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Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6389-5 SO C IO LO G IA JU R ÍD IC A A n d rea C ristin a M artin s Sociologia Jurídica IESDE BRASIL S/A 2018 Andrea Cristina Martins Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M341s Martins, Andrea Cristina Sociologia jurídica / Andrea Cristina Martins. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 118 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6389-5 1. Sociologia jurídica. I. Título. 17-46198 CDU: 34:316.334.4 © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Gilmanshin/iStockPhoto Andrea Cristina Martins Doutora e mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e graduada em Direito pela mesma instituição. É professora universitária e advogada atuante na área de consultoria e assessoria ao terceiro setor. Sumário Apresentação 7 1 As relações entre a sociedade e o Direito 9 1.1 O estudo da sociedade: a Sociologia 9 1.2 O Direito como fato social 12 1.3 A Sociologia Jurídica 14 2 Os clássicos da Sociologia 21 2.1 A sociologia de Émile Durkheim: a divisão social do trabalho e a solidariedade 21 2.2 A sociologia de Max Weber: a busca do sentido da ação 25 2.3 A sociologia de Marx: a importância do trabalho na sociedade capitalista 27 3 Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 35 3.1 O que é a modernidade? 35 3.2 A existência da pós-modernidade 38 3.3 A pós-modernidade e o Direito 43 4 Grupos sociais e hegemonia 47 4.1 O que são grupos sociais? 47 4.2 Hegemonia e Estado ampliado 51 4.3 A contra-hegemonia 54 5 Direito e ideologia 59 5.1 Ideologia como falseamento da realidade 59 5.2 As várias perspectivas da ideologia 63 5.3 O papel dos intelectuais e a ideologia 66 6 Controle social, violência e política 71 6.1 O controle social e o Direito 71 6.2 As várias faces da violência 74 6.3 A relação da política com a violência 80 7 Democracia e globalização 85 7.1 A importância da democracia no Estado de Direito 85 7.2 O papel do cidadão 89 7.3 Os impactos da globalização na democracia 93 8 Mudança social e justiça 99 8.1 O que são movimentos sociais? 99 8.2 Relação entre movimentos sociais e as mudanças sociais 102 8.3 A justiça como valor social 105 Gabarito 111 Apresentação Ao longo da sua formação jurídica, os estudantes do curso de Direito dedicam-se inten- sivamente ao estudo das disciplinas denominadas dogmáticas, as quais tratam das normas ju- rídicas, seu processo legislativo, as possibilidades de interpretação, sua aplicação prática. Mas, além dessas, há também as disciplinas não dogmáticas, assim denominadas porque não focam apenas nas normas jurídicas e subsidiam o estudante com conhecimentos de outras ciências que são afins do Direito. O quão importantes são as disciplinas não dogmáticas para a compreensão do Direito? Pode-se aqui utilizar a analogia criada pelo professor Manuel Hespanha, ao afirmar que é possível comparar o estudo do Direito a uma floresta. As disciplinas dogmáticas estudam as árvores que compõem essa floresta, e, por isso, é preciso estudar cada ramo do Direito em disciplinas especí- ficas, individualmente, para compreender suas particularidades. Mas, também, é preciso estudar as relações entre essas árvores, para que se possa compreender o conjunto formado por elas, posto que uma floresta não é apenas a reunião de várias árvores, mas a interação existente entre elas. No entanto, destaca o professor, para compreender esse complexo inter-relacionamento, é preciso olhá-lo de fora, sair da floresta para conhecer seu tamanho, suas relações com outros ecossistemas, os rios que a cortam, seu clima e todo seu entorno. Em sua analogia, explica o professor, são as dis- ciplinas não dogmáticas que fazem essa função. Ao estudar Sociologia, Antropologia, Economia, Política, Psicologia, o estudante de Direito tem a possibilidade de compreender o Direito de modo mais amplo, entender sua complexidade e, dessa maneira, melhor entender como o Direito se for- ma, se transforma e se relaciona com a sociedade e com os indivíduos. Nesta obra, o objetivo é apresentar a relação do Direito com a sociedade, buscando apresen- tar autores, teorias e explicações sobre como ocorre essa relação. Assim, o livro busca trazer um olhar mais crítico sobre o estudo do Direito, mostrando suas complexas relações com a sociedade, compreendendo-a como uma pluralidade de interesses diversos e o Direito como fruto dessa tensa disputa existente na sociedade. 1 As relações entre a sociedade e o Direito Neste capítulo serão analisadas as relações existentes entre a sociedade e o Direito. Para tanto, estes são os questionamentos que irão nortear este estudo: há interferência do Direito na constitui- ção da sociedade? Existem relações entre os fenômenos sociais e a construção das normas jurídicas? Tais questões permitirão identificar a existência de uma relação dialética de interferências recíprocas entre as relações sociais e as normas jurídicas. O entendimento dessas interferências per- mitirá compreender que a sociedade se constitui a partir das influências que sofre do seu processo histórico, cultural, político, econômico, religioso etc. Este estudo também possibilitará o entendi- mento do Direito como sendo constituído por diversos fatores específicos de cada sociedade. Para promover reflexão, análise e pesquisa sobre essas relações existentes entre a sociedade e o Direito, serão também analisados o conceito e os objetivos da Sociologia Jurídica. 1.1 O estudo da sociedade: a Sociologia Para tratar da relação entre a sociedade e o Direito, faz-se necessário, primeiramente, enten- der o que constitui uma sociedade. Pode-se dizer que ela é compreendida como um agrupamento social que desenvolve relações sociais, compartilha valores, conhecimentos, tradições, constrói ins- tituições econômicas, políticas, religiosas e jurídicas com o intuito de atender às necessidades do grupo e promover uma convivência social civilizada. Em essência, uma sociedade é formada por indivíduos que produzem cultura, orientando-se por valores e regras e se agrupando de diferentes formas. Uma sociedade também se estratifica, cria instituições e mecanismos de controle e estabe- lece diferenciações entre seus integrantes. No seu mais importante sentido, entendemos por ‘sociedade’ uma espécie de contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos ou- tros, sem exceção; na qual o todo só pode subsistir em virtude da unidade das funções assumidas pelos coparticipantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionados, em grande parte, pela sua participação no contexto ge- ral. Assim, o conceito de sociedade define mais as relações entre os elementos componentes e as leis subjacentes nessas relações do que, propriamente, os ele- mentos e suas descrições comuns. (HORKHEIMER; ADORNO, 1977, p. 263) De acordo com o conceito citado, verifica-se a complexidade que envolve o estudo da socie- dade, sendo importante destacar o elemento de interdependência entre os seus membros. A vida em sociedade envolve uma coparticipação entre os indivíduos, que dividem e partilham as tarefas comuns, e é esse um dos elementos centrais na caracterização de uma sociedade. A Sociologia é a ciência que estuda a complexidade de uma organização social, como comenta Giddens: “a socio- logia é o estudo científico da vida humana, de grupos sociais, de sociedades inteiras e do mundo Sociologia Jurídica10 humano. É uma atividade fascinante e instigante, pois seu temade estudo é o nosso próprio com- portamento como seres sociais” (GIDDENS, 2012, p. 19). Assim, a sociedade, objeto da Sociologia, deve ser entendida de forma ampla e diversificada, com sua complexidade, em que os indivíduos desenvolvem relações sociais, afetivas, econômicas, religiosas, entre outras. Para Giddens (2012), os estudos sociológicos permitem identificar uma riqueza das relações sociais e verificar aquelas mais profundas existentes na sociedade, demonstrando a dinâmica dessas relações, interpretando fatos e instituições e demonstrando as tensões existentes no interior da socie- dade. Ainda segundo o autor, a Sociologia também tem outras funções, ela “nos ensina que aquilo que consideramos natural, inevitável, bom ou verdadeiro pode não ser, e que as coisas que consideramos como normais são profundamente influenciadas por fatos históricos e processos sociais” (GIDDENS, 2012, p. 19). A Sociologia também permite compreender a sociedade com base na produção do co- nhecimento científico, e não em opiniões pessoais ou experiências individuais. Mas quais são os objetos que podem ser estudados pela Sociologia? Giddens (2012) traz um exemplo sobre as possibilidades de estudo da Sociologia a partir de um fato do cotidiano: tomar café. A Figura 1 retrata uma cena com pessoas tomando café. O que cada um de nós pode refletir com base nela? É possível uma pesquisa sociológica sobre o uso do café? Figura 1 – O consumo do café na sociedade atual. An to ni oG ui lle m / i St oc kp ho to Giddens (2012) aponta cinco possibilidades de investigação sociológica ao tratar do consu- mo do café na sociedade contemporânea: 1. O café, além de uma bebida, representa também um valor simbólico. Para muitas pes- soas, o dia começa com o consumo de uma xícara de café. Isso também pode estar rela- cionado a um processo de socialização, em que pessoas querem se conhecer, ou trocar As relações entre a sociedade e o Direito 11 ideias, constituindo um processo de interação social, que pode ser objeto sociológico de pesquisa. 