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CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: PRESSUPOSTOS, ABORDAGENS E POSSIBILIDADES ORGANIZADORES Valderez Marina do Rosário Lima João Batista Siqueira Harres Marlúbia Corrêa de Paula CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: PRESSUPOSTOS, ABORDAGENS E POSSIBILIDADES Chanceler Dom Jaime Spengler Reitor Evilázio Teixeira Vice-Reitor Jaderson Costa da Costa CONSELHO EDITORIAL Presidente Carla Denise Bonan Editor-Chefe Luciano Aronne de Abreu Beatriz Correa P. Dornelles Carlos Alexandre Sanchez Ferreira Carlos Eduardo Lobo e Silva Eleani Maria da Costa Leandro Pereira Gonçalves Newton Luiz Terra Sérgio Luiz Lessa de Gusmão CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: PRESSUPOSTOS, ABORDAGENS E POSSIBILIDADES Valderez Marina do Rosário Lima João Batista Siqueira Harres Marlúbia Corrêa de Paula Organizadores PORTO ALEGRE 2017 © EDIPUCRS 2017 CAPA Thiara Speth DIAGRAMAÇÃO Camila Borges REVISÃO DE TEXTO Susana Azeredo Gonçalves Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Loiva Duarte Novak CRB 10/2079 Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). C183 Caminhos da pesquisa qualitativa no campo da educação em ciências [recurso eletrônico] : pressupostos, abordagens e possibilidades / organizadores Valderez Marina do Rosário Lima, João Batista Siqueira Harres, Marlúbia Corrêa de Paula. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2018. Recurso on-line Modo de acesso: http://www.pucrs.br/edipucrs/ ISBN 978-85-397-1060-7 1. Pesquisa qualitativa. 2. Educação – Metodologia. 3. Pesquisa – Metodologia. I. Lima, Valderez Marina do Rosário. II. Harres, João Batista Siqueira. III. Paula, Marlúbia Corrêa de. CDD 23. ed. 001.42 EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 E-mail: edipucrs@pucrs.br Site: www.pucrs.br/edipucrs “A ideia de um método que contenha princípios firmes, imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência depara com considerável dificuldade quando confrontada com os resultados da pesquisa histórica. Descobrimos, então, que não há uma única regra, ainda que plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em algum momento” (FEYERABEND, 2007). SUMÁRIO 9 APRESENTAÇÃO 11 PREFÁCIO 15 INTRODUÇÃO 19 DA NOITE AO DIA: TOMADA DE CONSCIÊNCIA DE PRESSUPOSTOS ASSUMIDOS DENTRO DAS PESQUISAS SOCIAIS ROQUE MORAES 57 A PESQUISA ACADÊMICA COMO ELEMENTO DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR-PESQUISADOR EMERSON SILVA DE SOUSA ISABEL CRISTINA M. DE LARA JOÃO BATISTA S. HARRES 77 UM OLHAR SOBRE TIPOS DE PESQUISAS QUALITATIVAS: CONTRIBUIÇÕES PARA PESQUISADORES NO CAMPO DA EDUCAÇÃO DEISE NIVIA REISDOEFER ROSANA MARIA GESSINGER 93 INSTRUMENTOS DE COLETAS DE DADOS EM PESQUISAS: QUESTIONAMENTOS E REFLEXÕES ALESSANDRO PINTO RIBEIRO ROSANA MARIA GESSINGER 111 NARRATIVAS E PESQUISA EDUCACIONAL: ALGUNS QUESTIONAMENTOS VALDEREZ MARINA DO ROSÁRIO LIMA ROSANA MARIA GESSINGER 127 METANÁLISE COMO POSSIBILIDADE PARA A PESQUISA NA ÁREA DA EDUCAÇÃO VALDEREZ MARINA DO ROSÁRIO LIMA LUCIANA RICHTER 135 MOVIMENTOS DA ESCRITA: PESQUISA, ENUNCIAÇÃO E AUTORIA JULIANA BATISTA PEREIRA DOS SANTOS PRISCILA MONTEIRO CHAVES ISABEL CRISTINA MACHADO DE LARA 153 A PESQUISA REALIZADA NA ACADEMIA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS JERONIMO BECKER FLORES JOÃO BATISTA SIQUEIRA HARRES 159 PESQUISA BASEADA EM DESIGN COMO MÉTODO INVESTIGATIVO NO ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA THAÍSA JACINTHO MÜLLER 171 MICHEL FOUCAULT E A ANÁLISE DO DISCURSO KETLIN KROETZ SOLANGE CARVALHO DE SOUZA JOSÉ LUÍS SCHIFINO FERRARO 183 CAQDAS COMO FERRAMENTA NA PESQUISA QUALITATIVA MARLÚBIA CORRÊA DE PAULA LORÍ VIALI GLENY TEREZINHA DURO GUIMARÃES 209 SOBRE OS ORGANIZADORES E AUTORES APRESENTAÇÃO O conjunto de textos que compõe esta obra tem sua gênese em estudos versando sobre a relação métodos qualitativos de pesquisa e produção acadêmica, realizados por professores e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Questionamentos e reflexões iniciais do grupo foram o substrato para debates, reflexões e aprendi- zagens realizados durante o período 2016−2017. Neste tempo, além de apropriação teórica, a análise e a apreciação crítica de materiais produ- zidos foram realizadas de forma intensa e sistemática pelos envolvidos no diálogo. Estabelecemos uma rede cuja comunicação ora se fazia de modo virtual ora de modo presencial, para acompanhamento coletivo de cada um dos textos produzidos. Ao dar relevo à elaboração colaborativa, trabalhamos em coerência com pelo menos dois pressupostos importantes aos pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática. O primeiro, o educar pela pesquisa, assume a pesquisa como trabalho conjunto de produção/reconstrução de conhecimento e deposita na interação entre sujeitos, mais experientes e menos experientes, o mote para o desenvolvimento do pensamento autônomo e da autoria de ideias e argumentos renovados. O segundo, a qualidade da produção científica, percebe a consistência interna da produção como um elemento essencial. Essa consistência pode ser obtida, dentre outros cuidados acadêmicos, por meio da revisão crítica efetuada por colegas. Nesta troca, que é um movimento gradativo, as contribuições dos demais investigadores per- CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS10 mitem que o pesquisador responsável por um estudo promova sínteses mais consistentes e mais claras ao longo do processo. O material ora apresentado, além de expressar o amadurecimento intelectual do grupo, explicita o conteúdo emergente das muitas sessões de discussão sobre princípios e métodos da pesquisa qualitativa. Neste sentido, entendemos que as temáticas apresentadas no conjunto de capí- tulos contribuem para a formação de novos pesquisadores, ajudando-os tanto na busca de melhores formas de abordar seus objetos de estudo quanto na capacidade de promover, ao longo da investigação, os ajustes necessários ao aprimoramento do desenho estabelecido preliminarmente. Os organizadores Valderez Marina do Rosário Lima João Batista Siqueira Harres Marlúbia Corrêa de Paula PREFÁCIO A escrita pode ser considerada a maior invenção humana de todos os tempos, pois sem ela não seríamos capazes de chegar onde chegamos. Muito provavelmente, a origem da escrita está associada a marcas esca- vadas na argila molhada pelos Sumérios, há cerca de 3 mil anos a.C. De lá para cá, a evolução dos sistemas de escrita é imensurável. Não é difícil imaginar um mundo sem escrita. A título de exemplos, seria um mundo sem livros, sem