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COSMOVISÃO INDÍGENA E AFRICANA AULA 1 Prof. Awaju Poty 2 CONVERSA INICIAL No curso que estamos iniciando, vamos abordar a cosmovisão dos povos indígenas dando foco ao estudo da cosmovisão dos povos indígenas brasileiros e africanos. Serão seis momentos, sendo que, neste primeiro, teremos uma apreciação introdutória à cosmovisão indígena. No segundo, veremos como os povos indígenas, dentro da sua visão de mundo, tratam a dor e a doença. No terceiro, colocaremos o foco na cosmovisão das principais nações indígenas brasileiras. No quarto, colocaremos o foco na cosmovisão das principais nações africanas. No quinto, veremos como a cosmovisão indígena se apresenta na contemporaneidade. E, no sexto e último momento, faremos o encerramento do curso tirando as nossas conclusões sobre os tópicos abordados, destacando o que de mais importante aprendemos com a cosmovisão dos povos indígenas, principalmente com os povos indígenas brasileiros e africanos. Nesta primeira abordagem, faremos um estudo introdutório à “cosmovisão indígena brasileira e africana”, onde iremos buscar entender a maneira de ver e viver o mundo das culturas nativas do Brasil e da África. O diálogo com as culturas ancestrais muito pode nos ajudar. Somente compreendendo este universo, iremos ampliar a nossa maneira de enxergar as coisas. Estudar a cosmovisão dos povos indígenas nos permite a rara oportunidade de trazer novos conceitos para a nossa vida e nos livrarmos de possíveis pré-conceitos. Primeiramente, para compreender esta maneira diferente de ver o mundo, que possibilita a estas culturas um grau alto de conhecimento o qual as torna saudáveis, harmônicas com o meio ambiente e as perceptivas de outras realidades, e que, por nós, são pouco ou totalmente desconhecidas, teremos que apreciar alguns tópicos que nortearão a nossa investigação, tais como: saber que povos são estes que denominamos indígenas; conhecer quais são os elementos que caracterizam a sua cosmovisão; compreender a sua relação com o meio ambiente; e saber que conhecimentos são estes que os ajudam a 3 manterem-se saudáveis. Precisamos, também, aprender as características que distinguem um povo indígena da África de um povo indígena do Brasil. CONTEXTUALIZANDO A primeira vista, pode parecer que vamos apreciar um tema distante da nossa realidade cotidiana, mas, veremos que isso não é verdade. Trataremos de uma realidade que também permeia a nossa realidade cotidiana. Esta realidade entra em nossas vidas quando tomamos um chazinho para ajudar na digestão, quando fazemos uma simpatia para afastar mal olhado, quando proferimos um dito popular. Também quando participamos de um folguedo, de uma festividade ou de uma dança tradicional. Pode ainda estar no nome da cidade em que você mora, ou na montanha próxima ao lugar onde você vive, bem como no lago, ou no rio. Enfim, vamos estudar algo na qual a sua vida esta inserida, mesmo que você, até o presente momento, não tenha notado totalmente estes aspectos. Vamos juntos descortinar uma realidade que parece pertencer ao mundo dos mistérios, dos seres encantados, mas que, como lhes alertei, é algo para o qual precisamos abrir os olhos, pois se encontra onde nós nos encontramos. Esta realidade faz parte mais intensamente de povos que vivem junto à natureza, seja ela uma floresta, um deserto ou uma região glacial. Assim a eles e aos seus familiares, foi dado o nome de indígenas. Quanto à maneira como eles vivem e percebem o mundo, foi dado o nome de cosmovisão. Trabalharemos com um foco especial na cosmovisão dos povos indígenas do Brasil e da África, por serem os que mais impactam a nossa própria maneira de perceber o mundo. Desta forma, ela será colocada em contraste com a maneira “ocidental e oriental”, por serem as outras duas realidades que nos perpassam. Para compreendermos a cosmovisão dos povos indígenas, algumas questões se destacam e precisaremos respondê-las para termos o entendimento deste tema. Neste primeiro momento, nos deteremos nas questões que são introdutórias ao estudo da cosmovisão indígena, pois, 4 somente compreendendo e respondendo estes conceitos iniciais, poderemos nos aprofundar nesse universo de conhecimento. As questões no caso são as seguintes: 1. Que povos são esses que nós chamamos indígenas? 