Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social CONFLUÊNCIAS E TRANSFLUÊNCIAS NO TERECÔ, RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA DE CODÓ, MARANHÃO BARBARA PIMENTEL DA SILVA CRUZ 2018 ii CONFLUÊNCIAS E TRANSFLUÊNCIAS NO TERECÔ, RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA DE CODÓ, MARANHÃO BARBARA PIMENTEL DA SILVA CRUZ Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social Orientador: MARCIO GOLDMAN Fevereiro 2018 iii iv v REENCONTRO COM GOTAS sofrimento é uma inexplicabilidade. para ser um SER há que verter sangue de nós para o mundo. solidão é uma esteira onde se evite cochilar. depois de se morrer interiormente para voltar a ser um SER há que procurar nosso sangue no mundo e auto-entorná-lo cuidadosamente, em arretorno de essências. paz é uma sapiência. sapiência é uma conquista. conquista é água rara de ser ingerida a contar as gotas. ... tranquilidade é uma gota de sangue reencontrado. - Ondjaki (2011) vi AGRADECIMENTOS amizade: há preferências que seja húmida, pois mundo está isolar pessoas; assim amizade procura por ela que pessoas se escorreguem para algum encontro. - Ondjaki (2011) Talvez para o leitor a seção dos agradecimentos seja um tanto repetitiva, pois ela toca muito mais as pessoas envolvidas em um processo intenso e que via de regra fica restrito aos bastidores da produção acadêmica; particularmente, gosto bastante de ler essa parte que antecede os argumentos de uma dissertação ou de uma tese, e junto com isso imaginar a jornada que culminou naquele estudo. Por outro lado, escrever na direção das pessoas todas que nos sustentam ao longo da empreitada que constitui a escrita é parte especial da escrita, momento de rememorar afetos, felicidades e dificuldades superadas. Em primeiro lugar, agradeço aos meus anfitriões e amigos em Codó que, ao compartilharem partes especiais de suas vidas, viabilizaram meu trabalho de campo, mas antes disso provocaram as torções de pensamento e sentimento que me deram o impulso de promover uma virada profissional que me levou a mudanças profundas e me aproximou da Antropologia e do Museu Nacional. A Vera, Moisés, seu Osmar, Wagner e toda a família Coqueiro Serra Salazar, pela acolhida como um membro da família, pelas portas abertas, os colos, os chás e cuidados para curar as dores da distância, pelos almoços de domingo, os ensinamentos e palavras de carinho, mesmo quando a vida era dura. Meu profundo amor por essa que de uma maneira inesperada tornou-se também a minha família, no sentido mais bonito dessa palavra. A dona Maria do Santo pelo abraço acolhedor, as longas conversas e o sorriso sempre aberto nos encontros combinados ou surpreendentes; a dona Teresinha por abrir sua casa e compartilhar seus saberes com muita paciência e carinho nas tardes com cheiro de café doce e Claudina, que também nunca se furtou a me explicar as coisas mais simples que alguém leigo possa perguntar. A Francisca, Nayrine, Ayla Lavínia - e a Izabel, César, Rosa, Marli, Marinete e todos as pessoas que participam da tenda Nossa Senhora da Conceição e sempre me convidam a lhes acompanhar nos festejos, cantando doutrinas e explicando os acontecimentos; a seu Domingueiro pelas conversas na beira da rua, acompanhando o movimento e refletindo sobre a vida, e a todas as pessoas que compõem sua vii tenda Santa Bárbara. Aos encantados, voduns, orixás e santos que povoam as encantorias. A seu Wildelano e dona Fátima, por me mostrarem Codó a partir da União Artística que carrega história tão nobre e importante para as comunidades trabalhadoras de Codó. À rezadeira Mariana pelo bom humor e o leque enorme de histórias para contar. A dona Julia, dona Iracema, seu Pedro d'Oxum, Claudia, Raifran, Zé de Brito, e todos os pais, mães e filhos de santo que me apoiaram desde a minha chegada em Codó em 2014, compartilharam comigo momentos muito especiais e me ensinaram muito sobre o terecô e seus saberes sobre a vida. A Cândido Sousa pelo excelente trabalho documentando as manifestações culturais maranhenses. A Edmilson, mototaxista das estrelas, sempre viabilizando a presença nos festejos. Agradeço à AUCAC, Mãe Nilza, Marcelo Senzala, Beth d'Oxum, Socorro, Chica e todas as pessoas que sonharam a organização que me levou a conhecer Codó de uma maneira privilegiada, convivendo intensamente com o povo de terreiro, os jovens integrantes dos grupos culturais, os movimentos ligados a manifestações de matriz africana e fizeram daquela uma experiência verdadeiramente transformadora. A todos os integrantes da Diretoria de Igualdade Racial de Codó, na pessoa de Augusto Serra, por manterem as portas abertas e a disposição de auxiliar no meu trabalho, além de viabilizarem oportunidades especiais de circular pela cidade e tomar parte em suas atividades. Ao Coletivo Núcleo pelas trocas sempre intensas e por nunca esquecer que "somos movimento". A Dácia Abreu pela amizade, os ensinamentos e a companhia. A Noelson Moreira Trindade pelo companheirismo desde os meus primeiros dias em Codó, por fazer companhia nas noites viradas nos festejos, as fotos preciosas e a generosidade que o fizeram, além de tudo, um valoroso assistente de pesquisa. Ao meu orientador, Marcio Goldman, pela orientação generosa e brilhante, desafiadora na medida certa, provocando sempre a ir além. Devo agradecer também pela atuação conjunta por uma universidade - e um mundo - um pouco menos desiguais, pela defesa das ações afirmativas que aportam tantos ganhos para toda a coletividade e que me fizeram reaproximar do universo acadêmico. viii A Luiz Antonio Simas, que me incentivou a fazer a prova do Museu, por todos os aprendizados. A Daiane Ciriáco e Margarida Mattos pela grande ajuda nos dados sobre a cidade e a população de Codó. A Bianca Arruda por todo o incentivo e por gentilmente abrir caminho. Por aceitarem compor minha banca, agradeço a Martina Ahlert - que, além de tudo, junto de Conceição Lima, me recebeu em São Luís - e a Maria da Consolação Lucinda, em uma "coincidência" muito produtiva. A Clara Flaksman e Luisa Elvira Belaunde por igualmente aceitarem compor minha banca como suplentes e pelas boas trocas constantes. A Gabriel Banaggia pelos comentários sempre muito instigantes e a disposição generosa em compartilhar ideias. Aos professores do Museu Nacional, agradeço nas figuras de John Comerford, Eduardo Viveiros de Castro, Edmundo Pereira, Luiz Fernando Dias Duarte, assim como a Nicole Soares, Dibe Ayoub e Suzane Vieira, pelos cursos que tive a sorte de assistir. Aos funcionários do Museu, da Biblioteca e da Secretaria, em especial a Marcio, Dulce, Adriana e Anderson. À CAPES por financiar meu segundo ano de mestrado. A todos os meus amigos do Museu. Em especial a Anderson Pereira, Lucas Marques, Gustavo Fialho, Sandra Benites, Cristiane Julião, Pedro Ferraz, João Alípio e Rafael Moreira. A Juliana Oliveira e sua família por me abrirem as portas de sua casa. A Helena Assunção por sempre trazer equilíbrio e leveza. A Noshua Amoras pelos cafés, tapiocas e lições de antropologia, pela paciência e generosidade tamanhas que por vezes torna difícil definir de quem partiu alguma ideia. A Olavo Souza por toda a amizade nos momentos difíceis e naqueles muitos felizes. A Aline Maia Nascimento, mestra em vários sentidos, parceira em tantos outros. A Humberto Manoel por me ajudar a organizar e encontrar eco nas ideias. Certamente contribuíram profundamente paraque esta dissertação tomasse forma. Vida longa aos bons encontros. Assim também ao Coletivo Negro Marlene Cunha, dispositivo contra a solidão, rede de fortalecimento e de ação diante do intolerável. A Marlene Cunha (in memoriam) e a todos os acadêmicos negros e negras que abriram caminhos dentro e fora das universidades para que estejamos aqui. Ao Mestre Celio Gomes, à contramestra Fátima Cária e ao grupo de Capoeira Angola Aluandê por me mostrar aquilo que eu julgava já ter visto e ensinar o que eu achava que já ix tinha aprendido. Em particular ao contramestre Leandro Bicicleta, que é minha grande referência na capoeira, com a humildade de aprender constantemente com seus alunos e se reinventar, assim como a paciência infindável para trocar ideia sobre debates acadêmicos, saberes tradicionais ou tipos de cerveja, sempre com fundamento e bom humor. A Ludmilla Almeida pelo espaço de fortalecimento e trabalho sensível que alimenta a alma daqueles que se aproximam. A todos os meus amigos. Flora Barcellos, que me abriu as portas para Codó, Marcelo Spolidoro, Camila Issa e Catarina Pedroso. A Ana Paula Braga por me ajudar a fluir. A Luciana Schirmer, Marcela Americano, Tamires Alves, Flavia Trizotto, Luisa Mizarela, Luisa Henke, Laís Dias, Mariana Solis, Bruna Bevilacqua, Fernanda Pougy, Julia Parada e a toda essa lista imensa de pessoas muito amadas que se fazem presentes de formas tantas e com quem aprendo constantemente. À minha família, agradeço na figura de minha bisavó Damiana, que nos ensinou "quem tem o conhecimento, tem o poder" e fez com que perseguíssemos arduamente os estudos com o senso de responsabilidade coletiva sempre alerta, para que nunca nos esqueçamos dos passos que abriram os nossos caminhos. A meu pai Eloá, minhas tias Edmar, Elmar e Einar, meus irmãos Eliana, Adriana e Paulo Vicente, meus sobrinhos Jorge e Julia. À Tenda de Umbanda Casa de Celina pelos meus primeiros ensinamentos acerca da Umbanda e das religiões de matriz africana. À Cristina Pimentel da Silva, minha mãe, meu guia, minha amiga, meu suporte, que sempre me apoiou, mesmo quando não entendia as viradas no caminho. Por ser quem é e ajudar a me fazer quem eu sou. Ao meu amor, meu companheiro e parceiro de caminhada, que sempre me abraça e está comigo mesmo quando fica difícil. Por me acompanhar tantas vezes na realização dos meus trabalhos em Codó, embarcar junto e registrar essas experiências, além de me ajudar a construir um espaço de tranquilidade para me inspirar e escrever. Respeitamos as lágrimas, mas ainda mais as risadas. Obrigada por iluminar meus dias e tornar cada passo mais doce. x Resumo CRUZ, Barbara Pimentel da Silva. 