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ASSUNÇÃO, Matthias R _2015_De caboclos a bem te vis Formacao do campesinato um sociedade escravista

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Prévia do material em texto

MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO
DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
FORMAÇÃO DO CAMPESINATO NUMA
SOCIEDADE ESCRAVISTA: MARANHÃO
1800-1850
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CJP)
Bibliotecária Juliana Farias Mona CRB7- 5880
AS851c Assunção, Matthias Rõhrig.
De caboclos a bem-te-vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão, 1800 -
1850/ Matthias Rõhrig Assunção. - São Paulo: Annablume, 2015.
474 p.: 16 x 23 cm.
Inclui referências bibliográficas.
ISBN: 978-85-391-0660-3
Originalmente apresentado como tese (Doutorado) do autor.
1. Maranhão - História - Balaiada 1838-1841. 2. Brasil - História - Balaiada.
3. Movimentos sociais - Brasil. 4. Escravos - Maranhão - Insurreição, etc. I. Título.
CDD981.042
Índice para catálogo sistemático:
1. Maranhão - História - Balaiada 1838-1841
2. Brasil - História - Balaiada
3. Movimentos sociais - Brasil
4. Escravos - Maranhão - Insurreição, etc
DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
FORMAÇÁO DO CAMPESINATO NUMA SOCIEDADE ESCRAVISTA:
MARANHÃO 1800-1850
Projeto, Produção e Capa
Coletivo Gráfico Annablume
Imagem da Capa
View o/São Luís do Maranhão; Joseph Léon Righini
Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Custavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi
ja edição: junho de 2015
© Matthias Rõhrig Assunção
ANNABLUME editora
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020. São Paulo. SP . Brasil
Televendas: (lI) 3539-0225 - Tel.: (lI) 3539-0226
www.annablume.com.br
26 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
A maior vulnerabilidade dos seus ecosistemas, provocando a rápida mudança
das condições naturais de produção, implica que a história agrária do trópico húmido
deveria conceder mais peso a esse aspecto que nos climas moderados. Como os ciclos
de exploração de um produto costumavam ser mais curtos, as consequências para as
respectivas sociedades agrárias tropicais forão necessáriamente mais dramáticas.
Neste capítulo quero examinar o impacto da economia de plantation sobre o
meio-ambiente maranhense. As fontes demostram que até o início do século XIX, a
floresta amazônica se estendia de fato pelo Maranhão central até a beira do Parnaiba.
Impressionados pela exuberância das densas matas, os autores coloniais geralmente
sobrestimaram o potencial agrário da região. Só quando os efeitos da devastação
começaram a ser percebidos, no início do século XIX, é que se inicia uma discussão
sobre como remediar os inconvenientes da "grande lavoura". Entretanto, a solução
sempre adotada para enfrentar o problema do desmatamento foi, como em outras
regiões do país, sobretudo de expandir a fronteira agrícola.
1.1. "TERRAS POBRES E RICAS MATAS": O POTENCIAL AGRÁRIO MARANHENSE
Essa expressão de um conhecido estudioso para caracterizar a Amazônia pode
ser aplicada também ao Maranhão." Reflete o estado atual dos conhecimentos sobre
solos amazônicos, bastante diferente da percepção vigente na época colonial ou no
Império. A minuciosa análise dos diferentes tipos de terra encontrados no Maranhão,
efetuado pelo projeto RADAM, mostra que na faixa littorânea do estado há poucos
solos propícios para a agrícultura: dominam areias quartzosas, solos de mangue e
de campos inundados (solonchaks e solonetz), dificéis de usar na agrícultura por
serem muito ácidos, ou de alto teor salino. 39No resto do estado dominam lateritas
hidromórficas, podzólicos e latossolos vermelho-amarelos, ou seja, solos de fertili-
dade baixa a média, também de uso limitado para a agrícultura. Solos de qualidade
encontram-se apenas nos terrenos aluviais, que existem em pequena extensão ao lon-
go dos rios e riachos.
Tendo em vista a situação bastante desfavoravel do estado, comparado por
exemplo com os famosos massapés do litoral nordestino, cabe perguntar-se como é
que o Maranhão conseguiu - e em parte ainda consegue - ter um papel tão relevante
na exportação de produtos agrícolas como o algodão, o arroz e o açúcar. A resposta
reside nas técnicas agrícolas empregadas no passado, e, ainda hoje em uso por parte
dos pequenos produtores. A agrícultura itinerante ou de coivara consiste em queimar
38. Sioli, Harald, Amazonien, Grundlagen der Õkologiedes grôftten tropischen Waldlandes, Stuttgart,
Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft, 1983.
39. Ministério das Minas e Energia, Departamento Nacional da Produção Mineral. Projeto RADAM
Levantamento de Recursos Naturais, Vol. 2: Maranhão/Piauí, Vol. 3: São Luís/Fortaleza, Rio de
Janeiro, Sudene, 1973.
" *TTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 27
:'.'vegetação existente e aproveitar-se das cinzas para o cultivo." Tal tipo de culti-
,j' vo tem sido condenada como "primitivo" e "atrasado" desde os tempos coloniais.
,. Vérios autores modernos mostraram que a produtividade dessa agrícultura "tradi-
cional" depende muito do tipo da vegetação anterior," A quantidade de chuva, sua
distribuição durante o ano e a biomassa queimada são fatores tão importantes quanto
• qualidade de solo. Esse, no trópico humido, muitas vezes apenas serve de subs-
trato para a ''fixação mecânica" da vegetação.? Estudos empíricos tem demostrado
O aumento dos elementos nutritivos no solo depois da queima, 43o que relativiza o
julgamento negativo dado pelos estudiosos, no passado, a esse tipo de agrícultura. Ao
contrário, "esse velho sistema de lavoura é adaptado à pobreza do solo em reservas de
autrientes".44 Da mesma forma concluíram outro grupo de pesquisadores:
"This traditional fonn of shifting cultivation is functional and
ecologically sound. Shifting cultivation does not substantially
alter the soi! organic matter levels reducing them to about
75% ofthat ofthe forest equilibrium leveI. The burning pro-
cess itself has little effect on the soi! organic matter but does
not volatize most ofthe C, S and N ofthe vegetation"."
Para os propósitos da história agrária, cabe indagar-se então não somente so-
bre a qualidade dos solos, mas também sobre os tipos de vegetações predominantes
no passado. A flora maranhense é geralmente caracterizada como sendo de transição
.tre a selva amazônica do Norte, o cerrado do Centro-Oeste e a caatinga do Nor-
40. Para um descrição da agricultura itinerante ou shifiing cultivation no Maranhão no século XIX, veja
Gaioso, Raimundo José da Souza. "Descrição do método que actualmente se pratica nesta Província
para a cultura e manipulação dos generos [..r, BIGHB, cópia manuscrita sem data do original
no Conselho Ultramarino, Portugal; Abranches, João António Garcia d', Espelho crítico-político
da província do Maranhão, dividido em duas partes: (..) por um habitante da mesma província,
Lisboa, 1822, p. 40-41; Brandão Junior, F. A., A escravatura no Brasil precedida d 'um artigo sobre
a agricultura e colonisação no Maranhão, Bruxelas, H. Thiry- Vem Buggenhondt, 1865, pp. 30-31.
41. Weischet, Wolfgang. Die õkologische Benachteiligung der Tropen. 2. ed., Stuttgart, B. G. Teubner,
1980, p. 48.
42. Sioli, Amazonien, p. 54.
43. Ver por exemplo Lüken, Halo, Kemper, Bernhard, Grüneberg, Franz e Lenthe, Hans-Rudolf, "ln-
vestigations on the Development Potential of Oxisols of the Chapada Grande", in: Geologisches
Jahrbuch, Reihe F - Bodenkunde, Heft 15, 1983, p. 23-29; Kemper Bernhard, "Fragen zur Frucht-
barkeit von Oxisolen in semiariden Gebieten Nordost-Brasilíens", in: Giefiener Beitrãge zur Ent-
wtcklungsforschung, I, 9, p. 37-38, Wissenschaftliches Zentrum Tropeninstitut, Justus-Liebig-Uni-
versitlit, Gie6en, 1983; Jordan, C.F. (ed.), An Amazonian Rain Forest. The Structure and Function
of Nutriem Stressed Ecosystem and the lmpact of Slash- and Bum Agriculture, Paris, Camforth
(Lancs.), UNESCO & Parthenon, 1989, p. 108.
