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Os Lusíadas - Luís de Camões

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2
Sumário
Capa
Rosto
APRESENTAÇÃO
1. UMA HEROICA AVENTURA
2. A DISPUTA ENTRE OS DEUSES
3. UM ENCONTRO COM OUTROS NAVEGANTES
4. O FINGIDO REGEDOR DAS ILHAS
5. BACO SE DISFARÇA
6. UMA NOVA ARMADILHA EM MOMBAÇA
7. O PEDIDO DE VÊNUS
8. PROMESSAS DE JÚPITER
9. O CAPITÃO SONHA
10. EM MELINDE
11. VASCO DA GAMA CONTA A HISTÓRIA DE PORTUGAL
12. A TRISTE MENÇÃO A INÊS DE CASTRO
13. A DINASTIA DE AVIS
14. O SONHO DE DOM MANUEL
15. O COMEÇO DE TUDO
16. AS DURAS PALAVRAS DO VELHO DO RESTELO
17. NAVEGANDO POR ROTAS CONHECIDAS E OUTRAS
IGNORADAS
18. O GIGANTE ADAMASTOR SE REVELA
19. A VIAGEM PROSSEGUE
20. BACO PROCURA NETUNO
21. O CASO DOS DOZE DA INGLATERRA
22. A GRANDE TEMPESTADE
23. O MOURO QUE FALAVA CASTELHANO
24. VISITA AO SAMORIM
25. AS INVESTIGAÇÕES DO CATUAL
26. A INTERFERÊNCIA DOS ADIVINHOS
27. A ASTÚCIA DO CATUAL
28. GAMA CONTRA-ATACA
29. VÊNUS PREPARA UMA RECOMPENSA
30. NA ILHA DOS AMORES
31. A MÁQUINA DO MUNDO
32. RETORNO A LISBOA
3
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Coleção ENCONTRO COM OS CLÁSSICOS
Créditos
4
L
APRESENTAÇÃO
usíada é o homem lusitano ou português, o navegador cristão e ocidental que, à
época do renascimento, manifesta a consciência de sua própria importância em
um mundo em plena transformação. Ao mesmo tempo em que ressurgem os valores
da antiguidade clássica, o homem passa a ser visto como o motor de um mundo que,
com as navegações, ultrapassa seus limites, abrindo-se a novos conhecimentos, a
novos hábitos e a um futuro diferente, fruto de suas conquistas.
Luís Vaz de Camões (1524-1580) viveu em um momento único na história de
Portugal, então uma potência mundial graças ao investimento na exploração, por via
marítima, de novas rotas comerciais. Dedicavam-se os portugueses a restabelecer as
trocas da Europa com o Oriente, desaparecidas com a captura de Constantinopla
pelos mouros, como eram chamados os árabes em plena expansão da sua fé
muçulmana. Europeus e árabes haviam se envolvido com as cruzadas, série de
guerras religiosas pela posse de Jerusalém, o berço do cristianismo, também ocupada
pelos maometanos. Desde que se constituíram como um reino independente, os
portugueses mantiveram, além dos conflitos com os mouros, uma aberta rivalidade
com os vizinhos espanhóis, com os quais iriam partilhar a descoberta ou a conquista e
colonização do até então desconhecido continente americano.
Tomando como modelo os poemas épicos Odisseia e Eneida, que têm como
heróis o grego Ulisses e o romano Eneias, Camões quis celebrar uma das grandes
realizações do renascimento: o triunfo humano contra as forças adversas da natureza,
feito que mudou os rumos da civilização ocidental e iniciou um novo período da
história.
Esse momento crucial da existência da humanidade é representado pela viagem de
Vasco da Gama pela costa africana e sua chegada à Índia, marco do empenho e do
vigor lusitanos na sua afirmação como senhores dos mares e criadores de um império.
Era preciso que os navegadores portugueses fossem imortalizados num longo poema,
como o foram os heróis dos grandes impérios clássicos.
Os Lusíadas seguem, portanto, o esquema das epopeias para cantar o “peito ilustre
lusitano” e levam o autor a comparar os marinheiros europeus aos argonautas da
mitologia grega – heróis que, usando a nau Argos, conseguiram obter o lendário velo
de ouro ou a lã de ouro de um carneiro sagrado. Os navegantes portugueses
contracenam com os deuses do Olimpo, que, personalizando os fenômenos naturais,
mostram-se menores do que a vontade de um destino superior submetido ao Deus
cristão.
O poema é apresentado em estrofes de oito versos, cada verso composto com dez
sílabas, as estrofes agrupadas em dez cantos. A rigorosa construção poética reflete
uma visão do mundo que procurava exprimir a simetria e a ordem presentes na arte
5
clássica.
Apesar da mente disciplinada e precisa, fruto de uma grande cultura humanista
desenvolvida na juventude, em Coimbra, Camões revelou-se, ao longo da vida, afeito
a paixões e a atos incontroláveis, próprios de um temperamento exaltado. Se suas
paixões resolveram-se em belíssimos poemas de amor, que constituem a parte lírica
de sua obra, seu gênio arrebatado levou-o à prisão e ao exílio, além de lançá-lo na
experiência da pobreza. Embora nascido nobre, em Lisboa, alistou-se como simples
soldado e serviu como funcionário do reino nos territórios portugueses da Índia e da
China. Ao regressar da China, sofreu um naufrágio, do qual conseguiu se salvar e
resgatar o manuscrito de sua epopeia; no entanto, perdeu, afogada no mar, sua amada
chinesa, Dinamene.
O poeta tornou-se cego de um olho, em consequência de uma missão militar em
Ceuta, no norte da África, e morreu pobre, mas consciente de que havia escrito um
livro de enorme valor. A posteridade reconhece em Os Lusíadas a obra fundamental
de toda a literatura produzida em língua portuguesa.
6
A
Nau de Vasco da Gama
1. UMA HEROICA AVENTURA
s armas e os varões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino que tanto sublimaram;
(...)
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Esta é a história dos navegantes portugueses que, deixando o litoral de seu país e
aventurando-se por mares nunca antes navegados, alcançaram a Índia e, assim, o
Oriente.
 
Os feitos lusitanos, correspondendo a ações reais e
de tão grande heroísmo, merecem ser cantados com
mais razão do que foram os feitos gregos na Odisseia
ou os romanos na Eneida, poemas clássicos e, da
mesma forma, inspirados pelas musas. São as tágides,
ninfas que habitariam o rio Tejo, cujas águas cortam
Lisboa, as divindades inspiradoras do autor de Os
Lusíadas.1
O registro da inédita aventura é dedicado ao rei
dom Sebastião e ressalta o grande valor dos
marinheiros, heróis da mesma estirpe dos antigos
argonautas, e que vão singrando o oceano Índico, na
costa oriental da África, rumo à sua meta.
São quatro naus formando a esquadra comandada
por Vasco da Gama. Navegam em águas
7
com os deuses mitológicos
nas nuvens.1
desconhecidas, sem saber o rumo correto. Os ventos
vão inchando as velas e levando a frota adiante.
Ao mesmo tempo, sem que o possam perceber, os
navegantes que partiram da praia do Restelo, em Lisboa, são motivo de uma reunião
no Olimpo, o mundo dos deuses. Nesse concílio, a viagem dos portugueses provoca
uma disputa entre Vênus e Baco, interessados, cada um a seu modo, no futuro do
oriente.
1 Ernesto Casanova (1845 – ano de morte desconhecido), Library of Congress (Ilustração para Os Lusíadas,
1880).
8
Q
2. A DISPUTA ENTRE OS DEUSES
uando os deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso,
Sobre as coisas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino céu formoso,
Vêm pela Via Láctea juntamente,
Convocados, da parte do Tonante
Pelo neto gentil do velho Atlante.
(...)
Prometido lhe está do Fado eterno,
Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas tem passado o duro Inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja.
Em nome de Júpiter, o pai dos deuses e senhor dos raios, Mercúrio, deus gentil e
descendente do gigante Atlas, convocou as outras divindades que, pela Via Láctea,
acorreram ao Olimpo.
Em seu trono resplandecente feito de estrelas, Júpiter aguardava os recém-
chegados que se acomodaram em assentos de ouro e pérolas, estando à frente os mais
antigos e importantes. Abriu a discussão sobre a viagem dos portugueses à Índia,
assim dizendo:
– Quis o destino que logo sejam esquecidas as glórias de assírios, persas, gregos e
romanos. A forte gentede Luso, bravo companheiro de Baco, atreveu-se, em leves
barcos de madeira, a afrontar o mar, depois de outras façanhas obtidas com tão pouca
gente. Após tomar aos mouros as terras banhadas pelo rio Tejo e vencer os temidos
castelhanos, se lançam em direção ao leste, o berço onde nasce o dia. Tendo
atravessado tantas intempéries e tanto furor do vento, é justo que lhes seja mostrada a
terra desejada. Para que alcancem sem demora as praias orientais, determino que os
povos da costa africana os recebam e os reabasteçam.
Baco, ciumento da aventura portuguesa, pois há muito era cultuado na Índia,
ousou discordar, não querendo ver esquecido o próprio nome perante a fama que
aguardava os novos heróis. Afeiçoada à gente lusitana, pelas qualidades assemelhadas
às de seus favoritos romanos, sobretudo pela língua que soava próxima do latim,
9
Vênus interferiu em favor próprio. Os outros deuses se dividiram em dois partidos
antagônicos, um comandado por Baco, preocupado em manter sua glória, e o outro
por Vênus, que imaginava que os portugueses, tão afeitos às artes do amor, passariam
a se dedicar a seu culto. Foi quando Marte, antigo apaixonado por Vênus, saiu em
defesa dos portugueses, guerreiros tão destemidos quanto ele.