2018. Confluências e Transfluências no Terecô, Religião de Matriz Africana de Codó, Maranhão. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta dissertação consiste em um estudo etnográfico do terecô, a partir de um trabalho de campo curto realizado em algumas casas de religiões de matriz africana em Codó, no Maranhão. Com base nesse trabalho de campo, guardado o seu viés eminentemente etnográfico, trata-se de evitar as sobrecodificações que por vezes permeiam as análises do terecô e costumam encará-lo tendo por referência outras vertentes religiosas, em particular o tambor de mina, tal qual praticado em São Luís do Maranhão. Desse modo, busca-se trazer para o centro da narrativa as práticas e a circulação dos brincantes de terecô entre as diversas tendas de religiões de matriz africana em Codó, que indicam uma troca de fluxos e informações em níveis variados (entre pessoas, grupos, práticas, forças, casas, vertentes religiosas, entidades), dando lugar a uma composição que não pressupõe uma síntese ou amálgama de diversos elementos, mas relaciona domínios distintos a partir de suas diferenças articuladas enquanto diferenças. Nesse sentido, esta dissertação contrapõe aos discursos ainda correntes sobre sincretismo e mestiçagem outros discursos possíveis sobre encontros e misturas. Palavras-chave: Terecô, Codó, Maranhão, Religião de matriz africana, Contramestiçagem. xi Abstract CRUZ, Barbara Pimentel da Silva. 2018. Confluências e Transfluências no Terecô, Religião de Matriz Africana de Codó, Maranhão. Dissertation for Master of Arts in Social Anthropology. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. This dissertation consists of an ethnographic study of terecô based on a short fieldwork carried out in some African-matrix religious temples in the city of Codó, Maranhão. Grounded in such fieldwork and considering it’s ethnographic character its purpose is to avoid the overcoding which sometimes percolate the analysis of terecô and ordinarily considers it by the references of other religious trends, particularly tambor de mina as practised in São Luís do Maranhão. Thus, the aim is to center the narrative on the praxis and circulation of the terecô's brincantes between the tents of African-matrix religions in Codó which indicates an exchange of information flows in diferent levels (between people, groups, práxis, energy/power, temples, religious trends, spiritual entities), giving place to a composition that doesn’t presume a synthesis or an amalgam of different elements but puts in relation diverse domains as of their differences articulated while differences. In such sense this dissertation opposes still current discourses about syncretism and miscegenation to other possible discourses about encounter and mixtures. xii Convenções Antes de prosseguir, devo informar as minhas opções de escrita. O primeiro ponto talvez seja dizer que os nomes não são ficções. Pedi licença às pessoas e às entidades com quem convivi em Codó, como vou desenvolver na introdução, e assim elas me autorizaram a contar aquilo que eu tinha visto e compartilhado. De maneira geral, alegram-se em se verem retratadas nos trabalhos feitos sobre o terecô, embora eu tenha ouvido algumas histórias de pessoas que sofreram algum tipo de discriminação ou dificuldades no trabalho por terem aparecido na televisão vestidas com as roupas de brincantes. O problema, em geral reputado à intolerância, ao preconceito e ao desconhecimento das pessoas, dificilmente inibia alguém, mas procurei ter tais questões em mente no curso da escrita. Quando julguei que a situação expunha de algum modo as pessoas retratadas - seja pelos motivos já expostos ou pelas relações pessoais - ou eu não tinha certeza da autorização para explicitá-lo no bojo da dissertação, omiti a identidade dos envolvidos sem, contudo, trocá-los por nomes fictícios. A grande maioria dos textos em língua estrangeira foram por mim traduzidos para o português, na intenção de tornar a leitura mais acessível. Em itálico estão os termos utilizados por meus interlocutores, incluindo aí as falas e as doutrinas, ladainhas, rezas e canções em geral que registrei nessa convivência. Optei por grafar em itálico particularmente os termos referentes às religiões tambor da mata e tambor de mina - assim como seus sinônimos, mata e mina, para diferenciá-las do instrumento tambor (que pode ser da mina ou da mata) ou da mata enquanto vegetação/localização geográfica, e assim facilitar a leitura. Não utilizo esse recurso para as demais religiões (catolicismo, umbanda, candomblé, etc) por julgar que não demandavam essa diferenciação. Utilizo as aspas duplas para indicar conceitos, falas e citações de outros autores, ou para indicar alguma relativização ou destaque do termo. Dentro das citações, no entanto, busquei respeitar as opções feitas pelos autores no original. xiii Lista de Figuras e Fotos Figura 1: Mapa do Maranhão com a cidade de Codó em destaque. Fonte: IBGE. Figura 2: Mapa da cidade de Codó.Foto 1: Salão da Tenda Santa Bárbara da mãe-de-santo Maria dos Santos. Foto 2: Crianças da comunidade quilombola Eira dos Coqueiros em oficina da AUCAC (2014). Foto 3: Mãe-de-santo Maria dos Santos em frente ao seu altar, no salão da Tenda Santa Bárbara. Foto 4: Brincante em processo de incorporação. Foto 5: Aniversário da encantada Maria Moça, incorporada no pai-de-santo Domingueiro. Foto 6: Tambores na fogueira para aquecer o couro. Foto 7: Mãe-de-santo Teresinha puxando o Louvariê na abertura do festejo de novembro/2017. Foto 8: Abatazeiro (seu Piauí) e maracazeiro durante o festejo da Tenda Nossa Senhora da Conceição. Foto 9: Salão da Tenda Nossa Senhora da Conceição. Foto 10: Passeata de encantados. xiv Sumário Introdução 1 Codó, cidade encantada 7 Organização dos capítulos 16 1. Antropologias do Maranhão e do Terecô 21 1.1 Estudos de aculturação no Maranhão 22 1.2 Encantaria de Barba Soeira e uma perspectiva mais sociológica 35 1.3 Cidade Relicário 44 2. Tempo de Baiar Terecô 54 2.1 Depois da quaresma 64 2.2 Festejo na Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora da Conceição 69 2.2.1 Abrindo os trabalhos 69 2.2.2 Obrigações 77 2.2.3 Pagar visita, ganhar visita 80 2.2.4 Da procissão devota à passeata encantada 86 3. Encontros e Misturas 92 3.1 Virar para a mina 92 3.2 Verequete, operador de confluências 98 Conclusão 106 Ajuntar e Misturar 106 Referências 111 Anexo I 119 Caderno de Fotografias 119 1 Introdução Começo pedindo licença aos Orixás e Encantados, aos ancestrais e entidades, assim como aos pais e mães de santo de Codó e aos brincantes que compartilharam comigo parte do seu mundo. Inicio assim esta introdução não por mera formalidade pela qual passamos rapidamente para prosseguir no que seria "mais importante". Tomo a expressão na seriedade que ela impõe, reafirmando uma conexão incontornável com as pessoas - incluindo aí as entidades - com aqueles e aquelas com quem convivi em campo e que, no compartilhar de suas visões de mundo, me deram autorização para falar do terecô. Tal conexão não se restringe ao campo, mas se desdobra em diversos níveis. A encantada cabocla Mariana certa feita me disse: "Você está num trabalho com a gente, você sabia? Você está num trabalho com a gente. Só em você pesquisar, escrever, você está com a gente.". A fala da cabocla sublinha aquilo que talvez pareça óbvio, mas, penso, temos muito a ganhar em considerar seriamente as implicações: a escrita de um trabalho acadêmico não se descola dos diferentes modos de produção de conhecimento expressos nas mais variadas formas espalhadas pelo mundo e nem paira acima das consequências daquilo que é enunciado - nem para si, nem para "os outros". Desse modo, assim como nos lembra Stengers (2007) a partir de uma ideia de Deleuze, é preciso escrever em presença de, ou seja, na presença daqueles que de algum modo enfrentam as consequências daquilo que é enunciado. O ato de escrever em presença, uma presença “ativa, objetante, proponente”, que nos faça hesitar diante das fórmulas rápidas que tendem a laminar as divergências e têm o mau costume de ignorar as assimetrias presentes e que, por outro lado, nos leve a considerar o impacto ético, político e filosófico dos saberes não-hegemônicos (ou contra-hegemônicos), no sentido de “experimentar uma outra relação com o discurso e práticas nativas, suas possibilidades de emergência no espaço acadêmico” (Anjos 2008: 78). A esse respeito, vale recordar que em Codó se diz que os encantados vem sempre que seus nomes são mencionados e que há consequências caso não gostem daquilo que é dito sobre eles (M. Ferretti 1993; Lima 2017). Assim, trata-se de "[c]olocar uma filosofia não-ocidental numa posição de simetria com as filosofias ocidentais [e] fazê-la ressoar no interior do discurso antropológico. Na linguagem dos terreiros seria liorz Realce 2 fazer com que a filosofia nativa se ocupe da antropologia como um espírito se ocupa de um cavalo de santo." (Anjos 2008: 78). Penso, portanto, que os dizeres da cabocla se referem à dinâmica engendrada no seio das comunidades de matriz africana da qual o trabalho acadêmico em contato com esse contexto não se aparta. Hampâte Bá já nos disse que "[n]a tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca." (2010: 174). Com isso a encantada põe em relevo aquela conexão que gera consequências para todos os lados, pois "[s]e a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (...) