaram o pensamento de Platão e de Aristóteles para satisfazer seus interesses. Junto a esses críticos, Gilson (2006) coloca os chamados racionalistas, que consideram que a razão não pertence à ordem da religião, mas à ordem da filosofia. Ele ainda comenta que não há um filósofo neoescolástico que considere haver uma relação entre filosofia e religião: “O que os neoescolásticos negam é que nenhum pensador cristão tenha conse- guido constituir uma filosofia porque sustentam que são Tomás de Aquino fundou uma [...] a única constituída num plano racional” (GILSON, 2006, p. 8). Enquanto os racionalistas colocam a filosofia no topo e a identificam com a sabedoria, os neoescolásticos a tornam subalterna da teologia. Gilson (2006, p. 16) comenta que o fato de não haver filosofia na Bíblia não autoriza a sustentar que “[...] a Escritura não possa ter exercido alguma influência sobre a evolução da filosofia”. Em suma, Gilson (2006, p. 17) afirma, acerca da discussão entre fé e razão, que, segundo a tradição agostiniana, a fé é diferente da razão e da filosofia da religião; já a tradição tomista ressalta que “[...] a razão é inseparável da fé em seu exercício”. Nesse sentido, o autor 15A filosofia cristã ressalta que, embora não se saiba no que consiste a filosofia cristã, não se deve renegar a filosofia do pensamento cristão, pois “[...] não há razão cristã, mas pode haver um exercício cristão da razão” (GILSON, 2006, p. 17). Como você sabe, há teórios que dizem que a Idade Média foi a idade das trevas, em que não houve filosofia, mas uma teologia que colocava a filosofia como subalterna. Essa é, por exemplo, a leitura histórica feita pelo Positivismo. Contudo, Gilson (2006) defende que, desde o Renascimento, com o retorno aos valores clássicos da cultura greco-romana, e também no Iluminismo, houve um período filosófico fértil influenciado por ideias advindas do cristianismo. Isso pode ser observado na metafísica de René Descartes, que, em oposição à metafísica grega, reflete o pensamento cristão. Descartes, na obra Meditações, aborda o problema da existência de Deus e da existência da alma, que são demonstradas por meio do método das provas. Gilson (2006, p. 18) sugere que isso lembra as provas da existência de Deus em santo Anselmo e até em Tomás de Aquino, além disso, a noção de liberdade de Descartes remonta à ideia medieval sobre a relação entre graça e livre-arbítrio, “[...] problema cristão por excelência”. Com isso, Gilson (2006) denota que há um pensamento cristão e que ele influenciou a filosofia. Um aspecto que aparece na filosofia desde os filósofos antigos é a busca pela sabedoria. Alguns pensadores definem o alcance da sabedoria como o objetivo da vida filosófica. Saulo de Tarso, o apóstolo que defendia que o cristianismo era uma religião e não uma filosofia (GILSON, 2006), afirmava que “[...] o Evangelho é uma salvação, e não uma sabedoria, seria melhor dizer que a salvação que ele prega é, a seu ver, a verdadeira sabedoria, e isso precisamente por ser uma salvação” (GILSON, 2006, p. 28). Nota-se, pois, um redimensionamento de conceitos como sabedoria e salvação, que estão presentes na filosofia grega, mas que, no pensamento cristão de Saulo de Tarso, transformam-se.Em Justino, o elemento filosófico está no centro do debate. De acordo com Gilson (2006), em Diálogo com Trifão, Justino afirma que o objetivo da filosofia é levar os fiéis até Deus e uni-los a ele. A busca pela verdade, enquanto problema filosófico, é central nos primórdios do pensamento cristão: “Um homem busca a verdade apenas pela razão, e fracassa; a verdade lhe é oferecida pela fé, ele a aceita e, tendo-a aceitado, acha-a satisfatória para a razão” (GILSON, 2006, p. 31). Justino chega a verdades filosóficas por ca- minhos não filosóficos: “Onde reina a desordem da razão, a revelação faz a ordem reinar” (GILSON, 2006, p. 31). Essa é a experiência que o pensamento cristão torna relevante. A filosofia cristã16 Desse ponto de vista, Gilson (2006) salienta que o cristianismo não é um conhecimento abstrato da verdade, mas um método de salvação. De acordo com o autor, no século II, os sistemas filosóficos, como os de Platão e de Aristóteles, visavam essencialmente à constituição de uma ciência, ou seja, não possuíam uma “[...] eficácia para a conduta da vida” (GILSON, 2006, p. 36). Por sua vez, o cristianismo prolongava a ordem natural com uma ordem sobrenatural. Apelando para a graça divina como fonte inesgotável de energia “[...] para a apreensão do verdadeiro e a realização do bem, o cristianismo se oferecia ao mesmo tempo como uma doutrina e uma prática” (GILSON, 2006, p. 36). O pensamento cristão colocava-se nesse momento como uma filosofia prática para a vida. Diferente de uma filosofia especulativa e de um conhecimento abstrato, o cristianismo defendia a verdade enquanto revelação de Deus, obtida pela ação de fé do homem. Portanto, a filosofia grega era vista nesse momento como o caminho de uma razão sem guia, enquanto o filósofo cristão possuía uma razão dirigida (GILSON, 2006). ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. CÂMARA, U. F. S. A porta e o jardim: uma introdução ao epicurismo e estoicismo da Grécia pós-socrática. Ensaios Pedagógicos, jun. 2014. Disponível em: http://www.opet. com.br/faculdade/revista-pedagogia/pdf/n7/ARTIGO-UIPIRANGI.pdf. Acesso em: 8 ago. 2019. COUTINHO, J. Elementos da história da filosofia medieval. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2008. GILSON, E. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GILSON, E. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LEITE JUNIOR, P. O problema dos universais: a perspectiva de Boécio, Abelardo e Ockham. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. REALE, G.; ANTISERI, D. Historia da filosofia: patristica e escolástica. São Paulo: Paulus, 2003. v. 2. SANTOS, B. S.; COSTA, R. História da filosofia medieval. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2015. 17A filosofia cristã SANTOS, W.; XAVIER, L. F.; ARAUJO, T. C. Análise exegética do prólogo do evangelho de João. Revista Davar Polissêmica, v. 2, n. 1, 2011. Disponível em: http://periodicos. redebatista.edu.br/index.php/DP/article/view/78/61. Acesso em: 8 ago. 2019. TRUC, G. História da filosofia. Porto Alegre: Globo, 1968. ULMANN, R. A. Filosofia da natureza nos estóicos. Filosofia Unisinos, v. 9, n. 1, 2008. Disponível em: http://filosofianreloanda.pbworks.com/f/Filosofia+da+Natureza+no s+Est%C3%B3icos.pdf. Acesso em: 8 ago. 2019. VASCONCELLOS, M. Filosofia medieval: uma breve introdução. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2014. A filosofia cristã18
Compartilhar