– Pai, – dirigiu-se a Júpiter com sua forte voz – não ouça Baco, a quem a inveja
impede de estar ao lado dos descendentes de seu amigo Luso. Mande Mercúrio, que
tem asas nos pés, mostrar aos marinheiros o porto onde se informarão sobre a Índia.
Júpiter concordou com Marte, e logo os deuses partiram pelo caminho lácteo, cada
um de volta à sua morada. Os navegantes, levados por ventos amenos, chegam, então,
a uma ilha de várias existentes entre Moçambique e Madagascar, quando são
abordados por navegantes negros em um grupo de pequenos barcos.
10
E
3. UM ENCONTRO COM OUTROS NAVEGANTES
is apareceram logo em companhia
Uns pequenos batéis, que vêm daquela
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o mar com larga vela.
A gente se alvoroça, e de alegria,
Não sabe mais que olhar a causa dela.
– Que gente será esta? (em si diziam)
Que costumes, que lei, que rei teriam?
(...)
Esta Ilha pequena que habitamos
É em toda esta terra certa escala,
De todos os que as ondas navegamos,
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala.
E, por ser necessária, procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E por que tudo enfim vos notifique
Chama-se a pequena Ilha: Moçambique.
Vasco da Gama, que se preparava para seguir em frente, deixou subir à sua nau
alguns dos homens, na esperança de encontrar entre eles um piloto que os conduzisse
à desconhecida Índia. Em árabe, um deles se dirigiu ao capitão:
– De que terra são? O que buscam?
– Viemos do Ocidente em busca das terras do Oriente. Somos súditos de um rei
poderoso e amado e por ele procuramos a terra regada pelo rio Indo. Também
perguntamos quem são vocês e o que sabem do caminho para a Índia.
Um dos homens explicou serem estrangeiros naquela terra, habitada por nativos
sem religião. Eram muçulmanos, mouros vivendo em Moçambique. Entre eles,
certamente, os portugueses encontrariam um guia para os conduzir até sua meta.
Poderiam lhes conseguir mantimentos, e o seu governante os visitaria no outro dia,
providenciando-lhes tudo o mais que fosse necessário.
11
R
4. O FINGIDO REGEDOR DAS ILHAS
ecebe o Capitão alegremente
O Mouro e toda sua companhia;
Dá-lhe de ricas peças um presente,
Que só para este efeito já trazia;
Dá-lhe conserva doce e dá-lhe o ardente,
Não usado licor, que dá alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe,
E muito mais contente come e bebe.
(...)
Pilotos lhe pedia o capitão,
Por quem pudesse à Índia ser levado;
Diz-lhe que o largo prêmio levarão
Do trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos o mouro, com tenção
De peito venenoso e tão danado.
Que a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos lhe daria.
Ao amanhecer, o governante daquelas ilhas era recebido com todas as honras no
navio de Vasco da Gama. Foi o regedor mouro presenteado e recepcionado com
doces e licores, juntamente com seus acompanhantes. No entanto, confuso, a
princípio imaginando que os portugueses fossem de sua religião, perguntou se
vinham da Turquia, pedindo ainda para ver o livro de sua crença e as armas com as
quais lutavam contra os inimigos.
Gama esclareceu: – Não venho da Turquia, mas de Portugal. Minha religião segue
Aquele que criou tudo o que sente e tudo o que é insensível, o visível e o invisível,
que desceu do Céu à Terra para fazer subir da Terra ao Céu os homens mortais.
Mandou, então, que fossem mostradas suas armaduras e suas armas. O mouro,
tudo vendo com olhos atentos, reconhecendo os cristãos que temia, resolveu não lhes
mostrar o ódio que tinha dentro da alma, prometendo-lhes um guia que, na verdade,
só haveria de dificultar a missão dos portugueses.
Enquanto isso, eram observados por Baco, que, de seu trono etéreo, já cuidava de
atraiçoar os europeus.
12
E,
5. BACO SE DISFARÇA
(...)
por melhor tecer o astuto engano,
No gesto natural se converteu
Dum mouro, em Moçambique conhecido
Velho, sábio e com o Xeque mui valido.
E, entrando assim a falar-lhe, a tempo e horas
A sua falsidade acomodada,
Lhe diz como eram gentes roubadoras
Estas que ora de novo são chegadas;
Que, das nações na costa moradoras,
Correndo a fama veio que roubadas
Foram por estes homens que passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.
O deus do vinho, percebendo a má vontade do regedor em relação aos lusitanos,
decidiu usá-lo para impedir que as naus de Vasco da Gama chegassem ao Oriente.
Para tanto, veio à Terra disfarçado num sábio mouro, velho e respeitável. Avisou que
os portugueses vinham mentindo sobre suas intenções de paz para atacar, roubar e
incendiar as cidades da costa africana, escravizando suas mulheres e crianças.
Aconselhou o líder dos moçambicanos a preparar uma cilada para os europeus,
assim que desembarcassem na ilha, atacando-os quando menos esperassem. Caso não
desse certo o plano, que lhes mandasse um piloto que levasse os navegantes, se não à
morte, a se perderem definitivamente do caminho.
Desembarcando para se abastecer de água, os marinheiros seriam recebidos com
uma emboscada. Alguns mouros se mostravam visíveis, portando escudos, adagas e
setas envenenadas, mas fingindo-se de poucos, enquanto a maioria se escondia,
também armada, para surpreender os portugueses. Mas estes saltaram rapidamente a
terra, atacando e derrotando os mouros, usando também os canhões das embarcações,
destruindo a cidade desprovida de muros e defesas.
O regedor finge arrependimento e envia a Vasco da Gama, em sinal de boa
vontade, um piloto instruído para preparar novas traições. Ele logo diz ao capitão
português, assim que se põem de novo as naus ao mar, oferecendo as velas ao vento,
existir nas proximidades uma ilha chamada Quíloa, habitada por um povo cristão,
quando, na verdade, eram outros mouros hostis, dispondo de muito mais armas que os
moçambicanos.
No entanto, Vênus interfere, desviando com ventos contrários seus protegidos
desse ardil. O piloto decide conduzi-los a mais uma ilha, Mombaça, onde Baco,
13
novamente disfarçado, já colocara seus habitantes contra os portugueses.
14
E
6. UMA NOVA ARMADILHA EM MOMBAÇA
stava a ilha à terra tão chegada,
Que um estreito pequeno a dividia;
Uma cidade nela situada,
Que na frente do mar aparecia,
De nobres edifícios fabricada,
Como, por fora, ao longe, descobria,
Regida por um rei de antiga idade:
Mombaça é o nome da ilha e da cidade.
E, sendo a ela o capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque espera
De poder ver o povo batizado
Como o falso piloto lhe dissera,
Eis vêm os batéis da terra com recado
Do rei, que já sabia a gente que era,
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro mouro que tomara.
Preparada a traição pelo deus, os portugueses foram convidados pelo rei de
Mombaça a desembarcar e a conhecer a ilha. Um emissário mouro veio até Vasco da
Gama e o aconselhou a entrar na barra com sua frota sem nenhum receio, oferecendo-
lhe não só especiarias – pimenta, canela e cravo–, como drogas medicinais e pedras
preciosas – rubis e diamantes.
O chefe lusitano perguntou-lhe se ali havia cristãos, como afirmara o piloto, e o
emissário disse que a maioria da gente acreditava em Cristo naquela ilha. Gama só
não aceitou entrar na barra porque já era quase noite e se tornava arriscada a manobra
que preferia fazer à luz do dia.
Entre os degredados, homens condenados pela justiça e que se achavam a bordo, o
capitão escolheu dois para que desembarcassem e procurassem pelos cristãos,
mandando que também levassem presentes ao rei.
15
Rota de Vasco da Gama
Em terra, não lhes permitiram ver muita coisa, ao mesmo tempo em que
simulavam alegria ao recebê-los. Foram levados a um altar suntuoso, preparado por
Baco no interior de uma casa da cidade, tendo o deus pagão tomado a forma de um
sacerdote cristão, que, queimando incenso, fingia adorar as pinturas do Espírito
Santo, da Virgem Maria e dos apóstolos. Como os degredados se ajoelhassem,
respeitosos, diante do altar, Baco fez o mesmo, um falso deus adorando o que, para os
portugueses, era o verdadeiro.
Quando regressaram na manhã seguinte, depois de alojados com conforto para
passarem a noite, convenceram o capitão de que não encontraria nenhum problema
com os habitantes do lugar. Assim, Vasco da Gama mandou que as embarcações se
dirigissem à barra, depois de receber os mouros, que chegavam em seus barcos com o
pretexto de fazer comércio, mas pensando em se apossar da frota portuguesa.
Os soldados do rei de Mombaça já se preparavam em terra para assaltar os navios,
determinados a se vingar da ação devastadora dos marinheiros lusos em
Moçambique. Mas Vênus, atenta, decidira agir e, com a rapidez de uma seta, voou do
céu ao mar, antes que os portugueses pudessem atracar.
A deusa recorreu às nereidas, ninfas marinhas, para juntas empurrarem os navios
portugueses de volta ao mar e contra os ventos que inutilmente tentavam impelir as
16
velas para a barra. Também as ondas, respondendo ao apelo da deusa que, conforme
se conta, delas tinha nascido, erguiam uma parede de água à frente da costa.
Em vão se esforçavam os portugueses, tentando manobrar as velas, sem saber a
razão de tanta fúria do mar. Os mouros a bordo, imaginando que a traição pudesse ter
sido descoberta, lançaram-se às pressas de volta aos seus batéis. Outros, como o
piloto que levou os portugueses à armadilha, pularam na água, dispostos a fugir a
nado, o que fez o capitão desconfiar de que uma cilada fora armada.