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação." (Bá 2010: 172): o que é feito no contexto do terecô em uma vivência da qual eu tomo parte de algum modo gera efeitos no que vou desenvolver nesta dissertação e seus desdobramentos; por outro lado, aquilo que escrevo também gera algum tipo de consequência entre os terecozeiros - consequências essas de variadas ordens. Se escrevo, portanto, devo escrever na presença deles, dos praticantes de terecô, das pessoas com quem me relaciono em Codó, e também dos encantados, os seres invisíveis que compõem o universo da encantaria maranhense, todos esses que compartilham também das consequências do que é enunciado aqui. Eu sou filha de Deus Dá licença de eu entrar no seu salão Eu sou filha de Deus Me dá licença eu baiar no seu salão Me dê licença Me dê licença Me dê licença eu baiar no seu salão (Doutrina de terecô) Por tal perspectiva, pedir licença tomada como uma "filosofia no sentido de especialização erudita de um pensamento sobre o mundo" (Anjos 2008: 79), é expressão que aciona múltiplos significados e implicações; a prática é muito presente em comunidades negras onde se cultiva o costume de pedir licença1 aos mais velhos, ou seja, aqueles que vieram antes, mas também àqueles que se debruçaram antes sobre o assunto a ser comentado 1 É comum que nas manifestações de matriz africana haja músicas que façam referência a "pedir licença". Por exemplo: "Dona da casa me dê licença/Seu salão para vadiar", "Dá licença aê/Dá licençá/Dá licença meu povo de rua, meu povo angoleiro/Eu quero vadiar" (corridos de capoeira); "Dá licença aí/Dá licençá!/Aos donos da casa/Peço licença pra jongar" (ponto de abertura de jongo); "Dona da casa me dê licença/Pra falar com a senhora/Pra falar na língua ligeira/Passei na roseira/Peguei uma rosa/Dei meu amor (pra cheirar)/Óia dei meu amor (pra cheirar)" (samba de roda); "Oi bom dia, boa noite, meus senhor/Me dê licença esses cavaleiros/Eu venho de longe, eu venho/Maculelê, nós é brasileiro" (maculelê). liorz Realce 3 ou que habitam ou adentraram o território que vai ser tocado com o que será enunciado a seguir. Pede-se licença, por vezes, também aos mais novos, o que nos leva a pensar que há a consideração sobre quem vem depois e que habitará um mundo marcado por aquilo que já foi enunciado - lembrete de que as consequências das palavras e das ações continuam reverberando e se desdobram no tempo. Bá nos contou que "[e]m todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissão se reveste de uma importância primordial" (2010: 181). Expressa-se, assim, a consciência de estar-se adentrando um espaço habitado e aproxima-se o que será enunciado daquilo que já foi construído e vivido anteriormente, mas também do que virá a ser. Nesse sentido, o pedir licença expressa respeito, mas também age como lembrete das implicações e da necessidade de atenção e cuidado ao adentrar um território já habitado. Pedir licença é, portanto, outro modo de nos lembrar da necessidade de falar ou escrever em presença de não no sentido de uma questão moral, mas sobretudo como procedimento epistemológico. Retomando a fala daCabocla, a noção de trabalho aparece como elemento fundamental - e pode mobilizar uma concepção de mundo sobre a qual vale nos determos por um momento. Roy Wagner (2015) já colocou em questão a própria noção de trabalho: nas sociedades ocidentais, trabalho é sinônimo de produtividade em um sistema que coloca "dinheiro" e "riqueza" como símbolos de um esforço voltado para "produção de coisas e serviços" (2015: 82), enquanto nas sociedades como a dos melanésios, o "trabalho" envolve todas as atividades desenvolvidas de modo a formar uma mesma totalidade que, em última instância, produz pessoas (Wagner 2015: 86). Diante desse constraste, a colocação da encantada faz pensar que noção de trabalho está em jogo quando adentramos o campo das religiões de matriz africana. Nessa perspectiva, Goldman diz: "[t]rata-se, percebe-se, de uma forma de pensar o processo criativo distinta daquela que concede um lugar central ao modelo da produção e da propriedade" em uma dinâmica que "sobrecodifica os nossos modos de pensar e de estabelecer relações". Assim, como lhe contou a mãe-de-santo Hilsa Mukalê2, a 2 Sobre os pedidos de licença, Mãe Hilsa Mukalê conta: “Porque eu sou do tempo que quando a gente ia em um candomblé, chegava e esperava na porta. A mãe ou o pai-de-santo via a gente, os atabaques paravam, dobravam os couros e de lá de fora os tatas cantavam, primeiro, três licenças, “Oi dai-me licença, oi dai-me licença, alô de…” Aí dizia o nome do inquice. Depois que cantavam essas três, cantavam uma zuela, um barravento, que é a mesma que cantamos no início dos nossos toques, quando me chamam para entrar. Aí é que a mãe-de-santo entrava com a comitiva dela toda. Entrava, louvava o fundamento da casa, depois os atabaques; falava com o dono da casa, depois com o pessoal todo e acomodava as pessoas. Todos sentavam e apreciavam o candomblé, o xirê da casa todo. Só depois que a pessoa acabava de fazer o xirê é que oferecia para as visitas. As pessoas que quisessem cantar, cantavam, dançavam e ajudavam a fazer o candomblé” (Mukalê 2011) liorz Realce 4 questão é mais de "lapidação" do que de produção, de modo que é possível perceber o candomblé como uma forma de arte que cria objetos, pessoas e deuses - atravessa-lhe, entretanto, uma grande particularidade, já que os "entes já existem antes de serem criados, o que faz com que o processo de criação envolvido só possa ser entendido como a revelação das virtualidades que as atualizações dominantes contêm, no duplo sentido do termo" (2009: 134). Ouso dizer que, além de objetos, pessoas e deuses, criam-se também formas singulares de relação, elementos postos em uma composição que exige um saber profundo, construído ao longo de muito tempo. Por esse ângulo, não creio que a fala esteja no sentido de que o trabalho acadêmico seja exatamente o mesmo que um trabalho espiritual, nem mesmo que haja a necessidade de completar algo em falta naquele contexto; a questão me parece mais se referir a algum tipo de composição que aproxima os elementos em jogo de tal maneira que é preciso ter em mente os efeitos mútuos produzidos nessa relação. No caso, a cabocla me chama à responsabilidade quanto ao que escreverei e reafirma que a presença daqueles entes todos acompanha essa escrita; em contrapartida, o que faço também ecoa no universo dos terecozeiros, em uma propagação que não sou capaz de medir - apenas meus amigos de Codó podem dizer. Mesmo assim, talvez seja impossível alcançar uma explicação ou rastrear os desdobramentos que dêem conta da totalidade dessa relação e dos efeitos produzidos por esse encontro; sem dúvidas fica a lição que traz para o centro a arte de se encontrar e de levar o encontro a sério. É certo, ainda, que esse fazer negro que constitui o pedir licença perpassa toda a minha relação com o campo e vai além. Frequentemente ouvia que "se você procurar, tem parente, algum antepassado aqui em Codó, tenho certeza", o que se somava ao fato de que Vera me apresentava como parte de sua família, muitas vezes como sua filha - para além dos traços fenotípicos, essas relações me colocavam em um lugar que não exclusivamente o de professora ou pesquisadora. No entanto, penso que quanto mais estreitos os laços, maiores os cuidados e por isso mesmo pedi licença muitas vezes - sem que tivesse elaborado de início todos esses desdobramentos, mas ciente da necessidade de deixar explícitos os meus objetivos (e eventualmente algum "excesso de cuidado" era respondido com "como você é tímida! vem aqui, pode ouvir, pode gravar e contar o que você viu" ou alguma frase análoga). Pedido esse para registrar algo, para lembrar sobre a intenção de incluir alguma informação ou situação vivida na pesquisa ou por força de um fazer que me ultrapassa e marca minhas interações justamente porque é traço de um fazer coletivo que expressa respeito ao adentrar a casa de liorz Realce 5 alguém - casa aí em um sentido amplo, talvez aquele dos territórios existenciais habitados. Tal prática ressoa ainda na habilidade de conduzir essa arte do encontro onde os cuidados são necessários para que as misturas não se tornem amálgamas laminadores das diferenças, como veremos adiante. Assim como peço licença para entrar nas tendas de Codó - costume sempre muito bem visto, embora via de regra ninguém seja mal recebido -, para entrar em uma roda de capoeira ou na casa de alguém, tal prática atravessa meu deslocamento pelo mundo, não por uma perspectiva essencialista ou superficialmente identitária, mas justamente pelo que diz Anjos: "os corpos não têm raças, raças são perspectivas que circulam por uma multiplicidade de corpos". Raça como o lugar "de onde emanam as perspectivas" ou os espíritos, esses "pontos de vista que encarnam corpos" (2008: 78). Por fim, talvez provoque algum estranhamento a transposição de uma prática utilizada por ocasião de comunicações orais para a forma de um texto, uma dissertação. Souza Pinto (2015: 36-37) propõe pensar a relação entre os domínios da oralidade e da escrita enquanto movimento, com base na ideia de "obviação" de Wagner (2015). De outra parte, Bá