••••. Sioli, Amazonien, p.57.
45. Miller, R. H., Nicholaides, J.J., Sanchez, T. A. e Bandy, D. E., "Soil Organic Matter Considerations
in Agricultural Systems ofthe Humid Tropics", in: Proceedings ofthe Regional Colloquium on soil
organic matter Studies, Brasil, 1982, 1982, p. 105,.
28 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
deste. Os tipos geomorfológicos e os tipos de solo favorecerama eclosão de uma
vegetação específica: florestas de mangues nos solos constituidos por sedimentos
não consolidados do litoral, vegetação de restinga nas dunas, vegetação de campo na
baixada Maranhense, floresta tropical húmida e depois babaçual na planicie ao redor
do Golfão Maranhense e no planalto occidental, florestas deciduais nas colinas do
pediplano central, e cerrado nos vales dos rios Tocantins e Pamaiba.
A quantidade de chuva é o outro fator determinante. No Maranhão, o regime
de precipitações diminui gradualmente do oeste para o leste e do oeste para o sul. Na
área da floresta húmida no oeste, ele chega a 2500 mm, em média, por ano. No Mara-
nhão oriental essa média cai para 1600 mm e no Sul para 1200 mm.
Adotei no presente trabalho os resultados do projeto RADAM como ponto de
partida para tentar entender qual foi a cobertura vegetal do século passado. Usar esse
mapeamento para uma análise histórica resulta em vários problemas metodológicos,
pois muitos fatores diferents podem haver contribuído para mudanças na vegetação.
Mas acredito que pode ser um ponto de partida para elaborar algumas hipóteses. O
RADAM distinguia, em 1973, cinco tipos de vegetações: cerrado, floresta tropical
(húmida e decidual), formações pioneiras (mangues, restingas, e campos inundados),
caatinga, floresta secundária, e dois tipos transitórios: a transição floresta decidual/
cerrado, e a transição floresta decidual/cerrado/caatinga.
Raimundo Lopes já comentou sobre a complexidade das zonas de transição
entre a Amazônia e o Nordeste, destacando a multiplicidade dos tipos de paisagens
e vegetações no Maranhão." Por isso houve muitas divergências na literatura e re-
definições na prática na hora de dividir o Estado em ''microrregiões homogêneas",
no século vinte. A outra razão é a rápida transformação da vegetação devido a ação
dos homens: Selva, babaçual e campo são tipos de vegetação que podem succeder-se
no mesmo terreno em poucos anos. Por outro lado, a natureza foi sujeita à interven-
ções humanas que alteraram a cobertura vegetal muito antes da ocupação portuguesa.
Historiadores do meio ambiente insistem que as florestas da Amazônia não eram
''virgens'' antes da colonização européia, mas o resultado de queimadas e interven-
ções das sociedades indígenas." No entanto, apesar das dificuldades e da escassez de
fontes históricas no caso específico do Maranhão, esta tentativa de reconstituição é
necessária para que começemos a entender a dinámica da interação entre sociedade e
natureza, e o seu impacto sobre a formação social maranhense.
46. Lopes, Raimundo, Uma região tropical, Rio de Janeiro, Fonfon u. Seleta, 1970, p. 115.
47. Denevan, William M., "The Pristine Myth: The Landscape ofthe Americas in 1492", Annals ofthe
Association of American Geographers, 82 (3), 1992, p. 373; Balée, William, Footprints ofthe Fo-
restoKa 'aapor Ethnobotany - the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People,
New York, Columbia University Press, 1994, p. 122.
I'IATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 29
1.2.A AVALIAÇÃO DO POTENCIAL AGRÁRIO MARANHENSE NO SÉCULO XIX
Em contraste com as avaliações contemporâneas, os autores coloniais ou mes-
mo oitocentistas tendiam a sobreestimar o potencial agrário da região. Participavam
assim na elaboração do mito da "natureza exuberante", que viria a ser um dos mitos
constitutivos da nacionalidade brasileira."
Em geral, usavam-se tres critérios para avaliar o potencial agrário: a fertilida-
de natural dos solos; a abundância d'agua, seja de chuva, ou a proximidade do mar,
dos lagos, rios e riachos; e a existência de florestas, "boas" ou "menos boas" para a
agricultura. Estácio de Silveira, autor de um folheto de propaganda do século XVII,
que tentava aliciar os "pobres do Reino" de Portugal para vir estabelecer-se no Mara-
nhão, foi um dos primeiros a exaltar a fertilidade da terra:
"O terreno desta Província, é geralmente de uma terra golfeira
e muito criançosa, toda cheia de grandíssimos arvoredos, que
testificam sua fécundia; tambem há nela muitas varzeas de
terras grossas, e de massapês, aonde não leva arvoredo, senão
ervaçaismuito fortes, em alguns dos quais são postas canas de
açucar, que excedem a todas as mais do Estado do Brasil,'? em
grossura e grandeza; [...]".50
A fertilidade do solo, para esse autor, era provada pela existência de "grandís-
limos arvoredos". Essa concepção, mesmo sendo equivocada a partir dos conheci-
mentos atuais, corresponde, no entanto, à experiência dos agricultores da região, que
praticavam a agriultura itinerante, e sempre buscavam os terrenos de mata. O critério
da abundância de vegetação continuou a ser usado até o século XIX para classificar
a qualidade dos solos. Frei Francisco dos Prazeres Maranhão escreveu por volta de
1820:
"Todo o terreno do Maranhão se vê coberto de plantas e es-
pessos arvoredos,eda continua resolução de tantos vegetaes é,
que provém a grande abundancia de humus que aparece sobre
48. Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia, 3. ed., São Paulo.
Pioneira, 1976 (I. ed. 1969). Ver também Lopes, Uma região tropical, p. 50, e Paxeco, Fran, O Ma-
ranhão: Subsídios Históricos e Corográficos, São Luís, Associação Comercial do Maranhão, 1998,
p. 140, 145.
49. O autor se refere aqui a todo o territorio entre o Ceará e a capitania de São Vicente, que formava
então o Estado do Brasil, em oposição ao Estado do Maranhão e Grão Pará, administrado separada-
mente.
50. Silve ira, Estácio da, Relação sumária das coisas do Maranhão. Dirigido aos pobres deste Reino. 7.
Moraes, Jomar (org.), São Luís, UFMNSIOGE, 1979, p. 37.
30 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS
a terra quasi por toda a parte, e que é causa da exuberante
produção deste pais"."
o monge utilizava também a abundância d'agua como critério de fertilidade:
"A ilha do Maranhão é de grande fertilidade por ser cortada de muitos regatos; [...]".52
Como em outras regiões do Brasil, distinguiam-se também as terras de areia,
somente próprias para o cultivo da mandioca, e as terras argilosas, que prestavam-se
para a cultura do algodão, da cana de açúcar e do arroz. Joaquim Sabino Faria e Silva,
por exemplo, escreve: "O torrão de toda ela [a Capitania do Maranhão e Piauí], ainda
que num clima areento, é fértil cortado de boas águas e sadio [...]" e também: "Ti-
rados alguns sítios arenosos, de terra muito solta, os mais todos são capazes de pro-
dução, e estes mesmos não deixam de o ser, lançando-se-lhe análoga sementeira.?"
Os autores da primeira metade do século XIX, se diferiam nos detalhes, com-
partilhavam a mesma preocupação central com a chamada "grande lavoura", e as
possibilidades de sua expansão. Abranches e Gaioso eram fazendeiros, Paula Ribei-
ro, Sabino e Xavier funcionários da coroa portuguesa, e o autor anónimo do "Rotei-
ro" o escreveu com o intuito de propor uma exploraração mais racional da colônia.
Baseava-se nos princípios mercantilistas dominantes na sua época, que preconiza-
vam que as colônias deviam servir unicamente para o abastecimento e a riqueza da
metrópole. Por essa razão a lavoura de exportação recebeu toda a atenção e a agri-
cultura de subsistência só era mencionada ocasionalmente. Dessa maneira, os crité-
rios de fertilidade se limitavam em geral ao cultivo ou às possibilidades de cultivo
dos produtos da "grande lavoura". Assim A1cide d'Orbigny ainda insistia, durante a
década de 1820: "As terras banhadas pelo Itapicuru estão cobertas de plantações de
algodão de incrível fecundidade. "54
Mas como lamentou César Marques no seu famoso dicionário, em 1870, pou-
cos autores intententaram explorar sistemáticamente a fertilidade dos solos mara-
nhenses." Ele mesmo fez as observações mais detalhadas sobre essa questão e dedi-
cou mais atenção às culturas de subsistência. O seu critério de fertilidade era mais
amplo, ou seja, zonas que se prestavam particularmente para o cultivo da mandioca
já eram qualificadas como fertéis, em contraste com os autores da primeira metade
do século XIX, preocupados antes de tudo com a lavourade exportação. Seus escri-
51. "Poranduba Maranhense ou Relação histórica da Província do Maranhão (...)"[1820], provavelmen-
te da autoria de Francisco de N. S. dos Prazeres Maranhão, in: RlHGB, T. 54, Vol. 83, p. 141, 1891.