2. Como bebida, o café contém substâncias estimulantes para o cérebro, como a cafeína, que proporciona a muitas pessoas uma dose extra de energia no seu dia. O uso continua- do do café pode gerar um hábito que corresponde a um vício. Apesar de ser uma droga socialmente aceita, pode também ser um objeto de estudo para a Sociologia, pelas razões do uso e difusão dessa bebida e pelas consequências que pode causar nas pessoas. 3. Ao beber uma xícara de café, um indivíduo contribui para um longo processo produti- vo e econômico. Produção, transporte e distribuição do café fazem parte de uma grande cadeia econômica, geradora de riquezas que impactam as sociedades envolvidas nesse ciclo econômico, também podendo ser objeto da Sociologia, pois essas relações são locais e globais. 4. O consumo do café, apesar de globalizado atualmente, não foi sempre assim. Sua origem vem do Oriente Médio, mas foi com a expansão para o Ocidente, mais ou menos há 200 anos, que o produto foi sendo amplamente difundido. A maior parte do café produzido hoje no mundo vem de regiões como América do Sul e África, que foram colonizadas pelos europeus. Assim, também é possível analisar sociologicamente o café pelas rela- ções econômicas, produtivas, históricas e culturais envolvendo diferentes povos. 5. E, finalmente, o consumo do café na sociedade globalizada em que vivemos pode ser estudado por meio de temas atuais, como os direitos humanos, a sustentabilidade, a produção orgânica e o comércio justo. A Sociologia pode estudar as relações entre o processo de globalização e o aumento da consciência de problemas globais. Esses exemplos demonstram que a Sociologia, como ciência, pode estudar e pesquisar por meio de muitos enfoques diferentes um mesmo fenômeno ou fato social. No entanto, para que real- mente produza ao final de uma pesquisa um conhecimento científico, faz-se necessário o uso de métodos sistemáticos de pesquisa, com adoção de critérios, definição de formas de coleta e análise dos dados, para então poder chegar a um resultado válido. Uma pesquisa científica deve seguir etapas. Inicialmente, é necessário definir o tema para que se possa delinear com maior precisão o objeto a ser pesquisado. Depois define-se o problema, isto é, qual é a pergunta-chave que se procura responder com a realização da pesquisa. A seguir, o investigador deve estudar sua pergunta de partida com leituras e entrevistas exploratórias. Após essa fase, é possível definir a problemática da pesquisa e assim construir um modelo de análise, que será composto de uma fase de observação, incluindo a coleta de dados. Só então é possível seguir para a próxima etapa, que constitui a análise das informações, e chegar à fase final, que é a conclu- são da pesquisa (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1998). Realizar pesquisas sociológicas permite, em primeiro lugar, conhecer as diferenças culturais existentes no mundo e uma ampliação das perspectivas de como olhar o mundo. Também pos- sibilita uma maior autocompreensão, pois, quanto mais os indivíduos se conhecerem, souberem como e por que agem na sociedade, mais poderão contribuir e influenciar nas mudanças sociais (GIDDENS, 2012). Sociologia Jurídica12 O dinamismo e a transitoriedade das relações sociais existentes na contemporaneidade con- tribuem para a ampliação dos estudos sociológicos, pois a sociedade transforma-se cada vez mais rapidamente, exigindo mais estudos sobre as causas e consequências dessas transformações. 1.2 O Direito como fato social Após a análise sobre como se constitui uma sociedade e como ela pode ser estudada pela Sociologia, é preciso questionar como se constitui o Direito. É possível entender o Direito apenas como um conjunto de normas e regras que organizam a sociedade. No entanto, essa visão sobre o Direito é muito restrita, pois não responde a questões fundamentais, como: por que cada sociedade tem normas jurídicas próprias que podem diferir de outras sociedades? Por que as normas jurídicas mudam com o transcorrer do tempo? Para responder a essas questões, é preciso compreender o Direito como fruto das relações de uma sociedade. De acordo com Bobbio (2008, p. 3), a sociedade e o Direito estão relacionados, porque é possível compreender a vida social envolta em uma densa rede de regras de conduta, que se tornam parte da vida, são naturalizadas nas relações sociais. O autor compara a vida em sociedade com a trajetória de um pedestre no trânsito: há placas proibindo certas condutas, ou- tras prescrevendo comportamentos. Também é possível fazer uma comparação entre as placas de trânsito com as normas jurídicas ao indicar comportamentos e orientar as condutas. Ainda de acordo com Bobbio (2008), o conceito de Direito deve conter três elementos essen- ciais: a) remeter-se ao conceito de sociedade; b) conter a ideia de ordem social; e c) abranger a ideia de estrutura, de algo distinto da sociedade, mesmo fazendo parte da unidade social. Assim, fica claro que há uma relação intrínseca entre a sociedade e o Direito, conforme afir- ma Rosa (2001, p. 57): “a norma jurídica, portanto, é um resultado da realidade social. Ela emana da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações, o complexo de seus conceitos éticos e finalísticos”. Grossi (2005) também entende o Direito como decorrente da sociedade. O autor afirma que essa compreensão desmistifica a imagem do Direito como um instrumento do poder, como sendo apenas organizador ou ordenador da sociedade; ela desloca o sujeito produtor das normas jurídicas do Estado para a sociedade. Outra ideia que decorre desse resgate à formação do Direito com base nas relações sociais é a de que, na sociedade, há coexistência de sujeitos diferentes, com interesses e necessidades diversas, o que enriquece a compreensão do Direito. Dessa forma, é possível entender que o Direitofoi criado como fruto das relações existentes em uma sociedade, com base em valores. Assim, verifica-se que os fatos e as relações sociais sur- gem antes na sociedade e só posteriormente podem se constituir em normas jurídicas. Um exemplo dessa relação entre os fatos sociais e a produção das normas jurídicas é a Lei n. 11.705 (BRASIL, 2008), que fez alterações no Código de Trânsito Brasileiro e na Constituição Federal, tornando mais severas as punições àqueles que dirigem sob o uso de bebidas alcoólicas – e incluindo restrições às propagandas sobre elas. Na época da criação dessa lei, podia-se identificar As relações entre a sociedade e o Direito 13 na sociedade a necessidade de regras como essa, pois os dados sobre as mortes no trânsito decor- rentes do uso de bebidas alcóolicas eram muito altos. Na própria exposição de motivos que seguiu a aprovação da lei, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou o número dessas mortes, além do aumento do consumo de bebidas alcoólicas entre os jovens e o volume de recursos públicos gastos com acidentes de trânsito em virtude desse problema. Assim, é possível verificar que havia fatos concretos na sociedade que justificaram mudan- ças legislativas. Após a aprovação da lei, houve alterações positivas, como a diminuição desses aci- dentes, o aumento do uso de táxis por pessoas que ingeriram bebida alcoólica e precisavam voltar para casa, a contratação de veículos pelos estabelecimentos comerciais para levar seus clientes para casa e até a criação do que ficou conhecido como “motorista da rodada”, em que uma pessoa do grupo de amigos não ingeria bebida alcóolica para poder dirigir ao final do evento. No ano passado, 5,5% da população dessas cidades declararam que dirigiam após o consumo de qualquer quantidade de álcool, contra os 7% do ano de 2012. Os homens (9,8%) continuam assumindo mais a infração do que as mulheres (1,8%). Apesar disso, desde o endurecimento da lei seca, menos homens têm assumido os riscos da mistura álcool/direção: a queda foi de 22,2%, entre 2012 e 2015, na população masculina. (BRASIL, 2016) Esses exemplos permitem verificar o movimento dialético de interferência entre os fatos sociais na formação da legislação e a influência das normas jurídicas na organização social. No en- tanto, é preciso agregar mais um elemento para essa análise. O Direito decorre das relações sociais e se transforma em norma jurídica por meio de um processo legislativo estatal que ocorre de forma tensa e disputada pela diversidade de interesses de pessoas e grupos no processo legislativo, para que se aprovem, ou não, as normas jurídicas. Um exemplo sobre essas disputas existentes na sociedade por interesses divergentes e que se reproduzem no processo legislativo pode ser analisado na Lei n. 12.546 (BRASIL, 2011), que estabeleceu novas regras para comercialização, publicidade e consumo do cigarro. A alteração mais conhecida foi a proibição de fumar em espaços fechados, exigindo que estabelecimentos fizes- sem alterações para não permitir o consumo do cigarro em seus espaços internos e também que as pessoas mudassem seu comportamento. Cabe destacar que esse movimento de proibição já vinha acontecendo no país e diversos municípios e estados da federação brasileira tinham leis próprias antes da criação da lei federal. Como consequência dessa lei, há pesquisas que apontam uma correlação entre a proibição do consumo em lugares fechados e a diminuição do uso do cigarro, conforme dados do Portal Planalto (BRASIL, 2015): A pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel 2014), apresentada nesta quinta-feira (28) pelo Ministério da Saúde, revela queda de 30,7% no número de fumantes no Brasil nos últimos nove anos. A regulamentação da Lei Antifumo, a política de preço mínimo de cigarros e a proibição de fumódromos e de propagandas de produtos derivados do tabaco em todo o território nacional estão entre as ações do gover- no federal de controle do tabagismo. Sociologia Jurídica14 É importante destacar que a aprovação dessa lei não aconteceu sem disputas. Mas como identificar no processo legislativo essas tensões existentes? É possível inferir que a indústria do cigarro não tinha interesse na restrição do consumo e da publicidade do seu produto, porém isso era algo que existia na sociedade, e foram esses interesses que predominaram, ocorrendo, então, a aprovação da lei. É interessante observar que, no exemplo de lei citado primeiramente, não houve a proibição por completo da propaganda de bebidas alcoólicas na televisão; o que a lei estabeleceu foram horá- rios diferenciados para sua inserção. No entanto, no caso do cigarro, a proibição das propagandas na televisão foi completa, o que demonstra as tensões e a forma de disputa dos interesses de cada grupo e a definição do conteúdo das normas jurídicas. Dessa forma, é possível compreender que as normas jurídicas não decorrem automaticamente de necessidades ou valores contidos na sociedade, pois eles podem ser conflitantes. Há disputas e tensões para a incorporação desses interesses de cada grupo social no Direito. Para que isso aconteça, é preciso haver um processo de organização desses grupos e a movimentação no sentido de novas propostas legislativas e de convencimento da importância e necessidade dessas alterações. Um exemplo disso pode ser a ausência de lei no Brasil que regulamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pode-se questionar por que ela não existe. Apesar de o movimento LGBT no Brasil ter se organizado e de ter propostas legislativas sobre a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo há muitos anos, verifica-se que também há uma organização de algumas representações religiosas contrárias a essa regulamentação legal. Cabe destacar que, no ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão progressista, reconheceu a união estável entre casais homossexuais, assegurando direitos como pensão e herança. Por fim, é possível identificar outra função para o Direito: o papel emancipador e transfor- mador da sociedade, pois as normas jurídicas, ao serem criadas com base nas demandas sociais e serem eficazes no contexto societário, podem gerar mudanças que contribuem para ampliar o patamar civilizador. 1.3 A Sociologia Jurídica Após a identificação da correlação entre a sociedade e o Direito, cabe questionar: há uma ciência que estude essas relações sob a ótica do Direito? Inicialmente, a Sociologia Jurídica foi entendida por muitos autores como uma subdivisão da Sociologia. Para Cavalieri Filho (2009), a Sociologia jurídica tem se firmado como uma ciência autônoma, posto que tem objeto de análise próprio e inconfundível: o estudo do Direito como um fato social concreto, integrante de uma superestrutura social. [...] A finalidade da sociologia jurídica é estabelecer uma relação funcional entre a realidade social e as diferentes manifestações jurídicas, sob forma de regulamentação da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações, no tempo e no espaço. (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 58) As relações entre a sociedade e o Direito 15 É também necessário diferenciar a Sociologia Jurídica de outras ciências jurídicas (Quadro 1). Muitas vezes, há confusão entre os objetos de estudo da Sociologia Jurídica com a Filosofia do Direito e a própria Ciência do Direito. No entanto, há distinções importantes entre essas várias ciências, pois cada uma tem seu objeto próprio de análise, mesmo tendo o Direito como base para seus estudos. Quadro 1 – Diferenças entre Sociologia Jurídica, Ciência do Direito e Filosofia do Direito Sociologia Jurídica Fato Eficácia Ser Ciência do Direito Norma Vigência Dever ser Filosofia do Direito Valor Fundamento Poder ser Fonte: Cavalieri Filho, 2009, p. 65. Nessa comparação, verifica-se que a Sociologia Jurídica tem por objeto de estudo o fato social e analisa o Direito formado por normas jurídicas decorrentes da organizaçãosocial e investi- gando sua eficácia. A esfera de análise da Sociologia Jurídica se dá no campo da realidade concreta: o que são as normas, como se formaram, quais suas influências e tensões, quais seus objetivos, o que transformaram. Diferindo da Sociologia Jurídica, a Ciência do Direito tem suas pecualiaridades. Para os cientistas jurídicos, o objeto de estudo é a constituição das normas – em seus trâmites e regu- lamentações legais – e a dimensão de análise delas se dá pela sua vigência, e assim o estudo se dá pelo dever ser. As normas jurídicas, como uma abstração que organiza e regulamenta fatos, instituições e pessoas, têm uma proposição, são criadas para atingir um objetivo. No entendimento de Sabadell (2010, p. 61), a “Sociologia jurídica examina a influência dos fatores sociais sobre o Direito e a incidência deste na sociedade, ou seja, os elementos de interde- pendência entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico”. O objeto de análise da Sociologia Jurídica busca responder a três questões centrais (SABADELL, 2010): 1. Por que se cria uma norma ou um inteiro sistema jurídico? 2. Quais são as consequências do Direito na vida social? 3. Quais são as causas da decadência do Direito, que se manifesta por meio do desuso e da abolição de certas normas ou mesmo mediante a extinção de determinado sistema jurídico? Já a Filosofia do Direito tem como objeto de estudo o Direito como valor e sua dimensão de análise é o fundamento que constitui o Direito. [...] a Filosofia do Direito preocupa-se também com os fundamentos do Direito, queremos dizer que constituem igualmente objeto dessa disciplina os problemas relacionados com o ideal do direito, a natureza do que é jurídico, suas causas e seus princípios últimos, seu conteúdo ético a seu mundo axiológico, investigan- do ainda as ideologias ou correntes de pensamento que acabaram prevalecen- do e servindo de fundamento aos principais institutos jurídicos. (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 63) Sociologia Jurídica16 No Brasil, a teoria tridimensional do Direito, criada por Miguel Reale1, foi um marco de opo- sição à teoria dominante da época, a teoria pura do Direito, elaborada pelo alemão Hans Kelsen2, que entendia o Direito formado apenas pela norma, tendo essa a sua única fonte de formação. Para Reale (2002), o Direito pode ser apreciado sob três perspectivas diferentes: valor, norma e fato social. 1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela Política do Direito; 2) o Direito como norma ordenadora de conduta, objeto da Ciência do Direito ou Jurisprudência; e na Filosofia do Direito no plano epistemológico; 3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia e da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia Jurídica. (REALE, 2002, p. 509) A teoria tridimensional do Direito faz uma crítica à abordagem positivista do Direito, que o entende como sendo formado apenas pela norma jurídica. Para a teoria tridimensional, a norma é formada pela influência que sofre dos valores, perpassada pelos fatos sociais, conforme represen- tação da Figura 2: Figura 2 – Processo de formação da norma jurídica Co mp lex o a xio lóg ico Proposições normativas V1V2V3Vn P N F Complexo fático Fonte: Reale, 2002, p. 553. Na Figura 2, verifica-se que a norma jurídica (N) é uma agregação do complexo de valores (complexo axiológico) contidos na sociedade, que se refletem no conjunto dos fatos sociais (F), gerando novas proposições legais, que, por sua vez, ao percorrerem um processo legislativo (P), transformam-se em norma jurídica (N). Portanto, para Reale (2002, p. 569), “a norma jurídica é uma forma de integração fático-axiológica, dependendo dos fatos e valores de que se origina e dos fatos e valores supervenientes”. Esse processo de integração entre valor e fato, na produção das normas jurídicas pode ser representado na Figura 3, que demonstra o processo e a formação de uma norma. Importante 1 Miguel Reale (1910-2006) foi um jurista, filósofo, poeta e professor universitário, com grande e importante produção científica e filosófica sobre o Direito. Suas principais obras foram: Filosofia do Direito (1953), Pluralismo e liberdade (1963), Teoria tridimensional do Direito (1968) e Paradigmas da cultura contemporânea (1996). Foi também supervisor da comissão que elaborou o novo Código Civil (2002). 