já afirmou que Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo." (Bá 2010: 168) Desse modo, "sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma" (2010: 172). Falam os corpos, os espíritos, a língua e o texto acadêmico. À luz dessas ideias, espero fazer desta dissertação "um espaço de ressonância do discurso político-filosófico afro- brasileiro" (Anjos 2008: 78). Para tanto, pretendo fazer um movimento de hesitação diante de um campo - o da literatura acerca das religiões de matriz africana e mais especificamente o Maranhão e o terecô - marcado pelo risco de colar automaticamente dinâmicas próprias de outros contextos que à primeira vista parecem semelhantes, mas que não dão necessariamente conta dos processos que ocorrem em Codó, como veremos mais à frente ainda nesta introdução. liorz Realce 6 Faço, portanto, uma breve descrição do terecô e da cidade de Codó, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, que aprofundaremos ao longo desta dissertação. O tambor da mata é religião de matriz africana, organizada em tendas comandadas por pais e mães de santo. O ritmo da mata é predominante nos toques, que chegam a durar várias noites seguidas. Na narrativa local, a comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos3 é o berço do terecô, que teria nascido pelos idos do séculoXVIII. A cidade de Codó é considerada centro fundamental para a religião, também identificada como brinquedo de Santa Bárbara, Verequete, encantaria de Barba Soeira, tambor da mata ou mata. Trata-se de religião de possessão que concebe a incorporação sobretudo de encantados da mata, pessoas que viveram e que não morreram, mas em dado momento desapareceram e se encantaram. Tais entidades formam um conjunto heterogêneo de seres que, além da incorporação, podem ser notados em sensações, sonhos ou ainda se materializar em lugares e objetos (Ahlert 2016). Há uma intensa circulação entre as tendas através da prática de pagar visita ou pagar noite, já explicitada em outros trabalhos (Ahlert 2013; Lima 2017), onde uma casa vai ao festejo de outra para que quando for sua vez tenha também muitos convidados, como veremos adiante. Foto 1: Salão da Tenda Santa Bárbara da mãe-de-santo Maria dos Santos. 3 Santo Antonio dos Pretos é um povoado situado a cerca de 60km da cidade de Codó e consiste em uma comunidade quilombola titulada. Há um grande número de comunidades quilombolas nos arredores e Santo Antonio figura como uma das maiores em termos de número de moradores, além de ser conhecida nas narrativas locais como espaço de nascimento do terecô e fonte de uma energia muito forte. 7 Codó, cidade encantada Codó é um município do estado do Maranhão, localizado na Região dos Cocais, Leste Maranhense, a cerca de 290km de São Luís do Maranhão e 176km de Teresina, capital do Piauí. É a sexta cidade mais populosa do estado, com cerca de 120 mil habitantes4, dos quais 68% habitam a área urbana. A cidade não conta com um sistema regular de transporte público, de modo que a maior parte da população se desloca a pé, guardando o hábito de caminhar longas distâncias, ou utilizar bicicletas e motos. O inverno, que corresponde aos meses de chuva, se concentra entre os meses de janeiro e abril, mas a temperatura média anual se mantém acima dos 30 graus. O calor intenso leva os moradores a passarem os fins de tarde, quando a casa ainda está quente, do lado de fora, conversando com a vizinhança e observando o movimento. Figura 1: Mapa do Maranhão com a cidade de Codó em destaque. Fonte: IBGE. De acordo com os dados de 2010, 85% da população é negra, 14% branca e há o registro de uma centena de indígenas5. Sua fama de "cidade dos feitiços"6 - contestada por aqueles que preferem vê-la como "cidade de Deus", como se lê em seu portal de entrada -, guarda alguma relação com seus mais de 200 terreiros de umbanda, terecô e candomblé no 4 Em 2017, a estimativa era de 120.810 pessoas. 5 Dados retirados do sistema SIDRA/IBGE e do IBGE Cidades, com base no Censo de 2010. 6 Abordada por M. Ferretti, 2001, Barros, 2000, e Ahlert, 2013. 8 município, além de 5 paróquias católicas, 2 centros kardecistas e cerca de 30 diferentes denominações evangélicas de variados tipos, de acordo com estimativa da Secretaria de Cultura e Igualdade Racial local (Ahlert 2013: 23)7. A primeira casa de candomblé data da década de 1980, sendo cinco existentes atualmente, das quais quatro tocam também o tambor da mata e de mina (2013: 23). Destaque-se que as denominações atinentes às religiões de matriz africana partem da autoidentificação das tendas e seus componentes e não implica em uma rigidez absoluta: como se costuma dizer em Codó, mesmo os terreiros de candomblé batem terecô, pelo menos de vez em quando. Conta-se que a chegada da umbanda remete ao final da década de 1930 através da mãe de santo Maria Piauí, fundadora da Tenda Espírita de Umbanda Santo Antônio (há alguma divergência em torno da data de sua fundação8) e cuja chegada na cidade teria disseminado o termo umbanda para descrever as demais tendas existentes, mesmo que tocassem exclusivamente o toque da mata (M. Ferretti 2001 et al apud Ahlert 2013). É comum a prática de denominar as casas existentes em Codó com variações da fórmula “tenda espírita de umbanda”, nada obstante a variedade de práticas abarcadas. De maneira geral, a explicação que voga em Codó acerca desse processo diz tratar-se de mecanismo utilizado para ter legitimidade e se proteger das perseguições policiais comuns no início do século XX9. Seu Pedro d'Oxum me explica que há uma atuação no plano das burocracias e formalidades, de modo que "quem vai responder pela religião é a umbanda", mas que isso não implica em nenhuma mudança nas práticas das casas de terecô. Por outro lado, a umbanda leva "um 7 Nos dados de 2010 do IBGE, a grande maioria da população consta como católica apostólica romana (98.439), e há ainda 13.162 evangélicos entre diversas denominações, 78 espíritas, 447 umbandistas, 203 candomblecistas e 159 declarados como sem determinação ou de múltiplo pertencimento, entre outras categorias. 8 Dona Iracema, sua herdeira, contou a Ahlert (2013: 275) que Maria Piauí chegou a Codó a convite de Eusébio Jansen, tido como pai de santo da primeira tenda de terecô da cidade (no perímetro urbano). Segundo o Instituto Histórico e Geográfico de Codó, a tenda da mãe de santo foi fundada em 1938; Costa Eduardo (1948), que fez campo na região nos anos 1940, não encontrou casas abertas na cidade (mas presenciou uma "brincadeira" organizada na praça para que o pesquisador pudesse ver), o que não implica necessariamente na ausência, sobretudo considerando-se a intensa perseguição policial que sofriam os praticantes de terecô; M. Ferretti (2001: 81) fala em 1936 e 1948, com base em informações divergentes encontradas. A autora diz também que "[s]egundo Pai Crispim, sucessor daquela mãe-de-santo, alguns anos após a abertura de seu terreiro em Codó, Maria Piauí foi 'confirmada' na Mina, em São Luís, por Noêmia Fragoso, fundadora do Terreiro do Cutim (cambinda), e passou a tocar Mina e Mata em sua casa, em dias diferentes. A integração da Mina com a Mata (Terecô), num mesmo ritual, parece ter ocorrido primeiro no terreiro de Bita do Barão que, como o de Maria Piauí, foi aberto dentro dos 'preceitos' da Mata." (1993: 140). Dona Maria dos Santos me contou que alcançou baiar nesses terreiros (de Eusébio Jansen e Maria Piauí) e "antes era tudo terecô" até que Maria Piauí se fez na umbanda com uma mulher que veio de Teresina. 9 Encontra-se explicação semelhante acerca da dinâmica dos terreiros de São Luís. Segundo M. Ferretti, "[a] perseguição policial obrigou os curadores de São Luís a estabelecerem-se em sítios afastados e realizarem ali seus rituais. E, segundo os pesquisadores Maria do Rosário SANTOS e Manuel dos SANTOS NETO (1989: 119), como a Mina era menos perseguida, os 'pajés' começaram a "mascarar-se" de 'mineiros' e a abrir terreiros com 'linha' de Mina e de Cura." (1993: 90). liorz Realce 9 pouco das outras religiões afro" para dentro de suas práticas (Entrevista Pedro d'Oxum, 22/04/2017). Ahlert (2013: 84-86) trata deste ponto afirmando que os termos umbanda e terecô são constantemente utilizados como sinônimos, tendo em vista que todas as tendas de umbanda da cidade tocam pontos de terecô e recebem entidades da mata, ainda que em um segundo momento haja diferenciações internas a depender das entidades com que cada casa trabalha. Seus interlocutores também aproximam os dois termos em contraponto ao candomblé, percebido como aquele que trabalha apenas com orixás. A autora afirma ainda que essa miríade de categorias e possíveis relações podem provocar estranhamento aos desejos classificatórios e que as associações entre todas as vertentes que aparecem em Codó (umbanda e tambor de mina, tambor de mina e terecô, terecô e umbanda, candomblé e terecô) e as percepções sobre elas variam de acordo com a concepção e as experiências de cada pai e mãe de santo. Nesse sentido, “[a] digressão etimológicae as tentativas classificatórias estão à mercê da experiência de cada um dos sujeitos e a forma com que esta experiência se cruza com a de outros pais de santo.” (Ahlert 2013: 86). Parte da literatura preocupou-se com o que chama de processo de "umbandização" e uma possível perda das tradições, mas me parece que há outras leituras possíveis sobre os cruzamentos entre a umbanda e o terecô e que valem também para pensar os cruzamentos com outras religiões. A percepção dos terecozeiros sobre a umbanda enquanto “uma espécie de 'língua geral' na