52. "Poranduba", p.l28.
53. Faria e Silva, Joaquim José Sabino de Rezende, "Mémoria político-econômica sobre o Maranhão"
[aprox. 1805-07], in: Torres, Milton, O Maranhão e o Piauí no espaço colonial. São Luís: Instituto
Geia, 2006, p. 211, 220.
54. Orbigny, Alcide d, Viagem pitoresca através do Brasil. [1853] Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EdUSP, 1976, p. 89.
55. Marques, César Augusto, Diccionário historico-geográfico da província do Maranhão. Rio de Ja-
neiro, Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 441 [I. ed. 1870].
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 31
tos refletem a interiorização da economia e o peso cada vez menor da agricultura de
exportação na economia maranhense na segunda metade do século XIX.
A oposição fundamental, ressaltada com pequenas variações por todos os au-
tores oitocentistas, é a entre o Norte, majoritariamente coberto de florestas, e o Sul do
Maranhão, onde dominava a vegetação de cerrado. Paula Ribeiro escrevia em 1819,
que o Norte contenia "[ ...] as maiores e mais fecundas matas de toda a capitania", e o
Sul "[ ...] a referida segunda porção, com o nome de Pastos Bons ou de altos sertões
da capitania, [...] e contendo, com parte também de boas matas ainda devolutas, dila-
tadas campinas próprias quanto é possivel para uma imensa criação de gados [...]".56
No seu mapa da Capitania do Maranhão, do mesmo ano, consta o traçado dessa divi-
810 básica (ver mapa), explicado por ele nos seguintes termos:
"Todo o terreno conteudo para o Sul da LinhaA-B,[ ...], con-
tém Campos gerais por entre as quais há pequenas Matas que
bastam a plantação substancial dos seus diferentes Distritos.
E todo o que lhe fica ao Norte, é composto de grandes matas
com pequenos Campos em poucas partes"."
Cartas ulteriores de 1838, 1841, e 1854 reproduzem distinções similares. À
diferença do mapa de Paula Ribeiro, ressaltam apenas as áreas das "melhores" matas
para a agricultura, excluindo da definição as florestas do Maranhão oriental ou as
florestas de transição para o cerrado, no Su1.58 Essas florestas não eram mais conside-
radas então como pertencendo à categora das "melhores matas". Dessa maneira, os
mapas oitocentistas dividiam a província em zonas segundo dois critérios: O primei-
ro opunha as terras das "melhores matas" aos campos e cerrados, e o segundo as áreas
colonizadas às zonas "infestadas pelo gentio".
Se tentamos nos adentrar um pouco mais nas descrições contemporâneas das
diferentes paisagens maranhenses, ressaltando a avaliação do potencial agrário de
cada uma, tal como visto pelos contemporâneos, podemos usar este material na re-
construição de microrregiões históricas, ou seja, áreas relativamente homogêneas
tanto do ponto de vista da vegetação quanto da ocupação humana.
O sul sempre é destacado como fundamentalmente diferente do resto da pro-
vincia. Até o século XIX essa zona era chamada de Sertão de Pastos Bons, indício
do papel preponderante da pecuária. Se todos os autores mencionam os "bons pas-
S6. Francisco de Paula Ribeiro, "Descrição do território de Pastos Bons, nos sertões do Maranhão
(1819)", in: RlHGB, T. 12, 1849, pp. 41,42.
57. Mapa Geográfico da Capitania do Maranhão, que pode servir de Memória sobre a População,
Cultura, e Coisas mais notaveis da mesma Capitania, por Francisco de Paula Ribeiro, Maranhão,
fevereiro de 1819, manuscrito, Biblioteca Nacional.Rio de Janeiro, seção Cartografia.
58. A Carta Geral de 1854, baseada em grande parte no levantamento de Pereira do Lago de 1819,
utiliza o critério de "melhores terras e matas".
32 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
tos" do Sul, a maioria destaca também a existência de matas próprias para a agri-
cultura." Gaioso, por exemplo, fala das "[ ...] matas preciosas e famosos campos de
criar gados't'" Não referem-se apenas as matas de galeria dos riachos e córregos
do cerrado, mas também as matas dos vales do Mearim, Grajaú e Pindaré que se
extendiam até o sul, e toda a zona sudoeste da província, onde acabavam encontrando-
se com as matas do vale do Tocantins. Paula Ribeiro, o melhor conhecedor desse
território, descreveu detalhadamente tanto os seus "dilatados campos" quanto as suas
"excelentes matas", e anotava que mesmo os vales entres as serras de Alpercatas, e
do Itapecuru até os afluentes do rio Balsas (Macapá e Neves) eram ''[. ..] compostas
de viçosas várzeas regadas por infinitos córregos"." A comparação de seu mapa de
1819 com a vegetação identificada pelo projeto RADAM sugere que a mata cobria
então zonas qualificadas em 1973 como sendo apenas de floresta decidual, vegetação
de transição ou mesmo cerrado. No entanto, como o mapa do RADAM simplifica
situações mais complexas, e Ribeiro descreve o sul como um mosaico de campos e
florestas, é possivel que a contradição é mais aparente do que real." Seria necessário
identificar de maneira mais precisa a localização das florestas naquela época para
chegar a uma conclusão mais definitiva.
O autor anônimo também insistia no fato que o todo o terreno do sertão era
"fertilíssimo, e produz todos os gêneros do País".63Se a economia do sul da província
limitava-se à pecuaria e à subsistência, isto era apenas devido à distância e a ausência
de meios de transporte: "E a distância que faz que ela não possa adiantar a cultura de
quanto produz, e a restringa em parte ao necessário para sua subsistência". 64
No norte da província as fontes oitocentistas identificavam várias subáreas
com potenciais agrários diferenciados. O litoral ocidental correspondia então às co-
marcas de Alcântara e de Guimarães." Apesar das terras de Alcântara ainda serem
consideradas "as melhores" da Capitania pelo autor do Roteiro," a maioria dos auto-
res oitocentistas constatou que a predominância das terras arenosas não fazia dessa
zona uma área ideal para a lavoura do algodão. César Marques fez a apreciação mais
diferenciada do seu potencial agrário:
59. "Poranduba", p. 129.
60. Gaioso, Raimundo José de Sousa, Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Ma-
ranhão. Rio de Janeiro, Ed. Livros do Mundo Inteiro, SUDEMA, 1970, p. 113 [1. ed. 1818].
61. Paula Ribeiro, "Descrição", p. 43.
62. Agradeço as observações pertinentes de Christian Brannstrom sobre este ponto.
63. "Roteiro do Maranhão á Goiás pela capitania do Piauí". In: RIHGB, T. 62, 1900, Vol. 99, p. 64.
64. Ribeiro, Francisco de Paula, "Roteiro da viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro ás
fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goiás no ano de 1813 [... ]". In: RlHGB, Nr. 9, 1848,
pp.64.
65. O município e ulterior comarca do Turiaçu fez parte do Pará até 1852.
66. "Roteiro do Maranhão", p. 136.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 33
"As suas terras são geralmente arenosas e, como tais, próprias
para a mandioca e batatas, milho e feijão, e impróprias para
a plantação do arroz e da cana-de-açucar, Há contudo, em al-
guns lugares desta comarca, terras de primeira qualidade para
canaviais, como as do Jerijó, [...] onde se acha montado um
excellente engenho a vapor que tem prosperado"."