revistas, jornais, enciclopédias, cartas, e-mails,receitas de bolos; não haveria tecnologias como lápis, canetas esferográficas, computadores, telefones, internet, naves espaciais, longe- vidade. Seria um mundo sem pesquisa, sem teses, dissertações e artigos. Seria um mundo com raro conhecimento. Entretanto, tudo o que se escreve – as palavras e as frases – não é transparente: necessita ser compreendido. E há muitas possibilidades de compreensão. Isso ocorre com outras manifestações humanas, como os desenhos, as pinturas e as esculturas. Aquele ou aquela que compreende se compreende, construindo possibili- dades de si mesmo(a). Nesse sentido, compreender é tomar posição a favor de algo. Pesquisar é, pois, construir compreensões e defendê-las, tomar posições. Deste modo, esta obra, organizada pelos professores Valderez Lima e João Harres, apresentam posições e abordagens sobre a pesquisa quali- tativa, nas perspectivas metodológica e analítica, o que pode possibilitar reflexões e escolhas pelos pesquisadores no campo da Educação em Ciências e Matemática, incluindo-se mestrandos e doutorandos. CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS12 Destaca-se o texto inédito deixado pelo saudoso amigo Roque Moraes sobre os pressupostos filosóficos e epistemológicos para a escolha do modo de investigar. Esse texto é produto do seu próprio esforço em compreender esse rico e complexo tema sobre a escolha de abordagens e tipos de pesquisas, pois ele costumava dizer que, para compreender algo, necessitava escrever. Foi o que sempre fez. Assim, foi muito positivo encontrar esse texto dando início a este livro. Os demais capítulos, oferecidos por professores e doutorandos do Programa também contribuem para que pesquisadores respondam às questões: Que modo de pesquisar é o mais adequado para as minhas indaga- ções? Que modo de analisar as informações disponíveis é mais coerente com o problema e com os pressupostos filosóficos e epistemológicos da pesquisa? Como respostas a esses questionamentos, são possibilitadas discussões e releituras sobre abordagens metodológicas como pesquisa etnográfica, pesquisa narrativa, estudo de caso, história de vida, pesquisa participante. Também são apresentados modos de produção de dados e informações, por meio de textos bibliográficos, documentos, observação, entrevista, questionários, formulários, imagens e vídeos. São tratados ainda nesta obra modos de análise, com destaque para a análise de discurso (AD) e para a Metanálise qualitativa. Análises realizadas por meio de ferramen- tas tecnológicas e softwares específicos, cujo uso tende a se expandir no campo da pesquisa educacional e das ciências sociais em geral, também são tratadas em dois capítulos. Observa-se nos textos o forte apelo à escrita como modo de apro- priação e compreensão do objeto sob investigação. Isso porque a função primeira de quem pesquisa é o seu próprio aprender. Se pesquisa para aprender. E as palavras são sempre o que fica das ações, sensações e experiências. Por isso, escrever é preciso1. 1 Referência à bela obra de Mário Osório Marques, Escrever é preciso: o princípio da pesquisa, Editora Unijuí. VALDEREZ M. DO ROSÁRIO LIMA | JOÃO BATISTA S. HARRES | MARLÚBIA C. DE PAULA 13 Por fim, a partir dos temas contidos nos capítulos, esta obra, além de apresentar contribuições para quem pesquisa em Educação em Ciências e Matemática, mostra parte do importante trabalho que é realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da PUCRS, no campo metodológico e analítico das investigações. Por tudo isso, recomendo a leitura atenta deste livro. Maurivan Güntzel Ramos Agosto de 2017. INTRODUÇÃO A pesquisa qualitativa na contemporaneidade ocupa lugar privilegiado em estudos na área da educação devido a sua potência para responder às necessidades dos processos educativos, alinhados com as demandas da sociedade atual. Na área de ensino de ciências não é diferente. Os estudos qualitativos destacam-se pela convicção dos pesquisadores de que o avanço da produção está relacionado aos esforços empreendidos para compreender, em profundidade, aspectos específicos da realidade escolar. Deste modo, os pesquisadores ocupam-se, em linhas muito amplas, de temas vinculados à formação de professores de ciências, à aprendiza- gem dos estudantes em disciplinas desta natureza, a situações de ensino organizadas pelos professores, ao mesmo tempo em que não perdem de vista que essas temáticas são afetadas, e afetam, os contextos políticos, econômicos, sociais e culturais em que são produzidas. Não é possível, pois, pesquisar nesta área pretendendo estabelecer relações lineares de causa e feito entre os acontecimentos investigados, posto que os objetos de estudo são ações e interações entre seres humanos e, portanto, trazem a marca da imprevisibilidade e da complexidade. A fim de acolher distintas perspectivas que integram o fenômeno estudado, delineamentos de pesquisas qualitativas caracterizam-se por serem múltiplos e flexíveis. A assunção deste paradigma confere aos pesquisadores a prerrogativa de organizar projetos escolhendo entre diferentes tipos de pesquisa, de instrumentos de coleta de informações e de métodos de análise. Tais escolhas, por vezes, tornam desafiadora a tomada de decisão. O enfrentamento dos desafios e a superação das CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS16 dúvidas solicitam, prioritariamente, uma reconfiguração dos entendi- mentos sobre pesquisa, reconstrução essa que pode ocorrer por meio de participação, discussão e estudos sobre princípios e métodos do paradigma qualitativo de investigação. O ponto que distingue esta obra das demais publicações sobre pesquisa qualitativa é exatamente o fato de as temáticas do livro terem se originado em discussões e estudos de um grupo de pesquisadores com variados níveis de experiência em suas trajetórias acadêmicas e profissionais. À exceção do primeiro texto, do professor Roque Moraes, a organização dos capítulos, discriminados a seguir, expressa novas compreensões sobre pressupostos teóricos e múltiplas possibilidades metodológicas reconstruídas do grupo. O Capítulo 1 apresenta o texto do professor Roque Moraes, no qual o autor desenvolve profunda reflexão sobre a influência que os pressupos- tos dos pesquisadores exercem nas escolhas de abordagens e nos tipos de pesquisa por eles assumidos. São destacadas as visões de mundo e de realidade, além de posições filosóficas e epistemológicas, como in- fluenciadoras das decisões tomadas pelo investigador no delineamento de seus estudos. O Capítulo 2 expõe a pesquisa acadêmica como elemento de forma- ção