religião afro-brasileira e como algo capaz de congregar a todos sem anular as diferenças (especificidades) existentes no campo religioso afro-brasileiro” (M. Ferretti 2001: 147) pode indicar uma outra concepção acerca desses encontros, que se dão em diferentes níveis. Desse modo, entre outros desdobramentos, há uma variação pragmática que a umbanda pode assumir, de modo que cada brincante se conecta com ela com propósitos diversos e não excludentes. *** Cheguei a Codó pela primeira vez em abril de 2014, para trabalhar na AUCAC - Associação de Umbanda e Candomblé de Codó e Região10. Uma grande amiga, que havia feito uma formação de professores através da organização ao longo de alguns dias, havia me indicado para formar o quadro de oficineiros que fariam parte da execução dos projetos que a 10 Posteriormente modificou o nome para Federação das Casas de Matriz Africana do Maranhão, sem, contudo, alterar a sigla. liorz Realce liorz Realce 10 Associação havia aprovado junto a diversos órgãos11. Assim que cheguei à porta da sede, após uma viagem até Teresina e de lá, de carro, por cerca de 2h30 até Codó, três mulheres me aguardavam: Socorro, Rejane e Vera. Irrequietas com o fato de que eu era de fora e, por isso, não deveria dormir sozinha12 logo na primeira noite, decidiram que eu deveria ser recebida pela Vera naquela noite. No caminho da casa de minha anfitriã paramos no espaço em que seu filho, Moisés, ensaiava com o grupo de boi mirim Encanto Codoense. Passei os meses seguintes trabalhando nos projetos da Associação, em oficinas para um público que variava de crianças, jovens ligados a grupos culturais, a um dos projetos no qual trabalhei por boa parte do tempo em que estive lá, e que tinha como foco o povo de terreiro: pais, mães e filhos de santo. Nos preparativos para minha primeira oficina com aquele grupo pedi a colegas de trabalho que me inteirassem um pouco do público para o qual eu falaria, particularmente a faixa etária e vertentes religiosas, adivinhando que boa parte seria de praticantes do terecô, tema sobre o qual havia lido um pouco antes de chegar a Codó. Para minha surpresa, meus colegas se diziam umbandistas e afirmavam o mesmo acerca de praticamente todos os que eram esperados na oficina. De início, foi difícil entender o que queriam dizer quando tratavam dos “terreiros de umbanda”, que para mim remetia às minhas referências no Rio de Janeiro acerca da religião que reúne elementos indígenas, espiritismo, candomblé, cristianismo, em diferentes proporções, mas com uma certa identidade comum. Com o desenvolver das conversas o estranhamento inicial deu lugar à constatação mútua de que havia diferenças nada insignificantes entre o que reconhecíamos como "umbanda", a princípio; as entidades eram outras, o ritual e a dinâmica também. Boa parte das oficinas nas quais me envolvi orbitavam em torno de temas étnico- raciais, o que me levou, logo de início, a adentrar questões que raramente estavam em pauta nas conversas da cidade. Sempre me surpreendia o hábito das pessoas em se referirem umas às outras como morenas em lugar de se dizerem negras. "Fala com aquele ali, aquele bem moreninho". Nas narrativas em geral, quando alguém abordava a história de Codó, tratavam do momento em que chegaram os barcos pelos rios que banham a cidade - Itapecuru e Codozinho -, trazendo comércio, expulsando as comunidades indígenas que ali habitavam e 11 À época a AUCAC havia aprovado vários projetos em editais ligados sobretudo ao Governo Federal, oferecidos pelo MinC, Fundação Palmares, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Direitos Humanos, entre outros. 12 Durante uma parte do tempo em que trabalhei na AUCAC, morei em um dos quartos que compunha a casa que servia de sede à organização. 11 conduzindo à força africanos e seus descendentes em condição de escravizados13. Uma vez decretada a abolição, os antigos senhores de engenho teriam abandonado as terras para aqueles que trabalharam nela. Afora isso, e tendo em vista que a história era sempre contada de uma perspectiva distante, como uma página antiga e virada, dificilmente alguém tocava no tema. Mesmo as minhas perguntas acerca dos quilombos da região vez ou outra provocavam um certo estranhamento. O tempo deixou evidente que aquelas regiões eram quase sempre descritas como os interiores, mas uma associação automática com um passado de escravidão e lutas era muitas vezes tomada, em maior ou menor grau, nas mesmas bases da reação ao comentário sobre os meus antepassados, como vou contar a seguir. Certa vez comentava com uma amiga sobre o esforço que minha irmã empreendia para recontar a história de nossa família, partindo das memórias de nossa tia-avó e recorrendo ao auxílio de amigos historiadores e antropólogos para recompor os elementos que resultaram em um livro14. Quando mencionei que ela havia conseguido rastrear nossos passos de modo a descobrir a região de onde nossos avós foram arrancados para serem escravizados em terras brasileiras, minha amiga estancou e perguntou de supetão: "mas como assim? você acha que seus avós foram escravos?". O silêncio contundente que se estabeleceu na procura pelas palavras que se seguiriam àqueles segundos de espanto mútuo evidenciou a torrencial sucessão de pensamentos; enquanto me atravessava a sensação de ter inadvertidamente tocado em uma ferida aberta somada à cortante constatação de que dificilmente a realidade poderia ser outra, seus olhos revelavam que a pergunta havia encontrado resposta quase que instantaneamente, como se algo que sempre estivera esquecido nos porões do espírito encontrasse violentamente a luz, gerando a necessidade doída de adaptar o foco para que fosse possível continuar a ver naquele novo cenário que a partir de então não se permitiria mais ocultar. 13 Os habitantes originários da região eram indígenas das etnias barbados e guanarés (Machado 1999; Abreu 2010) - às quais os grupos Bumba Boi costumam fazem referência - e foram expulsos por agricultores como Luís José Rodrigues, ou Pau Real. "O ano de 1780 foi o considerado para o comêço das explorações das florestas, quando os mais antigos lavradores transportaram-se para o município em barcos, onde os escravos eram também conduzidos a fim de ajudarem na exploração. A imigração africana chegou de 1780 a 1790, enquanto que os portuguêses começaram a afluir no municípioem 1855 e os sírios em 1887. (...) Os portuguêses e os africanos se aplicavam à lavoura e os sírios ao comércio." (IBGE 1959: 149). Ahlert afirma que a memória e as narrativas sobre a criação da cidade "contam sobre a invenção de uma localidade, que nasce católica e precisando da proteção dos santos diante de grupos – negros e indígenas que viviam foragidos e escondidos na perigosa mata. Nestes momentos que se tornam marcos de fundação da cidade, a religião e a política se mostram imbricadas, formando um contexto político, um espaço domesticado e inscrito no Brasil Colônia." (2013: 56). Para mais detalhes acerca das histórias de surgimento da cidade e o processo de colonização, ver Machado 1999; Abreu 2010 e Ahlert 2013. 14 Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz, publicadoem 2016 pela Fundação Palmares. 12 Nada disso implica, é preciso dizer, que discursos perpassados pela raça e pelo racismo estejam ausentes; antes, me parece que eles são elaborados em chaves que um olhar que se atenha excessivamente a discursos mais conhecidos no contexto acadêmico pode deixar escapar, o que aporta o perigo de considerar as pessoas desinformadas, inocentes ou passivas. Minha experiência na AUCAC logo de início me mostrou que isso não tem nada de verdade e que era preciso muito mais aprender um outro vocabulário e outros mecanismos para elaborar as oficinas de que participei do que cair na tentação de tentar ensinar algo às pessoas com quem convivi: talvez o caminho fosse tentar aprender juntos. Se a percepção sobre o racismo passa por múltiplas formas de elaboração, todas essas coisas são mobilizadas de maneira diferente a depender do contexto, das pessoas envolvidas, de uma série de elementos contingenciais - a mesma pessoa que se surpreende diante da constatação de que nossos - ou os meus - antepassados foram escravizados diria em outro momento que um tratamento diferenciado em uma loja era nitidamente por conta do tom das nossas peles. Embora as noções de raça tal qual mobilizadas pelo vocabulário acadêmico não estejam necessaria ou manifestamente em primeiro plano, isso não implica em que os discursos não sejam em maior ou menor medida racializados. Ou, nas palavras de Anjos, "a racialidade vivenciada como um ponto de vista que se “ocupa” de um corpo, como intensidade histórica que se faz corpo", de tal modo que depreende-se uma "modalidade de não essencialização das raças, que nem por isso deixa de se fazer como espaço de racialização." (2008: 83), em expressão daquilo que, como me sugeriu Marcio Goldman, poderíamos considerar um saber afro-diaspórico que faz passar forças outras sob formas aparentemente dominantes. De certa forma é disto que trata esta dissertação. *** Na convivência a partir da Associação, conheci integrantes de muitas tendas da cidade. Embora não tenha tido oportunidade de presenciar um festejo naquele ano devido ao volume de trabalho, os laços que estabelecemos foram significativos e as torções de pensamento fruto das trocas que aconteceram naquela ocasião me levaram a buscar algum caminho que me permitisse elaborar em outras chaves aquilo que tinha vivido ali, esforço que desembocou em uma aproximação com a Antropologia. No segundo