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9 7 8 6 5 8 8 0 2 0 0 9 8 ISBN 978-65-88020-09-8 Apoio Acesse nosso site www.nupeea.com ULYSSES PAULINO DE ALBUQUERQUE | THIAGO GONÇALVES-SOUZA [EDITORES] I N T R O D U Ç Ã O A O ANTROPOCENOINTR O D U Ç Ã O A O A N TR O P O C EN O 1992 20221992 2022 1992 20221992 2022 ANOSANOS 1992 20221992 2022 ANOSANOS 1992 20221992 2022 ANOS 1992 20221992 2022 Programa de Pós-graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza 10 ANOS • 2012-2022 I N T R O D U Ç Ã O A O ANTROPOCENO 1ª edição - 2022 Recife/PE ULYSSES PAULINO DE ALBUQUERQUE THIAGO GONÇALVES-SOUZA [EDITORES] I N T R O D U Ç Ã O A O ANTROPOCENO Primeira edição publicada em 2022 por NUPEEA www.nupeea.com Copyright© Os autores, 2022 Impresso no Brasil/Printed in Brazil Editor-chefe Ulysses Paulino de Albuquerque Revisão Verônica Seidel Diagramação Erika Woelke | www.canal6.com.br Imagem da capa Shutterstock É permitida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), desde que citada a fonte e a autoria. Distribuição gratuita. NUPEEA Recife – Pernambuco – Brasil Índice para catálogo sistemático: 1. Geologia : Estudo e ensino 551.07 Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 Introdução ao antropoceno / Editores Ulysses Paulino de Albuquerque, Thiago Gonçalves-Souza. – 1.ed. – Recife, PE: Nupeea, 2022. 106 p. ; 15 x 21 cm. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-65-88020-10-4 (e-book) ISBN 978-65-88020-09-8 (impresso) 1. Ações humanas. 2. Antropoceno. 3. Biologia. 4. Planeta Terra – Transformação. I. Albuquerque, Ulysses Paulino de. II. Gonçalves-Souza, Thiago. CDD 551.07 I48 1.ed. 12-2021/44 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil) http://www.nupeea.com http://www.canal6.com.br APRESENTAÇÃO Nunca se falou tanto, em diferentes canais de comu- nicação, sobre como o nosso planeta está passando por um processo de transformação sem precedentes em sua histó- ria biológica. “Será que a preponderância das ações humanas sobre os demais vetores que alteram a história da Terra teria mesmo tirado o mundo do estável Holoceno, levando-o a essa nova e ainda desconhecida Época, batizada de Antropoceno?1”. É importante notar que existe um intenso debate na lite- ratura sobre a determinação do antropoceno como uma época (assim como Holoceno ou Pleistoceno) ou como um evento geológico. Com o intuito de manter a simplicidade dos conteúdos abordados neste livro, optamos por usar o Antropoceno como época e recomendar a leitura das refe- rências que tratam especificamente do debate para aqueles que desejam se aprofundar nesta temática2. Foi com essa pergunta que desafiamos os alunos das disciplinas Ecologia Humana (UFRPE) e Ecologia e Evolução no Antropoceno (UFPE) a refletir no ano de 2019. Essas 1 Veiga JE. 2019. O antropoceno e a ciência do sistema terra. São Paulo: Editora 34. P. 20 2 Gibbard PLA, et al. 2021. A practical solution: The Anthropocene is a geo- logical event, not a formal epoch. Episodes. https://doi.org/10.18814/ epiiugs/2021/021029 Crutzen PJ, Stoermer EF. 2000. The Anthropocene. IGBP Global Change Newsletter 41:17–18. https://doi.org/10.18814/epiiugs/2021/021029 https://doi.org/10.18814/epiiugs/2021/021029 disciplinas são ministradas nos cursos de Pós-graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza e Pós-graduação em Biologia Vegetal, respectivamente. A proposta, na época, era de trabalhar os seres humanos na natureza sem perder de vista o alinhamento com os efusivos debates sobre a emergên- cia de um novo período na história da Terra, o Antropoceno. Somado ao desafio da reflexão sobre o tema no debate con- temporâneo, sugerimos a elaboração de um pequeno livro, de introdução ao tema, que pudesse ser voltado para os cursos de graduação, visto ainda termos carência de livros-texto sobre o assunto. Este segundo desafio foi prontamente aceito e este livro é o resultado final. Nosso papel como editores foi de guiar os autores no amadurecimento de seu material tanto na escrita quanto nas ideias, o que demandou um natural ir-e-vir de versões, dis- cussão e novas ideias. Esperamos que você, leitor, possa des- frutar da leitura deste livro que representa o empenho de uma nova geração de jovens pesquisadores. Prof. Dr. Ulysses Paulino de Albuquerque Professor titular do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco Prof. Dr. Thiago Gonçalves-Souza Professor adjunto do Departamento de Biologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco SUMÁRIO 1. O QUE É O ANTROPOCENO? .............................................................9 Paulo Wanderley de Melo, Mirela Natália Santos, Ezequiel Leandro da Silva Júnior, Paulo Henrique Gonçalves 2. A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA ......................................................23 Cicera Janaine Camilo, Catarina Leite Gurgel, Maria de Oliveira Santos, Risoneide Henriques da Silva 3. A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO ...........................41 Arthur Ramalho Magalhães, Luane Maria Melo Azeredo, Kamila Marques Pedrosa, Risoneide Henriques da Silva 4. O ANTROPOCENO E A EMERGÊNCIA DAS AÇÕES HUMANAS .............59 Ana Claudia Batista Souza, Flávia Regina Domingos, Julimery Gonçalves Ferreira Macedo, Samara Feitosa Oliveira, Joelson Moreno Brito de Moura 5. ASPECTOS ECOLÓGICOS, EVOLUTIVOS E SOCIAIS DO ANTROPOCENO: DO ADVENTO DA AGRICULTURA ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS ..........71 Anderson Silva Pinto, Macelly Correia Medeiros, Moacyr Xavier Gomes Silva, Joelson Moreno Brito de Moura 6. PADRÕES DE DIVERSIDADE NO ANTROPOCENO ..............................85 Djalma Souza, Emily Cavalcanti, Luciana Soares Lima, Marleny Prada, Paulo Henrique Gonçalves SOBRE OS AUTORES ..........................................................................97 OUTRAS OBRAS DE INTERESSE ......................................................... 105 1 O QUE É O ANTROPOCENO? Paulo Wanderley de Melo, Mirela Natália Santos, Ezequiel Leandro da Silva Júnior, Paulo Henrique Gonçalves Neste capítulo, introduziremos o conceito de Antropoceno e o papel central exercido pela espécie humana nas transformações climáticas e ecológicas ocorridas na biosfera terrestre. Nossa discussão sobre o tema será feita à luz das descobertas científicas sobre os impactos provenientes da atividade humana que marcam – em pontos distintos de nossa linha do tempo enquanto espécie – inúmeras alvoradas para esta que tem sido considerada uma nova época na escala de tempo geológico do nosso pálido ponto azul, o planeta Terra. Quais pistas fizeram cientistas de diversas áreas apontarem para uma ideia de Antropoceno? Quando começou esse novo período? O que a Revolução Industrial, os mamutes, a Segunda Guerra Mundial e o aquecimento global têm a ver com tudo isso? 10 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Introdução: o que é o Antropoceno? Nas últimas décadas, cientistas de diferentes áreas de pesquisa têm identificado que nós, seres humanos, causa- mos mudanças tão substanciais na superfície terrestre que seria útil reconhecer que estamos em outra época geológica (Crutzen & Stoermer 2000). Nessa nova época, chamada de Antropoceno, os seres humanos são os principais agentes das mudanças bióticas e abióticas em toda a biosfera (Crutzen & Stoermer 2000; Crutzen 2006). O Antropoceno tem sido definido de diferentes formas na literatura (Malhi 2017). A perspectiva geológica demons- tra que existem evidências estratigráficas de que popula- ções humanas poderiam explicar mudanças ambientais contemporâneas (a partir da Segunda Guerra Mundial). Tais evidências indicam que elementos como alumínio puro, concreto, plástico e hidrocarbonetos poliaromáticos deixam assinaturas geológicas com elevadas concentrações desde 1950 (Waterset al. 2016). A perspectiva histórica, por sua vez, sugere um início mais antigo do Antropoceno, cujas evi- dências variam desde sinais de qualquer atividade humana modificando os ecossistemas e a biodiversidade em escala local (e em populações arcaicas) até transformações am- bientais globais (Malhi 2017). Apesar do debate envolvendo essa pluralidade de origens (Waters et al. 2016; Malhi 2017), o Antropoceno é definido atualmente como “a magnitude, va- riedade e longevidade de mudanças induzidas pela espécie humana, incluindo a transformação da superfície terrestre 11O QUE É O ANTROPOCENO e a mudança na composição da atmosfera” (Lewis & Maslin 2015). Um dos aspectos mais importantes do Antropoceno são as mudanças ambientais que geram o aquecimento global e os impactos desse aquecimento sobre as espécies e os ecos- sistemas. Desde o início da Revolução Industrial (na metade do século XVIII), várias atividades humanas como o uso de combustíveis fósseis, a agricultura, a pecuária bovina e o des- matamento resultaram no aumento da emissão de gases que intensificam o efeito estufa (IPCC 2014; Lewis & Maslin 2015). Nos últimos 150 anos, por exemplo, os níveis de gás carbôni- co na atmosfera aumentaram em aproximadamente um terço (IPCC 2014). Em termos gerais, as principais consequências do aquecimento global são as mudanças de temperatura em todas as regiões (afetando as práticas agrícolas e a distribui- ção geográfica das espécies), o aumento na pluviosidade (mas não em todas as regiões) e o aumento nos níveis dos oceanos (US 2016). Além das mudanças climáticas atmosféricas, os seres humanos têm alterado a paisagem e afetado diretamente os ecossistemas terrestres e aquáticos por meio do desmata- mento. Estima-se que três quartos da área desses ecossiste- mas foram completamente modificados pelos seres humanos, a tal ponto que alguns cientistas estão propondo uma nova classificação para os biomas terrestres, chamada antroma (Ellis et al. 2010; Ellis, 2011; 2015). Além dos efeitos diretos da degradação dos ecossistemas sobre as paisagens transforma- das, como a perda de hábitats e a fragmentação de florestas, 12 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO existem efeitos indiretos que contribuem para a emissão de gases causadores do efeito estufa (Vitousek et al. 1997). Os ecossistemas marinhos também têm sido afeta- dos pela ação humana. Estudos sugerem que, nos últimos anos, houve um declínio consistente de biomassa pesquei- ra, principalmente em locais onde não há gestão eficaz da pesca (Hilborn et al. 2020; Palomares et al. 2020). Também já é possível constatar algumas consequências do aquecimen- to global sobre a biota marinha, a exemplo do aquecimen- to das águas oceânicas, que pode ocasionar redução ou até perda total de dinoflagelados simbiontes de corais que, por sua vez, aumenta a frequência de eventos conhecidos como branqueamento de corais (Glynn 1996; Hughes et al. 2017). Além dos efeitos diretos drásticos sobre ecossistemas aquáticos e terrestres, as atividades humanas geram diver- sos tipos de poluição que afetam direta e indiretamente os ecossistemas e a própria população humana. Por exemplo, cerca de oito milhões de toneladas de plástico chegam aos oceanos do mundo todo (Häder et al. 2020), gerando impac- tos negativos sobre a biota marinha e o fornecimento de ser- viços ecossistêmicos como o estoque pesqueiro, a recreação e, consequentemente, o bem-estar humano (Beaumont et al. 2019). Quando começou o Antropoceno? Os cientistas estão cada vez mais convictos de que os seres humanos modificaram substancialmente a biosfera, 13O QUE É O ANTROPOCENO a ponto de declarar que nós estamos em uma nova época (Crutzen 2006) ou novo evento geológico (Gibbard et al. 2021). Entretanto, há diferentes visões (veja Tabela 1) sobre os limites temporais do Antropoceno. Em uma das primei- ras proposições para essa delimitação, Crutzen & Stoermer (2000) sugeriram que o Antropoceno teve início no final do século XVIII, porque os efeitos globais de atividades huma- nas se tornaram notáveis a partir da Revolução Industrial. Foi a partir desse evento histórico que houve um aumento consistente nos níveis de gases causadores do efeito estufa, como o gás carbônico e o metano. Tabela 1. Diferentes perspectivas de estudo do Antropoceno definidas por Malhi (2017). Perspectiva Descrição Perspectiva das Ciências do Sistema Terrestre “A soma cumulativa da atividade humana está interrompendo muitos aspectos das funções planetárias e movendo-os para fora da faixa modesta de variabilidade que definiu o Holoceno, e em uma direção diferente de aquecimento que está (ou logo estará) fora da faixa dos ciclos glacial-interglacial do pleistoceno. A mais proeminente dessas perturbações é a mudança climática, mas outras perturbações importantes da biogeoquímica planetária incluem a acidificação dos oceanos.” 14 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Perspectiva Descrição Perspectiva da Biosfera “Destaca mudanças fundamentais na biodiversidade planetária, independentemente de terem consequências para a função planetária (que a Perspectiva das Ciências do Sistema Terrestre enfatiza). A atividade humana está alterando a diversidade, distribuição, abundância e interações das espécies na Terra por meio da conversão de ecossistemas em ‘antromas’ agrícolas ou urbanos, por meio da colheita direta ou exclusão de espécies, por meio da mistura de espécies entre regiões previamente isoladas e através da mudança ambiental. Uma característica particular é a elevação da taxa de extinção e um evento potencial de extinção em massa por meio de uma combinação de perda de habitat, colheita, invasão e mudança climática.” Perspectiva Geológica “O debate geológico tende a se concentrar em se há uma assinatura estratigráfica detectável do Antropoceno, qual assinatura particular é a mais apropriada e como isso acaba informando uma decisão no início data para o Antropoceno. O objetivo da abordagem geológica é examinar se a mudança contemporânea é detectável e significativa nas escalas de tempo da história da Terra. Essa abordagem torna a definição do Antropoceno como uma época geológica análoga ao processo de definição de todos os outros períodos geológicos anteriores.” Perspectiva Histórica: o caso de um Antropoceno inicial “Uma narrativa alternativa defende um início anterior, às vezes muito anterior, com escalas de tempo variando de vários milhares a até milhões de anos atrás. Esta narrativa defende um Antropoceno primitivo e procura destacar e capturar é um senso de longa alteração humana do meio ambiente, uma história e pré-história que muitas vezes é pouco reconhecida no foco tecnocêntrico predominante na ruptura industrial e na modernidade.” 15O QUE É O ANTROPOCENO Perspectiva Descrição Perspectiva Cultural e Filosófica “Um tópico se concentra nos desafios de responder ou gerenciar a alteração em grande escala e multifacetada do funcionamento do planeta e os desafios existenciais que isso representa para a história humana, para a ideia de progresso e para o futuro da civilização. Um segundo tópico explora como ver, responder e valorizar a natureza em um mundo pós-natural onde a influência humana é tão difundida – seja em escalas de tempo modernas ou históricas – estimulando uma reavaliação do que é humano e do que é natural.” Críticas das Ciências Naturais “As críticas mais desdenhosas rotulam o Antropoceno como um mero item da ‘cultura pop’, sujeito aos caprichos e modas da política ambiental. Uma crítica mais focada é que o Antropoceno, sendo uma época em que estamos imersos, é uma entidade fundamentalmente diferente das unidades crono- estratigráficas anteriores. Na tentativa de formalizar o Antropoceno, as práticas de conhecimento e objetividade da convenção geológica estão sendo esticadas além de sua utilidade para responder o que é umaquestão especulativa e política.” Críticas das Perspectivas Política, Filosófica e Cultural “Os críticos argumentam que a perspectiva de sistemas em grande escala, de muitas ciências naturais que escrevem sobre o Antropoceno, encoraja uma narrativa particular que emerge de um enquadramento cultural ocidental e tecnocêntrico do mundo. Quase todos os escritos sobre o Antropoceno surgiram da Europa e da América do Norte, a maioria dos comitês que decidem sobre o Antropoceno são compostos por representantes dessa mentalidade cultural e, como tal, tende a favorecer uma conceitualização materialista e tecnocrática e uma resposta ao ambiente contemporâneo. Desafio, particularmente em argumentos para uma data de início recente para o Antropoceno.” 16 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Outra visão sobre a origem do Antropoceno foi chamada de Hipótese do Antropoceno Inicial, Precoce ou Antecipado (Early Anthropocene Hypothesis, em inglês), visto que versa sobre datações muito anteriores às propostas pelos autores mencionados até então (Ruddiman 2003; 2007). Segundo essa hipótese, existem diversas evidências que associam flutua- ções do gás carbônico na atmosfera à derrubada de flores- tas (cerca de oito mil anos atrás) e, mais adiante, a sinais de agricultura, com plantações de arroz (cerca de cinco mil anos atrás) (Ruddiman 2007). Além disso, o cultivo de arroz pode- ria explicar o aumento da emissão de metano, posto que é cultivado em solos inundados, nos quais bactérias anaeróbias produzem esse gás (Ruddiman 2007). Ressalta-se, ainda, a re- dução de gás carbônico percebida há dois mil anos, que pode ser explicada pela elevada mortalidade humana nesse perío- do em decorrência de eventos como epidemias, pandemias e declínios de impérios e da conquista do continente america- no pelos europeus (Ruddiman 2007). Posteriormente, Doughty et al. (2010) sugeriram um limite ainda mais antigo para o Antropoceno. Segundo os autores, há indícios de que atividades de caça de povos que viviam na região entre a Sibéria e a América do Norte (entre 16 e 13 mil anos atrás) foram responsáveis pela extinção de várias espécies de mamíferos de