do professor-pesquisador. Além da caracterização da formação, trata sobre a qualidade da pesquisa acadêmica e a elaboração de dissertações e teses durante a formação do professor-acadêmico. O Capítulo 3 discute alguns tipos de pesquisa qualitativa, apontando potenciais de cada uma delas para auxiliar a compreender temáticas do campo específico da educação. Pesquisa etnográfica, estudo de caso, história de vida, pesquisa participante e grupo focal são os tipos tratados. Além de definições e peculiaridades, são também mencionados alguns exemplos de temáticas possíveis de serem investigadas. O Capítulo 4 aborda a eleição de instrumentos de coletas de dados levando em conta tipos de pesquisa predominantes e discorrendo sobre VALDEREZ M. DO ROSÁRIO LIMA | JOÃO BATISTA S. HARRES | MARLÚBIA C. DE PAULA 17 bibliografias, documentos, observação, entrevista, questionários e for- mulários, fotos e vídeos como fonte de dados. O Capítulo 5 caracteriza a pesquisa narrativa tendopor referência cinco questionamentos que dão título às seções: o que é narrativa? Como a narrativa se inscreve no contexto da pesquisa qualitativa? A pesquisa narrativa tem potencial para produzir conhecimento na área de educação? Como se utilizam as narrativas no campo da educação? Como se analisam os textos narrativos? O Capítulo 6 adota a metanálise como um tipo de pesquisa e discorre sobre sua adequação a estudos em educação. A apresentação das etapas necessárias ao encaminhamento da investigação é ilustrada por meio dos movimentos definidos em um estudo realizado por uma das autoras. O Capítulo 7 explora os movimentos da escrita a partir dos concei- tos de pesquisa, enunciação e autoria. O texto apresenta importante discussão sobre escrita de trabalhos acadêmicos, situando a elaboração da tese como oportunidade para o sujeito assumir, além da autoria do texto, a autoria de sua formação como pesquisador, como produtor de novos conhecimentos. O Capítulo 8 trata de aspectos a serem observados sobre o desen- volvimento de pesquisas científicas. Aborda também diferentes tipos de escrita acadêmica. O Capítulo 9 focaliza a pesquisa baseada em design, propondo esta organização como possibilidade investigativa no ensino de ciências em matemática. São discutidos princípios essenciais deste tipo de estudo e são apresentados alguns exemplos de utilização, com destaque para o uso deste delineamento em pesquisas que envolvem ferramentas tecnológicas. O Capítulo 10 analisa o discurso, aqui tratado como ferramenta metodológica, e discorre inicialmente sobre as possibilidades de uso da Análise de Discurso em pesquisas no âmbito da educação. Em continuidade, aborda a Análise de Discurso (AD) na perspectiva de Foucault (1996) e, utilizando as proposições de Veiga-Neto e Rech (2014), expõe algumas orientações para a organização de estudos desta natureza. CAMINHOS DA PESQUISA QUALITATIVA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS18 O Capítulo 11 apresenta, não por acaso em último capítulo, um tema que tem sido abordado, no Brasil, com perceptível timidez, uma vez que são relativamente modestas as pesquisas por meio de editores de textos dos computadores com os resultados obtidos por meio do uso de softwares. A partir de estudo empírico é analisado como o uso de softwares pode, ou não, condicionar a realização da análise textual. Os capítulos, do primeiro ao último, percorrem em seus temas diferentes vieses da pesquisa qualitativa − suas necessidades, suas características e seus percursos. Assim, cada leitor poderá encontrar no livro esclarecimentos sobre algumas questões que com frequência surgem no cotidiano dos pesquisadores, em seus itinerários de investigação. DA NOITE AO DIA: TOMADA DE CONSCIÊNCIA DE PRESSUPOSTOS ASSUMIDOS DENTRO DAS PESQUISAS SOCIAIS ROQUE MOR AES No presente texto, pretende-se focalizar e discutir questões pertinentes à escolha de abordagens e tipos de pesquisas. Argumenta-se no sentido de que esta escolha não é dependente apenas da problemática focaliza- da, mas se integra num conjunto de pressupostos e preconcepções do pesquisador. Dentre esses, estão sua visão de mundo e de realidade, suas posições filosóficas e epistemológicas, enfim os paradigmas em que o pesquisador se insere. Procuramos também explicitar nossa convicção de que é essencial esses pressupostos, que seguidamente estão apenas implícitos nas decisões do pesquisador em relação a sua pesquisa, serem explicitados para que os leitores tenham uma compreensão mais fidedigna das investigações realizadas e de seus resultados. O encaminhamento do texto dá-se a partir de questões filosóficas amplas, concepções de realidade, modos de acesso ao conhecimento e paradigmas. A partir disso move-se no sentido de discussões mais espe- cíficas, envolvendo as abordagens e os tipos de pesquisas. É nessa última parte que se concentra o texto. ROQUE MORAES20 Visão de mundo e realidade Os modos de fazer ciência dos pesquisadores e os resultados de suas pesquisas refletem sua visão de mundo, suas concepções de realidade e seus paradigmas. Quer se entenda isto num sentido de posse individual de teorias e crenças, quer num sentido de imersão em um discurso co- letivo e cultural, essas ideias prévias são decisivas na forma em que os fenômenos são percebidos e interpretados. Os paradigmas que orientam o olhar do pesquisador refletem-se nos modos em que concebe a realidade. O mundo, os fenômenos naturais e sociais podem ser interpretados de diferentes perspectivas, o que deno- minamos diferentes concepções de realidade. Dentre os modos de conceber a realidade, a partir de proposta de Lincoln e Guba (1985) podemos destacar quatro diferentes entendi- mentos: realidade objetiva, realidade percebida, realidade construída e realidade criada. A ideia de uma realidade objetiva é uma concepção ingênua, sem reflexão filosófica, derivada do senso comum. As coisas são o que pare- cem. O que vemos e percebemos é a realidade. A realidade é simples e única. O mundo não é problematizado, mas aceito tal como parece se manifestar. Pode-se afirmar que essa ideia de realidade é pré-crítica, não tendo ainda o sujeito assumido seu papel de agente de conhecimento, seu papel de sujeito epistêmico, não se compreendendo como sujeito participante na construção de sua realidade. Essa concepção deriva de um realismo ingênuo, segundo o qual o mundo que conhecemos existe independentemente do nosso conhecimento dele. Para quem pensa assim, pesquisas intensas permitem uma aproximação cada vez maior entre os nossos conhecimentos e o que a realidade efetivamente é. A concepção de