Empurrada em direção a um penedo, para evitar o choque, a nau capitânia teve de
lançar âncora ali mesmo, quando o controle dos navios pôde ser retomado. Gama
entendeu o milagre. Não agradeceu a Vênus, mas à proteção do Deus cristão. Disse
ele:
– Ó milagre claríssimo e evidente! Ó gente pérfida, inimiga e falsa! Quem poderia
se livrar do perigo, se a proteção do céu não acudisse à fraca força humana? Salvou-
nos a Providência divina destes portos de falsa segurança. Peço a ela que nos conduza
a um porto verdadeiramente seguro ou nos mostre a terra que buscamos, já que
navegamos a serviço de Deus.
Vênus, ignorando tais palavras, penetrou as estrelas luminosas para ser recebida
por Júpiter. Iria se queixar de Baco, seguindo adiante com seus cabelos, crespos como
fios de ouro, espalhando-se pelo colo alvíssimo, o corpo mal coberto por um leve
véu.
17
E
7. O PEDIDO DE VÊNUS
mostrando no angélico semblante
Com o riso uma tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se queixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre e magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhuma iguala,
Mais mimosa que triste, ao Padre fala:
(...)
Este povo, que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo.
Sendo tu tanto contra meu desejo,
Por ele a ti rogando, choro e bramo,
E contra minha dita, enfim, pelejo.
Ora pois, porque o amo, é maltratado,
Quero-lhe querer mal: será guardado.
Logo se queixava ao pai dos deuses, de um jeito sedutor e exagerando na tristeza:
– Sempre imaginei, ó pai poderoso, que fosse brando e afável com as coisas que
eu amo, mas me vejo, sem que o mereça, à mercê de sua ira. Concordarei com o que
Baco determina. Passo a querer mal a esse povo que é meu e por quem tanto lhe
tenho rogado. Se o que amo é maltratado, quero lhe desejar mal, pois só assim será
protegido.
Seu rosto se cobriu de ardentes lágrimas, a voz já embargada. Júpiter, comovido
com a doçura capaz de abrandar o coração insensível de um tigre, limpa-lhe as
lágrimas e a abraça.
– Não tema, filha formosa, pelos seus lusitanos. Prometo que serão esquecidos
todos os feitos de gregos e romanos pelo que essa gente há de fazer no Oriente.
Novos mundos mostrarão ao mundo. Fortalezas, cidades e muralhas verá por eles
construídos. Os duros turcos serão batidos, e os reis da Índia subjugados pelo rei de
Portugal, que melhores leis dará aos povos conquistados.
18
V
8. PROMESSAS DE JÚPITER
ereis este, que agora, pressuroso,
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer dele Netuno, de medroso,
Sem vento suas águas encrespando.
Ó caso nunca visto e milagroso,
Que trema e ferva o mar, em calma estando!
Ó gente forte e de altos pensamentos,
Que também dela hão medo os elementos!
Vereis a terra que a água lhe tolhia
Que inda há de ser um porto mui decente,
Em que vão descansar da longa via
As naus que navegarem do Ocidente.
Toda esta costa, enfim, que agora urdia
O mortífero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.
Júpiter, então, profetizou para a filha, em detalhes, os futuros sucessos
portugueses na esteira daquela viagem incomum conduzida por Vasco da Gama:
– Você também verá como este navegante – que agora tão temeroso e incerto
busca o Indo – fará tremer Netuno, que, mesmo sem vento, encrespará suas águas.
Verá como Moçambique ainda há de se tornar um porto amigo onde encontrarão
descanso as naus vindas do Ocidente. Toda essa costa, que hoje tece ciladas e
embustes, pagará tributos ao rei dos lusitanos. Verá Diu e Goa tomadas aos mouros,
assim como a submissão de Calicute e Cochim. Até as ilhas mais remotas se tornarão
obedientes aos seus amigos portugueses. Diante de sua coragem sobre-humana, do
Oriente ao Ocidente ou do Norte ao Sul, nunca se verá valor tão forte.
O pai dos deuses manda, finalmente, que Mercúrio desça à Terra e prepare um
porto tranquilo onde a frota pudesse ancorar em paz.
19
M
9. O CAPITÃO SONHA
eio caminho a noite tinha andado,
E as estrelas no céu, com a luz alheia,
Tinham o largo mundo alumiado;
E só com o sono a gente se recreia.
O capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite, que receia,
Breve repouso então aos olhos dava;
A outra gente a quartos vigiava:
Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo: – Foge, foge, Lusitano,
Da cilada que o rei malvado tece,
Por te trazer ao fim extremo dano.
Foge, que o vento e o Céu te favorece,
Sereno o tempo tens e o Oceano,
E outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde podes seguro agasalhar-te.
Mercúrio levou para Melinde a deusa Fama, encarregada de espalhar o raro valor
do nome lusitano, de tal modo que todos, nesse outro reino, já se consumiam de
curiosidade para conhecer os corajosos portugueses. Ao mesmo tempo, quis o deus
com asas nos pés que os sonhos mostrassem ao capitão a existência de uma terra
africana na qual seria bem recebido.
Assim que Gama adormeceu, Mercúrio lhe surgiu, dizendo: – Fuja, lusitano, da
emboscada que o rei de Mombaça urde, fuja, que o vento e o céu o favorecem, fuja de
uma vez desse povo! Siga ao longo da costa e encontrará outra terra onde haverá de
conhecer um rei amigo. Lá, quase junto de onde o Sol, ardendo, iguala a duração do
dia e da noite, achará o guia certo e sábio para a Índia.
Ao acordar, o comandante viu um raio súbito de luz rasgar a treva, fato que
percebeu como um sinal tão favorável quanto a mensagem do sonho. Mandou então
que os portugueses se preparassem logo para partir. Gritava para seus homens: –
Deem velasao largo vento, que o céu nos favorece, e é Deus quem o envia!
Os marinheiros, em grande azáfama, levantaram as âncoras ainda sem notar que
mouros escondidos pelas sombras tentavam cortar as amarras para que os barcos
fossem arrastados até a costa e destruídos. No entanto, perceberam a tempo mais essa
tentativa hostil e, remando a toda velocidade, fugiram até um ponto em que
pudessem, com algum sossego, içar as velas.
Já navegavam há mais de um dia quando viram, ao longe, dois navios de velas
20
mouras se aproximando. Um conseguiu escapar, o outro foi aprisionado. Entre os
tripulantes, nenhum sabia a direção da Índia. Em compensação, houve um que falou
de Melinde, onde existia um rei bom, sincero e humano. Os elogios pareceram a
Vasco da Gama uma confirmação do que antes anunciara Mercúrio. Decidiu seguir
seu sonho e a indicação do sarraceno.
21
E
10. EM MELINDE
nche-se toda a praia melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira e mais humana
Que toda a doutra terra atrás deixada.
Surge diante a frota lusitana,
Pega no fundo a âncora pesada.
Mandam fora um dos mouros que tomaram,
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.
O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza,
Quanto a gente fortíssima merece;
E, com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos enobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem,
Para que de seus reinos se servissem.
Quando a frota chegou a Melinde, encontrou muita simpatia entre a gente do
lugar, sendo recebida com bandeiras, estandartes e a música de tambores. Um dos
mouros aprisionados foi solto e enviado até o rei. Este, homem realmente sincero,
retribuiu o gesto com o oferecimento de carneiros, galinhas e frutas nativas,
convidando os portugueses ao desembarque.
Um emissário especialmente escolhido por Vasco da Gama foi acolhido na corte
melindana, levando como oferendas um precioso tecido vermelho e um coral fino e
raro, e pôde explicar que os portugueses não eram bandidos que pilhassem os portos
por onde passavam, mas navegadores em busca da Índia, a mando de seu rei.
Queixou-se da hostilidade dos outros povos da costa africana, mas afirmou plena
confiança no rei de Melinde, de quem esperava ajuda, dizendo que os tripulantes só
não desembarcavam por obediência ao rei português, que lhes ordenara não
abandonar a frota antes que chegassem ao seu destino.
Respondeu-lhe o rei africano: – Não sintam por nós nenhum temor nem alimentem
a nosso respeito nenhuma suspeita. Tenho muito em conta a obediência que prestam
ao seu rei. Irei eu visitar sua armada, que já desejo ver há muitos dias. Aqui
conseguirão não só um piloto, mas ainda munições e mantimentos.
De volta à nau de Vasco da Gama, o emissário transmitiu a mensagem do rei,
deixando os portugueses muito satisfeitos e confiantes, a tal ponto que passaram a
noite festejando com fogos de artifício, troar de canhões e a música alegre de seus
22
instrumentos.
Da praia, respondiam os melindanos com seus fogos, os seus gritos de entusiasmo
e os dos portugueses se confundindo. Na manhã seguinte, um batel coberto com um
toldo de seda multicolorida levava o governante mouro e seu séquito até o encontro
com os lusitanos. Usava o rei um turbante também de seda, enfeitado de ouro, e sua
adaga bem lavrada e reluzente à cintura.
Para recepcioná-lo, Vasco da Gama vestiu-se à moda francesa, um traje feito com
cetim de Veneza e com botões de ouro, também portando sua espada. Partiu ao
encontro do rei em um barco, ao som de trombetas. Assim que o rei de Melinde
entrou no batel português, foi recebido com extrema cortesia. Voltou a oferecer ao
capitão tudo o que quisesse de seu reino. Também contou já conhecer a fama lusitana,
cujos feitos corriam por toda a África.
Vasco da Gama agradeceu ao único governante que mostrara piedade por sua
gente, cansada das adversidades e da luta violenta contra os ventos e o mar. Rogou a
Deus que lhe pagasse o que não podia, afirmando que, em compensação, a fama do
rei de Melinde viveria por todos os lugares por onde ele, Gama, ainda haveria de
passar.