As chuvas abundantes, a existência de "matas abundantes" e de muitos rios
fazia dessas duas comarcas uma zona ideal para os cultivos de subsistência ou a
extração de madeiras para construção civil e naval." Guimarães, sobretudo, era con-
liderada como a terra da mandioca por excelência: "O distrito de Guimarães é o mais
proprio para a cultura da maniva, [...]".69
Bastante distinto era o litoral ao leste da ilha de São Luís, até o delta do Parnai-
ba. Raimundo Lopes já salientou o carácter peculiar da zona entre o litoral e os rios
ltapecuru e Pamaíba, que ele chamou de Maranhão oriental." Desde a época colonial
todo o litoral oriental era considerado inútil porque a terra era "fraca" e arenosa,"
grande parte formada pelas dunas dos Lençóis maranhenses. Mesmo as terras situa-
das mais ao interior eram ainda consideradasinferiores:
"O terreno, que se acha desde o rio Pamaiba até a baia de
São José, está ainda pouco cultivado e mal povoado, por
não ter tantas e tão boas matas como as outras terras da
província;[...]".72
Somente o Munim e os seus tributarios eram destacados pelo autor do Poran-
duba por serem "[...] muito apropriadas para a cultura de algodão, café e laranjas".
Paula Ribeiro não se extendeu muito sobre o Maranhão oriental, área que não
conhecia bem - ao ponto de cometer vários erros na localização de povoados e vilas
-, mas descreveu-lá no seu mapa como "terreno muito povoado". Gaioso desclassifou
de maneira similar as terras do vale do Munim: "As suas terras são inferiores para a
cultura do arroz, e algodão; porém por outra parte são muito próprias para a cultura de
farinha." Distinguiu no entanto o vale do seu afluente Iguará, "por causa da melhor
qualidade das suas terras para a cultura dos gêneros do país". Essa foi a apreciação
mais detalhada de um representante da "grande lavoura" na época. Como as terras de
67. Marques, César Augusto, Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão, Rio de Janei-
ro, Fon-Fon u. Seleta, 1970, p. 72 [1. ed. 1870].
68. Ver Marques, Dicíonário, p. 240, 366.
69. "Poranduba", p. 129.
70. Lopes, região tropical, p. 148-51.
71. Lopes, Antônio. Alcântara, subsídios para a história da cidade, Rio de Janeiro, Mec. ,1957, p. 132.
72. "Poranduba", p. 125.
73. Gaioso, Compêndio, p. 102.
34 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS
matas propícias para a agricultura de exportação no Maranhão oriental eram poucas
e de dificil acesso, não eram dignos de maior atenção. Somente na segunda metade
do século XIX encontramos descrições mais elaboradas sobre o potencial agrícola do
Maranhão oriental. César Marques confirmou a pouca utilidade do rio Munim para a
"grande lavoura": "As terras á margem deste rio [Munim], que não são próprias para
a cultura do arroz e do algodão,[ ...]".74Mencionou as boas matas do Icatu, "com-
postas de madeiras proprias para a construção". Ressaltou que as matas litorâneas
prestavam-se mais para o cultivo da maniva, e destacou também as terras do Iguará:
"As matas, que existem de um e outro lado [do Iguará], são
excelentes, e as terras, que formam as suas margens, são óti-
mas para a cultura dos gêneros do país e os seus campos são
os melhores para a criação do gado vacuum"."
Estabeleceu uma diferença entre os pastos a beira-mar e os do interior:
"Os seus campos [do Icatu] banhados por água salgada, ou
pouco distantes dela, são muito próprias para a criação do
gado vacuum, mostrando a experiência que outro tanto não
acontece com os do interior, mormente no lugar Resfriado,
onde morre muito."?"
A diferença dos autores da primeira metade do século, Marques descreveu até
o potencial agrícola dos vales dos pequenos rios Periá, Maparí, e Alegre, que desem-
bocam diretamente no mar: "As margens destes rios são ótimas para a cultura de cana
de açucar e do arroz". 77Destacou a freguesia nova de Barreirinhas, "assentada em
terreno fertilissimo", sendo "um lugar muito apropriado para a agricultura", e tendo
"campos ótimos para criação do gado vacuum, e plantação de cana de açúcar"."
As terras do vale do Pamaíba foram classificadas de fertéis pelo autor anôni-
mo, ressalvando porém que ''[. ..] não passa a sua fertilidade das vizinhanças do mes-
mo Rio".79Marques, pelo contrário, escreveu que "as margens do rio [Parnaíba] em
toda a sua extensão são chapadas de pouca fertilidade [...)", mas destacou a impor-
tância das lagoas adjacentes para a pecuária: "E voz geral que nas margens deste lago
[de João Peres] o gado vacuum e suino engorda despropositadamente"." Descreveu
74. Marques, Dicionário, p. 488.
75. Marques, Dicionário, p. 386, 387.
76. Marques, Dicionário, p. 386.
77. Marques, Dicionário, p. 481.
78. Marques, Dicionário, p. 108.
79. "Roteiro", 1900, p. 70.
80. Marques, Dicionário, p. 505, 427.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 35
também as possibilidades agrícolas da freguesia de Araioses, com ''terras muito pró-
prias" para a lavoura, e das ilhas do delta do Parnaíba, algumas das quais tendo terras
"mui fertéis", prestando-se até para a lavoura de "ótimo" algodão." Apesar do cultivo
do algodão concentrar-se no vale do Itapecuru, houve sempre uma produção marginal
nessas áreas isoladas do litoral e em outras microrregiões. O potencial agro-pecuário
do Maranhão oriental recebeu, em suma, atenção diferenciada, segundo a importân-
cia que cada autor acordava à agricultura de subsistência ou às áreas secundárias de
plantation.
Em contraste, todos os autores oitocentistas são unánimes em louvar a ferti-
lidade dos solos dos vales húmidos do rio Pindaré, Mearim, Grajaú e Itapecuru. O
baixo Itapecuru era sempre considerado o mais importante e todos exaltavam as suas
"belas matas", entendendo-se que essa apreciação estética era, sem dúvida, feita em
função do seu potencial para a "grande lavoura"."
Paula Ribeiro atribuia ao alto Itapecuru as melhores possibilidades para a la-
voura:
"A porção de terra mais importante que ele [o Itapecurú] rege
é, comojá disse, aquela ainda hoje inculta que se contém para
baixo do Alpercatas até perto da vila de Caxias, não tanto por
maior, como por ser de mais vantajosa cultura; e seriam incal-
culáveis os interesses resultados, se todas se aproveitassem
porque a capitania do Maranhão não tem outra mais própria
para a agricultura"."
Em 1815, essa parte do Itapecuru ainda não era colonizada, mas habitada por
diversos grupos de indígenas timbira e gamela, que até então tinham logrado defen-
der as suas terras contra a invasão dos fazendeiros. Similares descrições eram feitos
a respeito dos rios Mearim e Grajaú:
"As margens destes dois rios, seguindopor eles acima, e pelos
secos centros, abundam dessas matas preciosas para a lavoura
dos dois gêneros algodão e arroz"."
As considerações sobre as terras dos vales do Pindaré, Grajau, Mearim e do
alto Itapecuru eram apenas prospectivas de exploração, já que todas essas áreas ainda
estavam fora do alcance dos colonizadores (ver mapa da fronteira agricola). É inte-
81. Marques, Dicionário, p. 86, 364.
82. Xavier, Manoel Antônio, "Memória sobre o decadente estado da lavoura e comercio ...(1822)", in:
RIHGB, 1956, vo1231, p. 306. Ver também "Poranduba", p. 126.
83. Paula Ribeiro, "Roteiro da viagem", p. 20.
84. Gaioso, Compêndio, p.229.
36 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
ressante notar que a maioria das terras indígenas eram classificadas como sendo as
melhores da provincia. No mesmo ato, reivindicava- se a necessidade de subjugar
os selvagens e permitir o acesso dos lavradores a suas terras. Mas porque, depois de
dois séculos de colonização, as melhores matas ainda estavam nas mãos do "gentio"?
Isso explica-se somente pelas rápida degradação do potencial agrário nas áreas co-
lonizadas.
1.3.A DESTRUiÇÃO DA MATA PELA GRANDE LAVOURA
A floresta tropical úmida, hoje praticamente extinta no estado, se extendia com
poucas interrupções por todo o norte da capitania do Maranhão no periódo colonial.
Por volta de 1800 o autor anônimo ainda descrevia as margens do baixo Itapecuru
cobertas de mata alta:
"As margens do Rio Itapecurú subindo-se por
ele até a Cachoeira grande, são por um e ou-
tra parte cobertas de muito grossa e densa mata.