2 Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista austríaco, um dos mais influentes da Filosofia do Direito. Suas principais obras foram: A democracia, Jurisdição constitucional, Teoria geral das normas, Teoria geral do Estado e, sua obra mais famo- sa, Teoria pura do Direito. As relações entre a sociedade e o Direito 17 destacar que a formação da norma jurídica deixa claro que o Direito não é algo estanque, dado, concluído, mas sim fruto de uma integração e de uma dinâmica com a sociedade, ficando nítidas as causas das mudanças legislativas que passa cada sociedade e também por que cada sociedade possui um ordenamento jurídico diferente. Há uma tensão entre os valores e fatos presentes na sociedade, e é a partir dessas tensões que as normas vão se constituindo. Figura 3 – Processo do normativismo concreto v1 N1 N2 N3 Nn V2 V3 vn F1 F2 F3 Fn Fonte: Reale, 2002, p. 569. Existe um dinamismo na produção das normas, em que se incidem valores (V1) e fatos (F1) que se transformam em outros valores (V2, V3, Vn) e outros fatos (F2, F3, Fn) e assim sucessivamente em outras normas (N1 N2, N3, Nn). Tem-se um modelo explicativo para as transformações que ocor- rem no ordenamento jurídico, fruto das alterações sociais. Alguns exemplos dessas transformações recentes são: as normas de Direito de família que tratam da fertilização in vitro; as normas de Direito contratual que disciplinam as compras realizadas via internet; as normas de Direito do trabalho que regulamentam o teletrabalho etc. Considerações finais Neste capítulo, foram analisadas as relações entre a sociedade e o Direito. Foi possível identi- ficar que as ciências da Sociologia e do Direito têm objetos de pesquisa diferentes e que a Sociologia Jurídica tem por campo de análise a relação entre os fatos sociais e a formação do Direito, tendo, dessa forma, um objeto de pesquisa diferente das outras ciências. Também ficou claro que o Direito é um fato social e que sua formação é decorrente das reivindicações e das necessidades oriundas da sociedade. Mas essa transformação das demandas sociais em norma jurídica não acontece de forma neutra e impassível, pois o processo legislativo é fruto de tensa e disputada luta por interesses. Ampliando seus conhecimentos No texto a seguir, Bauman e May (2010) tratam sobre a importância da Sociologia como forma de compreensão da sociedade e do papel de cada indivíduo no contexto social. Aprendendo a pensar com a sociologia (BAUMAN; MAY, 2010, p. 11-12) A sociologia engloba um conjunto disciplinado de práticas, mas também representa con- siderável corpo de conhecimento acumulado ao longo da história. Percorrer com o olhar a seção de sociologia das bibliotecas revela um conjunto de livros que representa essa área de conhecimento como uma tradição de publicação. Essas obras fornecem considerável volume Sociologia Jurídica18 de informação para novatos na área, queiram eles se tornar sociólogos ou apenas ampliar seu conhecimento a respeito do mundo em que vivem. São espaços em que os leitores podem se servir de tudo aquilo que a sociologia é capaz de oferecer e, com isso, consumir, digerir, dela se apropriar e nela se expandir. Essa ciência configura-se, assim, uma via de constante fluxo, e os novatos acrescentam ideias e estudos da vida social às estantes originais. A sociologia, nesse sentido, é um espaço de atividade contínua que compara o aprendizado com novas experiências e amplia o conhecimento, mudando, nesse processo,a forma e o con- teúdo da própria disciplina. Isso parece fazer sentido. Afinal, quando nos perguntamos “o que é a sociologia?”, podemos nos referir a uma coleção de livros em uma biblioteca, que dão conta do conteúdo da disciplina – esse é um modo aparentemente óbvio de pensar sobre a matéria, posto que, se alguém nos perguntar “o que é um leão?”, podemos pegar um livro sobre animais e indicar uma imagem específica. Nesse sentido, estamos apontando para a ligação entre palavras e objetos. Assim, portanto, palavras referem-se a objetos, que se tornam referentes para essas palavras, e, então, estabelecemos conexões entre uns e outras em condições específicas. Sem essa capacidade comum de compreensão, seria impossível a comunicação mais banal, aquela que não costu- mamos sequer questionar. Isso, entretanto, não é suficiente para um entendimento de maior profundidade, mais sociológico, dessas conexões. Esse processo, contudo, não nos possibilita conhecer o objeto em si. Temos então de acrescen- tar algumas perguntas, por exemplo: de que maneira esse objeto é peculiar? De que forma ele se diferencia de outros, para que se justifique o fato de podermos a ele nos referir por um nome diferente? Se chamar um animal de leão é correto mas chamá-lo de tigre não, deve haver algo que leões tenham e tigres não, deve haver distinções entre eles. Só descobrindo essas diferen- ças podemos saber o que caracteriza um leão – o que é bem diferente de apenas saber a que objeto corresponde a palavra “leão”. É o que acontece com a tentativa de caracterizar a maneira de pensar que podemos chamar de sociológica. Satisfaz-nos o fato de a palavra “sociologia” representar certo corpo de conhecimentos e certas práticas que utilizam esse conhecimento acumulado. Entretanto, o que faz esses conteúdos e essas práticas serem exatamente “socioló- gicos”? O que os torna diferentes de outros corpos de conhecimento e de outras disciplinas que têm seus próprios procedimentos? Atividades 1. A Sociologia foi concebida como ciência diante da necessidade de se analisar a forma como se constitui e se organiza a sociedade. Explique quais as funções dos estudos so- ciológicos para os indivíduos e para a sociedade. 2. De que modo as normas jurídicas interferem na sociedade? 3. Foi estudado neste capítulo que o Direito é um fato social. Explique o porquê. 4. Qual o objeto de estudo da Sociologia Jurídica? As relações entre a sociedade e o Direito 19 Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro: J. 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SACADURA ROCHA, José Manuel de. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. THOMÉ, Clarissa. Lei Seca reduz em 6,2% acidentes no trânsito, diz Ministério da Saúde. Estadão, 18 jun. 2010. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lei-seca-reduz-em-6-2-acidentes-no-transito-diz- ministerio-da-saude,568699>. Acesso em: 19 dez. 2017. 2 Os clássicos da Sociologia Este capítulo tem por objetivo analisar o pensamento dos três principais sociólogos clássicos: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, no que tange às relações da sociedade com o Direito. Estudar esses três pensadores contribuirá para a percepção da sociedade com base em enfo- ques diferentes, permitindo uma ampliação das formas de se interpretar os fatos sociais e o Direito. Compreender como esses autores analisaram a sociedade, cada um em seu tempo histórico, também possibilitará o entendimento das alterações sociais ao longo do tempo e da forma como a Sociologia avançou para poder analisar tais transformações. Estudar os conceitos e categorias cria- das por esses autores será fundamental para o estudo da Sociologia Jurídica, que se utiliza desses conhecimentos para o estudo do Direito como um fato social. 2.1 A sociologia de Émile Durkheim: a divisão social do trabalho e a solidariedade Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o pai da Sociologia francesa, em virtude da im- portância de sua obra. Foi professor de Ciências Sociais no curso criado por ele na Universidade de Bordeaux e, posteriormente, foi nomeado professor da primeira cadeira de Sociologia na França, na Universidade de Sorbonne. Figura 1 – Retrato de Émile Durkheim W ik im ed ia C om m on s Suas principais obras são: Da divisão social do trabalho (1893), em que o autor estabelece o objeto de estudo da Sociologia; As regras do método sociológico (1895), na qual ele lança as bases metodológicas da nova ciência; e O suicídio (1987), obra em que aplicou o método em uma mo- nografia considerada modelo de pesquisa social, utilizando a estatística para estudo do suicídio como um fato social. Sociologia Jurídica22 Conceitos como fato social, solidariedade, crime, anomia, que são muito importantes para o estudo da Sociologia e do Direito, foram amplamente estudados por Durkheim. Sua obra tem dois grandes traços fundamentais: a preocupação com a autonomia da Sociologia e a dicotomia entre o indivíduo e a sociedade, buscando explicar o condicionamento social dos indivíduos. Um dos grandes objetivos de Durkheim foi a consolidação da Sociologia como uma ciência autônoma, definindo um objeto de estudo específico, diferente das demais ciências. Em sua obra As regras do método sociológico, dedicou-se a determinar o objeto de estudo para a Sociologia, isto é, o fato social. Para Durkheim (2002, p. 11), “é fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, uma existência própria, indepen- dente das manifestações individuais que possa ter”. O fato social é todo fenômeno social coerci- tivo, exterior aos indivíduos e que representa uma generalidade no grupo social. Desse conceito, extraem-se os três elementos essenciais que compõem essa categoria: • coerção; • exterioridade; e • generalidade. O primeiro elemento que compõe o fato social é a coerção. Sacadura Rocha (2009, p. 67) explica que “todo ser humano é obrigado a seguir umconjunto de regras e normas que o grupo social ao qual pertence lhe impõe”. Essas regras definidas pelo grupo são importantes para que o indivíduo tenha parâmetros de convivência social, servindo, também, como critérios definidores sobre o comportamento aceito pelo grupo, pois por meio dessas normas, o grupo perpetua valores que ajudam no processo de socialização do indivíduo no grupo social. O segundo elemento do fato social é a exterioridade. Para Durkheim, os fatos sociais são anteriores e exteriores ao indivíduo. Um indivíduo, ao nascer em uma sociedade, encontra já de- finidos os valores, as regras e as instituições que servirão como indicadores de conduta. Mesmo entendendo que o mundo exterior influencia o comportamento do indivíduo com um caráter con- servador de valores, ideias e instituições, Durkheim