realidade percebida compreende a realidade também como objetiva, única e existente independentemente do homem, mas da qual sempre se terá um conhecimento apenas e necessariamente parcial, tendo em vista sua complexidade. Nessa concepção, nossa compreensão DA NOITE AO DIA 21 da realidade vem de nossas percepções, e por isso nossa compreensão e apreensão do mundo nunca é algo global. Requer esforço e pesquisa para seja descoberto em seus detalhes, o que precisa ocorrer de forma gradativa. Ainda que a realidade esteja aí e possa ser captada de forma objetiva, ela pode ser percebida de diferentes ângulos e em diferentes profundidades. A pesquisa científica, neste sentido, é uma forma de descobrir novas perspectivas da realidade. Descobrir aqui significa tirar o pano de cima, desocultar algo que já está dado pronto. Entretanto, por mais que se pesquise a realidade, nunca se terá acesso integral a ela, só àquilo que conseguimos perceber. Já quem aceita que a realidade é construída argumenta que não tem sentido falar de uma realidade independente do homem. Nesse sentido, ainda que se admita a existência de algo concreto lá fora, a realidade é uma construção humana, nunca acabada e permanentemente reconstru- ída. Nessa posição ontológica, as diversas realidades construídas devem aproximar-se das entidades tangíveis a que se referem, não no sentido de atingir uma descrição única, mas no sentido da possibilidade de diferentes interlocutores poderem interagir e se compreenderem mutuamente. Nessa visão, realidade é o conjunto de nossas crenças e teorias, conscientes ou implícitas, nossas e dos que conosco convivem. Realidade é discurso. A realidade é construída na linguagem. A verdade em relação a ela é atingida pelo consenso de uma comunidade ou pela aceitação daquilo que já está estabelecido. Claramente, o pesquisador que assume essa perspectiva já se constitui em participante do processo de construção do conhecimento que tem. Assume-se como sujeito epistêmico. Finalmente,conceber a realidade como criada é assumir uma visão em que realidades não existem prontas como tais, mas são criadas na interação dos observadores com os objetos que criam. “Realidade é me- lhor entendida como uma função de onda estacionária que não se realiza a não ser que algum observador a ative” (Lincoln e Guba, 1985, p.85). Neste sentido, em cada momento, há sempre infinitas possibilidades de a realidade se apresentar. A forma assumida em cada momento depende ROQUE MORAES22 da relação do observador com os entes com que interage. O observador cria realidades. É uma concepção de realidade derivada da teoria quântica e da relatividade. Nas pesquisas atuais, especialmente na área social, os pesquisadores tendem a compreender a realidade como construção. Entretanto, gran- de parte da pesquisa conduzida no denominado paradigma dominante fundamenta-se na concepção de realidade percebida, sendo objetivo da pesquisa a descrição e explicação de uma realidade já dada e pronta. O que é importante salientar neste momento é que, mesmo o pes- quisador não tendo consciência disto, sempre estará assumindo uma con- cepção de realidade, e o modo como a concebe se reflete no seu trabalho. A modernidade tentou separar ciência e filosofia. Hoje, cada vez mais os cientistas voltam a se aprofundar na filosofia. Há uma aproximação cada vez maior entre essas duas formas de conhecer. Materialismo e idealismo Se examinarmos com cuidado as concepções de realidade descritas anteriormente, podemos perceber no implícito das descrições dois movimentos filosóficos que acompanharam o homem ao longo de sua história: o materialismo e o idealismo. Estas visões têm se confrontado ao longo da história para tentar construir e explicar nosso conhecimento do mundo. De acordo com Hessen (1987), Sócrates e Platão podem ser considerados como iniciado- res de uma tradição filosófica fundamentada na concepção do espírito; já Aristóteles foi iniciador do movimento fundamentado na concepção do universo. Essas duas concepções têm ressurgido num movimento pendular, ora com ênfase em uma, ora em outra. O materialismo assume a matéria como o ponto de partida. O início de tudo está na materialidade. Todo conhecimento origina-se na matéria. O homem, ao entrar em contato com o mundo material, pode conhecê-lo e descrevê-lo. Nisto podem assumir papel central os sentidos ou a razão. DA NOITE AO DIA 23 No primeiro caso, surge o empirismo; no segundo, o racionalismo. Ambos pressupõem um mundo objetivo acessível ao conhecimento do homem e existente independentemente do ser humano. As concepções de realidade objetiva e percebida carregam esta perspectiva materialista e realista. O idealismo assume o espírito como ponto de partida do conhecimento. Numa valorização primordial da subjetividade, o idealismo põe em dúvida a existência de um mundo material, ou não vê sentido em considerá-lo. Para ele existem apenas idealizações das coisas. No mito da caverna, Platão descreve como o ser humano está preso às sombras das coisas. Não lhe é acessível a materialidade como tal e por isso seu conhecimento é sempre idealizado. No idealismo, a realidade são as construções que o espírito ou a consciência humana elabora. Mesmo que não coincidentes, a concepção de uma realidade construída carrega subjacente uma pers- pectiva derivada do idealismo. Alguns movimentos filosóficos pretendem assumir uma posição intermediária entre materialismo e idealismo. Um desses é a fenomenolo- gia. Numa perspectiva fenomenológica, assume-se que só temos acesso aos fenômenos, ou seja, àquilo que se manifesta. Não conhecemos nem podemos conhecer diretamente o que eventualmente existe, ainda que admitamos sua existência. Somente temos acesso às manifestações dos entes materiais e sociais. Somente temos acesso aos fenômenos e, a partir deles, construímos o que conhecemos sobre eles. Ao envolver-se em suas pesquisas, o investigador de algum modo se posiciona em relação ao materialismo e ao idealismo. Mesmo que de forma implícita, a partir de pressupostos presentes em suas opções metodoló- gicas e paradigmáticas, em toda pesquisa fazem-se opções. Para que os resultados de uma pesquisa possam assumir seu significado máximo, é importante que o pesquisador tenha clareza sobre os pressupostos que assume em suas pesquisas. Também, num sentido ético, é importante que todos os envolvidos em uma pesquisa conheçam os pressupostos das pesquisas em que são sujeitos. ROQUE MORAES24 Argumenta-se, neste texto, que é importante o pesquisador social ter clareza e explicitar as posições filosóficas que assume em suas pesquisas, sejam