Os batéis rodearam todas as naus para que o mouro satisfizesse sua curiosidade
sobre elas. O rei, então, pediu que seu anfitrião ancorasse o barco. Queria aproveitar o
mar calmo e sem vento para conhecer mais sobre a terra e os antepassados do
português.
23
P
11. VASCO DA GAMA CONTA A HISTÓRIA DE PORTUGAL
ronto estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria;
Quando, depois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto assim dizia:
– Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Que outrem possa louvar esforço alheio,
Coisa é que se costuma e se deseja,
Mas louvar os meus próprios, receio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.
Atendendo ao pedido de seu novo e generoso amigo, o chefe da pequena armada
iniciou seu relato, descrevendo a Europa e a situação de Portugal, com todo o mar à
sua frente. Contou dos povos que ali viviam e do pastor Viriato, que enfrentou os
romanos quando aquele império dominou toda a península ibérica.
Depois falou do início do reino luso, desde o momento em que o nobre dom
Henrique recebeu, além da mão de uma princesa castelhana, as terras do Condado
Portucalense. Eram prêmios do rei de Castela pela bravura com que combateu
durante a cruzada pela reconquista da Terra Santa.
Disse como o filho de dom Henrique e de dona Teresa, Afonso Henriques,
guerreou com a própria mãe, que, ao ficar viúva, se casou com outro e quis tomar
para ela e o marido as terras herdadas pelo filho. O novo rei de Castela mandou
libertar a prima, dona Teresa, que Afonso aprisionara, cercando-o na cidade de
Guimarães. Prometendo render-se, ele enviou um emissário, Egas Moniz, pedir ao rei
espanhol que o cerco fosse levantado. No entanto, não se entregou como garantira e
continuou combatendo.
Egas Moniz reuniu sua família e se pôs voluntariamente nas mãos do inimigo em
pagamento à palavra não cumprida de seu senhor. O gesto de grande dignidade
mereceu a compaixão do rei castelhano. Depois disso, dom Afonso expulsou os
mouros de Lisboa e se fez rei de Portugal.
Ali, sobre as águas do mar, diante da costa de Melinde, Vasco da Gama
24
correspondia ao interesse do rei africano, contando os fatos mais relevantes da
história de seu povo, falando da contínua luta contra os mouros, levada pelos
sucessores de Afonso Henriques. Um deles, dom Dinis, distinguiu-se também como
poeta e criou a universidade de Coimbra.
Igualmente inimigos dos mouros, os castelhanos se tornariam aliados dos
portugueses, seus antigos vassalos e partidários da mesma fé. O neto de dom Dinis,
de nome Pedro, se apaixonaria por uma dama castelhana, Inês de Castro, que não
agradava nem à corte nem ao povo português. Esse episódio de amor infeliz foi
ouvido com grande expectativa por todo o séquito melindano.
25
E
12. A TRISTE MENÇÃO A INÊS DE CASTRO
stavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxutos,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
(...)
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos;
No futuro castigo não cuidosos.
Nos campos junto ao rio Mondego, Inês passava o tempo murmurando para os
montes e as plantas o nome de seu amado Pedro. Ele também pensava apenas nela,
tendo recusado casamentos com outras damas e até com princesas, o que não foi visto
com bons olhos nem pelo rei nem pelo povo.
Dom Afonso IV, pensando nasconveniências do reino, decidiu tirar a vida de
Inês, acreditando que, com o sangue, apagaria o fogo do amor. Condenada, a bela
castelhana suplicou ao rei, em nome dos filhos que tivera com Pedro:
– Apelo a seu coração pelas crianças, pois até as feras e as aves de rapina têm
piedade. Quem, entre os mouros, espalhou a morte com ferro e fogo, também deve
saber dar a vida com clemência a quem nenhum crime cometeu. Ponha-me entre
leões e tigres para que neles possa achar a piedade que não encontro entre os corações
humanos. Lá, com o amor por quem fui condenada a morrer, criarei seus netos,
consolo desta triste mãe.
Comovido, o rei chegou a pensar em poupar a amante do filho, mas a intolerância
de sua corte não permitiu. Ali mesmo, Inês de Castro foi sacrificada pelas espadas de
seus verdugos.
Quando Pedro subiu ao trono, conseguiu que o rei de Castela, também chamado
Pedro, lhe entregasse os assassinos, que para lá tinham fugido, e os mandou executar.
Por muito tempo, a mãe e amante infeliz, tornada rainha depois de morta, foi chorada
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pelas ninfas do rio Mondego, que transformaram suas lágrimas em uma fonte que
recebeu o nome de Amores de Inês.
27
M
13. A DINASTIA DE AVIS
as nunca foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Álvares: mas antes,
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Àquelas duvidosas gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão na espada, irado e não facundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo:
– Como?! Da gente ilustre portuguesa
Há de haver quem refuse o pátrio Marte?
Como?! Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda parte,
Há de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito,
O próprio Reino queira ver sujeito?
O rei de Melinde logo saberia, pela voz de Vasco da Gama, de outro momento
crucial para o reino lusitano. O filho de dom Pedro, o indolente e fraco dom
Fernando, uniu-se a dona Leonor Telles, já casada com um cortesão e que teve o
casamento anulado para tornar-se rainha. Portugal estava de novo em guerra contra
Castela. Para pôr fim a essa situação, que empobrecia o país, a filha única do casal,
Beatriz, foi dada em casamento ao rei inimigo. Ao morrer dom Fernando, Leonor
assumiu a regência. Como Beatriz, ainda muito jovem, não tivesse filhos que
pudessem herdar a coroa, Portugal deveria incorporar-se ao território espanhol.
 
28
Representação medieval da batalha de Aljubarrota (autor desconhecido)
Foi quando revelou-se um filho bastardo de Dom Pedro, dom João, mestre de
Avis. Coroado como dom João I, lutou junto de parte da nobreza lusitana contra os
que não tinham se passado para o outro lado e aderido ao exército vizinho. Em seu
nome, bateu-se o herói dom Nuno Álvares, que, em Aljubarrota, conseguiu derrotar
as forças castelhanas, muito superiores no número de guerreiros.
A vitória garante a independência de Portugal e também muda o foco de seu
interesse. É hora de se abrir para o mar, é hora de seus navegantes se lançarem ao
vasto oceano. O bisneto de Dom João de Avis, dom João II, é o primeiro a mandar
dois exploradores à Índia, que, no entanto, jamais regressam. Seu sucessor, dom
Manuel, tem então um sonho com a Índia, sonho que se liga à grande aventura de
Vasco da Gama.
29
E
14. O SONHO DE DOM MANUEL
stando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são,
Revolvendo contínuo no conceito
De seu ofício e sangue a obrigação
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece.
Aqui se lhe apresenta que subia
Tão alto, que tocava a prima Esfera,
Donde diante vários mundos via,
Nações de muita gente, estranha e fera:
E lá tão bem junto donde nasce o dia,
Depois que os olhos longos estendera,
Viu de antigos, longínquos e altos montes
Nascerem duas claras e altas fontes.
Chamado D. Manuel, o Venturoso, o herdeiro de D. João II sonhou ter se
transportado a um lugar no céu de onde descortinava outras terras. Assim, próximo da
região onde nasce o dia, no oriente, viu montanhas muito altas e duas fontes nelas
brotando. Das fontes, surgiram dois velhos, de barbas e cabelos brancos que se
dirigiram ao rei. Um deles disse:
– Senhor, a quem está destinada grande parte do mundo, já é tempo de nos cobrar
altos tributos. Sou o Ganges e meu companheiro é o Indo, os dois grandes rios
hindus. Nós lhe custaremos uma dura guerra e duros trabalhos, mas alcançará vitórias
jamais vistas e dominará os povos que vivem em nossas margens.
Ao acordar, o rei chamou os conselheiros e lhes expôs o sonho. Decidiram juntos
ser tempo de partir à procura da Índia, usando os conhecimentos já conseguidos com
as expedições anteriores. Faltava apenas designar um comandante para a nova
missão.
É Vasco da Gama quem o rei escolhe, deferência que o comandante agradece,
dizendo que tal aventura, mesmo que conduzida a ferro e fogo, será tão leve e tão
pouca, já que diante de tamanha honra, e para o bem de Sua Majestade, passava a
própria vida a ser coisa tão pequena.
30
P
15. O COMEÇO DE TUDO
elas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes.
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do mundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeiam os aéreos estandartes.
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.
Depois de aparelhados, desta sorte,
De quanto tal viagem pede e manda.
Aparelhamos a alma para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o sumo Poder, que a eterna Corte
Sustenta só com a vista veneranda,
Imploramos favor que nos guiasse
E que nos começos aspirasse.
Convocando o irmão Paulo da Gama, como ele desejoso de honra e fama, e
também o hábil navegador Nicolau Coelho, para os ajudar com os conselhos de sua
experiência, Vasco da Gama preparou-se para partir. No dia escolhido, chegaram à
praia do Restelo, diante do templo de Belém, os soldados que embarcariam,
prometendo transformar-se nos novos argonautas, os heróis gregos que tantas
histórias e triunfos trouxeram
do mar.
Com a consciência de que iriam enfrentar a morte, já haviam pedido a proteção
divina. Afinal, ainda mais sublime que viver é a ventura de navegar. Toda a gente de
Lisboa acorria à praia, acompanhando uma procissão que congregava cerca de mil
religiosos em penitente oração.
Choravam as mulheres – mães, esposas e irmãs –, com medo de tão cedo não
rever os que partiam. Velhos e meninos as seguiam. Até os montes pareciam
responder ao sentimento de tamanha piedade. A areia branca se percebia molhada por
tantas lágrimas de adeus.
Para evitar os últimos gestos de despedida de seus homens, pois não desejava que
se entristecessem nem que sua determinação fosse abalada, ordenou o comandante
que embarcassem sem nenhuma demora.