não deixa de acreditar na possibilidade de mudança na sociedade, sendo que essas mudanças devem ser fruto da ação de grupos sociais e não de indivíduos isolados. O terceiro elemento que compõe o fato social é a generalidade. Para que um fato seja um ob- jeto para o estudo da Sociologia, deve ter uma representação quantitativa na sociedade, isto é, não pode ser um fato ocasional ou isolado, mas estar presente na sociedade anterior e, posteriormente, aos indivíduos. Sendo o fato social o objeto da Sociologia, Durkheim também se dedica à forma como se deve estudar esse objeto. O estudo do fato social deve ser analisado com neutralidade pelo investigador, res- guardando a objetividade na análise, isto é, os fatos sociais devem ser estudados como um objeto exte- rior, distinto do investigador. Afirma Durkheim (2002) que o primeiro corolário de um investigador é afastar sistematicamente todas as suas pré-noções do objeto pesquisado. Os clássicos da Sociologia 23 Dessa forma, a pesquisa sociológica, para Durkheim (2002), deve seguir três princípios: 1. a compreensão de que a sociedade é regida por leis naturais; 2. o entendimento de que a sociedade pode ser estudada pelos mesmos métodos das ciên- cias da natureza; e 3. a percepção de que a análise da sociedade deve limitar-se à análise e observação dos fenômenos de forma neutra, objetiva, livre de julgamentos de valor. A segunda frente de estudos de Durkheim foi a oposição entre o indivíduo e a sociedade a qual pertence, pois o autor tinha uma preocupação com a integração da sociedade. Ele viveu um momento de grande instabilidade na França e isso gerou nele a preocupação com a continuidade e manutenção das relações sociais. Para tanto, o autor se dedicou a responder uma questão funda- mental: o que mantém a integração dos indivíduos em uma sociedade? Para responder a esse questionamento, temos o conceito de solidariedade, entendido como: acreditar que todos em uma comunidade devem exercer uma determinada ati- vidade importante e útil para o grupo, a partir da qual a relação de confiança se estabelece e o respeito ao trabalho exercido por determinado indivíduo o insere de forma eficiente na sociedade, permitindo-lhe estabelecer relações humanas efetivas que, por outro lado e ao mesmo tempo, acaba dando morfologia ao grupo, vale dizer, a solidariedade dá o caráter social ao indivíduo, por sua vez, pela sua atividade útil e aceita como tal, influencia a própria forma da sociedade a que pertence. (ROCHA, 2009, p. 73) Assim, a solidariedade – que é essa relação de confiança entre os indivíduos de um grupo, essa importância dada pelos indivíduos à atividade produtiva de outro agente social, o reconheci- mento da necessidade desse trabalho para o grupo – é o elemento vinculador entre os indivíduos e a causa da manutenção desses vínculos sociais. Para Durkheim, a solidariedade é impactada pela divisão social do trabalho. Uma sociedade, para ser considerada como tal, nasce a partir do momento que ocorre uma divisão social do tra- balho. O fenômeno da divisão do trabalho em uma sociedade marca um momento de transição da barbárie para a civilização e do estabelecimento do conceito de solidariedade. Dessa forma, a solidariedade será diferente conforme se dá a divisão social do trabalho. Para Durkheim, em uma sociedade pré-capitalista, em que há pouca divisão social do trabalho, há uma vinculação entre os indivíduos denominada solidariedade mecânica, marcada pela semelhança en- tre seus indivíduos e por uma maior influência dos valores e regras sociais no comportamento de cada um, pois nessas sociedades há maior identificação dos indivíduos com a família, a tradição, os costumes. Já nas sociedades mais complexas, em especial nas sociedades capitalistas de cunho indus- trial, em que há maior divisão social do trabalho, há uma outra forma de vinculação entre os indi- víduos, denominada por Durkheim de solidariedade orgânica. De acordo com Rocha (2009), nesse tipo de sociedade as características são profundamente alteradas. Ele destaca as principais: • O conhecimento é repartido por inúmeros trabalhadores fabris, enquanto os meios de produção são propriedade do dono do capital. Sociologia Jurídica24 • A educação é deslocada da família e da Igreja para o Estado. • Os valores tradicionais e religiosos são trocados por valores laicos. • A especialização é a marca na divisão social do trabalho, gerando maior interdependência entre as pessoas. Esse tipo de sociedade, marcada pela solidariedade orgânica, tem por característica princi- pal a diferenciação entre os indivíduos e uma maior valorização das mercadorias, mais do que o próprio trabalho em si. Para Rocha (2009), nas sociedades capitalistas, de solidariedade orgânica, há um risco de desintegração da solidariedade, pois ela passa a ser desvalorizada em função de uma maior va- lorização das mercadorias produzidas. “O problema social se agrava sempre que a comunidade valoriza mais a riqueza material do que o trabalho humano: a verdadeira riqueza de uma comu- nidade, aquela que mantém o grupo sobrevivendo em paz e respeito mútuos, é a que privilegia o trabalho material e intelectual de todos os seus membros” (ROCHA, 2009, p. 75). Durkheim também associa as sociedades com tipos diferentes de solidariedade à existência de diferentes tipos de Direito. Nas sociedades em que o estágio da divisão social do trabalho é a solidariedade mecânica, há o predomínio de um tipo específico de Direito: o Direito repressivo, em que prevalece o Direito público e a justiça tem por função principal a retribuição. A Justiça Retributiva caracteriza-se por se restringir a uma visão de indeni- zação à vítima; a vítima é indenizada materialmente, e como parte dessa in- denização, no âmbito social mais abrangente, a sociedade se sente indenizada se o infrator for severamente punido e pagar seu delito com exclusão social, que vai da reclusão e isolamento social, inclusive da família, até a perda de bens materiais, e, em muitos casos, a perda da própria vida. (ROCHA, 2009, p. 87-88) Já nas sociedades capitalistas, com divisão social do trabalho, marcada pela solidariedade orgânica, há outro tipo de Direito: o restitutivo, no qual predomina o Direito privado, e a justiça presente nessa outra ordem social é a justiça restaurativa, caracterizada não apenas por punir o delituoso, mas compreender as causas do fato social. Nesse tipo de justiça, o Poder Judiciário e o próprio sistema penal têm um papel importante de inclusão do infrator na sociedade. Essas conclusões são importantes para o estudo do Direito, como, por exemplo, no estudo da anomia. Para Durkheim, a anomia é a ausência de regulação social decorrente do desregramen- to dos indivíduos pela perda da influência dos valores morais da sociedade sobre os indivíduos. O autor identifica uma crise moral na sociedade, decorrente da fragilidade da coesão social e que pode ser recuperada pela capacidade do Estado de fiscalizar e participar ativamente no estímulo da regulamentação das profissões e na organização da educação. Esse diagnóstico de Durkheim é muito importante para o estudo da Sociologia Jurídica, ao relacionaro papel do Estado com uma crise moral na sociedade. Os clássicos da Sociologia 25 2.2 A sociologia de Max Weber: a busca do sentido da ação Maximillian Carl Emil Weber (1864-1920) foi um intelectual alemão, jurista e economista, considerado um dos fundadores da Sociologia. Suas principais obras são: A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905) e Economia e sociedade (1922). Figura 2 – Retrato de Max Weber W ik im ed ia C om m on s Para Max Weber, o estudo da sociedade deve ser feito levando-se em consideração que as so- ciedades, a cada período histórico, resultam de uma diversificação de fatores. Diverge de Durkheim, que entendia ser possível para as ciências sociais identificar constância e leis deterministas para a compreensão da formação e manutenção das sociedades, o que para Weber não é possível. A investigação da sociedade, para Weber, deve orientar-se pela conduta dos indivíduos. Para tanto, o método utilizado pelo autor foi o método compreensivo, no qual buscava compreen- der e capturar o sentido das ações sociais realizadas individualmente. Para Weber (2000, p. 6), compreensão significa “apreensão interpretativa do sentido ou da conexão de sentido”. Dessa for- ma, em seu método ele busca compreender o sentido das ações, mas também explicá-las, pois “sentido” é algo subjetivamente pretendido pelo indivíduo. No método compreensivo, Weber utiliza o conceito de ação social. Mas o que é uma ação social? Para Weber (2000, p. 3), a ação social significa uma ação que, em relação ao sentido visado pelo agente, ou agentes, refere-se ao comportamento de outros, orientando-se por estar em seu curso. Isto é, uma ação social é a conduta humana dotada de sentido, uma ação com uma justifica- tiva subjetivamente elaborada. A expressão os outros, contida no conceito de ação social, significa um indivíduo ou uma multiplicidade de indivíduos, mesmo que indeterminada. Weber (2000) identifica quatro tipos de ação social: 1. De modo racional referente a fins – Nesse tipo de ação, há uma racionalidade do in- divíduo na escolha dos melhores meios para atingir um fim, isso é, há uma elaboração racional dos meios e das possíveis consequências dessas ações. É possível identificar esse Sociologia Jurídica26 tipo de ação quando o indivíduo pensa da seguinte forma: “Vou estudar durante o curso de Direito porque quero ser um advogado”. 