A parte, que fica ao Norte tem sempre a largura de quatro até
cinco léguas; a que fica ao Sul, de duas até tres; a do Norte
se termina-se nos Campos do Iguará; a do Sul nos Campos
dos Perizes. Da Cachoeira grande até as Aldeias Altas são as
ditas margens abertas com campos, e povoados com fazendas
de gado. Das Aldeias Altas para a Freguesia de Pastos Bons,
principia outra vez a mesma mata por uma e outra parte total-
mente inculta desde a fazenda do seco, tres léguas acima do
lugar de Trezidelas, até a mesma freguesia"."
Da mesma maneira Paula Ribeiro menciona que o rio Itapecurú "corta varias
pontas da mata grande ou geral, que vem da Capitania do Pará"." Em outras palavras:
antes do início do processo colonisatório, as matas do Maranhão oriental constituiamuma extensão da selva amazônica, ligadas a essa por um continuum de mata. Mas no
final da época colonial já não sobrava muita floresta nas áreas colonisadas: "A mata
virgem ou firme (nunca cortada) já é rara, não falando nas terra dos selvagens"."
Mesmo não aceitando o qualificativo de ''virgem'' para toda a extensão da floresta
maranhense - idéia equivocada, como já foi dita -, não resta dúvida que esses autores
se referiam ao que hoje é chamado de 'floresta alta', em contraste com o mato das
capoeiras. A floresta alta, por definição, não sofreu intervenção agrícola pelo menos
nos últimos duzentos anos, enquanto a floresta de capoeira é a vegetação secundária
115. "Roteiro", p. 68.
116. Paula Ribeiro, "Roteiro da viagem", p. 18.
117. "Poranduba", p. 141.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 37
que se desenvolveu, no mínimo, depois de quarenta anos de uma intervenção humana
(queimada). A floresta secundária de capoeira e a floresta alta constituem dois tipos
de vegetação fundamentalmente diferentes com relativamente poucas espécies em
comum. Na floresta de capoeira dominam palmeiras como o babaçu." É a essa dife-
rença que os escritores e fazendeiros oitocentistas se referiam quando lamentavam o
desaparecimento da mata ''virgem''.
Em tempos de "boom" de um produto de exportação como o algodão, a des-
truição desta mata alta podia ser tão acelerada que desaparecia no espaço de uma
geração, como foi descrito por Brandão:
"A vila do Codó, no Maranhão, começou a ser povoada no
ano 1840, e hoje no districto dessa villa, não existem matas
virgens senão no alto dos morros, que são impróprios à agri-
cultura; tudo o mais foi derribadojsic]!"."
o crescimento de uma mata secundária depende não somente do clima (o re-
aime de chuvas) e da qualidade do solo, mas também da maneira como o terreno
foi roçado anteriormente. O tamanho da roça, a temperatura da queimada, o tipo e a
duração do cultivo, e finalmente o tempo que o terreno ficou sem cultivo influem na
formação da capoeira. Desde a época colonial distinguia-se a capoeira-mirim (vege-
tação rala dos primeiros anos depois da queimada) e a capoeira-açu (floresta secun-
dária mais espessa que se desenvolve depois de 12 anos). 90
Contrariamente ao costume atual de cultivar uma roça dois ou três anos segui-
dos (socas e resocas), a regra dos fazendeiros durante o período colonial parece ter
sido a do cultivo único, acelerando destarte o processo de desmatamento:
"Cada um ano semeam 300 a 400 braças quadradas de terre-
no; e para ser boa a lavoura, não se deve semear no mesmo
sítio, senão pasado 12anos"."
Nesse sentido escreveu também Joaquim de MeIo em 1767:
"Achei que o sítio de Pastos Bons é o melhor de todo o ser-
tão por ser mui fresco, ter excelentes águas, e serem boas
todas aquelas terras porque os moradores delas não roçam
88. Balée, Footprints ofthe Forest, p.123, 134, 136; Denevan, "Pristine Myth", p. 374; e Andrade.
Manoel Correia de, "Dinámica de povoamento e a ocupação do espaço geográfico no Maranhão",
Estudos universitários, Recife, 7, 2/3 (1967), p. 43.
89. Brandão Junior, A escravatura, p. 33-34.
90. "Poranduba", p. 141.
91. "Poranduba", p. 126.
38 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS
mais que uma vez na vida, e alí fazem todos os anos as suas
plantações, [...]".92
Sugere assim que os moradores de Pastos Bons podiam fazer uso contínuo dos
terrenos roçados, contráriamente aos lavradores do resto da capitania. Gaioso e Bran-
dão não fornecem indicações a tal respeito, apenas Garcia d' Abranches menciona o
duro trabalho de abater a mata e limpar a roça."
O costume atual de roçar dois, três ou mais anos seguidos o mesmo terreno, e
de diminuir o tempo de capoeira a sete, cinco anos ou menos tempo ainda, tem sua
origim na redução das terras de mata disponivéis na região. Faltaria apurar com mais
precisão onde e quando essas técnicas menos ecológicas foram implementadas." Em
todo caso, as queimadas repetidas e o seu uso para a agricultura levaram a formação
dos grandes babaçuais, formados quase exclusivamente pelas duas espécies dessa
palmeira (Orbignya oleifera Burret e Orbignya martiana), característicos da paisa-
gem de várias microrregiões maranhenses até um passado recente (ver mapa). No
entanto, esse tipo de floresta secundário apenas domina na chamada zona dos co-
cais, e não no pediplano central do Maranhão, caracterizado por florestas deciduais
ou mesmo vegetação de transição para o cerrado, zonas que no século XIX ainda
eram contabilizadas como pertencendo às áreas das "melhores matas". Aqui também,
grandes extensões de terra perderam sua vegetação original. O clima mais seco e
possivelmente a qualidade inferiores dos solos resultaram na sua substituição não por
palmerais, mas por florestas deciduais ou por vegetação de cerrado.
No Maranhão oriental as condições climáticas eram menos favoravéis ainda.
Enquanto Paula Ribeiro ainda descreveu grande parte dessa área como de floresta,
o projeto RADAM qualificou em 1973 a maior parte do Maranhão oriental como de
transição para o cerrado ou mesmo para a caatinga. Paula Ribeiro não conhecia bem o
Maranhão oriental, e por isso sua descrição e seu mapa não são totalmente fidedignos
a esse respeito. Outras fontes, porém, confirmam a existência de grandes extensões
de florestas no Maranhão oriental. Nos mapas da província de 1838 e 1841 os limites
da área das "melhores matas" se extendem de Periá no litoral até Caxias no ltapecu-
ru, incluindo zonas classificadas hoje de restinga ou de transição para o cerrado ou
92. Citado em Marques, Dicionário, p. 513.
93. Garcia d'Abranches, Espelho, p. 4l.
94. Para as terras de uma área de colonização antiga, a baixada ocidental, Droulers fornece os seguintes
dados: uma roça plantada depois da queimada da mata virgem, e cultivada durante dois anos, pre-
cisa de cinco anos para se regenerar. Depois de um segundo cultivo (dois vezes dois anos, chamado
soca), a floresta precisa de oito anos para se regenerar. Depois de um terceiro cultivo (tres vezes
dois anos, chamado resoca), a floresta precisa de doze anos para se regenerar. Mas durante este pro-
cesse de soca ou resoca extensões inteiras podem virar improdutivas ou estéreis, chamadas então de
jinjibral oder melozal. Droulers, Martine, Aspectos Rurais. Pesquisa polidisciplinar da prelazia de
Pinheiro, Vol. 6. São Luís, IPEI, 1976, p. 86. Pode-se assumir que o clima mais seco no Maranhão
oriental ou no sul da província prorogava o tempo necessário para a generação de uma boa floresta
secúndaria.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 39
a caatinga. Muitas fontes oitocentistas mencionam as densas florestas dos vales do
Munim, Iguará e Pirapemas. Ao leste da linha demarcada pelos mapas de 1838 e 1841
também havia florestas, mesmo se não cobriam todo o terreno até a beira do Parnaiba.