31
–Ó
16. AS DURAS PALAVRAS DO VELHO DO RESTELO
glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Com uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
(...)
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo de algum nome proeminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhes fará tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Vasco da Gama não ocultou ao rei de Melinde que havia quem fosse contrário
àquela empresa. Contou como um velho se distinguiu da multidão do Restelo, com
uma voz tão alta e clara que mesmo do mar era ouvida. Clamava ele contra o desejo
de glória presente nos marinheiros, que entendia apenas como vaidade e cobiça. No
rastro de tal temeridade só via o perigo e a morte à espreita. Prometendo novos reinos
e minas de ouro, a fama trazia, junto, enormes desastres.
– Tanta valentia e desprezo pela vida – ele gritava – não faz com queos homens
vejam que já têm suas cidades e suas terras para cuidar e Cristo para ser louvado?
Não basta ter nos sarracenos inimigos bem próximos para buscar outros tão longe?
Maldito seja o primeiro homem que fincou uma vela em um tronco e nele saiu pelo
mar!
Com essas palavras ainda ressoando em seus ouvidos, partiram os portugueses, os
olhos postos no que ficava para trás: o Tejo, a cidade de Lisboa, a serra de Sintra.
32
J
17. NAVEGANDO POR ROTAS CONHECIDAS E OUTRAS
IGNORADAS
á descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Polo fixo, onde inda não se sabe
Que outra terra comece ou mar acabe.
(...)
Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas.
Relâmpagos que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.
Lá se foram as quatro caravelas navegando rumo ao sul. Vasco da Gama narrava
para o ouvinte ilustre como sua pequena armada percorreu uma rota conhecida pelo
esforço dos navegantes, que, desde o tempo do infante dom Henrique, um dos filhos
de dom João I, haviam se posto ao mar em nome do reino português.
Assim, os tripulantes, sob seu comando, passaram pela ilha da Madeira, pelas
Canárias e Cabo Verde, bem como pela foz do rio Níger e pela ilha de São Tomé.
Atravessaram a linha do equador, considerada o meio do mundo, estiveram no reino
já cristianizado do Congo.
Então, começaram a descobrir coisas que ignoravam: estrelas como o Cruzeiro do
Sul, fortíssimas tempestades, trombas marinhas. Até que, desembarcando em um
lugar do qual não tinham referência, encontraram os navegantes um homem alto e
negro com quem tentaram se entender, mas que não conhecia nenhuma das línguas
que os viajantes falavam. Deram-lhe presentes, e logo outros nativos acorreram para
conhecê-los. Um dos marinheiros acompanhou-os à sua aldeia, mas voltou bem
depressa, perseguido por uma turba pouco amigável.
Trataram de sair dali, mesmo sabendo que estavam muito longe da Índia. Cinco
dias mais tarde, com ventos favoráveis, mas seguindo por águas desconhecidas,
foram surpreendidos em plena noite por uma nuvem carregada e ameaçadora que bem
33
rápido tomou conta de todo o céu.
34
T
18. O GIGANTE ADAMASTOR SE REVELA
ão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo
(...)
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida
(...)
E disse: “Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes coisas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas
(...)
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento.
(...)
Não bastasse ter tal nuvem enchido de medo os corações dos marinheiros
portugueses, surgiu no ar um gigante de aspecto zangado, barbudo, os olhos
encovados e os cabelos desgrenhados e cheios de terra. Com uma voz profunda,
dirigiu-se àquela gente que logo chamou de ousada, por nunca repousar de tantos
trabalhos e guerras, além de atrever-se a navegar em seu mar:
– Se querem desvendar os segredos do oceano, saibam dos inúmeros castigos que
os aguardam. As naus que virão fazer de novo esta viagem terão neste lugar um
inimigo, sempre à espera, com ventos furiosos e terríveis tormentas.
Falou também da punição reservada a Bartolomeu Dias, o primeiro que passou
pelo lugar: a mesma morte reservada à tripulação de tantos navios que ali afundariam.
Revelou, profeticamente, outros nomes importantes de portugueses que haveriam de
perder o navio e a vida, entre eles o do primeiro vice-rei da Índia.
Vasco da Gama, vencendo o horror que o dominava, quis saber o nome do
gigante.
– Sou aquele grande e oculto cabo que vocês chamam das Tormentas, e marco,
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neste promontório, o final da costa africana, apontando para o polo antártico. Meu
nome é Adamastor, um dos titãs, filhos da Terra, que lutou contra Júpiter e os outros
deuses, incumbido de conquistar os mares, procurando derrotar Netuno por amor à
ninfa Tétis.
Prosseguiu o gigante dizendo que a ninfa, tentando livrar o oceano da guerra,
prometeu entregar-se a ele. Assim, foi procurá-la, vendo-a surgir nua e ao longe.
Correu para ela, abraçou-a, beijou-lhe os olhos, o rosto, os cabelos. Foi quando
descobriu o engano: não era Tétis quem tinha em seus braços e sim um rochedo
selvagem.
Humilhado, recolheu-se a um lugar onde se escondeu para chorar sua desilusão.
Enquanto isso, seus irmãos foram derrotados na guerra que levavam contra os deuses,
vários deles sendo aprisionados debaixo de montanhas. Ele também teve o corpo
transformado em terra e os ossos em rocha, condenado a se debruçar sobre as ondas
que tanto lhe lembravam Tétis.
Com um choro medonho, o gigante desapareceu diante dos olhos dos estupefatos
portugueses. A nuvem se desfez. O mar bramiu. Erguendo as mãos para o céu, o
capitão pediu a Deus que afastasse de seus homens os desastres anunciados por
Adamastor.
A prece foi ouvida. Pela manhã, o sol revelou o promontório até então oculto em
que Adamastor se transformara.
36
D
19. A VIAGEM PROSSEGUE
aqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de largas esperanças.
Com o mar um tempo andamos em porfias,
Que, como tudo nele são mudanças,
Corrente nele achamos tão passante,
Que passar não deixava por diante.
(...)
Ora imagina agora quão coitados
Andaríamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos,
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus tão naturais, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade!
Tendo deixado o Atlântico e já navegando pelo oceano Índico de novo rumo ao
equador, contornando o sul da África entre tormentas e bonanças, os portugueses
viram-se apanhados por uma corrente que os arrastou para trás, mas foram salvos por
uma mudança inesperada da direção dos ventos.
Novamente ancorando e desembarcando no continente, foram muito bem
recebidos pelos nativos, com os quais trocaram presentes, mas sem obter nenhuma
informação sobre a Índia. Seguiram em frente, sentindo o cansaço da longa viagem,
também agravada pela fome. Se fossem de outra índole os portugueses, teriam se
amotinado ou se transformado em piratas e salteadores, mas souberam suportar todas
as provações.
De novo ameaçados por correntes, deixaram a costa e tomaram o mar alto. Ao se
reaproximarem do litoral, descobriram um porto de onde saíam e entravam barcos a
vela. Aquela gente que sabia navegar também tinha notícias do país dos hindus.
Eram negros, vestiam-se com panos de algodão e sabiam um pouco de árabe.
Disseram que costumavam receber a visita de grandes barcos vindos do Oriente.
Contente com as novidades, Vasco da Gama chamou o lugar de Terra dos Bons
Sinais.
No entanto, assim que se fizeram de novo à água, começaram os portugueses a
perder muitos marinheiros. Uma doença, o escorbuto, alastrou-se entre a tripulação,
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inchando e apodrecendo-lhe as gengivas, empestando o ar com o mau cheiro. O mar
acolheu os ossos daqueles companheiros destemidos e leais, impedidos de continuar
navegando.
Foi quando, pouco mais tarde, chegaram a Moçambique, onde os esperavam
falsidade e vileza semelhantes às que encontrariam em Mombaça. Vasco da Gama, de
novo agradecendo o tratamento gentil e brando recebido em Melinde, encerrou sua
longa narrativa.
Nos dias seguintes, continuou a recepção dos melindanos aos navegantes saídos de
Lisboa. Jogos, danças, banquetes, pescarias foram organizados para entretê-los.
Tendo a declaração do rei de que se tornara um fiel aliado de Dom Manuele de seus
súditos, Vasco da Gama mandou de novo abrir aos ventos as velas das quatro naus.
Um piloto embarcado em Melinde indicava, desta vez, o caminho certo.
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N
20. BACO PROCURA NETUNO
o mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá onde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde,
Netuno mora e moram as jucundas
Nereidas e outros deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas úmidas deidades.
(...)
– Ó Netuno, lhe disse, não te espantes
De Baco nos teus reinos receberes,
Porque também com os grandes e possantes
Mostra a Fortuna injusta seus poderes.
Manda chamar os Deuses do mar, antes
Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres.
Verão das desventuras grandes modos;
Ouçam todos o mal que toca a todos.
Ardendo de raiva, Baco via o Olimpo comprometido com a causa dos portugueses.
Por isso, desceu ao fundo do mar, com a intenção de convencer Netuno a aderir à sua
luta.
Junto às cavernas submarinas – de onde brotam ondas violentas quando o vento
agita as águas –, sobre areias de prata, situa-se o palácio de Netuno, claro e
transparente como se fosse construído de cristal ou diamante.
O deus da bebida e do teatro passou pelas portas de ouro que, em belos relevos,
reproduziam cenas coloridas, como o caos anterior à criação do mundo, a sua
organização nos quatro elementos e o famoso combate entre os deuses e os titãs.
Baco, diante de Netuno e das alegres nereidas, pediu para que ninguém se
espantasse com sua visita e solicitou a Netuno que convocasse os outros deuses
marinhos, para que, diante de todos, pudesse revelar a razão da visita.