2. De modo racional referente a valores – Quando a ação é orientada por valores éticos, estéticos ou religiosos, o indivíduo elabora racionalmente sua ação, mas o objetivo alme- jado não é apenas alcançar um fim, mas distinguir quais os meios que serão utilizados para obter o que se pretende. Na escolha desses meios, estão os valores éticos defendi- dos pelo indivíduo que quer atingir um objetivo, mas que não desrespeita seus valores. Esse tipo de ação é possível ser identificado quando o indivíduo pensa, por exemplo, da seguinte forma: “Vou separar os resíduos sólidos que produzo, porque acredito na necessidade de um planeta sustentável”. 3. De modo afetivo – Na ação movida pelas emoções, o indivíduo tem por base seus sen- timentos. Pode-se identificar esse tipo de ação quando o indivíduo pensa, por exemplo: “Vou comprar um presente para minha namorada porque a amo”. 4. De modo tradicional – Nesse tipo de ação, o indivíduo age movido por tradições, costu- mes, valores e cultura arraigados e devido a padrões de comportamento já inseridos em seus hábitos. Esse tipo de ação é possível de ser identificado quando o indivíduo pensa, por exemplo: “Na minha família, todos os domingos, almoçamos juntos”. A ação social gera efeitos no meio social, e esses efeitos podem fugir ao controle ou à previ- são daquele que a realiza, pois, apesar de o agente ter um sentido para sua ação, não é possível ter um prognóstico das consequências dessas ações. Assim, não há uma classificação rígida das ações, mas apenas da intenção que está contida na ação. Uma mesma ação social pode ser direcionada por sentidos diferentes, quando realizada por indivíduos diferentes. Por exemplo, quando o indivíduo vai escolher sua profissão, ele pode decidir cursar a faculdade de Direito porque quer exercer a profissão de advogado (o sentido de sua ação está racionalmente direcionado a um fim), ou pode fazer o mesmo curso com a intencio- nalidade de aprender sobre a sociedade e seu ordenamento jurídico para depois optar por uma das carreiras jurídicas (o sentido de sua ação está relacionado racionalmente ao valor do estudo), ou porque gosta muito da área e entende que essa é sua aptidão (o sentido de sua ação está relacionado aos seus sentimentos), ou, ainda, pode cursar essa faculdade porque seus pais e avós também cur- saram a faculdade de Direito (o sentido de sua ação está ligado à tradição da sua família). Weber (2000) também estuda as relações sociais, que acontecem quando dois indivíduos orientam suas ações pelas perspectivas que têm um do outro, mas não necessariamente colocam o mesmo sentido em suas ações. “Por relação social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência” (WEBER, 2000, p. 16). Um exemplo de relação social é a relação entre professor e aluno, em que o professor quer ensinar e o aluno quer aprender. Mas, também, pode ocorrer de o professor querer ensinar, mas o aluno querer apenas o título ao final do curso. Mesmo havendo essa inadequação das expectativas das ações de um indivíduo em relação ao outro, ainda há uma relação social. Os clássicos da Sociologia 27 Assim, é possível entender que uma relação social é apenas uma probabilidade de que a res- posta esperada venha a acontecer entre os indivíduos envolvidos. Para Weber, essa relação também acontece na relação entre o indivíduo e a lei. Para o autor, essa é uma relação subjetiva, pois cada indivíduo pode fazer uma interpretação diversa e ter um sentido para sua ação com base nas nor- mas jurídicas. Isso possibilita uma análise do Direito como um conjunto organizado e sistemático de normas, de forma subjetiva e não objetiva. Rocha (2009, p. 110) explica em outras palavras: “se a base desse ordenamento jurídico é o conjunto de leis que pretendem ordenar um determinado grupo social, e se a relação entre a lei e o indivíduo é desse tipo probabilístico, o Direito deve ser considerado ‘subjetivo’ e não ‘objetivo’”. Mas se o Direito é compreendido como subjetivo, então como garantir a aplicação das nor- mas jurídicas? Para Weber, é o Estado que exerce o domínio sobre os cidadãos pelo uso da violência controlada em troca de favores e interesses. Esse tipo de dominação foi denominada por Weber de dominação racional legal, e é caracterizada pela relação entre Estado e cidadão pelo exercício do poder racional pelo Estado, entendido como útil e necessário aos cidadãos com base nas leis. Weber identifica também dois outros tipos de dominação, a dominação tradicional e a do- minação carismática. A primeira é caracterizada pela presença de um líder que domina a socieda- de com base na tradição e nos costumes dessa sociedade. Já a dominação carismática se dá pela presença de uma liderança personalíssima. Esse líder se utiliza desse poder influenciador para controlar a sociedade. Assim, percebe-se a importância do estudo de Max Weber para a Sociologia Jurídica, pois esse autor realizou o estudo das relações entre o indivíduo, o Direito e o Estado, de forma que até hoje esses modelos explicativos são utilizados para a análise do Direito. Categorias como burocracia, empresa, poder e dominação também foram estudadas por Weber e mantêm sua re- levância na atualidade. 2.3 A sociologia de Marx: a importância do trabalho na sociedade capitalista Karl Heinrich Marx (1818-1883) foi um filósofo e intelectual alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia devido a sua profunda e complexa obra. Sua análise sobre a sociedade capitalista tem ainda nos dias atuais repercussõesem pesquisas nas áreas da Sociologia, do Direito, da Economia, da Filosofia, da Teologia e da Política. Marx teve uma intensa produção de textos e livros, sendo suas principais obras: Manuscritos econômicos-filosóficos (1844, publicados apenas em 1930); A crítica da filosofia do direito de Hegel (1844); A ideologia alemã (1845-46); Manifesto do Partido Comunista (1848); Trabalho assalariado e capital (1849); Contribuição à crítica da economia política (1859); Salário, preço e lucro (1865); e O capital (1867). Sociologia Jurídica28 Figura 3 – Retrato de Karl Marx W ik im ed ia C om m on s Em sua investigação, Marx entende que o real é o guia fundamental para se pensar na his- tória e acontece a partir de contradições. Essas contradições históricas não ocorrem naturalmente, elas são provocadas pelas diferenças econômicas de classes. Marx dedicou grande parte de sua vida à busca da compreensão das particularidades do sis- tema produtivo capitalista. Ele entendia que a humanidade construiu diversos sistemas produtivos por meio da luta de classes, e que o capitalismo é uma dessas etapas de desenvolvimento histórico da humanidade. Na realização de sua pesquisa, Marx utilizou o método dialético e produziu um denso e complexo modelo explicativo, que contemplou as múltiplas determinações que incidem sobre o capitalismo, suas origens e suas consequências. O método dialético propicia ao pesquisador ir além da aparência e buscar a essência do objeto pesquisado pela captura da sua estrutura e dinâmica. Realizando uma síntese, o pesquisador reproduz no plano ideal a essência do objeto pesquisado (PAULO NETTO, 2011, p. 22). No que diz respeito à epistemologia1, de acordo com Faria (2015), Marx se utiliza do materialismo histórico, cuja realidade deve ser analisada dentro de seu processo de formação histórica, que, na verdade, não é estática, mas um movimento no qual devem ser encadeadas as relações. [...] Marx elabora uma obra multi e interdisciplinar, complexa e substancial, onde disciplinas como Sociologia, Filosofia, Economia, Política, Antropologia, Psicologia, Religião, Ética, e mesmo ciências naturais como a Biologia, se apre- sentam imbrincadas contribuindo de forma sistêmica para a defesa de suas teses. (ROCHA, 2009, p. 120) 1 Cabe esclarecer que a epistemologia é entendida “como o estudo crítico do conhecimento científico, técnico e fi- losófico”, buscando “responder como o conhecimento é produzido (construído, obtido, desenvolvido), organizado, sistematizado e transmitido (explicitado, divulgado, exposto)” (FARIA, 2015, p. 60). Os clássicos da Sociologia 29 Ao analisar a sociedade, Marx identifica duas estruturas: infraestrutura e superestrutura. 1. A infraestrutura é a realidade material, em que ocorrem as relações entre os indivíduos. Essa estrutura subdivide-se em: a. forças produtivas que são formadas das relações dos indivíduos com a natureza na busca pela sobrevivência; b. relações sociais de produção que são formadas pelos vínculos estabelecidos entre os indivíduos proprietários e os não proprietários, e entre os não proprietários e os meios de produção. 