elevado tamanho corporal, incluindo os mamutes. Os autores argumentam que os seres humanos contribuíram com a expansão de florestas de bé- tulas, que, por sua vez, reduziram o albedo (capacidade de refletir a energia luminosa) e aumentaram a temperatura da 17O QUE É O ANTROPOCENO superfície terrestre em um grau. De fato, os registros fósseis indicam que a extensão dessas florestas aumentou 26% após a extinção dos mamíferos (Doughty et al. 2010). Apesar das diferentes hipóteses sobre o início do Antropoceno, as atividades humanas muito antigas tiveram apenas um efeito localizado em algumas regiões da super- fície terrestre (Certini & Scalenghe 2011; Malhi 2017). Visões mais recentes sugerem que esse efeito se alastrou somente por volta de dois mil anos atrás, quando as sociedades huma- nas estavam mais estruturadas em consequência de terem começado a substituir a caça-coleta pela agricultura. Nessa época, em que o Império Romano, por exemplo, abran- gia grande parte da Europa, do Oriente Médio e do norte do continente africano (Certini & Scalenghe 2011), estima- -se que as paisagens das províncias do norte do continente africano tenham sido altamente modificadas visando à pro- dução de trigo para sustentar a capital do Império Romano. Além disso, sociedades em diferentes regiões da superfície terrestre empreendiam modificações notáveis do ambiente com vistas à produção agrícola e à construção dos impérios, como os maias (na Guatemala e em Belize), os incas (no norte do Peru) e os mesopotâmios (onde hoje é o Iraque) (Certini & Scalenghe 2011). Em 2011, diferentes pesquisadores declararam proposi- ções semelhantes à de Crutzer & Stoermer (2000), afirmando que o Antropoceno teve início com o advento da Revolução Industrial (Ellis 2011; Steffen et al. 2011; Zalasiewicz et al. 2011). Adicionalmente, eles argumentaram que os efeitos da ação 18 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO humana sobre a biosfera se intensificaram ainda mais após o término da Segunda Guerra Mundial (em 1945), dando início a um período denominado de a Grande Aceleração. Ao en- contro disso, nos últimos 50 anos, por exemplo, a população humana saltou de três bilhões para seis bilhões, resultando em taxas de consumo de recursos naturais muito maiores, especialmente no que concerne ao uso de combustíveis fós- seis (Steffen et al. 2011). Distinta das propostas anteriores, há outra perspectiva que sugere que as datações do início do Antropoceno deve- riam ser baseadas em evidências do comportamento humano de modificação do ambiente, e não apenas nas consequências desse comportamento (Smith & Zeder 2013). Esses pesquisa- dores entendem que o Antropoceno iniciou a partir do mo- mento em que os seres humanos começaram a domesticar espécies de animais e plantas. Os primeiros indícios de plan- tas e animais em processo de domesticação datam de cerca de nove a 11 mil anos atrás (o que, praticamente, coincide com o início da época do Holoceno). Assim, os autores propõem que o Antropoceno e o Holoceno sejam reconhecidos como uma única época, sem a necessidade de estabelecer uma no- menclatura formal para o Antropoceno (Smith & Zeder 2013). Finalmente, em 2016, o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno reconheceu que há indícios suficientes para compreender o Antropoceno como uma fase funcional e es- tratigraficamente distinta do Holoceno, o que influenciou parte dos cientistas a defender o Antropoceno como uma época distinta do Holoceno (Malhi 2017; Zalasiewicz et al. 19O QUE É O ANTROPOCENO 2017). Segundo essa linha de pensamento, o Antropoceno seria funcional e estratigraficamente distinto do Holoceno porque atividades antrópicas (i) ampliaram a disseminação de combustíveis fósseis na atmosfera (ii) e depositaram nela novos minerais como alumínio, concreto e plástico (conhe- cidos como tecnofósseis) (Waters et al. 2016; veja também Gibbard et al. 2021). Desse modo, a visão mais recente (e mais aceita pelos cientistas) sugere que o Antropoceno iniciou por volta de 1950, coincidindo com o período conhecido como a Grande Aceleração (Waters et al. 2016; Malhi 2017). Antropoceno: do conceito à aplicação Este livro fornece uma breve introdução sobre o Antropoceno. Ao invés de aprofundar o debate entre visões de diferentes disciplinas (Ciências da Terra, Ecologia, Biologia da Conservação, Geologia, Paleontologia, entre outras), nossa proposta é sintetizar as distintas etapas do desenvolvimen- to do conceito para dar suporte às explicações mais aceitas sobre como populações humanas antigas ou modernas pode- riam estar associados com mudanças climáticas e com a atual perda da biodiversidade global. De fato, reconhecer que nós estamos em um período no qual a maior parte dos processos ecológicos e dos padrões de biodiversidade é determinada pela ação humana tem implica- ções teóricas e práticas. Do ponto de vista teórico, não pode- mos mais estudar os processos ecológicos e evolutivos des- considerando os efeitos dos seres humanos sobre as espécies 20 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO e os ecossistemas. Por outro lado, de uma perspectiva práti- ca, autoridades políticas do mundo todo precisam planejar, urgentemente, estratégias que possam mitigar os efeitos de- letérios das nossas atividades sobre a superfície terrestre. O restante do livro está organizado em cinco temas (e, consequentemente, em cinco capítulos) que fornecem supor- te para compreender o papel primordial da espécie humana na transformação climática do planeta. No segundo capítu- lo, Camilo et al. apresentam o papel da domesticação como marco da transição de comportamento caçador-coletor para uma capacidade de produção do alimento por intermédio da agricultura. No terceiro capítulo, Magalhães e colaboradores expõem as evidências que conectam a extinção da megafaunacom atividades humanas. No quarto capítulo, Souza e cola- boradores discutem as ações humanas contemporâneas que representam as principais transformações na biosfera, com destaque para o marco da Revolução Industrial. No quinto capítulo, Pinto e colaboradores comparam os efeitos antró- picos sobre a biosfera em diferentes escalas espaciais. E, por último, no sexto capítulo, Souza e colaboradores destacam os padrões de biodiversidade no Antropoceno e apresentam as regiões da superfície terrestre que são dominadas por ação humana (conhecidas como antromas). Referências Beaumont NJ, Aanesen M, Austen MC, at al. 2019. Global ecological, social and economic impacts of marine plastic. Marine Pollution Bulletin 142: 189-195. 21O QUE É O ANTROPOCENO Certini G, Scalenghe R. 2011. Anthropogenic soils are the golden spikes for the Anthropocene. The Holocene 21: 1269-1274. Crutzen PJ, Stoermer EF. 2000. The Anthropocene. IGBP Global Change Newsletter 41:17–18. Crutzen PJ. 2006. The Anthropocene. In: Ehlers E, Krafft T. (eds.). Earth system science in the Anthropocene. Basingstoke, Springer. p. 13-18. Doughty CE, Wolf A, Field CB. 2010. Biophysical feedbacks between the Pleistocene megafauna extinction and climate: The first human-induced global warming? Geophysical Research Letters 37: L15703. Ellis EC, Klein Goldewijk K, Siebert S, Lightman D, Ramankutty N. 2010. Anthropogenic transformation of the biomes, 1700 to 2000. Global Ecology and Biogeography 19: 589-606. Ellis EC. 2011. Anthropogenic transformation of the terrestrial biosphere. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences 369: 1010-1035. Ellis EC. 2015. Ecology in an anthropogenic biosphere. Ecological Monograph, 85: 287-331. Gibbard PLA, et al. 2021. A practical solution: The Anthropocene is a geological event, not a formal epoch. Episodes. https://doi.org/10.18814/epiiugs/2021/021029 Glynn PW. 1996. Coral reef bleaching: facts, hypotheses and implications. Global Change Biology 2: 495-509. Häder D-P, Banaszak AT, Villafañe, VE, Narvarte MA, González RA, Helbling EW. 2020. Anthropogenic pollution of aquatic ecosystems: Emerging problems with global implications. Science of the Total Environment 713: 136586. Hilborn R, Amoroso RO, Anderson CM, et al. 2020. Effective fisheries management instrumental in improving fish stock status. Proceedings of the National Academy of Sciences 117: 2218-2224. Hughes TP, Kerry JT, Álvarez-Noriega M, et al. 2017. Global warming and recurrent mass bleaching of corals. Nature 543: 373-377. IPCC. 2014. Summary for Policymakers. In: Edenhofer OR, Pichs-Madruga Y, Sokona E, et al. 2014. Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge, Cambridge University Press. p. 1-30. https://doi.org/10.18814/epiiugs/2021/021029 22 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Lewis SL, Maslin MA. 2015. Defining the Anthropocene. Nature 519: 171-180. Malhi Y. 2017. The concept of the Anthropocene. Annual Review of Environment and Resources 42: 77-104. Palomares MLD, Froese R, Derrick B, et al. 2020. Fishery biomass trends of exploited fish populations in marine ecoregions, climatic zones and ocean basins. Estuarine, Coastal and Shelf Science 243: 106896. Ruddiman WF. 2003. The anthropogenic greenhouse era began thousands of years ago. Climatic Change 61: 261-293. Ruddiman WF. 2007. The early anthropogenic hypothesis: Challenges and responses. Reviews of Geophysics 45: 4001. Smith BD, Zeder MA. 2013. The onset of the Anthropocene. Anthropocene 4: 8-13. Steffen W, Grinevald J, Crutzen P, McNeill J. 2011. The Anthropocene: Conceptual and historical perspectives. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences 369: 842-867. US. Environmental Protection Agency. 2016. Climate change indicators in the United States. www.epa.gov/climate-indicators. 12 Oct. 2021. Vitousek PM, Mooney HA, Lubchenco J, Melillo, JM. 1997. Human domination of Earth’s ecosystems. Science 277: 494-499. Waters CN, Zalasiewicz J, Summerhayes C, et al. 2016. The Anthropocene is functionally and stratigraphically distinct from the Holocene. Science 351: aad2622. Zalasiewicz J, Williams M, Haywood A, Ellis M. 2011. The Anthropocene: A new epoch of geological time? The Royal Society Publishing 369: 835-841. Zalasiewicz J, Waters CN, Summerhayes CP, et al. 2017. The Working Group on the Anthropocene: Summary of evidence and interim recommendations. Anthropocene 19: 55-60. http://www.epa.gov/climate-indicators 2 A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA Cicera Janaine Camilo, Catarina Leite Gurgel, Maria de Oliveira Santos, Risoneide Henriques da Silva A domesticação é um processo evolutivo que, a partir da seleção feita pelos seres humanos para atender aos seus interesses, propiciou modificações genéticas em plantas e animais selvagens. As plantas e os animais domesticados apresentam características que os diferenciam dos seus ancestrais selvagens. Por um lado, algumas características fenotípicas conferiram vantagens adaptativas às espécies domesticadas para a ocupação de ambientes modificados e dominados pelos humanos. Por outro lado, a domesticação causou a perda de características essenciais para a sobrevivência dessas espécies em seu ambiente selvagem. Assim, neste capítulo, apresenta-se uma discussão acerca de como a domesticação de plantas e animais, provavelmente, ocorreu, constituindo um grande marco para o Antropoceno. 24 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Transição para domesticação e origem da agricultura A domesticação representa um dos processos mais im- portantes da história humana nos últimos 13 mil anos, uma vez que determinou o fornecimento de alimento para a so- ciedade moderna e representa um divisor de águas para o crescimento populacional global (Diamond 2002) e seu de- senvolvimento tecnológico. Assim, esse processo teve um papel relevante no comportamento dos primeiros seres hu- manos, o que influenciou no desenvolvimento de ferramentas e no grande número de espécies utilizadas na alimentação (Salamini et al. 2002). Existem diversas hipóteses que tentam explicar o que levou a uma mudança de estilo de vida de caça- -coleta para domesticação das espécies. Entre elas, estão as alterações climáticas ocorridas no final do Pleistoceno, que forçaram não somente a concentração de pequenos grupos humanos e animais em oásis, mas também a sincronia entre as mudanças climáticas e culturais e a evolução gradual, irre- gular e independente em diferentes ambientes (Sereno et al. 2008). No Pleistoceno recente, estima-se que as primeiras po- pulações humanas se organizaram em uma sociedade de ca- çadores e coletores antes de iniciarem a prática agrícola no período Neolítico, entre 13.000 e 10.000 anos a.C. (Diamond 2002; Diamond & Bellwood 2003; Meyer & Purugganan 2013). Essas populações eram caracterizadas por se deslocarem conforme mudanças sazonais na oferta de recursos e de manejo de algumas espécies alimentícias (Bellwood 2006). 25A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA Entre aproximadamente cinco e 11 mil anos atrás, as so- ciedades humanas, em muitas regiões diferentes do mundo, domesticaram diversas espécies distintas de animais e plan- tas, marcando o surgimento das economias de produção de alimentos e o início de uma das principais transições na his- tória dos seres humanos (Smith 2006a,b). Essa transição, muitas vezes descrita como “Revolução Neolítica” ou “Origens da Agricultura”, tem constituído, há mais de um século, uma área duradoura de investigação em Arqueologia e Biologia (Smith 2006a,b) (ver Figura 1). Domesticação de plantas Uma das grandes conquistas que favoreceram a manu- tenção e o domínio dos humanos na Terra foi a domesticação de espécies de plantas, o que, por sua vez, temsido sugerido como uma das maiores realizações da humanidade. A domes- ticação de plantas ocorre quando a seleção humana sobre os fenótipos vegetais resulta em mudanças nos genótipos das populações, tornando-as mais úteis ao ser humano e mais bem-adaptadas à intervenção humana na paisagem (Clement 1999). Assim, plantas domesticadas são aquelas que diferem morfologicamente e genotipicamente de seus parentes sil- vestres (Meyer et al. 2012). O processo de seleção que leva à domesticação pode ser inconsciente ou consciente (Martins 2014). Na seleção in- consciente, provavelmente presente em muitos processos de domesticação, o ato de mover as plantas da natureza para os 26 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO ambientes agrícolas estabelece pressões de seleção, podendo levar ao aumento da aptidão de fenótipos que tendem a ter baixa aptidão no ambiente natural (Fuller et al. 2010). Já na seleção consciente, fenótipos desejáveis são selecionados, e fenótipos menos desejáveis são negligenciados ou ativamente removidos até que sua frequência diminua na população-alvo (Meyer et al. 2012). Assim, as plantas domesticadas divergem dos ances- trais silvestres em suas características morfológicas, fisio- lógicas e genéticas, criando um fenômeno conhecido como síndrome de domesticação (Martins 2014). Entre as carac- terísticas das espécies domesticadas, estão estrutura mais robusta, perda da dispersão natural e da dormência de se- mentes, floração sincronizada entre estruturas reprodutivas masculinas e femininas, mudanças no metabolismo secundá- rio, com perda de toxicidade ou sabor desagradável, e frutos e órgãos de interesse com tamanho superior (Doebley et al. 2006). A domesticação frequentemente promove a seleção contra características que aumentam o sucesso reprodutivo no ambiente natural, como aquelas que ampliam a resposta defensiva da planta (Meyer et al. 2012). Defesas contra herbí- voros, por exemplo, tornam as plantas menos palatáveis, fa- zendo com que suas populações sejam mais propensas a se manter em ambientes naturais. De fato, alguns estudos de- monstram que a domesticação pode reduzir as defesas quí- micas e físicas das plantas domesticadas se comparadas aos parentes silvestres (Rosenthal & Dirzo 1997). 27A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA Figura 1. Origem da agricultura e o processo de domesticação do milho (Zea mays). No mundo todo, existem aproximadamente 200 mil es- pécies de plantas silvestres, das quais 100 espécies possuem grande importância econômica (Diamond 2002). A maioria das espécies domesticadas pertence a um pequeno número de famílias (2.489 espécies domesticadas distribuídas em 173 famílias). Além de serem representadas por poucas famílias, a proporção de espécies domesticadas varia consideravel- mente entre elas (Diamond 2002). As principais espécies do- mesticadas estão distribuídas em oito das 173 famílias, que são: gramíneas (poáceas), leguminosas, rosáceas, solanáceas, asteráceas, mirtáceas, malváceas e cucurbitáceas (Diamond 28 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO 2002). Para compreender o universo de usos e as possíveis origens da domesticação, a seguir, são apresentadas as espé- cies mais importantes. As espécies do gênero Cucurbita (família Cucurbitaceae) são nativas das Américas e faziam parte da base alimentar da civilização olmeca, posteriormente incorporada pelas ci- vilizações asteca, inca e maia (Ferreira 2008). Registros ar- queológicos associam essas espécies ao ser humano há pelo menos 10 mil anos, já que no período pré-colombiano os homens iniciaram um processo seletivo, com base em mu- tantes de polpa não amarga, dando origem às espécies do- mesticadas (Ferreira 2008). Além disso, acredita-se que a domesticação do amen- doim (Arachis hypogaea L., família Fabaceae) ocorreu por volta de seis a sete mil anos atrás, havendo registros de seu plantio na região andina desde o período pré-colombiano (Fávero & Veiga 2008). Consta que suas sementes podem ter sido levadas, por vias transpacíficas, da América até a China e a Índia, antes da chegada de Cristóvão Colombo à América (Fávero & Veiga 2008). Supõe-se que o utensílio mais primiti- vo utilizado em seu cultivo tenha sido