Tritão foi encarregado do convite, o que fez soprando uma grande concha que
imediatamente ecoou por todo o mar, logo trazendo ao palácio os deuses que
ouviriam de Baco sua queixa contra os portugueses:
– Dirijo-me aos senhores marinhos, que sempre refrearam a gente da terra para
não passar de seus limites, pois demasiadas insolências vêm cometendo os que levam
o nome de meu vassalo Luso. Não só querem roubar-me a honra de ter conquistado o
Oriente, como vêm devassando seu reino e violando suas leis. Temo que os vis
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portugueses venham a transformar-se em deuses, e nós, em humanos. Os moradores
do Olimpo parecem cegos para o perigo; portanto, apelo agora aos únicos capazes de
pôr fim a tanta soberba.
Em seguida, se pôs a chorar, enquanto os deuses se mostravam tomados pela
cólera. Netuno mandou que Éolo, deus dos ventos, soprasse com violência sobre o
mar. Proteu, guardião dos rebanhos de Netuno e detentor do conhecimento do futuro,
quis dizer que qualquer providência contra a frota portuguesa seria inútil, mas Tétis,
uma das duas esposas de Netuno, o fez calar-se, indignada.
Do fundo das cavernas, Éolo produziu ventos tão impetuosos e violentos em
direção à frota de Vasco da Gama que, pelo caminho, mesmo em terra, tudo ia sendo
derrubado: as torres, os montes e até as casas.
40
E
21. O CASO DOS DOZE DA INGLATERRA
ntre as damas gentis da corte inglesa
E nobres cortesãos, acaso um dia
Se levantou discórdia, em ira acesa
(ou foi opinião ou foi porfia).
Os cortesãos, a quem tão pouco pesa
Soltar palavras graves de ousadia,
Dizem que provarão que honras e famas
Em tais damas não há para ser damas;
E que se houver alguém, com lança e espada,
Que queira sustentar a parte sua,
Que eles, em campo raso ou estacada,
Lhe darão feia infâmia ou morte crua.
A feminil fraqueza, pouco usada,
Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
De forças naturais convenientes,
Socorro pede a amigos e parentes.
Sem imaginar o que começava a se passar lá no fundo, julgando que navegavam
seguros em um momento de calmaria, agora confiantes no novo piloto, os
marinheiros decidiram contar histórias para passar o tempo. Um deles, de nome
Veloso, se pôs a narrar uma proeza de outros portugueses, conhecidos como os doze
da Inglaterra e que viveram na época de dom João I.
– Doze damas inglesas foram acusadas por uma dúzia de cavaleiros ingleses, por
suas falsas juras de amor, de não serem dignas da condição de damas. Eles também
prometeram vencer em combate qualquer fidalgo que se propusesse a defendê-las.
Nenhum parente ou amigo atreveu-se a socorrê-las. Foi então que as senhoras
suplicaram o auxílio de um duque inglês que lutara contra Castela ao lado dos
lusitanos. Então, elas escreveram a doze portugueses, por ele recomendados.
Veloso prosseguiu:
– Os doze cavaleiros prepararam-se para partir, e onze deles embarcaram na nau
que dom João mandara preparar. O último, o Magriço, decidiu seguir por terra,
desejoso de conhecer outras gentes e seus costumes, passando por Leão, Castela e
Navarra, depois pela França e por Flandres. Os outros desembarcaram bem antes e
seguiram para Londres. No dia do combate, onze damas vestiram-se com seus trajes e
joias mais vistosos, menos uma, aquela cuja honra dependia de Magriço. Sem
defensor, preferiu usar luto. Mas, quando um novo cavaleiro, no último momento,
adentrou a arena, correu para se trocar e exibir seu traje bordado com fios de ouro.
41
Com a presença do Magriço, os portugueses lutaram, derrotaram os ingleses e
restabeleceram a honra de suas protegidas.
Ao final da história, antes que Veloso emendasse outra aventura de um dos doze
cavaleiros portugueses, dessa vez na Alemanha, o sossego dos navegantes terminou.
Um apito do mestre do navio avisava-os de uma mudança anunciada pelo ar. O vento,
aumentando e esfriando, aconselhava que as velas fossem recolhidas.
42
M
22. A GRANDE TEMPESTADE
as, neste passo, assim prontos estando,
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca: acordam, despertando,
Os marinheiros duma e doutra banda.
E, porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda.
– Alerta, disse, estai, que o vento cresce
Daquela nuvem negra que aparece.
(...)
O céu fere com gritos nisto a gente,
Com um súbito temor e desacordo,
Que, no romper a vela, a nau pendente
Toma grão suma de água pelo bordo.
– Alija (disse o mestre rijamente),
Alija tudo ao mar, não falte acordo!
Vão outros dar à bomba, não cessando;
À bomba, que nos imos alagando!
Rapidamente, iniciou-se uma tempestade, maior que qualquer uma que tivessem
enfrentado. As grossas velas em um instante transformaram-se em trapos e a água
invadiu a própria nau capitânia. As ondas provocadas por Netuno pareciam ora erguer
as embarcações até as nuvens, ora querer levá-las para a profundeza do mar. Raios
iluminavam a noite tão feia, enquanto os ventos sopravam de todos os lados.
Vasco da Gama não via outra alternativa, a não ser rezar, suplicando a Deus que,
depois de tantos perigos e tamanho sofrimento, não abandonasse os marinheiros que
navegavam a seu serviço.
Mais uma vez Vênus interveio, surgindo como estrela no céu para trazer ânimo
aos seus protegidos. Logo desceu ao mar, reunindo suas amigas ninfas, que sabiam
como provocar o desejo dos ventos. Diante da visão das formosas divindades,
passaram os ventos a se entregar ao seu comando. Vênus, garantindo favorecê-los em
seus amores, deles extraiu a promessa de que seriam leais até o final da viagem dos
portugueses.
Quando amanheceu, o piloto vindo de Melinde anunciou que a terra que
avistavam era Calicute, na Índia, o país que tanto buscavam.
43
M
Chegada de Vasco da Gama
23. O MOURO QUE FALAVA CASTELHANO
as com buscar, com seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas;
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado com árduo sofrimento;
(...)
Já se viam chegados junto à terra,
Que desejada já de tantos fora,
Que entre as correntes índicas se encerra
E o Ganges, que no Céu terreno mora.
Ora sus, gente forte, que na guerra
Quereis levar a palma vencedora:
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundantes!
O lugar tão procurado achava-se à frente dos portugueses, tão poucos, mas donos
de tanta força, que, à custa de vários sacrifícios, vinhamengrandecer a cristandade
com a modéstia inspirada no próprio Cristo.
Mostravam-se bem mais valorosos do que os outros
povos europeus, incapazes de libertar Jerusalém do
jugo sarraceno.2
Barcos de pescadores indicaram o caminho até
Calicute, capital do reino malabar, ali, já depois do
Indo, mas antes do Ganges, terra onde conviviam
maometanos junto de adoradores de ídolos e até de
alguns animais. Um português foi logo enviado à
procura do rei.
Entre a multidão que acorreu para vê-lo,
encontrava-se um maometano que, conhecendo a
língua espanhola, perguntou-lhe o que o trouxera para
tão longe da pátria portuguesa. O mouro,
identificando-se pelo nome Monçaide, informou, em
seguida, que o rei de Malabar estava fora da cidade,
oferecendo-lhe pernoite em sua casa.
44
à Índia.2 No dia seguinte, Monçaide acompanhou o
emissário de Gama à nau capitânia e, ainda admirado
pela longa viagem dos lusitanos, contou o que sabia da Índia, então dividida em
vários reinos, mas que no passado tivera um só governante, conhecido como Saramá
Perimal, convertido à religião muçulmana. Decidindo viver em Meca, repartiu com
seus herdeiros todas as suas terras. A um jovem de quem gostava muito, deu a rica
cidade de Calicute. O samorim, que ali mandava, era seu descendente.
Monçaide explicou a divisão dos hindus em castas: a dos guerreiros – os naires; a
dos menos dignos – os poleás, que não podiam ser tocados pelos outros, tendo os
filhos obrigados a seguir a profissão dos pais; e a dos sacerdotes – os brâmanes, que
não comiam carne nem matavam nenhum animal, mas, livres nos costumes sexuais,
partilhavam suas mulheres entre os homens da mesma casta, sem mostrar nenhum
tipo de ciúme. Também falou da grande riqueza de Malabar, devida ao comércio com
a China e com o Nilo.
2 Ernesto Casanova (1845 – ano de morte desconhecido), Library of Congress (Ilustração para Os Lusíadas,
1880).
45
N
24. VISITA AO SAMORIM
a praia, um regedor do Reino estava
Que, na sua língua, catual se chama,
Rodeado de Naires, que esperava
Com desusada festa o nobre Gama.
Já na terra, nos braços o levava
E num portátil leito uma rica cama
Lhe oferece em que vá, costume usado,
Que nos ombros dos homens é levado.
Destarte o Malabar, destarte o Luso,
Caminham lá para onde o Rei o espera.
Os outros Portugueses vão ao uso
Que infantaria segue, esquadra fera.
O povo que concorre vai confuso
De ver a gente estranha, e bem quisera
Perguntar; mas, no tempo, já passado,
Na Torre de Babel lhe foi vedado.
De volta à cidade, o rei quis conhecer os recém-chegados e mandou buscar o
capitão da armada, permitindo também o desembarque de mais alguns portugueses.
Em terra, foram recebidos por uma comitiva de naires, comandados por uma espécie
de ministro que ostentava o título de catual.
Ao lado do catual, Vasco da Gama viu-se conduzido ao palácio em uma liteira
levada por braços e ombros hindus. Os demais portugueses seguiam a pé diante da
multidão curiosa por ver gente tão estranha pelas ruas da cidade. Monçaide, entre
Gama e o ministro indiano, era o intérprete do diálogo que travavam.