2. A superestrutura é a realidade imaterial, refere-se ao nível ideológico e político da so- ciedade. O nível ideológico é formado por ideias e pensamentos advindos da educação, filosofia, religião, moral, artes e ciências. O nível jurídico-político é formado pelo Estado e pelo Direito e tem uma função de controle e dominação. Para detalhar essa síntese da organização social, faz-se necessário explorar alguns conceitos- -chaves. Ao tratar sobre as forças produtivas, Marx está analisando a importância do trabalho em uma organização social. Para ele, o trabalho é uma necessidade, é a ação humana que transforma a natureza e que tem a finalidade de suprir as necessidades materiais. Partindo do conceito de práxis2, Marx analisa a centralidade do trabalho no processo de humanização. Na sociedade capi- talista, o trabalho assume a forma assalariada, marcado pela divisão de classes e pela legitimidade da propriedade privada. Assim, o trabalho assalariado assume a característica de um processo de dominação de classe e de subordinação do trabalho ao capital. Com base na análise das relações sociais de produção, pode-se identificar as duas principais classes que compõem o modo de produção capitalista. Marx produziu diversos textos em que trata das classes sociais, mas não conclui sua teoria de classes. Para a presente obra, interessa destacar que as classes são definidas pelo lugar que ocupam no processo produtivo. Há duas principais classes sociais no capitalismo porque há duas grandes posições a serem ocupadas no processo pro- dutivo: quem é dono dos meios de produção é considerado parte da classe burguesa; quem vende sua força de trabalho é considerado parte da classe proletária. A relação estabelecida entre os burgueses proprietários dos meios de produção e o pro- letariado dono apenas da sua força de trabalho se dá de forma desigual, gerando o conflito entre classes. Nessa relação conflituosa, há o surgimento de uma taxa de exploração, denominada por Marx de mais-valia, que é o valor apropriado pelo capitalista na produção das mercadorias. Essa apropriação acontece porque o capitalista, ao contratar o proletário, paga a este uma remuneração mínima, com vistas apenas à sua sobrevivência, mas esse valor é inferior ao lucro gerado pelo ca- pitalista na produção das mercadorias. Esse excedente não pago ao proletário é apropriado pelo 2 “A práxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade humana e não humana, a realidade na sua to- talidade. A práxis do homem não é a atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade” (KOSIK, 1976, p. 202). Sociologia Jurídica30 burguês na forma de mais-valia. A produção da mais-valia está associada à produção das mercado- rias, base para a comercialização, tendo como principal objetivo a obtenção do lucro. Mas o que é o lucro? Para Marx (2013), o estudo da origem do lucro está associado ao pro- cesso de produção e não ao processo de troca ou circulação das mercadorias. É no processo de produção que se cria a mais-valia, pois ela acontece a partir do tempo de trabalho executado pelo proletário, mas que não lhe é pago. Por isso, para Marx, o capital é fruto de uma relação social, pois o acréscimo do valor utilizado na produção só aumenta por meio dessa relação de exploração da força de trabalho proletária. Assim, é importante diferenciar o lucro da mais-valia. O lucro é o excedente do capital inves- tido inicialmente no processo de produção; no entanto, a mais-valia se dá apenas pela exploração da força de trabalho não paga ao trabalhador. [...] o mais-valor efetivo é determinado pela relação entre o trabalho excedente e o trabalho necessário, ou entre a porção do capital – a porção do trabalho objetivado – que se troca por trabalho vivo e a porção do trabalho objetivado pela qual ela é substituída. Mas o mais-valor na forma do lucro é medido em relação ao valor total do capital pressuposto no processo de produção. (MARX, 2011, p. 624) Assim, o lucro depende da relação entre trabalho necessário e seu excedente não pago ao trabalhador (mais-valor). A geração da mais-valia, para Marx (2013), pode acontecer de duas formas: mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A primeira acontece pelo aumento da jornada de trabalho. O capitalista empregador aumenta o tempo que o trabalhador proletário fica à sua dis- posição produzindo, mas não aumenta o valor de seu salário. A mais-valia relativa acontece quando o capitalista empregador intensifica a produção sem aumentar a jornada de trabalho; dessa forma, o trabalhador proletário trabalha mais e produz mais, mas não há aumento no valor do salário. A existência das mercadorias é parte fundamental dosestudos de Marx, pois a mercadoria é um dos elementos básicos da economia capitalista. Para Marx (2013), uma mercadoria pode ter um valor de uso e um valor de troca. A diferença é que o valor de uso da mercadoria está relacionado ao seu conteúdo, como aquela mercadoria pode satisfazer necessidades humanas; já o valor de troca está associado à capacidade que uma mercadoria tem de poder ser trocada por outra mercadoria. É pela possibilidade de trocar mercadorias por outras que o sistema econômico vai se tornando mais complexo; pois como é possível medir a grandeza do valor de cada mercadoria? Para o presente estudo, o importante é saber que, para que essas trocas entre mercadorias aconteçam, é necessária outra mercadoria: o dinheiro. Assim, pode-se entender a origem do valor, de acordo com Marx (2013), pela análise de duas formas: a. forma de valor relativa – uma mercadoria trocada por outra mercadoria, ou uma merca- doria sendo trocada por várias mercadorias; b. forma de valor equivalente – todas as mercadorias podem ser trocadas por dinheiro. Assim, as mercadorias funcionam como medida de valor, seja em seu próprio elemento ma- terial, seja na forma de dinheiro. Na sociedade capitalista, o dinheiro passa a ser uma mercadoria Os clássicos da Sociologia 31 amplamente desejada, pois assim pode-se adquirir qualquer outra mercadoria posta no mercado, já que no mercado mundial a mercadoria dinheiro passa a funcionar como forma de pagamento. A complexidade da análise de Marx sobre a sociedade capitalista está presente no estudo da mercadoria, pois esta, além de ser a base da economia capitalista, serve também para o estudo da alie- nação do trabalhador. Para Marx (2013, p. 146), “uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intrincada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Explorando um pouco mais essas ideias: O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como proprieda- des sociais que são naturais a essas coisas e, por isso reflete também a relação social dos produtos com o trabalho total como uma relação social entre os obje- tos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p. 147) Dessa forma, o autor explica que a mercadoria, apesar de ser produzida pelo trabalhador, assume uma característica misteriosa que parece ganhar vida própria: assim, a mercadoria torna-se desejo de aquisição pelo próprio trabalhador, criando um ciclo que se autoalimenta. O trabalhador produz as mercadorias, cujo valor é fruto do seu trabalho somado ao mais-valor do empregador capitalista, e o trabalhador, ao adquirir essas mercadorias, contribui para o retorno do lucro ao capitalista. Esse processo, que o autor denominou de fetichismo da mercadoria, envolve os indiví- duos na sociedade capitalista fazendo parte da própria formação da subjetividade do indivíduo e marcando profundamente o indivíduo em seu psiquismo. Marx e Engels (2005) apontam que a divisão do trabalho leva o trabalhador à alienação, que pode acontecer de várias formas no sistema capitalista: 1. Alienação dos meios de produção – o trabalhador não possui os meios de produção e não tem recursos para comprá-los; possui apenas sua força de trabalho. 2. Alienação do processo produtivo – o trabalhador não sabe fazer o produto completa- mente. Ele conhece apenas uma parcela do processo produtivo, pois a produção passa a ser intensivamente dividida, parcelada. Cada trabalhador domina apenas uma parte da produção de determinado produto. 3. Alienação da compreensão – o trabalhador está direcionado a sua sobrevivência, pois precisa trabalhar para sobreviver, e assim se aliena na compreensão do funcionamento do sistema capitalista. Marx, ao estudar sobre a alienação, faz uma crítica sobre a posição dos proletários em so- ciedade, pois, apesar de serem fundantes para o sistema capitalista funcionar, não percebem essa essencialidade e, assim, sofrem um processo de exploração. Tendo por base a análise da superestru- tura, é possível explorar os conceitos de Estado, Direito e ideologia na teoria marxista. Para Marx, o Estado e o Direito representam os interesses da classe dominante, isso é, a clas- se burguesa, que, na sociedade capitalista, além de ter o domínio econômico, tem também o domí- nio político, e, dessa forma, incorpora no Estado e no Direito seus interesses, buscando controlar as contradições e divergências inerentes a uma sociedade conflituosa como a capitalista. Sociologia Jurídica32 A sociedade do modo de produção capitalista sofre a dominação econômica da classe dominante, a burguesia. Esta não pode manter e conter as contradições sociais senão recorrendo a um aparelho repressivo, o Estado. A classe econo- micamente dominante é pois também a classe politicamente dominante; ela investe o aparelho de Estado (administração, exército, política, justiça, etc.) e fá-lo funcionar no sentido dos seus interesses. (MIAILLE, 1994, p. 134) Mas a classe burguesa utilizará também de outros meios para a manutenção de sua domina- ção, a ideologia. Para Marx, de acordo com Chaui3 (1989, p. 94), a ideologia “consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina o plano espiritual (das ideias)”. Assim, a ideologia é um processo de inversão da realidade, ou, dito de outra forma, é um falseamento da realidade, é a criação de uma situação, em que as aparências da realidade são en- ganadoras: “em toda ideologia, a humanidade e suas relações aparecem de ponta-cabeça, como ocorre em uma câmara escura, tal fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma maneira pela qual a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico” (MARX; ENGELS, 2005, p. 51). Como todas as relações sociais são fruto da realidade concreta, a consciência dos indivíduos também se forma nesse processo. Para Marx e Engels (2005, p. 52), “os homens ao desenvolverem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir de sua realidade, também o seu pensar e os produtos de seu pensar”. Isso significa que a forma de pensar dos indivíduos está relacionada diretamente com a sociedade à qual pertencem, e, para poder mudar tal forma de pensamento, é necessário alterar a realidade concreta. Por isso, Marx acreditava que a revolução da classe proletária era a única forma de rompimento com o modo de produção capitalista, pois o capital é gerado pela relação entre proletários e burgueses, e, assim, se os proletários rompessem com essa relação, poderia ser criada uma nova forma de organização social, menos desigual e sem exploração. Os estudos de Marx são fundamentais para a análise da sociedade capitalista, por isso sua relevância na disciplina de Sociologia Jurídica. Categorias centrais da Sociologia e do Direito, como trabalho, classes sociais, consciência de classe, estrutura social, Estado e Direito foram estudadas por Marx. No estudo do Direito, em especial do Direito do Trabalho, as categorias estudas por Marx são imprescindíveis para uma análise e compreensão mais aprofundada da sociedade e do próprio Direito. 