elas materialistas ou idealistas. Os paradigmas Os diferentes modos de conceber a realidade, a forma de entender as possibilidades de generalização, os modos de compreender a inserção dos valores do pesquisador na sua pesquisa e a forma de aceitar a relação entre pesquisador e objeto da pesquisa podem ser utilizados para definir o que denominados paradigmas. Os paradigmas, de algum modo, refletem as visões de mundo. Baseando-se nesses indicadores, Lincoln e Guba (1985) apresentam três paradigmas diferentes que se manifestaram ao longo da história: pré-positivista, positivista e pós-positivista. A demarcação histórica desses paradigmas, assim como a de qualquer paradigma, é problemática. Isso se dá, em primeiro lugar, porque eles co- existem de algum modo, mesmo no presente. Além disso, um paradigma não é algo tão simples a ponto de um único fato histórico poder definir seu início ou seu término − vai se estabelecendo gradativamente e, do mesmo modo, vai sendo substituído. Assim, mesmo que o termo positivismo surja com Compte, o para- digma positivista já começa a manifestar-se com Galileu, Bacon, Newton, mas com aportes mais decisivos de Locke, Hume, J. S. Mill e Mach, além de outros. Da mesma forma, o paradigma pós-positivista é um conjunto de concepções que emergem num contexto ainda dominado pelo po- sitivismo, mas procurando superá-lo. Destaca-se nisso Husserl, com a Fenomenologia, no início do século XX. Quais seriam então algumas das características dos três paradigmas apontados anteriormente? Como poderiam ser descritos? Ainda que pretendendo nos basear nos quatro indicadores paradigmáticos pro- postos por Lincoln e Guba (1985), vamos incluir um outro elemento: a DA NOITE AO DIA 25 consideração do sujeito humano em cada um deles na sua relação com a verdade e com o conhecimento. Neste sentido, o pré-positivismo pode ser caracterizado como uma visão de mundo, um conjunto de concepções em que o homem ainda não se assumiu como ser de conhecimento. A verdade vem de fora, de um ser superior. Vem de Deus ou dos deuses, ou de sábios e filósofos marcantes, como o próprio Aristóteles. É absoluta. O único papel dos sujeitos humanos é interpretar essa verdade. Nesse paradigma, o entendimento de realidade é ingênuo. Não tem sentido falar dos valores do pesquisador, já que valores são divinos, são dados. A relação pesquisador e objeto do conhecimento é alienada, já que o conhecimento sempre é dado pronto por uma força superior. Pode apenas ser descrito, comentado e refletido. Finalmente, no pré-positivismo não faz sentido falar em generalização, já que todo conhecimento já é dado pronto, válido, generalizado. Vale sempre e para qualquer instância. Gradativamente ao longo da história, especialmente a partir do Renascimento, o homem assume-se como ser de conhecimento, e a ci- ência se encaminha para o positivismo. O sujeito começa a participar do processo de construção de conhecimento, mesmo que isto ainda possa ser de forma alienada,ou seja, assumindo uma posição de neutralidade ou objetividade no processo. Segundo Martinez (1994, p. 14): A ideia central da filosofia positivista sustenta que fora de nós existe uma realidade totalmente dada, acabada e plenamente externa e objetiva, e que nosso aparato cognitivo é como um espelho que reflete dentro de si, ou como uma máquina foto- gráfica que copia pequenas imagens desta realidade exterior. O paradigma positivista caracteriza-se por uma concepção de re- alidade objetiva. Tem seus fundamentos na generalização estatística a partir de hipóteses causais fundadas no determinismo, numa interação ROQUE MORAES26 pesquisador-pesquisado neutra e objetiva e numa pesquisa isenta de valores. Esses fundamentos têm sido cada vez mais questionados. Finalmente, o paradigma pós-positivista encaminha a pesquisa cien- tífica no sentido de superar os pressupostos positivistas. A concepção de realidade passa a ser essencialmente a construída. A relação pesqui- sador-pesquisado é de implicação mútua, ou seja, é superada a relação alienada. Supera-se a generalização estatística, e os valores passam a serem considerados como constituintes intrínsecos de todo o processo de pesquisa, sobrepujando-se assim a ideia de neutralidade. Nessa construção de uma nova visão paradigmática transforma-se no- vamente o lugar do sujeito no processo, ainda que isso se dê de forma gra- dual. De centro do processo, o sujeito passa a ser parte de um todo maior, o contexto das relações com outros seres num mundo complexo. É o sujeito no contexto, o sujeito ecologicamente localizado. Essas novas relações manifes- tam-se especialmente pelos movimentos ecológicos, pelo pós-estruturalismo e pós-modernismo. No modernismo, o sujeito, de modo especial o homem, masculino, é o centro da atenção. A modernidade constitui-se especialmente em torno do andropocentrismo. No pós-modernismo, já não o é. Necessita ser considerado juntamente com outros seres, numa relação biossimbiótica. As ideias sobre paradigmas foram propostas inicialmente por Kuhn (1978), em seu famoso livro A Estrutura das Revoluções Científicas. O conceito de paradigma tem sofrido, a partir disso, diversas interpretações. Muitas e diferentes categorizações de paradigmas têm sido propostas, além da que apresentamos a partir de Lincoln e Guba (1985). Mais recen- temente, o sociólogo e filósofo português Boaventura de Souza Santos tem produzido e publicado a partir de uma outra forma de conceber pa- radigmas na ciência. Esse autor apresenta dois paradigmas, o paradigma dominante e o paradigma emergente, que abordaremos a seguir. Fazendo sua reflexão a partir da modernidade, o autor caracteriza o paradigma dominante como aquele que dá origem à ciência moderna. Suas principais características, a partir de Boaventura Santos (2000), são: a objetividade e neutralidade do processo de produção do conhecimento DA NOITE AO DIA 27 científico; a matemática como instrumento privilegiado de análise, como lógica de investigação e como modelo de representação da estrutura da matéria, derivando-se daí a ênfase na quantificação; a redução da com- plexidade pela fragmentação da realidade, focalizando separadamente relações de variáveis a serem posteriormente generalizadas em forma de leis; a ênfase na causalidade formal, sempre no sentido de possibilitar a previsão e o controle; o modelo mecanicista das ciências naturais como ideal para todas as ciências; e finalmente o caráter antropocêntrico, sexis- ta e de valorização do homem ocidental europeu, com desvalorização de outras perspectivas. Esse paradigma leva a valorizar cada vez mais a ciência