2. Que elementos caracterizam a cosmovisão dos povos indígenas? 3. Por que os lugares aonde eles vivem possui ar puro, água pura e ambiente preservado? A hipótese que traremos diz respeito às suas cosmovisões e a relação delas com a educação ambiental. 4. Por que, assim como o ar é puro, a água é pura e a terra é preservada, os povos, que neste ambiente vivem, também possuem corpos e mentes saudáveis? Como no item anterior, traremos aqui também a assertiva de que este fator se deve à relação da sua cosmovisão e a preservação da memória ancestral e do que podemos denominar de “ecopsicologia”, ou seja, de uma psique envolvida com o meio ambiente, em que: corpo, mente, espírito e meio ambiente são partes de uma mesma unidade. 5. Além disso, precisamos aprender a distinguir o que é similar e o que é diferente, nas várias cosmovisões dos povos indígenas do mundo e, em especial, dos povos indígenas brasileiros e africanos por serem os que estão mais próximos de nós. TEMA 1: POVOS INDÍGENAS Ficaram conhecidos como povos indígenas todos os povos tradicionais e nativos, isto é, povos que possuem sua identidade vinculada à natureza de um determinado lugar. São considerados indígenas brasileiros os povos que aqui habitavam antes da chegada dos colonizadores e que mantêm seu sistema de vida diferenciado do sistema de vida trazido pelo colonizador, o que não significa que com ele não tenha dialogado. Distingue-se o sistema de vida dos índios do dos colonizadores e seus descendentes, pelo impacto causado ao meio ambiente, por um e por outro, assim como a maneira de se relacionar social e espiritualmente com o mundo, com o seu semelhante e com os seus irmãos dessemelhantes, representantes dos outros reinos da natureza. 5 O mesmo acontece na África, o termo indígena é atribuído aos povos tradicionais em oposição aos residentes nas grandes cidades de perfil ocidental como, Cidade do Cabo, Johanesburgo, Nairóbi e outras metrópoles africanas (exemplo: cidade do Cairo). Outra diferenciação diz respeito ao complexo religioso e cultural, considerando-se povos indígenas os que se convencionou denominar de povos “xamânicos”, em oposição aos muçulmanos e cristãos. Atribuir à denominação de povos xamânicos, à sua cultura; de xamanismo, à sua maneira de compreender e viver a vida; e de xamã, aos sábios ou condutores deste saber, é outra maneira de se referir a uma mesma postura de vida. Esta posição, que bem define o que é um povo indígena, fica esclarecida pela declaração feita pelos participantes, em Buenos Aires, em 1996, da ‘Conferência de las Partes Del Convênio sobre Diversidade Biológica’, os indígenas emitiram a seguinte nota: El conocimiento íntimo sobre abundancia biológica que los pueblos indígenas hemos tenído a lo largo de nuestra evolución ancestral forma parte de nuestras culturas. Por lo tanto existe uma interdependência inviolable: La naturaleza es um elemento vital para la supervivência de nuestras culturas; y esas culturas poseen um vasto conocimiento sobre la naturaleza, vital para la supervivência de la biodiversidad. Nuestra existencia cultural es vana, se convierte em folclore, si se rompe nuestra relación armoniosa com la naturaleza; es dicir, si no se reconoce a los pueblos indígenas como parte de la diversidade biológica. (MANDER, 2002, p.107) TEMA 2: COSMOVISÃO DOS POVOS INDÍGENAS Na busca de entendimento e na transformação dos entendimentos sobre o mundo que nos rodeia,temos de levar em conta que, ao mesmo tempo em que atuamos sobre o mundo físico, este atua sobre nós, de modo que nos encontramos ligados em um constante circuito de atividades e sensações. Porém, nem nós, enquanto humanidade, nem tudo o que nos rodeia, contemplam significados e definições suficientes se ignorarmos a relação com o outro, ou seja, sem ou outro, ou tudo aquilo que coexiste no universo, não seríamos nada, e vice-versa. A