Os registros de terra de 1854-57 contém expressões como "nas matas do rio Magú"
que referem-se claramente a florestas numa zona considerado hoje de transição para
a caatinga." Da mesma maneira a memória oral sempre menciona matas nessa área
do Maranhão Oriental, como a "mata do Brigadeiro", hoje desaparecidas." O próprio
projeto RADAM encontrou ainda algumas áreas de areias quartzosas, do tipo que
domina na Maranhão oriental, sob vegetação florestal." Isto permite levantar a hi-
pótese que no Maranhão oriental, devido às partcularidades do clima, da qualidade
dos terrenos e da colonização mais antiga, as matas primárias foram substiuidas não
por palmeirais, mas por uma vegeteção de cerrado ou mesmo de caatinga. Restaria
apurar até que ponto isto foi o resultado da "grande lavoura" unicamente, ou também
da pequena produção camponesa, que usava a mata não somente para roçados, mas
também para retirar lenha. Estimou-se a uma tonelada de lenha per capita o consumo
de famílias no campo." Entretanto, a densidade demográfica no Maranhão oriental
era de apenas 0,3 habitante por quilómetro quadrado em 1798, chegando a 0,8 em
1821 e 1,2 em 1838. Estima-se por outro lado que a agricultura de coivara é ecologi-
camente sustentavel no trópico úmido até uma populaçãode 7 habitantes por quiló-
metro quadrado." Mesmo se as condições no Maranhão eram inferiores às da floresta
amazônica, parece pouco provável que a limitada produção de subsistência fosse a
única responsavel por tamanha mudança, para não dizer degradação ambiental.
Nas áreas mais húmidas do vale do ltapecuru, as derrubadas também resulta-
vam em devastações irreversivéis, já percebidas pelos contemporâneos:
"As derribadas tem fatigado o sólo, que em muitas partes não
produz senão algumas graminéas somente próprias para o
sustento do gado; a temperatura tem augmentado, as estações
tomaram-se irregulares, as chulvas algumas vezes estragam
as plantações, e outras faltam de todo; os riachos e alguns
rios de pouco fundo, como o Itapecuru, tem secado ou qua-
si impossibilitado a navegação, e as madeiras de construcção
95. Registro de Terras da Freguesia da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Araioses, 1854-57,
registro no. 218. Arquivo da COTERMA, São Luís.
96. Assunção, Matthias Rõhrig, A Guerra dos Bem-te-vis. A Balaiada na memória oral, São Luís, SIO-
GE, 1988, p. 58-62.
97. Projeto RADAM Levantamento, Vol. 2, III, p. 55.
98. Dean, Warren, A forro e a fogo. A história e a devastação da mata atlântica brasileira, São Paulo.
Companhia das Letras, 1998, p. 210.
99. Richards, P. W., The tropical rain forest. An ecological study, 2. edição, Cambridge, Cambridgc
University Press, 1996, p. 459.
40 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS
tomaram-se raras, ou somente existem muito distante das
habitações".100
Isto acontecia apesar da densidade demográfica nunca chegar perto da exis-
tente na mata atlântica. No Baixo e Médio ltapecuru, a densidade era de aproxima-
damente 0,7 habitantes por quilômetro quadrado em 1798, 1,5 em 1821, e 2,3 em
1838, enquanto Warren Dean estimou que na mata atlântica era de 2 habitantes por
quilômetro quadrado em 1700, e 10 em 1800.101
Como as terras mais cobiçadas por razões de fertilidade e de comodidade
(transporte) eram as beiras dos rios, foi aqui que a devastação se manifestou primeiro.
Os desmatamentos próximos aos rios acceleravam a erosão nas beiras, provocavam
o assoreamento dos rios e aumentavam o risco de inundações, já denunciado por
Gaioso por ocasião da enchente de 1788-89 no ltapecuru:
"Quem sabe se acharemos a razão deste pequeno dilúvio, na circunstância de
se haverem abatido os madeiros, que ficam nessas beiradas cujos destroços tirando as
barreiras o seu necessário amparo, foram precipitando as areias no fundo do rio, de
que se originou um menor leito, para receber as aguas do monte. O que é certo, e que
desde então por diante, o rio se tem feito mais inavegável, por causa dos muitos secos
que impossibilitam o trânsito das canoas't.!"
De maneira similar argumentava cinquenta anos depois o engenheiro alemão
Gustav Dodt, no relatório de sua missão para o governo imperial:
"[...] pois tendo se derrubado em toda a parte a mata
na beira do rio, ficam as ribanceiras expostas a ação
dos enchentes, a que elas não podem resistir, visto que
se compõe de um barro muito frouxo e arenoso. [...]
Ocorre que este estado do rio tende a piorar de ano para ano
pelo Motivo de que os habitantes das margens do rio costu-
mam cortar o mato, que cobre as ribanceiras para plantarem
nestas fumo.As enchentes encontram desta forma as ribancei-
ras despidas de qualquer vegetação e sendo elas formadas de
uma areia muito fina e pouco barrenta não podem resistir ao
ataque das aguas e partes consideráveis são arrojadas todos
100. Brandão Júnior, A escravatura, p. 33.
101. Os dados sobre o Maranhão foram calculados a partir dos censos demográficos de 1798, 1821 e
1838 e da superfície dos municípios. Esta última se encontra na Sinopse estatística do Maranhão
/980, São Luís, Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, 1980. Para a mata atlântica, ver
Dean, Aferro e afogo, p. 94 e 116.
102. Gaioso, Compêndio, p. 101.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 41
os anos ao meio do rio, aumentando alí a quantidade de areia
movediça, que já existe".103
A rápida destruição da floresta, particularmente da mata alta considerada "vir-
sem", tampouco escapou às autoridades coloniais e imperiais. Além da preocupação
geral com a prosperidade da província, necessária para melhores rendimentos fís-
cais, elas estavam sobretudo interessada na navegação dos rios, e na manutençãodos
chamados "paus reais", necessários para o abastecimento da marinha. Desde 1652
• coroa portuguesa mantinha um monopólio sobre todas as madeiras consideradas
boas para a construção naval. As "madeiras de lei" só podiam ser cortadas pelos
proprietários para seu uso privado, mas não podiam ser vendidos sem consentimento
dos oficiais da coroa, que além do mais se reservava o direito de extraí-los, mesmo
localizados em propriedades particulares, Tamanha ingerência por parte do estado
teve o resultado oposto ao desejado: em toda parte derrubavam-se as madeiras de
lei, em geral sem aproveitamento adequado. Em comparação com outras colônias
nas Américas, a política ambiental portuguesa foi assim particularmente desastrosa.
Nlo somente resultou na destruição das florestas, mas além disto ném gerou renda
correspondente ao valor de mercado das madeiras de lei. 104
No final do século XVIII alguns intelectuais, inspirados pelo naturalista ita-
liano Domingos Vandelli, professor na universidade de Coimbra, e protegidos por
Rodriguo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e do Ultramar entre 1796 e 1801,
começaram a refletir sobre a destruição das matas. Iniciaram destarte uma linha de
pensamento ambientalista no Brasil. 105 Na mesma época a coroa portuguesa intentou,
mais uma vez, conter o desmatamento do litoral e das beiras de rio com a carta régia
do 13 de maio de 1797, ordenando não somente a preservação dos paus reais para a
Marinha, mas além do mais declarando propriedade da coroa todas as áreas do litoral.
A intenção era de compensar os proprietários de terras do litoral com terras no inte-
rior. Esse plano ambicioso nunca chegou perto de ser implementado.l'" No caso do
Maranhão, como constatou de maneira lapidar um parecer feito para o presidente da
província Souza e Meio em 1840:
"Esta carta régia nunca teve execução nesta Província, por
que as matas proximas á costa do Mar, e margens dos rios
já então não existia a maior parte delas: e a unica providên-
103. Dodt, Gustav, Descrição dos rios Parnaiba e Gurupí. Relatórios sobre a exploração dos mesmos,
seguidos de uma memória sobre o porto de São Luís do Maranhão, Belo Horizonte, Itatiaia e São
Paulo, USP, 1981, p. 35, 65-66 [I. ed. 1873].
104. Miller, Shawn William. Fruitless Trees. Portuguese Conservation and Brazil s Colonial Timber.
Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 1-69.
105. Para mais detalhes, ver Pádua, "Aniquilando as Naturais Produções", Um sopro de destruição. p.
34-129, e Dean, A ferro e a fogo, p. 134-39, 160-63.
106. Miller, Fruitless Trees, p. 55-61.
.042 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
cia que a tal respeito deram os Capitães Gerais, quando man-
davam passar cartas de Sesmarias foi logo com a expressa
condição de ficarem n'elas reservados os paus reais, [...].