o “pau cavador”, usado para plantar com baixa movimentação da terra e para colher partes subterrâneas de plantas silvestres (Fávero & Veiga 2008). Assim, o “pau cavador” seria uma ferramenta neolítica com ponta aguda ou em bisel, empregada provavelmente no período entre 10.000 e 4.000 anos a.C. (Fávero & Veiga 2008). Postula-se, ainda, que o arroz (Oryza sativa, família Poaceae) seja originário da Ásia, embora não se saiba com 29A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA precisão o país de início de sua domesticação (Pereira 2002). Alguns estudos sugerem que existem fortes evidências de que sua origem tenha sido no sudeste asiático, mais precisamen- te na região compreendida entre a Índia e Mianmar (antiga Birmânia), em virtude da rica diversidade de formas cultiva- das desse arroz nessa região (Pereira 2002). Outra planta domesticada há milhares de anos atrás e com grande uso moderno é a batata (Solanum tuberosum, fa- mília Solanaceae) (Castro 2008), cuja origem da domestica- ção permanece desconhecida. Com base em dados arqueo- lógicos, estima-se que tenha ocorrido provavelmente entre 5.000 e 2.000 anos a.C., simultaneamente com a domesti- cação da lhama (Castro 2008). As primeiras batatas cultiva- das provavelmente foram selecionadas de populações silves- tres na região central dos Andes, englobando o sul do Peru e o norte da Bolívia, de seis a 10 mil anos atrás (Castro 2008). No processo de domesticação da batata, além da redução da concentração de glicoalcaloides, visou-se à seleção de plan- tas com estolões mais curtos e tubérculos maiores, frequen- temente coloridos e com várias formas (Castro 2008). Outra espécie que também passou por esse processo, uma das mais antigas hortaliças cultivadas, é a cebola (Allium cepa, família Liliaceae) (Fritsch & Friesen 2002), provavelmen- te domesticada inicialmente nas regiões montanhosas da Ásia Central (Fritsch & Friesen 2002). Nos estágios primitivos da domesticação, além da coleta das plantas na forma silvestre, é provável que tenha ocorrido a transferência das mudas para as hortas primitivas (Fritsch & Friesen 2002). Possivelmente, 30 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO há milhares de anos, o excesso de extrativismo tenha torna- do escassos os bulbos do ancestral da cebola cultivada, esti- mulando sua transferência para o entorno das habitações e iniciando, assim, o processo de domesticação (Barbieri 2008). Além disso, acredita-se que o trigo (Triticum sp.) foi a primeira planta a ser domesticada (Faris 2014). Sua do- mesticação, iniciada há cerca de 10 mil anos na região da Mesopotâmia (sudoeste da Ásia), permitiu que o ser humano abandonasse milhares de anos de existência errante, como caçador e coletor, estabelecendo-se em povoados e geran- do seu próprio sustento (Faris 2014). A capacidade de produ- zir alimento em grandes quantidades, aliada à possibilidade de armazenar excedentes, levou ao aumento da população e à evolução cultural, fazendo com que os homens das co- munidades sedentárias priorizassem o cultivo do trigo de tal forma que esse cereal é hoje a principal espécie cultivada no mundo (Piana & Carvalho 2008). Os frutos de uva (Viti vinifera L., família Vitaceae) também são usados há muito tempo, antes mesmo que alguma domesticação tivesse ocorrido (Radmann & Bianchi 2008). Sua domesticação teve início com a migração dos nômades que carregavam sementes de plantas arbóreas, de modo que, paralelamente ao nascimento da agricultura, ocorreu o estabelecimento do cultivo da videira (Radmann & Bianchi 2008). O cultivo para a produção de vinho iniciou nos anos 8.000 a.C., no Oriente Próximo, mais precisamente entre a Armênia e a Pérsia, região delimitada pelo Mar Negro e pelo Mar Cáspio e pelas montanhas do Cáucaso (Radmann31A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA & Bianchi 2008). A uva é considerada a fruta de domesticação mais antiga de que se tem conhecimento, graças ao fato de muitas civilizações terem deixado algum registro a ela rela- cionado (Radmann & Bianchi 2008). A principal razão dessa popularidade é seu produto, o vinho, que faz da uva uma das frutas de maior produção mundial (Radmann & Bianchi 2008). Domesticação de animais Diversos animais foram domesticados para distintos fins, como alimentação, agricultura e companheirismo (Lear & Harris 2012). Mila et al. (2018) mostraram a distribuição fi- logenética de espécies de mamíferos utilizados para alimen- tação, evidenciando que espécies de gado apareceram distri- buídas em cerca de 10 famílias, que Bovidae, em particular, abrigava aproximadamente 40% das espécies domesticadas e que apenas 22 gêneros representavam espécies domesti- cadas. Sabe-se, ainda, que somente 14 dos grandes mamífe- ros herbívoros e onívoros terrestres (pesando 45 kg ou mais), considerados como mais vantajosos aos humanos, foram do- mesticados de um total de 148 espécies (Diamond 2002). No entanto, o que teria impedido a domesticação desses ani- mais? Diamond (2002) destaca alguns dos principais obstá- culos: (i) dieta que seria difícil de os humanos conseguirem fornecer; (ii) taxa de crescimento lenta e espaçamento longo entre os nascimentos; (iii) relutância em se reproduzir em cativeiro; (iv) tendência a entrar em pânico em recintos ou 32 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO quando confrontados com predadores; (v) disposição desa- gradável; e (vi) falta de uma hierarquia de dominância (ausên- cia de um líder). Atualmente, o processo de domesticação de animais tem sido medido por algumas características comportamen- tais que tornaram certas espécies melhores candidatas à do- mesticação do que outras (Price 1984; 2002; Zeder 2012a). Nesse processo, as seguintes características são considera- das como as mais importantes: (1) estrutura social, especial- mente o tamanho e a organização dos grupos; (2) compor- tamento sexual, particularmente o grau de seletividade na escolha dos parceiros de acasalamento e a facilidade de subs- tituir um parceiro preferido por outro; (3) interações pais-jo- vens, facilidade e rapidez com que os pais se relacionam com os jovens e maturidade e mobilidade dos jovens ao nascer; (4) comportamento alimentar e escolha de hábitat, grau de flexibilidade na dieta e tolerância ao hábitat; e (5) respostas a seres humanos e novos ambientes, incluindo respostas de voo e reatividade a estímulos externos (Hale 1969; Price 1984; 2002; Zeder 2012a). A forte seleção de cautela reduzida e de baixa reati- vidade é um recurso universal que abrange toda a domes- ticação animal, abarcando todos os mamíferos domestica- dos, tais como carnívoros (Trut 1999; Coppinger & Coppinger 2001), herbívoros (Tennessen & Hudson 1981) e roedores (Murphy 1985), bem como aves domésticas (Andersson et al. 2001), peixes (Waples 1991) e algumas espécies de inverte- brados (Marliave et al. 1993; Price 2002). Entre as espécies 33A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA domesticadas, destacam-se as apresentadas nas seções a seguir. Animais de estimação Os cães (Canis familiaris, família Canidae) prova- velmente foram os primeiros animais a serem domestica- dos pela humanidade, precedendo o advento da agricultura e a domesticação de outros animais (Udell & Wynne 2008; Galibert et al. 2011). Evidências genéticas mostram que o lobo (Canis lupus) é o principal ancestral do cão, compartilhan- do com este 98% do seu DNA (Galibert et al. 2011). Segundo Clutton-Brock (1995), os lobos podem ter sido atraídos para perto de grupos humanos em busca de alimento, benefician- do-se de restos de comida e, consequentemente, acostu- mando-se com a presença humana. Os humanos, por sua vez, podem ter sido beneficiados pela presença de lobos ao matá- -los para remover sua pele para a confecção de roupas. Nesse cenário, de acordo com Clutton-Brock, os lobos podiam car- regar seus filhotes, os quais, após a morte dos animais adul- tos, podem ter acabado se acostumando ao convívio humano e sendo domados. Nesse sentido, é possível que a seleção ar- tificial humana de fenótipos presentes em lobos seja respon- sável pelas centenas de raças de cães domésticos existentes atualmente (Udell & Wynne 2008; Galibert et al. 2011). Já a domesticação do gato (Felis catus, família Felidae) segue outra trajetória. Acredita-se que esses animais foram domesticados há 7.500 anos a.C. e são descendentes de cinco 34 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO diferentes linhagens de gatos selvagens (Lear & Harris 2012). Todavia, os gatos selvagens eram candidatos improváveis para a domesticação humana, pois são animais solitários e territorialistas, o que os torna mais interessados em luga- res do que em pessoas (Driscoll et al. 2009a). Portanto, há poucos indícios que sugerem que populações agrícolas pri- mitivas tenham selecionado gatos selvagens como animais de estimação (Driscoll et al. 2009a). Em vez disso, é mais