este fenômeno, de interdependência dos significantes, Vitebsky denomina “imagem de dependência mútua”: Esta imagem de dependência mútua caracteriza uma posição ecológica avançada, mas integra também a visão xamânica do 6 mundo em que todas as coisas possuem espírito próprio – e não apenas os animais, mas também as plantas e as rochas, o vento e a chuva. Em qualquer dos sistemas de crenças, a compreensão da natureza do espírito é um profundo problema teológico e psicológico. (VITEBSKY, 2001, p.12). Este tipo de cultura religiosa representa o fruto de milênios de experiência, e, simultaneamente, proporciona um modo de atuar sobre o mundo. O xamanismo é uma religião prática e pragmática e nunca apenas mística. O sentido de unidade que proporciona, não nega a identidade separada de fenômenos distintos. São muitas as categorias no interior do íntegro universo indígena. Há inúmeros espíritos individuais com forma, nomes e características que lhes são próprias. O sol e a lua talvez sejam irmãos, como no caso dos guaranis mbya, ou pai e mãe (Kwaray ru’ete e Jaxy, ou seja, pai e sagrada mãe), como no caso dos guaranis ñandewa. Porém, suas relações com os humanos serão salientadas e determinadas pelos mitos que explicam como surgiram, como se transformaram no que são e como afetam as nossas vidas. Entretanto, há um conceito fundamental para se compreender as sociedades africanas. Este conceito é um diferencial com relação às sociedades indígenas brasileiras e, também, com relação às outras sociedades indígenas do mundo, trata-se do conceito da “força vital”. No próximo módulo, nas aulas três e quatro, vou abordar mais detalhadamente as especificidades das visões indígenas, mas já, neste momento, é interessante conhecer este conceito, na medida em que é uma particularidade da cultura africana. A Força Vital sempre foi associada aos bantos. A importância desta categoria, porém, não se restringe a eles, podendo ser encontrada entre os povos da África Ocidental e Setentrional. Fábio Leite, por exemplo, pesquisou sobre a Força Vital entre os Agni - grupo Akan - e Senufos, civilizações agrárias da África Ocidental, na região habitada pelos iorubas. Segundo LEITE (1984, p. 34), Força Vital “refere-se àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única realidade”. 7 A Força Vital, como vitalidade universal, não abrange apenas a relação do homem com a natureza, mas é capaz de individualizar-se nas relações entre o homem e a natureza. A profunda relação está nela sedimentada, uma vez que ela é a força capaz de gerir tal relação. Estas relações não se restringem apenas à relação homem-natureza, mas também incide sobre a realidade social, bem como sobre a relação do Homem com o sobrenatural, posto que é a fonte primordial da energia que engendra a ordem natural do universo. (OLIVEIRA, 2005, p.20) TEMA 3: COSMOVISÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL Ser escolhido pelos espíritos, ensinado por estes a entrar em transe e a voar com as almas das pessoas até outros mundos, no céu, ou a descer por meio de enormes fendas até os mundos sob a terra, é uma atribuição delegada ao xamã ou ao pajé, mestres de uma tradição ancestral. Adquirir o poder de combater os espíritos e curar as vítimas, de enfrentar os inimigos e de livrar seu povo da doença e da fome, são aspectos das religiões vinculadas à natureza que ocorrem em muitas partes do mundo. Porém, quando um pajé (xamã indígena brasileiro do tronco Karai-Tupi- Guarani) fala para outro mundo, ou fala de Ywy’marã’heym, a Terra-Sem- Males, não pretende significar que ele esteja desligado deste mundo. Muito pelo contrário, estes mundos representam a verdadeira causa dos acontecimentos na sociedade em que vivemos. É um conhecimento largamente divulgado na comunidade que o integra. Assim, há muitas pessoas que podem ser pajé, em maior ou menor grau, conforme a sua capacidade de entendimento e a sua visão dentro desta mesma realidade. Esta é uma característica comum aos xamãs das muitas comunidades indígenas dispersas pelas florestas, desertos e geleiras de nosso planeta, aonde a