Convidados a conhecer um templo no caminho, os lusitanos se surpreenderam
com as imagens com as quais os hindus representavam seus deuses: uma tinha
chifres, outra apresentava vários braços, uma terceira exibia uma cabeça de cão.
Para chegar ao palácio, passaram por um jardim formoso e perfumado, e puderam
ver esculpidas nos seus portais cenas da história da Índia, entre elas a conquista da
região pelo exército de Baco. Atravessando várias salas, chegaram ao salão onde
eram aguardados pelo samorim, vestido com um tecido da cor do ouro e com gemas
preciosas cingindo sua cabeça. A ele se dirigiu o capitão:
– Venho das terras que são noite quando aqui é dia, enviado por um grande rei
que, informado de seu poder na Índia, vem propor sua amizade. Caso Vossa
Majestade consinta no comércio entre os dois reinos, glória e abundância resultarão
para ambos. Também nas guerras, meu reino está pronto a ajudar o reino irmão, com
46
gente, armas e navios.
Respondeu o samorim que era uma honra receber embaixadores de uma nação tão
remota, mas que deveria recorrer a seu conselho para qualquer decisão sobre a
proposta de Gama. Convidou, contudo, a comitiva portuguesa ao descanso,
oferecendo-lhe aposentos no palácio e também festas e outras diversões. Em seguida,
encarregou o catual de recolher informações sobre os costumes e a gente portuguesa.
47
P
25. AS INVESTIGAÇÕES DO CATUAL
elo que vê pergunta; mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente
E que aquele deleite que tanto ama
A seita epicureia experimente.
Dos espumantes vasos se derrama
O licor que Noé mostrara à gente;
Mas comer o gentio não pretende,
Que a seita que seguia lho defende.
A trombeta, que, em paz, no pensamento
Imagem faz de guerra, rompe os ares;
Como fogo o diabólico instrumento
Se faz ouvir no fundo lá dos mares.
Todo o gentio nota; mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.
Logo pela manhã, o catual chamou Monçaide para lhe contar tudo o que pudesse
sobre os portugueses. Assim falou o mouro:
– Vivem na península próxima à minha terra e são seguidores de um profeta
nascido do seio de uma virgem, gerado por um espírito divino. São guerreiros
destemidos que expulsaram os de minha fé de seus campos e, não contentes, nos
tomaram cidades e fortalezas em terras africanas. Também guerrearam os povos da
Espanha, tendo sido poucas vezes batidos. Vêm também cortando os mares
tempestuosos e, se quiser saber mais, pode informar-se com eles próprios, pois são
gente verdadeira. Poderá também conhecer suas naus e suas
armas.
Aceitando a sugestão, o catual partiu com Monçaide e um grupo de naires para
examinar as caravelas. Foram recebidos por Paulo da Gama, o irmão de Vasco.
Interessou-se o malabar, já a bordo, pela presença de ricas pinturas em tecidos de
seda que reproduziam cenas de guerra. Antes de explicá-las, Paulo da Gama pediu
aos hóspedes que se assentassem e se servissem de vinho. Os naires aceitaram beber,
mas recusaram a comida, não permitida por seus costumes.
À medida que o português explicava as imagens, o catual se mostrava cada vez
mais interessado. Uma delas, especialmente, chamou sua atenção. Tratava-se da
representação de um velho vestido à moda grega e com um ramo na mão, logo
identificado pelo irmão do comandante.
48
– É Luso, o companheiro de Baco, de quem descendem os habitantes da Lusitânia,
pois ele deu o nome à nossa terra.
Várias personagens ilustres da história portuguesa foram também apresentadas aos
visitantes. Provocou curiosidade um pequeno grupo enfrentando uma multidão de
inimigos. Representavam os dezessete portugueses cercados numa batalha por
quatrocentos castelhanos e que lutaram com tanta ferocidade que fizeram fugir os
agressores. Assim passou-se todo o dia. Ao anoitecer, retiraram-se os nobres hindus.
49
E
26. A INTERFERÊNCIA DOS ADIVINHOS
ntretanto, os arúspices famosos
Na falsa opinião, que em sacrifícios
Anteveem sempre os casos duvidosos
Por sinais diabólicos e indícios,
Mandados do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam a arte e seus ofícios,
Sobre esta vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da ignota Espanha.
Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro,
De como a nova gente lhe seria
Jugo perpétuo, eterno cativeiro,
Destruição de gente e de valia.
Vai-se espantado o atônito agoureiro
Dizer ao rei (segundo o que entendia)
Os sinais temerosos que alcançara
Nas entranhas das vítimas que olhara.
O samorim, enquanto isso, querendo desvendar as intenções dos portugueses,
recorreu aos adivinhos que perscrutavam o futuro nas entranhas de animais
sacrificados para essa finalidade. Um deles foi persuadido por um demônio que,
manipulando os sinais, fez com que o homem se convencesse de que os portugueses
escravizariam Calicute, apossando-se de sua riqueza. O mago correu para avisar o rei
do mau presságio.
Ao mesmo tempo, Baco, tomando a forma do profeta Maomé, surgiu no sonho de
um sacerdotemuçulmano, prevenindo-o contra aqueles que chegaram pelo mar.
Pensando ter sido um simples sonho, o homem voltou a adormecer, e de novo Baco
lhe surgiu da mesma forma, censurando-o por ter duvidado de seu aviso e insistindo
nas intenções belicosas dos portugueses.
O sacerdote reuniu outros muçulmanos, dispostos a defender sua fé, ameaçada
pela presença dos cristãos. Decidiram subornar o conselho dos catuais para que
influenciassem o samorim a seu favor.
Este, apesar de suscetível às profecias dos adivinhos e aos avisos dos mouros,
ainda relutava em se voltar contra Vasco da Gama, pensando nas riquezas que o
comércio com os portugueses poderia lhe proporcionar.
Logo chamou o comandante e lhe exigiu que dissesse se era mesmo um pirata, um
navegante desterrado por seu rei e sem mercadorias para trocar, como afirmavam os
maometanos.
50
Respondeu Vasco da Gama, primeiro referindo-se ao ódio dos muçulmanos contra
os cristãos e depois remetendo à história das explorações marítimas de seu povo.
Disse, ainda, que se fosse um pirata não teria feito uma viagem tão longa, tão árdua,
enfrentando tantos perigos se era tão mais fácil assaltar navios mais perto de sua casa.
Disse, finalmente, que queria voltar logo para Lisboa, depois de realizar algumas
trocas com os malabares para provar que realmente estivera na Índia.
Admirado com a segurança do capitão, o rei de Calicute decidiu que a verdade
estava ali, e não com os magos e conselheiros, dos quais ignorava a corrupção.
Permitiu então ao comandante que voltasse à frota e mandasse vir seus tecidos para
trocá-los pelas especiarias.
51
E
27. A ASTÚCIA DO CATUAL
mbarcação que o leve às naus lhe pede.
Mas o mau Regedor, que novos laços
Lhe maquinava, nada lhe concede,
Interpondo tardanças e embaraços.
Com ele parte ao cais, por que o arrede
Longe quanto puder dos régios paços,
Onde, sem que seu rei tenha notícia,
Faça o que lhe ensinar sua malícia.
Lá bem longe lhe diz que lhe daria
Embarcação bastante em que partisse,
Ou que pela luz crástina do dia
Futuro sua partida diferisse.
Já com tantas tardanças entendia
O Gama que o gentio consentisse
Na má tenção dos mouros, torpe e fera,
O que dele até ali não entendera.
Vasco da Gama, depois de se despedir do samorim, pediu ao catual um batel que o
conduzisse à sua nau. Mentiu-lhe o ministro, dizendo que só poderia lhe arrumar um
barco na manhã seguinte, enquanto o afastava do palácio para que o samorim não
pudesse intervir a seu favor.
Juntamente com os mouros, pretendia incendiar a frota lusa para que o rei de
Portugal nunca viesse a conhecer o caminho para o Oriente. Quis então que as naus
lusitanas atracassem mais perto, com o pretexto de facilitar a troca das mercadorias.
Não querendo manter sua frota tão vulnerável, o comandante não concordou com a
exigência. Foi, pois, impedido de deixar o porto pelos guardas a serviço do ministro.
Propôs, por fim, o catual que o comandante mandasse trazer os tecidos, cujo
negócio ele e os outros ministros intermediariam. Vasco da Gama assentiu,
imaginando que a troca lhe permitiria não só comprar sua liberdade como concluir
sua missão com sucesso. Pôde, então, regressar à sua nau, mas deixou em terra dois
de seus homens, encarregados de efetuar os negócios.
Entretanto, desembarcadas as peças de pano, as trocas não se concluíam. Os
mouros influenciavam os comerciantes para que não aceitassem as ofertas dos
portugueses. Na verdade, esperavam pela ajuda de uma frota muçulmana, bem mais
poderosa do que a portuguesa, que em breve ali aportaria, vinda do mar Vermelho, do
porto de Jedá. Mas Monçaide, inspirado por Vênus e também já tomado de amizade
por Vasco da Gama, contou-lhe da dissimulação e da malícia com que vinha sendo
52
enredado.
53
P
28. GAMA CONTRA-ATACA
orém não tardou muito que, voando,
Um rumor não soasse com verdade:
Que foram presos os feitores, quando
Foram sentidos vir-se da cidade.
Esta fama as orelhas penetrando
Do sábio Capitão, com brevidade
Faz represália nuns que às naus vieram
A vender pedraria que trouxeram.
Eram, estes, antigos mercadores,
Ricos em Calecute e conhecidos.
Da falta deles, logo entre os melhores
Sentido foi que estão no mar retidos.
Mas já nas naus os bons trabalhadores
Volvem o cabrestante e, repartidos
Pelo trabalho, uns puxam pela amarra,
Outros quebram com o peito duro a barra.