prová- vel que os gatos que exploravam ambientes humanos tenham sido tolerados pelas pessoas e, ao longo do tempo, tenham gradualmente divergido de seus parentes selvagens (Driscoll et al. 2009b). Isso pode ter ocorrido porque os gatos selva- gens se aproximavam de ambientes humanos atraídos por áreas infestadas por ratos (Lear & Harris 2012). Animais alimentícios e de uso agrícola Alguns animais domesticados trouxeram vantagens inestimáveis aos seres humanos, seja como fonte de calorias na alimentação, seja como auxílio em atividades cotidianas, como na agricultura. Acredita-se que os primeiros animais domesticados para uso alimentício tenham sido as ovelhas, entre 11.000 e 9.000 a.C. no sudoeste da Ásia, e mais tar- diamente, por volta de 8.000 a.C., as cabras (Lear & Harris 2012). Esses animais eram usados para o consumo de carne e leite e para a confecção de casacos, tornando-se importan- tes em comunidades nômades (Lear & Harris 2012). Embora os porcos e o gado tenham sido domesticados no mesmo 35A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA período, tendiam a ser utilizados apenas por populações que possuíam assentamentos permanentes, propriedade da terra e excedentes agrícolas (Lear & Harris 2012). A domesticação do cavalo (Equus sp.) ocorreu após a das ovelhas, das cabras, do gado e dos porcos (Orlando 2020). Há relatos de que o cavalo tenha sido domesticado nos anos 5.000 a.C. no Cazaquistão e nos anos 4.000 a.C. nas estepes da Eurásia (ver Outram et al. 2009; Lear & Harris 2012). Evidências arqueológicas sugerem que os cavalos foram usados inicial- mente para a alimentação (carne e leite) e apenas posterior- mente para a locomoção (Lear & Harris 2012). O cavalo trouxe importantes benefícios às sociedades humanas, pois permi- tiu que pessoas se locomovessem rapidamente por longas ex- tensões territoriais, levando consigo um maior número de artefatos, bem como possibilitou a exploração de paisagens maiores e diversificadas, o mantimento de famílias maiores e um maior alcance de contatos comerciais (Levine 2012). O efeito da domesticação na fisiologia, no comportamento e na evolução humana A ação de domesticar plantas e animais pode ter efeito sobre seus próprios domesticadores, afetando sua fisiologia, seu comportamento e sua evolução. Alguns estudos demons- traram, por exemplo, que existe uma associação entre o fenó- tipo de persistência da lactase em humanos e a prática cultu- ral de domesticação de gado e consumo de leite (Albuquerque et al. 2015). Ao encontro disso, Ingram et al. (2009) sugeriram 36 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO que essa prática cultural atuou como fonte de seleção na po- pulação e produziu uma maior frequência de alelos específi- cos ligados à absorção de lactose, especialmente em pessoas de que vivem em regiões da Europa e da África, onde essa prática cultural érealizada há muito tempo. Outro exemplo marcante é a capacidade observada em grupos humanos de digerir o amido, a qual pode ser resul- tado do processo de domesticação de plantas e do advento da agricultura (Perry et al. 2007). Populações agrícolas têm maior proporção de indivíduos que possuem um número mais elevado de cópias do gene que promove a expressão da enzima amilase (AMY1) quando comparadas a outras popula- ções, como caçadores-coletores e pescadores (Albuquerque et al. 2015). Um maior número de cópias de AMY1 permite, consequentemente, o aumento nas concentrações de amilase na saliva, melhorando a eficiência da digestão de alimentos ricos em amido (Albuquerque et al. 2015). Assim, ao selecionar artificialmente fenótipos desejáveis em determinada espécie ou ao alterar seu hábitat, pessoas herdam de seus antecessores o ambiente criado ou modifi- cado pela prática da domesticação (Albuquerque et al. 2015). Esse fenômeno é conhecido como construção de nicho, pro- cesso pelo qual os organismos alteram seus próprios ambien- tes e o de outros seres vivos por meio de suas atividades e de- cisões, podendo levar a alterações nas atividades fisiológicas e comportamentais de todos os organismos envolvidos nesse processo (Odling-Smee et al. 2003; Laland & O’Brien 2012; Flynn et al. 2013). As atividades humanas também podem levar 37A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA COMO MARCO DA HISTÓRIA HUMANA a novas pressões seletivas, modificando sua história evolutiva e a de outros seres vivos (Laland & O’Brien 2012). Um exem- plo disso é a associação entre as práticas culturais de domes- ticação de plantas e animais e a expressão de determinados genes em seres humanos, como demonstrado nesta seção, o que pode ocasionar maior adaptabilidade a ambientes criados ou modificados por esses poderosos construtores de nicho. Referências Albuquerque UP, Ferreira Junior WS, Santoro FR, Torrez-Avilez WM, Sousa Junior JR. 2015. 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Estudos sugerem que a extinção da megafauna interrompeu ciclos biogeoquímicos importantes para a ciclagem de nutrientes, alterou a cobertura vegetal em várias regiões e levou à coextinção de inúmeros organismos que dependiam direta e indiretamente desses grandes vertebrados. 42 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Existem diferentes definições de megafauna, mas o termo mais usual está associado a grandes vertebrados que viveram principalmente durante o Cenozoico, perío- do iniciado há aproximadamente 65 milhões de anos atrás. Especialistas utilizam distintos limiares de massa corporal para que os animais sejam considerados como membros do grupo, desde 40 kg até acima de uma tonelada (Malhi et al. 2016; Galetti et al. 2018). Definições mais recentes classificam a megafauna de acordo com a atividade trófica das espécies no sistema, a exemplo de megaherbívoros, que abarcam orga- nismos acima de 1000 kg, e de megacarnívoros, que incluem animais acima de 100 kg (Malhi et al. 2016). Embora o termo seja comumente associado a grandes mamíferos terrestres, outros grupos de vertebrados podem ser incluídos na megafauna, como répteis, aves e peixes (ver Lewison et al. 2014; Teh et al. 2015; Estes et al. 2016). Neste capítulo, utilizaremos a definição de megafauna que conside- ra grandes vertebrados (principalmente mamíferos) que vi- veram no Pleistoceno (iniciado há aproximadamente 2,5 mi- lhões de anos atrás), entre os quais alguns são encontrados até hoje ou tiveram sua extinção recente (Galetti et al. 2018). Condições para o surgimento e evolução da megafauna A megafauna sofreu grande diversificação durante o período Cenozoico, provavelmente como consequência da disponibilidade de nichos, que aumentou após a extinção do 43A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO Cretáceo-Paleógeno (K-Pg), especialmente de dinossauros não avianos (Smith et al. 2010). Durante os primeiros 140 mi- lhões de anos, os mamíferos existentes ocupavam uma faixa restrita de nichos e tamanhos corporais (Luo 2007). De fato, alguns estudos sugerem que esses mamíferos tinham tama- nho corporal reduzido (abaixo de 15 kg), alimentação gene- ralista e ocorrência predominante em ambientes terrestres (Luo 2007). Com um palco vazio deixado pelos dinossauros, o pe- ríodo após a extinção desses organismos foi marcado por uma intensa diversificação filogenética, ecológica e fisioló- gica, que permitiu o surgimento de grandes mamíferos de até quatro ordens de magnitude maiores do que os grupos comuns no Cretáceo (Luo 2007; Smith et al. 2010). Os megah- erbívoros desenvolveram maiores tamanhos com altas taxas de crescimento em diferentes ecossistemas, configurando uma estratégia comum e eficaz de defesa contra predadores, influenciada por limites mecânicos, térmicos, demográficos e de recursos disponíveis (Malhi et al. 2016). Os megacarní- voros, por sua vez, tinham crescimento restrito por limita- ções energéticas, pois dependiam do suprimento de comida gerada pelos herbívoros (Malhi et al. 2016). O surgimento de organismos cada vez maiores foi um padrão presente em di- ferentes continentes e ecossistemas (aquáticos e terrestres) (Smith et al. 2010) 44 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO Megafauna e funções dos ecossistemas Comunidades vegetais inteiras passaram a interagir com as espécies de megavertebrados que foram surgindo e di- versificando após o Cretáceo. Como resultado, novas relações de dispersão de sementes, bem como de herbivoria, estrutu- raram-se em diferentes ecossistemas (Malhi et al. 2016). Nesse cenário, grandes espécies tornaram-se dispersores-chave, principalmente para espécies vegetais com sementes grandes, incompatíveis com pequenos frugívoros, possibilitando espé- cies com sementes maiores (ou mais sementes) levadas para distâncias maiores. Na América do Sul, por exemplo, estima- -se que preguiças-gigantes realizavam dispersão de grandes frutos por longas distâncias – de 10 até 100 vezes maiores que os vertebrados atuais, já que retinham sementes em seus in- testinos por longos períodos (Guimarães et al. 2008; Pires et al. 2018). Além disso, com sua enorme biomassa, os megah- erbívoros alteravam a vegetação e, consequentemente, a pai- sagem, posto que removiam material lenhoso e consumiam grandes quantidades de folhagem, exercendo forte pressão do topo da cadeia trófica em direção à sua base (Malhi et al. 2016; Galetti et al. 2018). Como exemplo, pode-se citar os elefantes africanos, representantes da megafauna moderna capazes de reduzir em até 95% a cobertura vegetal de espécies lenhosas (Bakker et al. 2016). Segundo Malhi et al. (2016), megaherbívo- ros alteram o equilíbrio competitivo entre espécies vegetais, uma vez que reduzem a vegetação lenhosa, abrindo espaço no hábitat para o crescimento de plantas herbáceas. 