terra, o ar e a água ainda são puros. Precisamos considerar que não é ao acaso que as regiões preservadas de nosso planeta estão em território indígena. São resultado de milênios de seleção, adaptação e cultivo de gerações que se sucederam, fazendo do seu meio ambiente, o que eles são hoje: as florestas são antropomórficas, ou seja, resultado do manejo consciente e de uma apurada tecnologia de preservação 8 ambiental, passada de geração em geração, por meio de um processo educativo presente nos mitos e sagas cantadas em versos pelos mestres da tradição. Em Sete de maio de 2002, o povo U’wa fez a seguinte declaração, quando da retirada da Occidental Oil Company de suas terras, após longa e penosa luta por seus direitos: “Nuestros princípios culturales incluyen la defensa del derecho a uma vida digna, y el respecto por La Madre Terra y el medioambiente. son los elementos esenciales y sagrados que dejamos como herencia a nuestros hijos, a nuestros nietos y a sus descendientes.” (MANDER, 2002, p.108). Mandu’a Karai, minha amiga do povo Ñandewa, do Uruguai, coloca de uma maneira muito clara seu ponto de vista que esclarece com relação à consciência necessária para entendermos que fazemos parte de um todo, sendo que cada escolha que fazemos, em cada momento de nossas vidas, gera um efeito nessa totalidade da qual fazemos parte. Assim, somos responsáveis pelas consequências das decisões que tomamos. Diz: Ver al planeta em que vivimos como uma totalidad, como um organismo vivo, que es mucho más que la suma de sus partes. Todas las partes de este organismo se interrelacioban unas com otras, y de estas interrelaciones depende la vida de todos y cada uno de los seres vivos (...) mirarnos a nosotros mismos desde um lugar diferente, desde La naturaleza, que está em continua renovación, y desde esta nueva mirada, mirarla com otros ojos. Cambiar El punto de vista desde donde nos explicamos cotidianamente La vida. (Dominguez, 2016, p. 20). Nas culturas tradicionais da África, as coisas não acontecem de forma diferente, o mesmo respeito e consideração pela mãe terra, que encontramos entre os indígenas do Brasil, também é manifesto entre os quilombolas, afrodescendentes, e entre os nativos do continente africano, conforme bem observou Eduardo Oliveira: Com relação às sociedades africanas, uma das principais características também é a não apropriação individual do solo e o dever de transmiti-lo da mesma forma às próximas gerações. O homem deve ocupar o solo de acordo com os pactos com a terra selados por seus ancestrais. Esses pactos demonstram o profundo respeito e a importância arraigada na cultura desses povos no que se refere aos ancestrais. Esses pactos são respeitados, o que não impede que possam ocorrer pequenas transformações nesse espaço, como por exemplo, a terra pode ser repartida com terceiros (que não fazem parte da família) desde que a unidade produtiva mantenha o sustento da família extensa. Essas transformações, no entanto, não podem desestruturar o modelo tradicionalmente existente. 9 Quanto aos instrumentos de trabalho, também eles devem ser confeccionados da terra, ou seja, somente podem-se utilizar osinstrumentos que têm como matéria prima à própria terra e, por extensão, a natureza. Isso também é fruto do pacto estabelecido entre o Homem (sobretudo os ancestrais fundadores) e a terra (elemento natural fundamental e elemento sagrado por excelência). Os instrumentos de trabalho assim concebidos servem apenas para suprir o necessário à comunidade. Não há excedente na produção africana. O meio de produção (a terra) e os modos de produção (os instrumentos utilizados) destinam-se tão somente ao suprimento das necessidades vitais do grupo. Isso impede o desenvolvimento de tecnologias que favoreçam a acumulação do excedente a partir de técnicas artificiais de produção. (OLIVEIRA, 2005, P. 30). Em suma, o que podemos observar entre os dizeres dos povos indígenas brasileiros e africanos, e a sua prática de vida, que preserva a natureza, e a pratica ocidental com seus desastres ecológicos, é o que nos sugere Teresita Domínguez (2016, p. 22): “Podemos ver los abusos que cometemos contra El médio ambiente como proyecciones de nuestra destrucctividad inconsciente”. TEMA 4: COSMOVISÃO INDÍGENA E SUA RELAÇÃO COM A MEMÓRIA ANCESTRAL Nas sociedades indígenas, sejam elas brasileiras ou africanas, é por meio da oralidade que se difunde o conhecimento desenvolvido pelos antepassados, sendo por este meio que, um agente muito importante, o contador de histórias, repassa os acervos ancestrais, tornando o processo de assimilação um ato partilhado pela comunidade. Como dinâmica social, a arte de contar é uma prática cerimonial, um ato de iniciação à cosmovisão de um povo. O contador, ao narrar os mitos, traz uma compreensão sobre a lógica dos mistérios. As narrativas também compreendem os mitos de origem. Estes são muito importantes para a sobrevivência dos índios que se encontram sobre o julgo de povos invasores (colonizadores), porque ajudam esses povos a tecer uma historia alternativa ou uma contra narrativa a narrativa dominante, que habitualmente, é depreciativa à sua cosmovisão. Os mitos de origem inauguram sempre um novo recomeçar do presente. Nessa difusão feita pelo contador, percebemos as vozes ancestrais, a memória, que se faz presente. Assim, a visão sobre o mundo se rearticula, 10 preservando ou renovando o vasto manancial do saber de um povo sobre si e sobre o outro. Neste esparso universo em que o índio esta inserido, ele busca preencher as lacunas que cabem ao mistério com um gesto de prazer pelo qual o mundo possível dá lugar ao meramente existente e que, feito voz, é tecido em narrativas. Edward Said tem uma excelente percepção sobre esse aspecto da memória, nos diz: A inovação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas. (SAID, 1995, p. 11) Por outro lado, precisamos considerar que a memória não diz respeito apenas ao tempo, mas também ao espaço. Isso porque, na sociedade moderna, temos o fenômeno do índio destribalizado e deslocado do seu lugar original, seja no caso do confinamento em reservas, ou do índio acoplado na periferia das grandes cidades. Não podemos desconsiderar que hoje o sujeito cria certeza de si mesmo/a, em contextos que estão em constante modificação, este contexto é uma categoria do espaço e da localização. O fato de que memórias não dominantes (de índios, pessoas de cor, mulheres, homossexuais, migrantes) estão lutando por reconhecimento político-público faz com que o “fazer memória” ganhe uma nova vitalidade e, assim, a tensão entre perda e revitalização da memória torna-se objeto de suma importância para o entendimento da sociedade contemporânea e a lida com tradições. Isto acontece porque o diagnóstico possível tem consequência para a compreensão da nossa própria realidade. TEMA 5: RELAÇÃO ENTRE AS COSMOVISÕES DOS POVOS INDÍGENAS E, EM ESPECIAL, DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS E AFRICANOS A similaridade entre as culturas autóctones do Brasil e da África são bem maiores do que as suas dessemelhanças. As diferenças estão mais relacionadas com o meio ambiente, ou seja, com a diferenciação da fauna e da flora, do que com as suas visões de mundo. 11 A diferenciação apresenta-se, também, na expressão da sua compreensão do mundo, muito embora os fundamentos sejam semelhantes. Quero dizer com isso que são corpos diferentes que reagem de forma diferente às impressões que o mundo lhes causa. Como exemplo podemos dizer que interpretam musicalmente o mundo diferenciadamente. Os africanos apresentam uma música mais sincopada, ao passo que os índios brasileiros apresentam uma música mais tética (com rítmica constante e marcada nos tempos fortes). Mas as suas funções são semelhantes, pois tem o papel de dar vida ao canto e a dança, assim como de expressarem, musicalmente, os seus sentimentos e compreensões frente aos fenômenos da vida que os impacta. Os indígenas brasileiros possuem danças marcadas nos pés e pouco movimentam os quadris, ao passo que as danças africanas apresentam-se dando destaque ao arsis (deslocamento dos tempos fortes), dando ênfase no gingado do corpo (movimento dos quadris). Entretanto, as