Informado da armadilha, Vasco da Gama mandou aviso aos dois portugueses que
permaneciam em terra para voltarem, escondidos, para as naus. Mas os mouros,
vigilantes, os prenderam.
Alguns comerciantes ricos de Calicute, certamente sem saber dos planos do catual,
foram até as naus portuguesas, tentando vender suas pedras preciosas. Foi a
oportunidade da qual se valeu Gama. Aprisionou-os e mandou içar as velas,
preparando a partida da esquadra.
Avisados do que ocorria, os familiares dos prisioneiros recorreram ao samorim,
que, apesar dos protestos dos maometanos, mandou que os portugueses regressassem
com sua mercadoria às naus em troca da libertação dos reféns hindus.
Quando finalmente partiu, Vasco da Gama levava para Portugal especiarias
compradas por intermédio de Monçaide e também os malabarenses que vieram
escoltar os dois portugueses, embarcados à força. Convertido ao cristianismo,
Monçaide se juntou aos viajantes.
54
O
29. VÊNUS PREPARA UMA RECOMPENSA
prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes,
Vir a lograr o prêmio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes,
Cada um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração para ele é vaso estreito.
Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, para favor dos lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom gênio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhes, nos mares tristes, alegria.
De novo enfrentando as incertezas do mar, rumo ao cabo da Boa Esperança,
outrora o cabo das Tormentas, onde Adamastor tem sua prisão, partem os
portugueses, cheios de alegria pelo prazer de voltar a casa.
Mas Vênus quis compensar seus favoritos por todas as adversidades pelas quais
passaram. Planejou para eles momentos de deleite e repouso, providenciando-lhes
uma ilha paradisíaca no caminho, onde belas nereidas os aguardariam.
Recorreu à ajuda de seu filho Cupido, que, à frente de seus auxiliares, os meninos
de asas também conhecidos como Amores, usa suas flechas para despertar amor nos
corações humanos. Empenhavam-se, no momento, numa expedição para castigar
quem amava coisas que não devia amar nem tomar em benefício próprio, mas usá-las
em favor de todos. Logo Cupido interrompeu a perseguição que infligia a sacerdotes
e governantes.
Atendendo à mãe, que lhe falou da superação dos lusitanos aos odiosos ardis de
Baco, o deus alado se comprometeu a despertar os sentimentos de todas as ninfas do
oceano reunidas na ilha já preparada. Elas se ofereceriam aos briosos portugueses
para que surgisse, daquela união, uma raça forte e bela para reinar sobre os mares. O
fogo imortal do amor viria a acender-se na água, para que não houvesse nenhum mal
ou hipocrisia capazes de resistir à sua força.
O filho de Vênus convidou Fama para espalhar o louvor aos portugueses por toda
a profundeza do mar. Em seguida, passou a ferir as ninfas, que, com apaixonados
55
suspiros, foram, uma a uma, caindo de desejo. Entre elas, Tétis, que tanto defendera
Baco e até aquele dia sempre se esquivara das flechadas de Cupido.
Procurando uma enseada tranquila, em busca de água doce para se reabastecerem,
depararam-se os navegantes com uma ilha desconhecida que, sobre as ondas, Vênus
arrastava em sua direção.
56
A
30. NA ILHA DOS AMORES
li, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Formosos leitos, e elas mais formosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
De amor feridas, para lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.
(...)
Oh! Que famintos beijosna floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta!
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Chegaram a uma praia de areias brancas onde se viam muitas conchas vermelhas.
Colinas verdes a cercavam e de seus cumes corriam águas muito claras, formando lá
embaixo um lago límpido e transparente como cristal. À disposição dos portugueses,
ofereciam-se os mais doces frutos em suas árvores perfumadas: cerejas, amoras,
pêssegos, uvas, peras e romãs. Flores coloridas, como rosas e boninas, lírios e
violetas, vistas de longe, compunham o desenho de um rico tapete estendido pelo
chão.
Assim que desembarcaram os marinheiros, as ninfas faziam-se de desinteressadas,
muitas entregues à música de suas harpas, flautas e cítaras. Outras, empunhando
arcos de ouro, simulavam caçar, e ainda havia as que se banhavam nuas.
Veloso, o que gostava de contar histórias, propôs aos companheiros verificarem se
aquilo era verdade ou fantasia. Logo as ninfas, entre risos, fingiam correr dos
marinheiros para depois cederem aos seus beijos e carícias. Apaixonados casais se
formaram por toda a ilha. Tétis, então, levou Vasco da Gama para um palácio de
cristal e ouro para que, do mesmo modo que os demais, desfrutasse do prêmio que
Vênus oferecia a seus heróis.
57
N
31. A MÁQUINA DO MUNDO
ão andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista, que divino chão pisava.
Aqui, um globo veem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.
(...)
Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Efêmera e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
Um banquete foi depois oferecido no palácio para todos os casais, servido em
pratos de ouro, enquanto o vinho era sorvido em taças de diamante. Músicos
tocavam, quando uma ninfa se pôs a entoar uma canção em que revelava o que
aprendera de Proteu, o deus marinho que conhecia o futuro.
Puderam os homens de Gama saber de fatos importantes ligados à conquista do
Oriente, com outros feitos e novos heróis que, após várias batalhas contra o samorim
de Calicute, depois de derrotar também Mombaça e Quíloa, alcançariam o Ceilão.
Mas Tétis ainda quis mostrar mais uma maravilha aos argonautas lusitanos.
Conduziu-os por um bosque espesso em cujo cume havia um campo feito de
esmeraldas e rubis. Diante deles surgiu no ar um globo feito de várias esferas
concêntricas.
– Esta é a máquina do mundo – explicou a ninfa. – Na primeira esfera, vivem as
almas puras que têm o privilégio de ver Deus.
Confessa que ela e as outras divindades pagãs não passam de seres fabulosos e
admite que, quem verdadeiramente rege o mundo, ali representado por Júpiter, é o
Deus dos cristãos. Descreve a esfera como imóvel, mas as que vêm depois dela giram
tão rápido que se tornam invisíveis, transferindo seu movimento às demais e assim
fazendo separar os dias e as noites. Uma nova esfera contém os equinócios. Em outra,
vivem as estrelas e as constelações. Na seguinte, encontram-se os planetas,
58
aproximando-se da Terra, a última esfera e centro de tudo, onde estão o fogo, o ar, a
água e também a morada dos humanos que se puseram a desafiar o mar.
Representação artística do modelo geocêntrico, de Ptolomeu.3
Nesta esfera, Tétis mostrou-lhes não só os continentes conhecidos como ainda o
Novo Mundo que seria descoberto pelos castelhanos, mas no qual os portugueses
também teriam sua parte, a Terra de Santa Cruz.
3 Acabado o banquete, Tétis convida Gama para o espetáculo da Máquina do Mundo, o espetáculo único
das esferas celestes de Ptolomeu (estrofes 77 a 144). Aqui, vemos que, aos conhecimentos de Camões sobre
geografia, história, mitologia, religião, guerra, comportamento humano e navegação, junta-se o da astronomia
(do século XVI, naturalmente).
59
–P
32. RETORNO A LISBOA
odeis vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, para a pátria amada.
Assim lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão de ter eternamente.
Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.
Assim foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que nasceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E a sua pátria e Rei temido e amado
O prêmio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.
Depois disso, Tétis permitiu que os portugueses embarcassem para que pudessem
aproveitar o tempo favorável. E assim se despediram os heróis daquela ilha, levando
a doce lembrança das ninfas que deles jamais se esqueceriam.
Em seu regresso, os esperavam um mar sereno e um vento calmo. Até que,
finalmente, entraram pela foz do Tejo e puderam rever a terra amada.
Promete o poeta, em sua conclusão, abandonar sua lira, ressentindo-se de não ter
mais quem o ouça, já que as pessoas mostram-se dominadas apenas pela cobiça, sem
nenhuma preocupação com a grandeza da pátria.
Deseja, entretanto, ao rei dom Sebastião vitória na guerra que prepara contra os
mouros na África, comparando-o a Alexandre, conquistador do mundo antigo, e a
Aquiles, herói cantado por Homero em outra epopeia.
60
Coleção ENCONTRO COM OS CLÁSSICOS
• A ilha do tesouro, Robert L. Stwenson, adaptação de Douglas Tufano e Renata Tufano
• Os miseráveis, Victor Hugo, adaptação de Júlio Emílio Braz
• Orgulho e preconceito, Jane Austen, adaptação de João Pedro Roriz
• O príncipe e o mendigo, Mark Twain, adaptação de Lino de Albergaria
• Os Lusíadas, Luís de Camões, adaptação de Lino de Albergaria
• A divina comédia, Dante Alighieri, adaptação de Lino de Albergaria
• O corcunda de Notre Dame, adaptação de Douglas Tufano e Renata Tufano
61
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
 
Camões, Luís de, 1524-1580.
Os Lusíadas / Luís de Camões; adaptação de Lino de Albergaria.
São Paulo: Paulus, 2012. — (Coleção Encontro com os clássicos)
ISBN 978-85-349-3448-0
1. Poesia portuguesa I. Albergaria, Lino de. II. Título. III. Série.
08-12190
Direção editorial
CDD-869.1
 
Índices para catálogo sistemático:
1. Poesia: Literatura portuguesa 869.1
Adaptação baseada na obra original
Os Lusíadas, de Luís de Camões
Direção editorial
Zolferino Tonon
Coordenação editorial
Jakson Ferreira de Alencar
Coordenação de desenvolvimento digital
Erivaldo Dantas
© PAULUS – 2013
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-3448-0
62
63
Scivias
de Bingen, Hildegarda
9788534946025
776 páginas
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Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja
Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são
primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a
seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões
são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do
ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos
sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara.
Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No
fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta,
provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de
moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com
doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e
anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é
especialmente significativo

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