Nestas novas Sesmarias, que se concederão com a expressa
condição acima declarada, não foram igualmente poupados
pelos proprietários os paus reais: hoje só muito longe da Ca-
pital, nas margens dos rios Itapecurú, Preto, Mearim, Tury e
outros é onde aparecem com abundancia madeiras para cons-
truções, [...]"107
Em 1825, logo depois da Independência, o presidente da província Costa Bar-
ros deu continuidade à preocupação ambientalista quando assinou uma portaria, re-
querendo que todas as câmaras municipais da província proibissem o desmatamento
à beira dos rios. As câmaras, talvez para protelar qualquer ação nesse sentido, respon-
deram que não sabiam como interpretar a medida, se a proibição era de meia légua de
cada lado, ou seja, uma légua no total, ou de uma légua em cada beira.'?' Seja como
for, a nova medida tampouco surtiu o efeito desejado, o que confirma o julgamento
de Warren Dean sobre a ineficiênciado absolutismo português no trópico, enquanto
a sua capacidade de impôr restrições de caráter ambientalista aos colonos. 109Ou seja,
o Maranhão estava muito distante não somente em termos geográficos das ilhas de
Mauricius e Tobago, onde, desde o século XVIII, implementaram-se políticas de con-
servação das florestas nativas.'!"
Na época da Independência os municipios do litoral maranhense já expe-
rimentavam problemas no abastecimento de madeiras para obras maiores como a
construção do quartel, "[ ... ] pela falta que aqui há de madeiradas percizas para ele"
ou da igreja matriz "[ ...] em razão de serem muito longe as madeiras que devem
vir de seis e sete dias de distância, [... ]".111 Miller argumentou nem todas as queixas
sobre a destruição das madeiras de lei eram de boa fé. Muitos proprietários de matas
com paus reais praticavam um "obscurantismo ao revés" que os levava a negarem
sua existência para não serem incomodados pelos oficiais da coroa encarregados de
explorá-los. Mesmo esses oficiais podiam estar interessados em negar a existência de
madeiras de lei em seus relatórios para melhor aproveitá-los de forma ilícita.!" Por
conseguinte sempre é preciso identificar as motivações dos autores das queixas sobre
107. Oficios de diferentes particulares ao Presidende da Província, Maranhão [= São Luís], 03/02/1840,
APEM. Julgamento similar é feito por Gaioso, Compêndio, pp. 210-211.
108. Oficios das câmaras municipais ao Presidente da Província, Icatú, 15.10.1825; e São Bemardo,
19.10.1825, APEM.
109. Dean, Aferro e afogo, p. 60, 99. Para Miller, Fruitless Trees, não se trata de ambientalismo, mas
bém de utilitarismo. Ver p. 52-60.
\\ O. Grove, Green Imperialism, cáp. •
tIl. Oficios das câmaras municipais ao Presidente da Província, Icatú, 03.12.1825, Tutóia, 21.02.1839.
112. Miller, Fruitless Trees, p. 37-39.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇAo .043
desmatamentos. No caso das câmaras do Icatú e Tutóia acima citados, as cartas po-
dem ter servido também como desculpa para justificar o atraso na construção ou para
pedir mais verbas. No entanto, a rápida destruição da mata foi registrada por tantos
observadores oitocentistas no Maranhão, e de origens sociais tão diversas, que me
parece dificil negar que aconteceu, de fato.
O desaparecimento das matas, e o impacto negativo do desmatamento sobre a
aaricultura de exportação resultou em duas linhas de argumentação. A primeira, de-
fendido em geral pelas autoridades coloniais ou representantes do governo imperial
na província, lamentava a destruição, que para eles era o resultado da ignorância e da
cobiça sem limites dos fazendeiros, que não ínvestiam na conservação de suas terras.
Âlsim o magistrado e Ouvidor Geral interino da capitania Bernardo José da Gama
•• creveu em 1813:
"O forte da agricultura é o algodão e o arroz, que são alí de
uma produção prodigiosíssima. Mas [...] será este prodígio de
muito pouca dura pela desmarcada ambição dos agricultores,
e, ao mesmo tempo, pela absoluta ignorância da arte; porquan-
to fazendo-se infinitas colheitas, e todas elas á custa de matas
virgens que fazem derrubar e incendiar todos os anos, para
perceberem grande quantidade de frutos, que abundam muito
mais em terras que ainda não foram cansadas, acha-se a Capi-
tania já tão despida de seus grandes arvoredos, que os habitan-
tes, por seguir este estragado sistema, já se tem afastado cem e
mais leguas distantes do seu berço primitivo, [...]. E, portanto,
naquele país a abundância de terras a causa de sua destruição,
a facilidade de subsistência a causa do ócio, e a riqueza que
hoje parece marcar a base de uma duradoura felicidade, não é
devida se não á ambição daqueles, que, abandonando terrenos
que podiam ajudar e aproveitar, só avançam novos terrenos,
para tirar maiores vantagens, ainda que aos olhos do Estado
não seja menos que uma direta destruição do País't.!"
O autor anónimo do "Roteiro" mostrava através do exemplo de Minas Gerais
como era de uso comum dos lavradores de "procurar como fertéis, as terras cobertas
de extensas matas", e denunciava os "dois vícios" dos fazendeiros maranhenses:
"Aqui há dois VÍCiosque emendar: o primeiro é a escolha, que
indistintamente fazem das matas, havendo em muitas partes
113. Gama, Bemardo, "Informação sobre a Capitania do Maranhão, dada em 1813 ao Chanceller Antô-
nio Rodrigues Velloso", Moraes, Jomar (ed.), in: Projeção, Suplemento Cultural, São Luís, Asso-
ciação Comercial do Maranhão.Ano 11,I, 1981 (março), p. 13.
44 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
campos de admitir a mesma cultura: o segundo é o estado, em
que deixam as terras depois de feitos os roçados. Um terreno
tão occupado não pode admitir arados: porém se logo no pri-
meiro rompimento, o prepararem melhor: arrancando as rai-
zes que no referido País, são tão chegadasa superficieda terra,
que muitas vezes não sustentam as arvores; com este maior
trabalho ficando as terras dispostas para o uso dos arados, se
diminuiria nos mais anos o número dos trabalhadores't.!"
A solução advogado pelos dois autores era o fomento à pecuária, o cultivo
dos campos naturais, assim como a introdução do arado, depois de uma limpeza
da roça, livrando-a das raizes das arvores. As medidas eram parecidas às propostas
por outros ambientalistas, como Baltasar da Silva Lisboa (1786) ou José Gregório
de Moraes Navarro (1799), cujas publicações talvez inspiraram os dois autores su-
pracitados. Foram depois advogadas também pela Sociedade Auxiliar da Indústria
Nacional, constituida em 1825. Sobretudo o arado, praticamente não usado no Brasil
oitocentista, constituia por isto mesmo "uma espécie de utopia tecnológica distante
e idealizada't.!" As medidas propostas pelo magistrado colonial se parecem àquelas
defendidas pelos profetas da "modernização" no século vinte, que atribuiam à pecuá-
ria extensiva e à agricultura "moderna" (sempre identificado com o arado) um papel
fundamental no "desenvolvimento" da Amazônia, mesmo se essas técnicas não cor-
respondem mais ao estado dos conhecimentos da pedologia tropical. De fato, o uso
do arado no trópico foi e permanece problemático por várias razões. Na agricultura
de coivara as raizes das arvores permanecem na terra. Assim, uma vez que a roça
não é mais usada para a agricultura, podem brotar de novo e garantem uma mata
secundária boa, o que não é o caso quando se usa o arado. Além do mais, a queimada
reduz temporáriamente as pragas no roçado. Warren Dean argumentou mesmo que
a voracidade das formigas saúva "obstavam, inexoravelmente, a transferência dor
regimes agrícolas europeus e africanos" e foram "uma causa importante da persistên-
cia da agricultura itinerante". 116 O testemunho mais impressionante sobre o impacto
negativo desses insetos no Maranhão é, sem dúvida, o processo movido pelos reli-
giosos do convento de Santo Antônio contra as formigas a redor dos anos 1712-13,
acusando-as de furto qualificado e dano ao seu imóvel. Foram condenados a viverem
em lugar distinto e pretendeu o piedoso primeiro copilador do processo que "sairam
a toda a pressa milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fileiras,
demandaram em direitura e sinalado campo, deixando as antigas moradas [...]"117
114. "Roteiro do Maranhão", p. 98.