capítulo tratarei um pouco da retomada dessas relações e do papel de Vera, que me acolheu desde então como parte de sua família. A única exceção naquele ano de 2014 foi um toque na casa de dona Teresinha, na Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora da Conceição, do qual vi uma fração muito curta 13 (ainda mais considerando-se a duração prolongada dos festejos da cidade). Em um dia de junho, quando se desenrolavam as festas juninas, acompanhei o grupo de boi mirim no qual Moisés, filho de Vera, dançava. O Encanto Codoense se apresenta em vários lugares, igrejas, praças, clubes, vez ou outra vai a outra cidade. Naquela ocasião, foram se apresentar no toque de dona Teresinha, que possui um boi também - nesse caso, trata-se de um boi de encantaria, brincado dentro do terreiro de modo diferente dos bois de "grupos culturais". Aguardamos por alguns momentos, obervando o que se passava dentro do barracão, até que a mãe de santo suspendeu o toque, dando um intervalo para os tamborzeiros, momento no qual as crianças entraram no salão e apresentaram a coreografia correspondente à sequência de músicas que vi dançarem inúmeras vezes. Um certo receio no olhar daquelas que desconheciam a dinâmica dos terreiros não impediu que dançassem com a mesma dedicação com que costumavam se apresentar. Quando voltei a Codó, em março de 2017, desta feita com foco no trabalho de campo que se desdobrou na presente dissertação, dona Teresinha foi uma das primeiras pessoas que reencontrei. A mãe de santo me reconheceu, abriu as portas de sua casa e se prontificou a me ajudar a reunir as informações necessárias para a minha escrita. Passei a visitá-la com frequência, na casa em que mora com uma de suas filhas de santo, Claudina, sua neta e agora sua bisneta, e que é também o espaço de seu terreiro, como é comum em Codó. Ela, assim como praticamente todas as pessoas que de alguma forma tomam parte neste trabalho, me estimulou a conversar com outras pessoas e integrantes de outras tendas, de forma que logo de início me pareceu quase impossível seguir apenas uma pessoa. Há um espaço definido em que há uma mãe ou pai-de-santo, filhos de santo, uma organização em diretoria, com titular, vice, tesoureiro, secretário, etc, bastante atuante na organização dos festejos. No entanto, as relações extrapolam os limites de cada casa e há um trânsito incontornável que culmina na prática de pagar visitas sobre a qual já comentei e aprofundarei mais à frente. Ademais, a comunidade é formada por um emaranhado de relações, com o compartilhamento de laços de sangue, de parentesco, de entidades, de obrigações, de relações de apadrinhamento, de cruzamento entre casas. Há quem celebre aniversário de encantado em algum terreiro amigo, ou um pai de santo cujo filho carnal - ou seja, de sangue - seja filho de santo de outra casa, mas ainda assim participe ativamente de seus festejos. Nesse sentido, além de dona Teresinha (Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora da Conceição), frequentei bastante a casa/tenda de seu Domingueiro (Tenda Espírita de 14 Umbanda Santa Bárbara), de dona Maria do Santo (Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara) e de seu Pedro d'Oxum, meus interlocutores mais frequentes. Mas encontrava com frequência nos toques dona Iracema (Tenda Espírita de Umbanda Santo Antônio), dona Julia, seu Café (Tenda Espírita de Umbanda São Cipriano), todos junto a seus filhos de santo, filhos, afilhados e integrantes em geral de suas casas, bem como com seu Piauí, abatazeiro muito conhecido na cidade. Passei, ainda, muitas tardes conversando com seu Wildelano, presidente da União Artística Operária Codoense - ricamente registrada no trabalho de Abreu (2010) e da Banda Euterpe, fora os encontros com a rezadeira Mariana e as rezas em locais diversos a que compareci na companhia de Vera. Com exceção de uma visita que fiz à comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos, minha circulação ficou mais restrita à área urbana de Codó, onde está localizada a maior parte dos terreiros da região. Figura 2: Mapa da cidade de Codó. Fonte da base: Google Maps Satellite. Noelson, que fora meu aluno e companheiro de trabalho na AUCAC e se tornou um grande amigo, me acompanhou em muitos dos festejos a que compareci. Ele, muito interessado no campo do audiovisual, era conhecido por registrar em fotos e vídeos os festejos da cidade. Segundo me conta, os encantados gostam particularmente de serem fotografados quando amanhece. Acabou se tornando uma espécie de assistente de pesquisa, disponibilizando seu material comigo e recolhendo relatos, registros de doutrinas e informações em geral (em outras tendas além das que mencionei no parágrafo anterior, em particular a Tenda Espírita de Umbanda Santa Helena) que muito me auxiliaram na escrita. 15 Parte das fotos dispostas nesta dissertação são de sua autoria. Além disso, devo dizer que em alguns dos festejos a que compareci - particularmente o de dona Teresinha, que compõe parte substancial do segundo capítulo - meu companheiro Guilherme me acompanhou e auxiliou no registro dos acontecimentos, de forma que esteve presente filmando o festejo, para gosto da mãe de santo. Embora no início eu ficasse constrangida em pedir para gravar alguma situação, de maneira geral as pessoas gostam muito de fotos e vídeos mostrando os toques e os eventos da cidade e pedem que registremos sempre que temos algum aparelho à mão, parasomar aos registros feitos pelos celulares. Certa vez, acompanhando o velório de seu Ribinha Muniz, várias pessoas em momentos distintos me instigaram a usar a câmera que carregava na mochila. Diante da minha timidez na situação, seu Wildelano me disse que isso só podia ser coisa do Rio e que "lá o cabra morre devendo" e só essa razão justificava meu constrangimento. "Em Codó, o povo gosta é que filme". Foto 2: Crianças da comunidade quilombola Eira dos Coqueiros em oficina da AUCAC (2014). 16 No tempo que passei em campo, realizei algumas entrevistas utilizando um gravador. Porém, julguei que nem sempre esse recurso funcionava tão bem; se algumas pessoas não se importavam - e mesmo me estimulavam particularmente quando se tratava de algum evento ou festejo público -, na maioria dos casos as conversas ficavam mais rígidas e restava algum grau de desconfiança. Sendo assim, com raras exceções, conversava longamente com as pessoas e anotava tudo o que lembrava no meu diário de campo. Eventualmente, quando a memória não ajudava, voltava a fazer as mesmas perguntas quando era possível, de modo a recompor as informações ofertadas. Em que pese a "perda" de alguns detalhes e frases de efeito, julguei que deixar as conversas e os ensinamentos fluírem de forma mais orgânica me abriu mais perspectivas sobre o terecô. De todo modo, o aprendizado nos contextos de matriz africana não se dá de maneira linear, rígida ou em um corpo de ensinamentos que se pretende acabado, ou seja "não é somente reunir ‘dados’ ou ‘informações’ sobre tal ou qual coisa", mas depende do tempo, dos investimentos nas relações, da observação atenta, que implica em "deixar o conhecimento “enraizar-se nas profundezas do seu ser” (Cossard 1970:227), através de um engajamento corporal ativo com o ambiente e seus contextos." Diz respeito, portanto, a "criar-se continuamente através da tentativa, do erro e, sobretudo, da experimentação: trata-se de “tatear” a mata, “capengar” até conseguir fazer a coisa certa" (Marques 2016: 7). Organização dos capítulos Quando falamos em uma cidade de imensa maioria negra como Codó, onde há um sem número de quilombos no entorno, e sobretudo quando tratamos de uma religião de matriz africana praticada naquele contexto, contendo voduns, encantados, orixás, pretos-velhos e caboclos, talvez algumas ideias tenham a tendência a se impor: tratar das interações que poderiam ser vistas como "misturadas" aciona uma série de referências no que tange as dinâmicas atinentes às religiões de matriz africana, tais como sincretismo e mestiçagem. Se por um lado o tema pode parecer um tanto óbvio e sem nenhuma grande novidade quando se trata de assunto já tão longamente debatido na literatura, justamente por essas razões me parece necessário retornar ao movimento de hesitação que mencionei brevemente na introdução deste trabalho. Hesitar e atentar para as práticas discursivas e não discursivas que abrem outras possibilidades de abordagem sobre os encontros e as misturas e, talvez mais ainda, outras formas de colocar as diferenças em contato, qualquer que seja o contexto. 