3 Marilena Chaui é uma filósofa brasileira, que tem uma ampla produção acadêmica e que estuda o tema do poder, da violência e da estrutura da sociedade brasileira, além dos temas clássicos da Filosofia. É professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Suas principais obras são: A ideologia da competência; A nervura do Real; Brasil: mito fundador e sociedade autoritária; Boas-vindas à Filosofia; Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa; Espinosa: uma filosofia da liberdade; Introdução à História da Filosofia(v. I e II); Manifestações ideológicas do auto- ritarismo brasileiro; Convite à filosofia; O que é ideologia; O ser humano é um ser social; Política em Espinosa. Os clássicos da Sociologia 33 Considerações finais Neste capítulo, foram estudadas as principais ideias de três autores clássicos da Sociologia: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. O objetivo foi identificar as categorias centrais do estudo de cada autor e fazer uma relação com temas do Direito. Importante destacar que o estudo desses três autores possibilita uma diversificação na aná- lise de temas centrais para a Sociologia Jurídica, como o Direito, a justiça e o Estado, pois cada um desses autores apresenta uma análise diferente sobre esses temas. Ampliando seus conhecimentos O texto a seguir procura demostrar uma conexão entre os pensadores estudados neste ca- pítulo: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, fazendo uma breve correlação entre as ideias centrais desses três autores. O livro da sociologia (THORPE et al., 2015, p. 31) A análise de Marx sobre como o capitalismo criou as classes socioeconômicas no mundo industrial baseada em algo mais que pura teorização e, como tal, foi um dos primeiros estudos “científicos” da sociedade a oferecer uma explicação completa da sociedade moderna em ter- mos econômicos, políticos e sociais. No processo, ele apresentou vários conceitos que se tor- naram centrais no pensamento sociológico posterior, especialmente na área das classes sociais, como o conflito e a consciência de classe e as noções de exploração e alienação. Na geração que sucedeu a de Marx, tanto Émile Durkheim quanto Max Weber frequente- mente considerados junto com Marx, os “fundadores” da sociologia moderna, ofereceram uma visão alternativa à dele. Durkheim reconheceu que a indústria moldou a sociedade moderna, porém defendeu que era a própria industrialização, em vez do capitalismo, que estava na raiz de todos os problemas sociais. Weber, por outro lado, aceitou o argumento de Marx de que existem razões econômicas por trás do conflito de classes, mas achava que a divisão de Marx da sociedade entre burgue- sia e proletariado, puramente baseada na economia, era simples demais. Ele acreditava que havia causas culturais e religiosas, assim como econômicas, para o crescimento do capitalismo, e que elas se refletiam nas classes com base no prestígio e no poder, além do status econômico. Atividades 1. Ao estudar o pensamento de Émile Durkheim, qual relação é possível fazer entre a divisão social do trabalho e o Estado? 2. No estudo sobre Max Weber, explique por que o autor entende que o Direito tem um caráter subjetivo. Sociologia Jurídica34 3. Karl Marx analisa a sociedade capitalista tendo o trabalho como seu elemento central. Expli- que como o autor entende o papel do Direito e do Estado na sociedade capitalista burguesa. 4. Os três autores estudados tratam sobre o papel do Estado na sociedade, no entanto, cada um faz essa análise sob perspectivas diferentes. Explique quais são essas diferenças. Referências CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1989. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002. FARIA. Epistemologia, metodologia e teoria em estudos organizacionais. Texto para discussão na disciplina de Epistemologia, Metodologia e Teoria em Estudos Organizacionais do Curso de Doutorado em Administração do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. KOSIK, Karel. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2011. ______. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: M. Claret, 2005. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Lisboa: Estampa, 1994. PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011. ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. THORPE, Christopher et al. O livro da sociologia. São Paulo: Globo Livros, 2015 (Coleção As Grandes Ideias de Todos os Tempos, v. 8). WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. da UnB, 2000. 3 Entendendo as transformações da sociedade contemporânea Você já parou para pensar sobre por que tudo está se transformando tão rápido na sociedade contemporânea? Já pensou se essas transformações impactam as relações sociais e o Direito? Este capítulo tem por objetivo abordar o tema da modernidade, explicando suas origens e consequências. Nele será analisada a discussão sobre a existência da pós-modernidade, trazendo os principais pensadores sobre o tema. Por fim, será analisada a existência de uma relação do Direito com a pós-modernidade. 3.1 O que é a modernidade? Para o estudo da modernidade, faz-se necessário inicialmente entender a diferença entre a modernidade e o período moderno, ou Idade Moderna. O período histórico intitulado Moderno é o período da história ocidental que teve início em 1453, com a tomada de Constantinopla pelo Império Otomano, e terminou em 1789, com a Revolução Francesa. Já a modernidade é o projeto de mundo que foi criado com base em três prin- cípios: racionalidade, liberdade e felicidade. Essa concepção de mundo foi sendo desenvolvida em função da alteração na forma de pensar do ser humano, com base nas grandes transformações nas áreas social, econômica, política e cultural. Para Giddens (1991, p. 11), a “modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organi- zação social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. O que isso significa? Que a partir do século XVII, na Europa, começou uma série de mudan- ças na sociedade que deram origem a uma nova forma de organização da sociedade, baseada em novos tipos de relação social, diferindo do período histórico anterior ligado às tradições e às crenças. É importante destacar que no século XVII a Europa foi marcada por uma multiplicação de ideias, pensamentos e anseios associados à noção de progresso e racionalidade e que propiciaram o surgimento da modernidade. Destaca Bittar (2005) que a modernidade está associada a ideias como: ciência, saber, razão, ordem, técnica, sujeito, soberania, Estado, indústria, negócio, indi- vidualismo, competição, liberalismo, entre outras. Essas ideias representam uma ruptura com as ideias presentes no período medieval da história, marcado por ideias como religião, fé, crença em divindades e obediência. Mas como ocorreu essa transformação nos ideais presentes na Europa nesse período? Como ocorreu essa passagem de um grupo de ideias existentes para um novo conjunto de ideias? Bittar (2005) aponta uma série de fatores que envolvem aspectos sociais, econômicos, culturais e Sociologia Jurídica36 políticos, os quais foram importantes para essa transformação da sociedade antiga e o surgimento da modernidade. São eles: • Intensificação do comércio com o Oriente, com a criação de rotas de comércio e de bur- gos em que aconteciam essas trocas. Abertura de contato com povos que possuíam conhe- cimentos e formas de viver diferentes do modelo medieval europeu. Descoberta de novas terras nas Américas, com o contato de novas culturas e povos. • Diminuição da interferência da Igreja na determinação dos costumes. • Surgimento de uma nova classe social urbana, que posteriormente iria se afirmar como a burguesia mercantil. Surgimento de novos artistas, intelectuais, pintores, escultores subvencionados pelos mecenas que não tinham vinculação com o pensamento religioso. • Retorno das ideias clássicas gregas nas artes e no conhecimento. Crescente papel das ciên- cias e sua interferência na vida social e política. Abertura das
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