como conhecimento válido por excelência em prejuízo dos outros. O mesmo autor, ao caracterizar o paradigma emergente, o descreve a partir de um conjunto de movimentos que se associam com a superação da modernidade. Caracterizando o novo paradigma como um conhecimento prudente para uma vida decente (Boaventura Santos, 1996, p. 37), o autor defende que esse não deve ser apenas um paradigma científico, mas também um paradigma social. Argumentando que a modernidade enfatizou demasia- damente o domínio da regulação, com prejuízo do domínio da emancipação, o autor entende que o paradigma emergente deve promover um equilíbrio dinâmico que penda para a emancipação, investindo preferencialmente na participação e solidariedade, possibilitando a superação da colonização típica do paradigma dominante. A superação do conhecimento-regulação, com sua valorização da ordem, implica reafirmar o caos como forma de saber, e não de ignorância (SANTOS, 2000, p.79). O autor enfatiza ainda o caráter autobiográfico do conhecimento- -emancipação (SANTOS, 2000, p.84), com superação da neutralidade e objetividade e a imersão do pesquisador naquilo que estuda. Isso levará à compreensão de que todo conhecimento científico-natural é científi- co-social (p.89) e à superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais sob a égide das ciências sociais (SANTOS, 2000, p.92). A emergência do novo paradigma implica ainda revalorização da re- tórica, enquanto arte de persuasão pela argumentação (SANTOS, 2000, ROQUE MORAES28 p.96). Passando a conceber o conhecimento não como verdade lógica e formal, mas como conhecimento prudente e argumentado, o autor defende uma retórica dialógica, encaminhando para a superação de polarizações sexistas, classistas e étnicas, no sentido de uma multiculturalidade e de assumir-se uma relação biossimbiótica com outros seres do meio. Tendo em perspectiva uma primeira ruptura epistemológica, propos- ta por Bachelard, caracterizando o movimento do senso comum para a ciência, o paradigma emergente representa uma segunda ruptura epis- temológica, direcionando para uma qualificação do senso comum, tendo sempre como referência a emancipação dos sujeitos. Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum (1996, p.55). Em síntese, o paradigma emergente significa um movimento de superação da agenda de modernidade. Caracteriza o movimento pós-mo- derno com uma nova agenda, descrito pelo autor como movimento de um conhecimento prudente para uma vida decente (SANTOS, 1996, p. 37). Portanto, em uma pesquisa, explicitar o paradigma em que o pes- quisador se insere é elemento essencial para a compreensão do trabalho em andamento. Ajuda ao leitor localizar a posição do investigador em relação a todo um conjunto de pressupostos em termos de concepção de ciência, de realidade, de homem e de verdade. Por isso, novamente enfatiza-se a importância de sua explicitação dentro do processo da pesquisa, e especialmente no relatório. Abordagens de pesquisa Ao examinar as pesquisas, especialmente na área das ciências sociais, podemos encontrar trabalhos que se inserem numa diversidade de filosofias, concepções de realidade e paradigmas. A seguir, apresentam- -se, em forma do que denominamos abordagens de pesquisa, algumas categorias ou modos amplos de organizar as pesquisas, cada uma delas tendo características próprias e assumindo conjuntos específicos, ainda que eventualmente superpostos, de atributos e opções paradigmáticas DA NOITE AO DIA 29 e metodológicas. O conjunto de abordagens não pretende esgotar as possibilidades de pesquisa na área. Pretende apenas possibilitar uma visão abrangente de possibilidades, de modo a servir de orientação na seleção de opções de encaminhamento, quando do planejamento e concretização de pesquisas. A sequência apresentada vai, de algum modo, de pesquisas que se enquadram no paradigma dominante, de cunho positivista, até pesqui- sas que se encaminham para o paradigma emergente, sempre segundocategorização de Boaventura Santos (1996, 2000). Num extremo, estão as abordagens empírico-indutivas e racionalista-dedutivas. No outro, estão as abordagens narrativo-históricas e discursivo-interpretativas. Intermediariamente, apresentam-se algumas abordagens de pesquisa que, mesmo não superando inteiramente o paradigma dominante, evidenciam diferentes movimentos no sentido de uma nova visão paradigmática. Estão neste grupo as abordagens fenomenológico-compreensivas, etnográfi- co-culturais e naturalístico-construtivas e crítico-dialéticas. Abordagem empírico-indutiva A abordagem empírico-indutiva concebe que o conhecimento origina-se numa realidade material. O conhecimento vem de fora para dentro. Os objetos materiais produzem sensações que são captadas pelos nossos sentidos e, a partir disso, são convertidos em conhecimento. Os sujeitos são receptores passivos e devem assim permanecer. Precisam saber aprender a observar os fenômenos de forma objetiva, sem interferir neles. Esta abordagem tem no denominado método científico clássico sua forma de atuação: das observações derivam-se hipóteses, que são então colocadas a teste para confirmação. Daí surgem generalizações que, su- ficientemente confirmadas, constituem as leis da natureza. A abordagem empírica-indutiva vai da parte para o todo. Fragmenta a realidade focalizando nela conjuntos limitados de elementos, proprieda- des, ou seja, de variáveis. O estudo cumulativo de diferentes relações de ROQUE MORAES30 variáveis possibilita então, num processo aditivo, chegar ao todo. Neste sentido, concebe-se que o todo é a soma das partes. Carrega uma visão cartesiana de que quanto mais se divide o problema melhor se consegue solucioná-lo, de que quanto mais se fragmenta a realidade melhor se consegue explicá-la. A abordagem empírico-indutiva procura chegar às verdades por meio da indução. Vai do particular ao geral. Observa instâncias particulares dos fenômenos e, a partir delas, infere relações gerais. A generalização indutiva é o produto de uma grande quantidade de observações de determinadas relações. De uma relação de variáveis que se repetem reiteradamente surge uma generalização indutiva, e generalizações que se mantêm por muito tempo constituem as leis científicas. Para que o processo indutivo possa ter validade, é importante que o pesquisador seja objetivo. Precisa ser neutro no sentido de não interferir com suas subjetividades nas manifestações da natureza. Daí a impor- tância de educar os sentidos para não distorcer os dados da realidade. O pesquisador precisa saber captar estes dados sem distorcê-los. As observações