17 Trata-se, em um primeiro momento, como já disse acima, de um movimento de hesitação diante de um campo - o das religiões de matriz africana e mais especificamente o terecô - marcado pelo risco de amoldar dinâmicas próprias de outros contextos que à primeira vista parecem semelhantes, mas que não necessariamente correspondem aos processos que ocorrem em Codó. A literatura antropológica sobre o terecô, como veremos, me parece permeada de explicações e pontos de vista marcadamente dos praticantes do tambor de mina, religião característica da capital do Maranhão, São Luís. Ademais, a profusão de trabalhos e informações em geral sobre o candomblé e a umbanda, além do tambor de mina, nos oferece um referencial baseado nas dinâmicas próprias dessas religiões que não atende às singularidades presentes no terecô de Codó. Esse movimento desponta, portanto, de modo a evitar que os modelos que se referem a tais vertentes religiosas sejam aplicados irrefletidamente ao terecô, ainda que de maneira não intencional; emerge assim a necessidade de atentar para as explicações que tendem a se impor de forma quase automática, não apenas na intenção de controlar esse impulso, mas também para trabalhar com ele e perceber como inflete nas conclusões retiradas. Desse modo, retorno aos trabalhos já realizados e ao meu próprio trabalho de campo, ainda que até então tenha sido relativamente curto, para descrever o terecô trazendo para o centro as práticas discursivas e não discursivas de seus praticantes. Em outros termos, o que quero explorar aqui é a ideia de que no contexto das religiões de matriz africana no Maranhão, o tambor de mina, ainda que apareça como vertente religiosa minoritária em um quadro "dominado" pelos discursos sobre o candomblé e a umbanda - e mesmo pensando num quadro ainda maior em que as religiões de matriz africana aparecem como minoritárias -, pode operar como sobrecodificador sobre o terecô por ser, num certo sentido, uma corrente majoritária nesse campo de reflexões mais restrito, o Maranhão. Nada disso implica, é preciso destacar, na ausência de semelhanças e conexões com outras vertentes religiosas de matriz africana, de maneira que outros contextos etnográficos podem ajudar a compor as reflexões ao longo desse trabalho, em termos outros que não a partir de uma relação verticalizada entre essas religiões. Para explicitar o argumento, recorro às palavras de Goldman quando diz que Já há algum tempo, José Carlos dos Anjos (2006) nos revelou tudo o que teríamos a ganhar abandonando os clichês dominantes da miscigenação, da mestiçagem ou do sincretismo em benefício de imagens oriundas de nossos próprios campos empíricos de investigação. Assim, a ideia de "linha 18 cruzada", presente em praticamente todas as religiões de matriz africana no Brasil, permite pensar um espaço de agenciamento de diferenças enquanto diferenças, sem a necessidade de pressupor nenhum tipo de síntese ou fusão. As diferenças são intensidades que nada têm a ver com uma lógica da assimilação, mas sim com a da organização de forças, que envolve a modulação analógica (contra a escolha digital) dos fluxos e de seus cortes, bem como o estabelecimento de conexões e disjunções. Esse modelo heterogenético apoiado nas variações contínuas permite opor termo a termo mestiçagem e sincretismo, de um lado, contramestiçagem e composição (no sentido artístico do termo), de outro. (Goldman 2015: 653) Cabe, portanto, proceder à operação de “minoração”, no sentido de Deleuze e Bene (apud Goldman 2015: 646), quando propõem um afastamento do elemento majoritário das análises para tentar entrever “virtualidades bloqueadas pela variável dominante” de modo a trazer à baila, sob essa ótica, as práticas discursivas e não discursivas das mães e pais de santo de Codó que circulam pela cidade e promovem diferentes níveis de encontros, apoiando-me em suas elaborações que, me parece, oferecem formas de conexão que "não são nem horizontais, nem verticais, mas transversais" (Goldman 2015: 649). Nesse sentido, o problema é como libertar o que em geral se chama de sincretismo e mestiçagem da dominação e do ofuscamento teórico-ideológicos produzido pela presença da variável maior “brancos”. Em poucas palavras e grosso modo, trata-se de responder às questões: como ficam sincretismo e mestiçagem se deles suprimimos não o fato histórico, político e intelectual dos encontros, mas seu vértice maior, os “brancos”? Como aparecem sincretismo e mestiçagem quando escutamos afros e indígenas sem que esse elemento sobrecodificador os silencie ou enrouqueça? (Goldman 2017: 19) Embora não apareçam em primeiro plano o quadro de relações raciais ou as elaborações acerca dopapel de negros e indígenas no terecô - questões para as quais certamente um campo maior trará aportes mais profundos -, isso não implica em que o tema das misturas se faça ausente, sobretudo se pensarmos em uma chave que não passe exatamente pelo registro étnico - sem ignorar que emanam daí -, mas que sobretudo leve em conta uma singular forma de se relacionar, de estabelecer relações. Essa modalidade de relação levada a efeito no tambor da mata, nesse sentido, se conecta com aquela que podemos 19 entender como uma "relação afroindígena" (Goldman 2014, 2015, 2017). Lanço mão, nesse sentido, da ideia de uma antropologia afroindígena sobretudo como metodologia, ou melhor dizendo, como uma proposição no sentido levantado por Stengers (2007), que "não se confunde em nada com um programa, mas tem muito mais a ver com a passagem de um arrepio ou um temor que faz tremer as certezas" (2007: 49) e implica em pensar "à partir dessas consequências ditas secundárias, receosas da ideia de que um senso comum qualquer possa laminar, pacificar, a questão, sempre delicada, hesitante entre a guerra e a paz, de todo encontro entre heterogêneos" (Stengers 2007: 68). Em vista disso, faz-se necessário limitar uma certa arrogância do pensamento dominante, que tem como praxe sobrecodificar tudo aquilo que está ao redor, colonizando outras possibilidades de relação de forma a oferecer as respostas antes mesmo das perguntas. A "proposição afroindígena" se coloca, portanto, como um modo de formular questões sem almejar atingir respostas fechadas ou já conhecidas, tomando como centro as práticas discursivas e não discursivas - sobretudo tendo em vista "que a subordinação imperativa da antropologia à palavra nativa obriga a análise antropológica a contar com o que as pessoas pensam e têm a dizer sobre o que acontece com elas mesmas, com os outros e com o mundo." (Goldman 2017: 17). Nesse caso, nos oferece, além de tudo, ferramentas para observar o próprio pensamento acerca desses contextos etnográficos e de que formas os caminhos tidos como clássicos infletiram naquilo que resultaria nas teorias hegemônicas sobre o tema. No primeiro capítulo, farei uma revisão da literatura antropológica acerca do terecô, sem perder de vista a preocupação com as sobrecodificações, ainda que involuntárias, e naquilo que se refere ao tema dos encontros e das misturas - ou das confluências e transfluências. Essa revisão terá como ênfase três trabalhos produzidos em momentos emblemáticos da Antropologia no que tange a religiões de matriz africana, quais sejam, aqueles de Octávio da Costa Eduardo (1948), Mundicarmo Ferretti (1993; 2001) e Martina Ahlert (2013). O segundo capítulo tratará da descrição de um toque e um festejo de terecô - facetas públicas do tambor da mata -, sem qualquer pretensão de criar algum tipo de modelo fechado que dê conta de todas as variações entre as tendas e os rituais realizados no terecô, o que julgo sequer faria sentido em um contexto marcado pela arte da composição, pelos diferentes 20 arranjos fruto da ilimitada possibilidade de encontros e pela modulação analógica das forças aí somadas. Embora tenha realizado um trabalho de campo relativamente curto, haja vista os limites de tempo e espaço impostos pelo tempo de realização de um mestrado com passagem direta ao doutorado, farei no terceiro capítulo o exercício de levantar algumas questões e propostas de leitura a partir do material etnográfico levantado até o momento. Não busquei contornar esses limites, mas em lugar disso trabalhar com eles, o que nos faz retornar ao tema da aprendizagem nos contextos de matriz africana e na necessidade da experimentação, "de “tatear” a mata, “capengar” até conseguir fazer a coisa certa" em um "processo demorado e lento, que requer paciência e, sobretudo, atenção ao que está se desenrolando" (Marques 2016: 6-7). Ciente de tais limites no que tange a esta dissertação, faço desta uma etapa parte de um processo mais longo, que pretendo continuar, de tal modo que as reflexões que desenvolvo aqui apontam caminhos de pesquisa a serem aprofundados etnograficamente em um momento futuro. 21 1. Antropologias do Maranhão e do Terecô Os primeiros trabalhos sobre religiões de matriz africana no Maranhão surgiram apenas a partir da segunda metade dos anos 1940, quando já desde o século XIX verificam-se investigações sobre o tema no Brasil em geral. A Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada por Mário de Andrade, teve seu relatório publicado em 1948 por Oneyda Alvarenga, onde descreveu um ritual de tambor de mina no terreiro de dona Maximiana, na cidade de São Luís. Segundo M. Ferretti (2001: 20), a casa de Maximiana era ligada indiretamente à Casa de Nagô, uma das referências na capital, e a tendas de Codó. Além disso, Pierre Verger publicou um artigo sobre sua visita a São Luís em 1947, no qual levantava a possibilidade da Casa das Minas, outra referência ludovicense, ter sido fundada por uma rainha do Daomé (Verger 1952 apud M. Ferretti 2001: 20). Dois livros foram publicados sobre o tema: o de Nunes Pereira (1947) sobre a Casa das Minas e o de Costa Eduardo (1948) sobre o que chamou de processo de aculturação da população negra no Maranhão. Como se vê, a literatura se voltou majoritariamente para o tambor de mina de forma que, nas palavras de M. Ferretti (2001: 20), "falar em religião afro-brasileira do Maranhão até há bem pouco tempo era falar em Casa das Minas". A mesma tendência se segue nos estudos posteriores, como o trabalho de Maria Amália Barretto (1977) intitulado "Os Voduns do Maranhão", no qual prossegue na observação da permanência de "africanismos" e se propôe a estudar a influência da Casa das Minas em São Luís, tendo observado também a Casa de Nagô e a Fanti-Ashanti, e o de Sergio Ferretti (1985) que realizou uma etnografia sobre aquela mesma casa. Roger Bastide (1971) dedicou algumas linhas sobre o tambor de mina, em