115. Pádua, "Aniquilando as Naturais Produções', nota 13.
116. Dean,Aferroeafogo,p.124-27.
117. "O processo das formigas", introdução e edição de Jomar Moraes, Projeção do Nordeste, Suple-
mento Cultural, São Luís, Ano 11,2, 1981 (abril-maio), sem paginação.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 4S
Há outras razões de peso contra o uso do arado: "O uso do arado substitui a
IItrutura do solo natural, que permanece adequada (solta) por outra artificial, que se
toma compacta demais, se não for artificialmente mantida: Quem usa o arado uma
vez, tem que usá-lo sempre.'?" No entanto, a elite letrada associou o arado com
progresso também no Maranhão oitocentista. No romance Jacy. Lenda Maranhense,
publicado em capítulos na imprensa em 1867, o autor Sabbas da Costa insere uma
discussão entre um fazendeiro de Coroatá, no vale doItapecuru, e o seu feitor na dé-
cada de 1840. O fazendeiro, português e progressista, defende o uso do arado porque
permite um uso mais intensivo da terra. Onde é usado "o progresso é palpavel". O
feitor, conservador e pragmático, responde que o arado é inutil no Maranhão, porque
"temos grandes matas" e "os escravos são broncos, não sabem lidar com arados"."?
É interessante anotar que os autores que estavam diretamente involvidos com a agri-
cultura da época, como Xavier ou Gaioso, argumentavam no sentido oposto, contra o
UIIO do arado. Xavier, dono de uma fazenda no alto Itapecuru, escreveu que
"[...] ali [no Maranhão] não é admissivel o uso do Arado não
só em razão da falta de Estrumes para adubar Campos Vastos,
como porque esses mesmos campos necessitariam de um tra-
balho incompreensivel par extrair todas as raizes de Madei-
ras, o que desanimaria o mais opulento e corajoso cultivador:
Não há pois outro Caminho que o de Lavrar as terras incultas
de Matas existentes debaixo da influênciado Gentio Bárbaro
[ .•. ]".120
Gaioso também refere-se a carta régia de 1797, cujos dispositivos nunca foram
compridos. Limita-se a sublinhar que sém o desmatamento contínuo de novas terras
nlo seria possivel a agricultura de exportação e pergunta ao leitor:
"[...] como poderã então continuar a lavoura sem esses incen-
dios, e destruição das matas, uma vez que sem esses destro-
ços, que formão o unico estrume das terras, não podem as
plantas fructifícar".'!'
118. Comunicação pessoal do Dr. Bernhard Kemper, da Bundesanstalt für Geowissenschaften und Ro-
hstoffe, em Hannover, Alemanha, na década de 1980.
119. Sabbas da Costa, "Jacy (Lenda Maranhense)". Capítulo 11,Semanário Maranhense, 8.9.1867, p. 3.
Ver a reedição fac-sirnilar organizada por Jomar Moraes, São Luís: SIOGE, 1979.
120. Xavier, Memória, p. 309-310.
121. Gaioso, Compêndio, p. 211. De fato não são as raizes que constituem o estrume da terra, mas as
cinzas da queimada.
46 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS
Diante do problema da produtividade descrecente da agricultura em terras can-
sadas, sem possibilidades de investir na intensificação da produção, aparentemente
só sobrava uma solução aos lavradores: desmatar novas áreas de floresta. Essa era a
lógica inerente à produção colonial, da qual os fazendeiros não conseguiam escapar.
Se roçavam "terrenos já cansados", isto exigia maior investimento de mão de obra,
que não seria recompensada por safras melhores:
"Foi crescendoa lavoura, e foramtambém dilatando-seas dis-
tâncias, de tal sorte que presentemente, ou as produções hão-
-de ser mais diminutas, por se ver o lavrador obrigado a culti-
var terrenos já cansados, e para que se necessita muito maior
beneficio para fazê-los produtivos, e maior número de braços,
ou deve recorrer-se aos terrenos infestados de gentio bravo,
que é o estadoa que se acha hoje reduzidoo agricultor,[...]".122
Xavier argumentou de maneira similar em relação à produção de arroz:
"Por olvidação não tratei em devido lugar do Artigo Arroz,
sobre o qual somente direi que a sua produção naquela Pro-
vincia já foi muito maior quando os Lavradores o cultivavam
em Matas, e agora o não podem fazer, por Lavrarem terras
Cansadas de Capoeiras, é a Colheita deste genero muito mes-
quinha, e só tomará a aumentar-se quando tivermos a fortuna
de ver desinfestadosdo Gentio as preciosasMatas e terras que
ocupa".123
o dilema dos fazendeiros explica a reivindicação de novas terras para a "gran-
de lavoura", sempre reiterada durante o século XiX. As terras novas só poderiam ser
as terras do interior da província, ainda sob domínio do "gentio". A "falta de terras
por causa do gentio" constituia-se, segundo Gaioso, num dos cinco "entraves" que
levavam os fazendeiros e a "grande lavoura" a falência. 124
A veemência das reivindicações pela colonização das matas do Maranhão cen-
tral resultou do impasse da agricultura de exportação na primeira metade do século
XIX. A erosão crescente dos solos nas zonas antigas não foi compensada pela inte-
gração de novas terras, porque a "fronteira", ou seja, a fronteira entre a sociedade
colonial, logo nacional, e as sociedades indígenas avançou muito pouco nesse perío-
do. A comparação entre os mapas de 1819 e 1838/41 revela apenas duas pequenas
alterações no traçado da fronteira: a colonização progrediu no rio Itapecuru até a
122. Gaioso, Compêndio, p. 228.
123. Xavier, Memória, p. 316.
124. Gaioso, Compêndio, p. 228.
MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇAo 47
barra do rio Alpercatas, e em algumas áreas do baixo Mearim. Mas várias tentativas
de integrar áreas mais amplas ao domínio colonial e de fundar vilas novas como Leo-
poldina ou Príncipe Regente fracassaram.
Podemos estabelecer, então, algumas diferenças fundamentais entre o Mara-
nhão e outras regiões deplantation. No Maranhão a grande agricultura de exportação
Inicia-se muito mais tarde do que no Nordeste. Se tormarmos em conta esse aspecto,
• densidade mais baixa da população e o fato que a floresta tropical úmida cobria
uma parte maior do território, surpreende a rapidez com a qual a mata foi devastada
no Maranhão. Dado o uso de técnicas agrícolas similares, podemos buscar uma ex-
plicação no fato do Maranhão ser mais amazônico que nordestino, ou seja, rico de
matas mas pobre de terra, não dispondo de massapês como o litoral nordestino. Mas
no Nordeste açucareiro - da Paraíba ao Recôncavo baiano - as áreas de plantation
limitavam-se a uma estreita faixa litorânea. Os pequenos produtores do Agreste e do
Sertão, e os fazendeiros de gado foram responsável pelo avanço da fronteira depois
da fase inicial de conquista do litoral, no século XVI. Na parte septentrional do Ma-
ranhão, pelo contrário, grande parte da fronteira agrária coincidia com os limites da
zona de plantation até meados do século XIX (ver mapa). Não quero negar o papel
relevante do campesinato na fronteira agrícola em áreas e períodos específicos. Como
veremos a seguir, grande parte do Maranhão oriental foi ocupado por camponeses de
diversas origens desde pelo menos a primeira metade do século XIX, e esse movi-
mento extendeu-se ao Maranhão central e occidental no século XX. Na fase crucial
dos anos 1800-1840, no entanto, muitos grandes fazendeiros do algodão estavam
usentados literalmente em terras de fronteira, num arco que se extendia de Viana até
Caxias, passando pelo Mearim e Codó.
No Sudeste, a mata atlântica também occupava faixas mais largas, mas o aces-
10 estava sendo dificultado pela topografia: a Serra do Mar constituia uma barreira
natural durante a primeira fase da colonização. Ulteriormente houve aqui também
fazendeiros assentados na fronteira, preocupadas em "limpar a sua área" e extermi-
nar os "bugres", mas essa tarefa de honra duvidosa já havia sido realizada em grande
parte pelos bandeirantes caçadores de ouro e de escravos. Quando o café ocupou o
planalto paulista, teve que expulsar não o "gentio", mas os posseiros e sitiantes.!"
A rigidez da fronteira agrícola na primeira metade do século XIX reforçou os
problemas da "grande lavoura" no Maranhão e, possivelmente, também aumentou a
pressão sobre o incipiente campesinato em outras áreas. É significativo, a tal respeito,
que a abertura dessa fronteira se produz nos anos imediatamente posteriores a Balaia-
da, revolta cuja área principal é constituida por microrregiões de ocupação antiga e
com maior incidência de terras cansadas.
125. Ver por exemplo Dean, Warren, Rio Claro. Um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920.
Rio de Janeiro, paz e Terra, 1977, capítulo I.

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