necessitam ser objetivas, e a pesquisa precisa ser isenta de valores do pesquisador. Naturalmente, na abordagem empírico-indutivista, o pesquisador concebe a realidade como dada e pronta. Essa abordagem funda-se numa concepção objetiva e ingênua de realidade, no máximo de realidade percebida. Nas pesquisas, esta realidade manifesta-se tal como é. O que vemos e percebemos é uma manifestação de como a realidade é. Isto, entretanto, requer que exercitemos nossa observação de modo a não nos deixarmos influenciar pelos nossos ídolos, conforme já recomenda- va Francis Bacon, um dos fundadores do empirismo. Nossos ídolos são, essencialmente, nossos conhecimentos prévios, nossas preconcepções sobre os fenômenos que investigamos. O método na abordagem empirista-indutivista é constituído essen- cialmente de observação, hipóteses e comprovação. As verdades atingi- das se solidificam na medida em que se comprovam de forma reiterada. DA NOITE AO DIA 31 Neste sentido, a neutralidade e a quantificação constituem elementos essenciais do método. Qual é o papel da linguagem nesta abordagem? É essencialmente um modo de comunicação dos resultados. Serve apenas como instrumento para expressar os resultados atingidos. Nisso inclui-se um exercício permanente de neutralidade. É importante que os resultados não sejam distorcidos pela linguagem, o que exige seguidamente, definições ope- racionais de termos capazes de garantir a neutralidade da linguagem. Dentre os movimentos científicos e filosóficos associados a esta abordagem estão o empirismo, o indutivismo e o positivismo. O empi- rismo valoriza o dado concreto, a manifestação da realidade material. O indutivismo enfatiza um conhecimento que se dá pelo acúmulo de informações particulares. A partir de dados coletados de forma neutra e objetiva inferem-se leis gerais que estariam subjacentes aos dados observados. Já o positivismo integra empirismo e indutivismo. Positivo é aquilo que se manifesta diretamente, não importando o que está por trás do que se manifesta. Mesmo que esta abordagem de pesquisa possa hoje soar um tanto estranha em relação a algumas de suas posições, especialmente nas ciências sociais, não só ela constituiu, ao longo da história, movimentos significa- tivos e marcantes, como a concepção de pesquisa que traz subjacente ainda é intensamente presente em diferentes contextos. Livros-texto para o ensino das ciências têm possivelmente nela majoritariamente seus pressupostos. A formação de professores também em grande parte ainda é marcada pelo empirismo. Historicamente não poderiam deixar de ser apontados alguns expoentes importantes: Francis Bacon, um monge inglês que, no século XVI, no Novum Organum, divulgou e defendeu as ideias empiristas; Augusto Compte, que, no século XVIII, cria o positivismo; e um grupo de filósofos e cientistas do século XX, o denominado círculo de Viena, especialmente Schlick e Carnap, mostrando que esta abordagem também teve defensores em tempos bem próximos. ROQUE MORAES32 Abordagem racionalista-dedutiva Enquanto o empirismo concebe a origem do conhecimento fora do sujeito e funda nos sentidos e na indução a sua produção, o racionalismo entende que o conhecimento tem sua origem no interior do ser humano. O conhecimento ori- gina-se dentro do sujeito e é essencialmente dependente da razão. Suspeitando dos sentidos, o racionalista enfatiza a dedução racional como forma de chegar ao conhecimento. Tendo claros os limites da indução, o racionalismo escolhe a dedução como forma de chegar a verdades absolutas e certas, pois somente a lógica dedutiva possibilita chegar a verdades inquestionáveis. Ainda que, em sua origem, em Descartes, a verdade absoluta se funda- mente em Deus, gradativamente as deduções propostas pelo racionalismo se fundam em teorias previamente construídas. A verdade é produzida por processos racionais e dedutivos, e novas hipóteses vêm de teorias por dedu- ção lógica. Nas suas versões mais atuais, o racionalismo assume as teorias como precedendo qualquer observação sensorial, sendo elas a origem de novas hipóteses e das explicações científicas. O avanço de teorias não se dá pela observação de fatos, mas pelo exercício racional teórico. Ainda que o racionalismo surja numa concepção objetiva de realidade, ao longo de sua história assume gradativamente uma concepção de rea- lidade que pode ser percebida a partir de diferentes perspectivas. Neste sentido, a realidade racionalista, mesmo que seja entendida como já dada, realista, é compreendida em uma grande diversidade e complexidade, exigindo uma investigação permanente para sua explicação mais completa. Há um mundo material e um mundo das ideias. As teorias necessitam ser testadas e validadas frente a uma realidade concreta. Nessa confrontação, na visão de Popper (1975), dá-se a falsificação das teorias que não se sustentam. Nesse processo, as teorias jamais são comprovadas, sendo aceitas aquelas que resistem à falsificação. Assim, a verdade, ainda que sempre provisória,surge da confrontação de hipóteses teóricas com os dados da realidade concreta e objetiva. DA NOITE AO DIA 33 Mesmo aceitando a impossibilidade de uma neutralidade teórica, o racionalismo defende a procura de uma objetividade e do controle dos valores dentro da pesquisa. O pesquisador deve exercitar uma neutrali- dade ideológica em suas pesquisas, procurando uma objetividade em sua relação com os objetos que investiga. Nessa procura de neutralidade, os participantes de pesquisas, mesmo os humanos, são tratados como objetos. O método racionalista por excelência é o experimental. Em sua essência, consiste na testagem de hipóteses produzidas racionalmente a partir de teorias. Em Popper (1975), o método toma a denominação hipotético-dedutivo. Deduzida uma hipótese a partir de uma teoria, ela necessita ser testada empiricamente por confrontação com a realidade. Nisso enfatizam-se o controle rigoroso de variáveis, a quantificação, a seleção criteriosa de amostras a partir de populações pertinentes e a generalização estatística com inferências da amostra para a população. Na abordagem racionalista-dedutiva, especialmente em sua versão falsificacionista mais proeminente, substitui-se a ideia de comprovação pela de falsificação. Submetem-se as hipóteses a testes tentando demons- trar sua falsidade, pois os resultados dos testes nunca comprovarão sua validade. Eles procuram provar apenas sua falsidade, nunca sua verdade. Neste sentido, o que se sustenta, o que não é provado falso, é sempre uma verdade provisória, mantida até que seja suplantada por outra ver- dade com maior resistência a