particular a Casa das Minas, que admirou e incluiu entre os "candomblés tradicionais". O autor também teceu rápidos comentários sobre o terecô a partir do trabalho de Costa Eduardo (1948). Fora da capital, a literatura é ainda mais enxuta e depois da tese de Costa Eduardo (1948) até os anos 90, resume-se a relatórios curtos de pesquisa, alguns hoje inacessíveis. Em 1975, foi publicado relatório de pesquisa sobre a prelazia de Pinheiro, na Baixada Maranhense, executada em 1972 sob o comando de Roberto da Matta, e M. Ferretti dá notícias do trabalho de Correia Lima e Azevedo (1980 apud M. Ferretti 2001: 21) sobre religião de matriz africana em Viana, Alcântara e Codó. O trabalho de M. Ferretti, a partir da segunda metade dos anos 1990, fez-se destaque nesse campo. Além do livro (1993) 22 decorrente de sua tese sobre o caboclo no tambor de mina de São Luís, a autora escreveu um livro (2001) sobre o terecô de Codó e publicou incontáveis artigos sobre diversas manifestações de matriz africana maranhenses. Martina Ahlert15 defendeu sua tese em 2013, uma etnografia de mais fôlego a partir do terecô na cidade de Codó, trabalho mais recente sobre o tema. Essa breve introdução pretende apenas fornecer um panorama dos estudos sobre religião de matriz africana no Maranhão. Em seguida, vou aprofundar as considerações sobre três trabalhos com foco no terecô e em Codó, emblemáticos de três momentos marcantes da literatura sobre religiões afro-brasileiras na Antropologia. Não tenho a pretensão de elaborar algum modelo definitivo ou exaurir o assunto; trata-se apenas de uma simplificação esquemática que nos guie pelas elaborações antropológicas acerca do terecô e lance um olhar atento para os contextos em que esses trabalhos foram escritos, as correntes e reflexões com as quais se ligam ou em que ressoam. Ademais, as valiosas informações etnográficas registradas pelos três autoresestarão presentes ao longo de toda esta dissertação. Passo, então, a tratar dos três trabalhos: o de Costa Eduardo (1948), "The Negro in Northern Brazil - A Study in Acculturation"; o de Mundicarmo Ferretti (2001), "Encantaria de Barba Soeira - Codó, capital da magia negra?"; e o de Martina Ahlert (2013), "Cidade Relicário - Uma etnografia sobre terecô, precisão e Encantaria em Codó (Maranhão)". 1.1 Estudos de aculturação no Maranhão O primeiro trabalho publicado que trata do interior do Maranhão e do terecô é o de Costa Eduardo (1948), aluno de Herskovits que fez trabalho de campo no Maranhão. Segundo nos conta Sergio Ferretti (2017), Costa Eduardo nasceu em 1919 no interior de São Paulo, tendo ido para a capital nos anos 1930 para estudar Direito na Universidade de São Paulo, ocasião em que se aproximou da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) e de Donald Pierson, que o apresentou a pesquisadores americanos e fez uma indicação para a pós-graduação em Chicago. Em 1941, mesma época em que Melville Herskovits realizava pesquisas sobre o Brasil, seguiu para os Estados Unidos e tornou-se seu orientando na Northwestern University, em Chicago. Por indicação de Herskovits, dedicou-se aos estudos sobre a cultura negra no Brasil, em particular o Maranhão. Para tanto, fez trabalho de campo 15 Ver também Ahlert 2015, 2016a, 2016b, assim como Lamy 2016 e Lima 2017, sob a orientação de Ahlert. 23 em São Luís e na comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos16 em 1943 e 1944. Seu foco repousava no que chamava de "processos de aculturação do negro", perspectiva que ressoa na investigação de práticas tidas como mais puras em comparação com aquelas que se perderam ou que se misturaram a outras. Para compreender o trabalho de Costa Eduardo, no entanto, é preciso dedicar certa atenção a um quadro maior em que ele está inserido, qual seja aquele atinente ao trabalho de seu orientador, Melville Herskovits. De acordo com Walter Jackson (1986), Herskovits foi o único aluno de Franz Boas a conduzir uma investigação ampla sobre a cultura africana e afro- americana e a enfrentar uma contradição que Boas nunca confrontou: o conflito entre seu universalismo e o compromisso com o respeito às culturas minoritárias. Se logo no início de sua carreira Herskovits afirmou não haver qualquer traço de África no Harlem, posição consonante com aquela predominante nas ciências sociais americanas entre os anos 1930 e 1960 e segundo a qual a experiência da escravidão teria arrancado quaisquer ligações significativas com a cultura africana, em dado momento seu pensamento muda radicalmente. Jackson afirma que naquele período, a luta pelos direitos civis argumentava que as pessoas negras eram tão americanas quanto qualquer outro grupo e muitos cientistas sociais defendiam que a assimilação era parte necessária para a equidade e oportunidade, argumento que ia ao encontro da teoria boasiana (Jackson 1986: 97). As teorias racistas que encaravam a África como uma terra de selvageria primitiva já há muito eram questionadas por pesquisadores negros; Boas, no entanto, figurava praticamente sozinho entre os pesquisadores brancos, na contra-corrente que buscava entender as culturas africanas e afro-americanas como parte de uma forte crítica aos pressupostos racistas do século XIX. Por outro lado, o autor, no mesmo passo em que propunha um certo orgulho da raça que se contrapusesse a sentimentos de inferioridade, defendia que a miscigenação seria a única solução para os conflitos raciais - o que se aplicava também para o caso do anti- semitismo (Jackson 1986: 98). Era um tempo de acirramento de conflitos raciais quando Herskovits iniciava sua empreitada acadêmica junto a Boas, nos anos 1920; Boas escrevia artigos atacando o racismo 16 Santo Antonio dos Pretos é um povoado situado a cerca de 60km da cidade de Codó e consiste em uma comunidade quilombola titulada, disposta nas narrativas locais como o berço do terecô, conforme dispus na introdução deste trabalho. 24 científico fortemente difundido à época, tarefa que muitas vezes delegava a Herskovits. Uma postura assimilacionista marcou seu trabalho até certo ponto, como vemos nas palavras de Jackson: "[p]rocurando refutar o argumento racista de que imigrantes e negros eram incapazes de assimilar a cultura americana, ele argumentou que a assimilação estava, de fato, ocorrendo e que era um processo social inevitável" (1986: 100). No entanto, tal postura entrou em choque quando do seu encontro com a Harlem Renaissance17 e "o desejo de intelectuais negros em desenvolver uma tradição cultural distintiva com raízes no passado africano e no folclore afro-americano" (1986: 101). Herskovits escreveu em um artigo para a revista Survey Graphic18, a convite de Alain Locke, que as culturas negra e branca eram "do mesmo padrão, apenas em uma tonalidade diferente" (1986: 102), insistindo na descontinuidade das culturas africana e afro-americana. O tom dissonante do artigo de Herskovits em relação aos outros trabalhos publicados não provocou sua exclusão do volume, mas o texto foi acompanhado de uma nota editorial na qual Locke escreveu que "observada em seus aspectos externos, a vida negra, como refletida no Harlem, registra uma pronta - quase febrilmente rápida - assimilação dos padrões culturais americanos, o que o sr. Herskovits chama de 'completa aculturação'", mas observada "internamente talvez a questão seja outra". (...) Locke perguntou "a democracia requer uniformidade? Se for o caso, ameaça ser segura, mas maçante... Costumes e modos antigos podem não perdurar, mas eles podem deixar um traço mental, sutilmente gravado no temperamento e colorindo as reações sociais" (Locke apud Jackson 1986: 102) A publicação foi posteriormente revisada e publicada na forma de um livro intitulado "The New Negro", um verdadeiro manifesto da Harlem Renaissance, onde diversos autores afirmaram e celebraram conexões com a África em âmbitos variados. Emblemática desse posicionamento é a frase de Arthur Schomburg: "O negro tem sido um homem sem uma história porque tem sido considerado um homem sem uma cultura de valor" (Schomburg apud Jackson, 1986: 103). Herskovits, assim, figurou como um dos poucos brancos com textos 17 Harlem Renaissance foi um movimento cultural, artístico e social que tomou o Harlem nas décadas de 1920- 1930. Artistas, músicos, escritores, poetas, fotógrafos e intelectuais negros fugiam do Sul em busca de um espaço onde pudessem se expressar com um pouco mais de liberdade. Muitos nomes de destaque, incluindo W.E.B Du Bois estavam no cerne do movimento que tinha como um dos motes o orgulho negro e a demanda por direitos civis e políticos. 18 Edição especial com o tema "Has the Negro a Unique Social Pattern?", que culminou em uma versão em forma de livro intitulada "The New Negro". (Jackson 1986: 101-102) 25 incluídos no livro e sem dúvida o autor com posição mais assimilacionista (Jackson 1986: 103). Seu contato, diálogo e mesmo relações de amizade com aqueles intelectuais negros não cessou por conta de tais diferenças; pelo contrário, as trocas contínuas fizeram com que repensasse alguns de seus posicionamentos anteriores. Nesse sentido, Suas trocas com Locke e outros intelectuais negros coincidiram com a emergência de problemas teóricos na pesquisa de Herskovits que minaram algumas de suas suposições iniciais. No outono de 1925, ele percebeu que os dados de seu estudo sobre cruzamento racial indicavam que os negros não estavam sendo absorvidos na população branca em geral, como Boas havia esperado: mais misturas raciais aconteceram no século XIX do que no XX. Os negros americanos, ele concluiu,
Compartilhar