funções são similares e contemplam a ideia de integrar a comunidade em uma linguagem de movimentos, que os leva a uma comunhão com o universo em movimento e com a vida em constante mutação (dia e noite, estações, períodos de abundância e de escassez). As similaridades são grandes. Ambas as sociedades enxergam que tal como todas as pessoas são únicas e, no entanto, todas têm algo em comum, também todas as correntes de água e todas as montanhas têm um espírito único, com um nome e característica, e efeitos próprios sobre os seres humanos. Tais alternativas refletem as propriedades ambíguas do meio em que os animais, a paisagem e o clima nos podem alimentar ou destruir, em função da sua particular disposição no momento. Esta visão de mundo impregna determinantemente a concepção religiosa dos povos indígenas, dentro de uma catalogação que se convencionou denominar xamanismo. O xamanismo é uma religião prática e pragmática, e nunca apenas mística porque a sua função implica em uma interação com o meio ambiente, no sentido de que é possível a interferência humana nos fenômenos do espírito, do sobrenatural e do natural, seja com o uso de ervas, do canto ou da dança entre outros artifícios. 12 Poderíamos dizer que os africanos usam mais o sacrifício e os amuletos, enquanto os indígenas brasileiros fazem maior uso das ervas enteógenas e das defumações, mas isso se relativiza entre os diversos povos que compreendem a gama de índios, tanto africanos como brasileiros. Prefiro dizer, então, que a diferença entre as duas culturas esta na natureza dos corpos, dos climas e do meio ambiente, mais do que, essencialmente, na cosmovisão. Embora esta se expresse de maneira diferenciada, seja com relação ao panteão mítico, seja com relação à maneira de interagir com este panteão. Esta grande similaridade de percepção do mundo, no universo brasileiro, permitiu que houvesse grande interação entre as duas culturas nos ambientes de encontro, dando origem a muitas religiões sincréticas, onde os dois panteões se sobrepõem ou se complementam. SÍNTESE Neste primeiro momento do nosso curso, trouxemos alguns conceitos e um pouco da cosmovisão dos povos nativos do Brasil e da África e pudemos compreender porque estes povos vivem em harmonia com o seu meio ambiente. Certamente, quando você tomar um chazinho, ou participar de um folguedo tradicional, saberá da origem deste evento e irá compreender a que tipo de cosmovisão ele pertence. Agora, você sabe que é com ervas, tratamento fitoterápicoe com incenso, danças e rezas que os povos tradicionais e nativos, isto é, povos que possuem sua identidade vinculada à natureza de um determinado lugar, fazem a cura e restabelecem a harmonia de um individuo ou de um grupo tribal. Aprendeu, também, a perceber que um executivo do Cairo ou de São Paulo, com sua vida totalmente imersa no mercado de consumo, toda vez que torce para que seus negócios vão bem, é perpassado por uma cosmovisão indígena porque, por milhares de anos, esta foi a nossa postura perante o mundo. A falta de fé na vida, com a consequente depressão e pânico, é um fenômeno recente, faz parte da modernidade. Temos que levar em conta que 13 trazemos o indígena em nos, e que tanto mais saudáveis seremos quanto mais vivo ele se mantiver em nós. O indígena em nós é a natureza que possuímos com toda a sua pulsão de vida. O conhecimento da cosmovisão indígena traz o conhecimento de um paradigma complementar para a nossa sociedade urbana e abre um diálogo que muito pode ajudar na busca de soluções para a superação dos desequilíbrios que tanto prejudicam a saúde do homem contemporâneo e a natureza do planeta terra. REFERÊNCIAS DOMINGUEZ, Teresita. Así como adentro, afuera. Ed. Psicolibros, Montevideo, 2016. MANDER, Jerry. Guerra de paradigmas. Ed. Mander, Califórnia, 2002. OLIVEIRA, Eduardo David. Cosmovisão africana no Brasil. AM by Cassius for everyone. 2005. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Cia das Letras, São Paulo, 1995. VITEBSKY, Piers. O Xamã. Ed. Evergreen, Koln, 2001.
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