45A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO Grandes vertebrados representavam massas ricas em nutrientes e partes vitais de ecossistemas dos quais inúme- ras espécies dependiam. Adicionalmente, a megafauna apre- sentava um papel essencial na ciclagem de nutrientes, rein- serindo de forma abrupta nutrientes antes retidos em caules, folhas, troncos e outras formas de matéria vegetal, que, do contrário, não ficariam disponíveis para os sistemas (Malhi et al. 2016; Galetti et al. 2018). Assim, herbívoros constituíam verdadeiras máquinas de renovação bioquímica, possuindo intestinos longos e bem compartimentados, que lhes pos- sibilitavam manter dentro de si temperaturas ideais para a proliferação de bactérias decompositoras de matéria vegetal mesmo em ambientes temperados (Malhi et al. 2016; Galetti et al. 2018). Como tinham intestinoslongos e digestão lenta, esses animais promoviam movimento de nutrientes entre locais e até ecossistemas, por meio de fezes e urina, aumen- tando no mínimo em 10 vezes as taxas de difusão de nutrien- tes (Malhi et al. 2016). Com o aumento de tamanho, alguns megaherbívoros adultos praticamente escapavam da possibilidade de serem caçados por qualquer predador em potencial (Smith et al. 2010; Malhi et. al 2016; Galetti et. al 2018). Já no que concer- ne aos carnívoros, novas pressões seletivas, que envolviam o processo de capturar, abater e consumir animais cada vez maiores, foram um fator-chave para o surgimento de espe- cializações (Valkenburgh 2007). Exemplos envolvem o apare- cimento independente de animais “dentes-de-sabre” em di- ferentes espécies, como os tigres-dentes-de-sabre (Smilodon 46 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO fatalis) na América do Norte e o tilacosmilo (Thylacosmilus atrox) na América do Sul (Valkenburgh 2007). Salvo alguns eventos e fenômenos restritos de extin- ção, a megafauna de forma geral proliferou e diversificou ao longo de todo o restante do Cenozoico, mesmo durante os períodos de glaciação e interglaciação, até que há, aproxima- damente 50 mil anos atrás, houve um rápido decréscimo das populações de megafauna no planeta (Malhi et al. 2016). Extinção da megafauna O desaparecimento de animais de grande porte duran- te o fim do Pleistoceno e o início do Holoceno (aproximada- mente 50 mil anos atrás) ocorreu de maneira generalizada em todos os continentes, o que originalmente deixou os pes- quisadores com grandes dúvidas a respeito de qual distúr- bio ambiental teria provocado essas perdas (Chichkoyan et al. 2017). As principais hipóteses sobre a extinção em massa da megafauna vêm dos estudos acerca dos efeitos das mu- danças climáticas e dos impactos causados pela colonização humana (Barnosky et al. 2004). Tais estudos originaram hipó- teses que foram suportadas por evidências provindas da cor- relação entre o aumento das taxas de extinção, alguns even- tos climáticos e a chegada de populações humanas (Homo sapiens) em várias regiões do mundo (Barnosky et al. 2004). A hipótese de que as mudanças climáticas tenham causado a extinção da megafauna do Pleistoceno encontra suporte nas seguintes evidências: (1) declínio da cobertura vegetal e da 47A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO disponibilidade de alimentos; e (2) declínio da massa corpó- rea da fauna, o que, por sua vez, reduziu o recurso forrageiro e a densidade da vegetação (Barnosky et al. 2004). O H. sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos atrás na África do Sul (Richter et al. 2017)3. A hipótese de que os seres humanos tiveram forte influência negativa sobre as extinções da megafauna sugere que, por volta de 70 mil anos atrás, dominaram todo o planeta e, por meio da caça, levaram as espécies à extinção. À medida que os grupos humanos se expandiram, milhares de animais desapare- ceram, sendo essa a primeira marca significativa que o H. sapiens deixou no planeta (Harari 2019). A extinção pelos efeitos da chegada da espécie humana tem sido atribuída ao desenvolvimento de técnicas aprimoradas para captu- ra dos animais, o que propiciou a expansão da caça. Além disso, as perturbações ambientais em decorrência das mu- danças climáticas facilitaram a captura da fauna pelos hu- manos, principalmente após o aumento da densidade po- pulacional desses grupos (Fariña et al. 2014). A coincidência entre o registro fóssil de mamíferos e de alterações do clima e a estimativa da chegada de popu- lações humanas é particularmente acentuada no continen- te americano. Acredita-se que a chegada dos seres humanos nesse continente tenha ocorrido entre 12,5 e 18,5 mil anos 3 Atualmente, há controvérsias sobre a origem do Homo sapiens, pois evi- dências fósseis recentes apontam uma origem mais antiga, de cerca de 350 mil anos atrás, no Marrocos (ver Hublin et al. 2017). 48 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO atrás, mesmo período em que há registro de mudanças climá- ticas no Pleistoceno e da maioria das extinções megafaunais (Barnosky et al. 2004; Bisso-Machado & Fagundes 2019). Em escalas regionais, as congruências ficam mais evidentes. Na América do Sul, estima-se uma extinção de 83% da megafau- na acompanhada de aumentos de temperatura dos mares que circundam os continentes, que vão de 2 ºC no oeste tropical do Pacífico até 7 ºC no sudoeste tropical atlântico (Barnorsky et al. 2004). Vale salientar, ainda, que essas mudanças climáti- cas não foram mais fortes nem mais rápidas do que as ocorri- das nos últimos 70 mil anos. Porém, combinadas com a expan- são humana, poderiam causar esses impactos (Barnorsky et al. 2004). Alguns estudos argumentam que ainda é necessária a investigação de vestígios, artefatos e marcas antrópicas re- lacionadas aos fósseis da fauna para analisar a relação entre a caça e a diminuição dos animais no passado (e.g., Chichkoyan et al. 2017). Por exemplo, o estudo de Yeakel et al. (2014) com- binou dados paleontológicos e arqueológicos para entender a dinâmica de comunidades e extinção de mamíferos ao longo de 6,000 anos no Egito. Os autores demonstraram fortes in- dícios de que a mudança climática e o impacto humano con- tribuíram para o colapso das comunidades de mamíferos, que mudou de 37 espécies no Pleistoceno/Holoceno para somen- te oito espécies que vivem no período atual. 49A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO Extinção de grandes herbívoros As evidências corroboram que a megafauna extinta no último ciclo glacial, cerca de 130 milhões de anos atrás, era formada predominantemente por herbívoros (Johnson 2009). As extinções dos herbívoros foram simultâneas às mudan- ças na composição das plantas desencadeadas após as varia- ções na temperatura e na precipitação durante a transição do Pleistoceno para o Holoceno (Gill et al. 2009) Esses animais contribuíram para a manutenção de hábitats abertos, promovendo o rápido crescimento da ve- getação herbácea e removendo espécies lenhosas (Bakker et al. 2016). Após a redução na densidade dos herbívoros, a estrutura da vegetação perdeu interação com boa parte dos frugívoros, enfrentando, por conseguinte, menor dis- persão de sementes – sabe-se hoje que o papel de disper- são desempenhado pela megafauna é praticamente insubs- tituível por outros vertebrados (Pires et al. 2018). Assim, a restrição da síndrome de dispersão dificultou a dispersão de grandes sementes a longas distâncias até em assem- bleias ricas em espécies de mamíferos. Nos cenários mais conservadores, a dispersão foi reduzida em dois terços depois do desaparecimento da megafauna (Pires et al. 2018). Dessa forma, as paisagens que antes eram diversas e heterogêneas foram se tornando homogêneas e unifor- mes (Bakker et al. 2016; Pires et al. 2018). Além disso, a den- sidade da vegetação herbácea pode ter aumentado a pro- babilidade de fogo, mediante alterações na temperatura e 50 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO na aridez que levaram a mudanças no regime de incêndios devido ao acúmulo de matéria vegetal e que, consequen- temente, podem ter transformado a vegetação em exten- sas pastagens, impossibilitando o forrageamento desses animais (Johnson 2009). Nesse contexto, vários frutos com sementes disper- sas exclusivamente por esses organismos deixaram de ser disseminados. Esse fenômeno em que espécies de plantas não possuem animais com características que permitam a dispersão de suas sementes é conhecido como anacronis- mo de dispersão (ver Janzen & Martin 1982). Os “frutos da megafauna”, hoje, são dispersados por animais recentes, como gado, cavalos e humanos. Alteração dos regimes naturais do fogo e mudanças do clima regional e global A modificação na vegetação após a perda dos grandes herbívoros também foi causada pela alteração nos regimes do fogo (Flannery 1990). Uma vez que a extinção de tais ani- mais pode ter levado ao aumento da densidade vegetacional, cientistas sugerem que o acúmulo de biomassa das plantas acabouservindo de combustível em incêndios, centenas de anos após a extinção da megafauna (Flannery 1990). As espé- cies de animais que conseguiram sobreviver ao fogo, assim como ao período de regeneração da paisagem, foram favore- cidas pelo novo padrão vegetacional. Essa hipótese, proposta por Flannery (1990) é chamada de “hipótese da substituição 51A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO dos herbívoros”, e sugere que grandes herbívoros atuaram como modificadores da paisagem e que, como consequência, o fogo assumiu papel fundamental após sua extinção. Janzen & Martin (1982), por sua vez, propuseram a hipótese de que, com a extinção dos grandes herbívoros, as plantas que possuíam frutos dependentes de sua dis- persão foram extintas e, como resultado, a pressão sele- tiva favoreceu a sobrevivência e a manutenção de espécies de plantas com sementes menores. Doughty et al. (2016) corroboraram esta hipótese por meio de modelos mate- máticos, indicando que as sementes dispersadas pela me- gafauna sofreram uma redução de cerca de 26% em seu tamanho e que a abundância de sementes é menor atual- mente (em torno de 50%). A diminuição da abundância das sementes provavelmente ocorreu porque sementes que alcançam uma menor distância de dispersão têm menores chances de encontrar espaço para germinar do que se- mentes com maior alcance de dispersão. Ademais, o papel funcional dos grandes herbívoros para garantir essa dis- persão de longa distância foi confirmado por simulações (Pires et al. 2018). Doughty et al. (2016) também demonstraram que a re- dução teve impactos não apenas na variedade de tamanhos e na abundância das espécies, mas também na capacidade de sequestro de carbono nas florestas da América do Sul. As estimativas dos modelos indicaram uma correlação positiva entre os tamanhos das sementes dispersadas pelos animais e a densidade da madeira de suas respectivas árvores. Uma vez 52 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO que as simulações evidenciaram que houve uma redução no tamanho das sementes, estima-se que as árvores podem ter reduzido seu teor de carbono em cerca de 4,2 ± 2,1 Mg/ha. Como comentado anteriormente, a extinção de me- gaherbívoros afetou a composição vegetal e, consequen- temente, a paisagem de diferentes regiões (Doughty et al. 2016; Malhi et al. 2016). Em regiões temperadas com neve sazonal, a ausência de grandes herbívoros provocou au- mento na quantidade e no adensamento de árvores, que tendem a refletir menos luz que a neve, o que pode ter re- duzido significativamente o coeficiente de reflexão de luz (isto é, o quanto determinada superfície reflete radiação solar, reduzindo o calor que absorve). Tais estimativas levam em consideração o carbono retido pelas árvores, a evapotranspiração e a reflexão de radiação solar. Em ex- perimentos de reintrodução de herbívoros, estipulou-se que grandes animais são capazes de alterar a reflexão de luz também por meio de pisoteamento e de remoção de herbáceas, atingindo surpreendentes resfriamentos de 15 a 20 ºC ao nível do solo (Malhi et al. 2016). Em escala global, a redução do coeficiente de reflexão de radiação gerada pela extinção pode ter esquentado o pla- neta em 0,2 ºC. Por outro lado, grandes vertebrados são fontes de metano, gás com capacidade de reter calor na atmosfera. Assim, cálculos sugerem que, na ausência de grandes verte- brados como fonte de metano, o planeta pode ter esfriado de 0,08 a 0,20 ºC (Malhi et al. 2016). Portanto, curiosamente, há um empate técnico: os valores de aumento de temperatura 53A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO associados ao aumento de árvores em regiões de neve são muito próximos aos valores da redução de temperatura rela- cionados à redução de emissão de gás metano. Dessa forma, não há um consenso sobre as consequências climáticas da extinção da megafauna em nível global, e estudos precisam levar em consideração diferentes fontes do efeito estufa e de reflexão da luz para não focar apenas uma faceta do fenôme- no (Malhi et al. 2016). Perda de interações bióticas e coextinções Diversos estudos sugerem que grandes vertebrados da megafauna coevoluíram com vários organismos através de inúmeras interações bióticas como mutualismo, competição e predação. Assim, a extinção desses organismos pode ter in- fluenciado várias outras espécies, como parasitas, comensais e mutualistas (Galetti et al. 2018). Contudo, o efeito de coex- tinções sobre os ecossistemas é relativamente difícil de ser estimado, devido ao pouco conhecimento sobre as relações dinâmicas das interações entre as várias espécies extintas, com exceção do material de registros fósseis (Galetti et al. 2018). Organismos comensais associados à megafauna também passaram por uma possível coextinção. Exemplos seriam besouros rola-bosta (Scarabeidae), que são depen- dentes das fezes de grandes vertebrados principalmente para reprodução. Além disso, animais carniceiros dependen- tes de carcaça desses vertebrados podem ter sido fortemente 54 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO afetados (Galetti et al. 2018). É possível que parte das espé- cies de escarabeídeos tenha transitado de hábito e passado a utilizar fezes de outros vertebrados menores ou até de es- pécies domesticadas por humanos, como o gado. No entan- to, mesmo com essas pressões seletivas, algumas espécies de besouros mantiveram os padrões de distribuição geográfica que apresentavam na época em que interagiam com a mega- fauna (Galetti et al. 2018). O desaparecimento de várias espécies da megafau- na também levou à coextinção de necrófagos, como hienas, em especial as de maiores tamanhos como a “hiena gigante” (Pachycrocuta brevirostris), hoje conhecida por registro fóssil (Galetti et al. 2018). Quando grandes vertebrados morrem, a disponibilidade de vários nutrientes e de energia diminui de maneira abrupta, modificando drasticamente as imedia- ções em que se encontram, o que os torna espécies-chaves nos ciclos biogeoquímicos dos sistemas. Isso é observável até hoje, quando da morte de espécies como elefantes, por exem- plo (Malhi et al. 2016; Galetti et al. 2018). Com a diminuição das populações de grandes herbívo- ros, as relações de predação de grandes vertebrados prova- velmente foram afetadas, uma vez que os parentes dos pre- dadores atuais como onças (Panthera onca) e coiotes (Canis latrans), tinham maiores tamanhos no Pleistoceno. Essa mu- dança no tamanho do corpo sugere uma mudança na dieta: sem a disponibilidade de grandes herbívoros, tais predado- res passaram a buscar presas menores, já que ambas as espé- cies têm um leque amplo de presas, e, assim, a seleção natural 55A EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA NO ANTROPOCENO passou a favorecer corpos menores (Galetti et al. 2018). Como resultado, estudos sugerem que carnívoros maiores e especia- listas que foram incapazes de se adaptar à ausência de presas grandes desapareceram. Essa extinção de grandes predado- res ocorreu antes mesmo do desaparecimento total de gran- des herbívoros em muitas localidades, como mostra o registro fóssil (Galetti et al. 2018). A diversidade de grandes mamíferos predadores, até então especializados em consumir grandes quantidades de carne, foi drasticamente reduzida durante o fim do Pleistoceno e o início do Antropoceno/Holoceno. Figura 1. Síntese dos efeitos da extinção de grandes vertebrados. 1 – Coextin- ção de espécies comensais ou mutualistas que dependiam da megafauna, como besouros rola-bosta (Scarabeidae), abutres e espécies de árvores dependen- tes da dispersão de sementes. 2 – Redução abrupta da ciclagem dos nutrientes nos ecossistemas, visto que a megafauna reintroduzia nos sistemas nutrientes da biomassa vegetal; 3 – Aumento do adensamento de árvores em diferentes ecossistemas, resultante do pisoteamento causado por grandes vertebrados e da diminuição da herbivoria. O adensamento das árvores aumentou a escala e o 56 INTRODUÇÃO AO ANTROPOCENO risco de incêndios naturais nos ambientes (3a) e, em regiões sazonais,
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