ser falsificada. Teorias neste sentido são construtos que resistem à falsificação. Também na abordagem racionalista-dedutiva a linguagem é apenas entendida como um modo de comunicação, seja do processo da pesqui- sa, seja de seus resultados. Não deve interferir no processo, e exige um controle cuidadoso no sentido de sua neutralidade. Constitui apenas instrumento de comunicação. Nessa procura de neutralidade, insiste-se em que os resultados e relatórios de pesquisa sejam escritos em terceira pessoa, de forma impessoal. Não se admite que a subjetividade se imiscue na expressão dos resultados, muito menos os valores do pesquisador. ROQUE MORAES34 Dentre os movimentos científicos e filosóficos que se relacionam com esta abordagem podemos apontar o racionalismo cartesiano de Descartes no século XVI, com reflexos na ciência até nossos dias. Assim como outros racionalistas, Descartes foi matemático, além de filósofo. Da mesma forma o foi Newton, que fundamentou seu trabalho numa visão racional derivada da matemática, o cálculo infinitesimal. Outro expoente mais próximo é Karl Popper, no século XX, com seu racionalismo crítico. Fundamentadas num materialismo realista e crítico, as ideias de Popper estão subjacentes a grande parte das iniciativas de pesquisa atuais, especialmente nas ciências físicas. Para diferentes autores, constituem uma nova versão do positivismo, o neopositi- vismo, o qual carrega a maioria dos pressupostos que sustentam o positivismo: neutralidade axiológica, concepção de realidade, fragmentação da realidade em relações causais e possibilidade de generalização independentemente de contexto. Todos esses pressupostos têm sido intensamente questionados por novos paradigmas que procuram superar o positivismo e suas variantes. Dentre os expoentes − tanto cientistas como filósofos − que podem ser associados ao racionalismo-dedutivista estão, além de Descartes e Popper, já referidos, Newton, Einstein, Lakatos, entre outros. Cada um deles apresenta características específicas, não sendo necessariamente representantes “puros” dessa abordagem. Conforme já salientado, essa abordagem é mais característica das ciências físicas, genericamente denominadas as ciências duras. Ainda que ao longo do século passado diferentes disciplinas sociais tenham tentado enquadrar-se nesta abordagem, as dificuldades que isso sem- pre representou deram origem à valorização de outros pressupostos, originando as bases de um novo paradigma, denominado emergente por Boaventura Santos. Para sua emergência o movimento fenomenológico foi, sem dúvida, decisivo. É nessa abordagem que entraremos a seguir. DA NOITE AO DIA 35 Abordagem fenomenológico-compreensiva Contrastando com as duas abordagens anteriores, voltadas para explicar o mundo por meio da investigação de relações causais, a abordagem fenomenológica visa à compreensão da realidade. No sentido da fenome- nologia, a verdade manifesta-se em forma de essências dos fenômenos, essências essas que precisam ser atingidas por intuição. Essa intuição não representa um processo racional e ordenado, tal como a indução e a dedução. Ocorre em forma de inspirações repentinas, “insights” intuitivos que revelam os aspectos essenciais dos fenômenos, não em suas partes, mas no todo. Enquadra-se, nesse sentido, num processo auto-organizado. A fenomenologia, pretendendo localizar-se entre o materialismo e o idealismo, admite a existência de um mundo material “lá fora”. Entretanto, entende que os entes concretos não nos são acessíveis. Somente temos acesso aos fenômenos, àquilo que se manifesta aos sujeitos. Por esta razão, a realidade da fenomenologia é sempre uma realidade construída, um conjunto de representações que nós fazemos a partir de nossa interação com os fenômenos. Nossa construção é sempre transcendente, resultante de nossas intuições. O transcendental não nos é acessível. A fenomenologia, em seu exercício de construção de compreensão, exercita uma atitude fenomenológica, uma abertura e atenção aos fe- nômenos tal como se apresentam à nossa consciência. O fenomenólogo pratica constantemente um direcionamento reflexivo para os fenômenos que investiga, procurando colocar entre parêntesis seus conhecimentos e teorias prévios. Nisso pretende um retorno às coisas mesmas, um retorno ao mundo da vida em toda sua riqueza e subjetividade. Ao focalizar um retorno ao mundo da vida, ao mundo da experiência original, a fenomenologia pretende examinar a realidade de uma pers- pectiva interior, superando nisto a pretensa neutralidade do positivismo e das abordagens indutivista e racionalista. Nessa perspectiva, conforme coloca Merleau Ponty, nada é mais objetivo do que aquilo que nos é mais subjetivo. Assim, a fenomenologia, ao enfatizar o sujeito, ao examinar os ROQUE MORAES36 fenômenos a partir da perspectiva interior dos sujeitos, admite, desde logo, que é impossível a separação de valores e pesquisa. Toda pesquisa fenomenológica é sempre impregnada de valores. O método fenomenológico, não sendo um caminho racionalizado, é carregado de incertezas e riscos. A intuição em que se fundamenta não pode ser garantida racionalmente, tal como ocorre em uma generalização indutiva. Entretanto, podemos favorecê-la por meio de uma impregnação intensa nos fenômenos que investigamos. Quanto mais nos envolvemos com um fenômeno, quanto mais nos impregnamos nele, quanto mais nos saturamos dele, maiores são as possibilidades de termos intuições sobre suas essências. Mas esta impregnação não é do tipo teórico, mas do tipo vivencial, já que as essências se encontram na existência. O método fenomenológico atinge essências sempre de forma gra- dual e incompleta. O fenômeno nunca se esgota. Por isso, precisamos nos mover em círculos, procurando a cada volta um aprofundamento maior no fenômeno. É o círculo hermenêutico. A cada retorno podemos descrever, interpretar e compreender com maior profundidade os fenô- menos que investigamos. A abordagem fenomenológica e compreensiva direciona-se prefe-rencialmente para aspectos qualitativos do fenômeno. Pretende sempre focalizá-lo em sua totalidade, sem fragmentá-lo. Não escolhe fragmentos, ou seja, relações entre variáveis, para estudar. Por isso, também não uti- liza análises estatísticas, especialmente as do tipo inferencial. Em outras palavras, não tem pretensões de generalizar. As essências do fenômeno sempre se referem ao todo e dispensam generalizações. Nisso está in- cluída a superação de amostragens estatísticas, utilizando, ao invés disso, amostras intencionais e direcionadas, escolhendo preferencialmente aqueles sujeitos que demonstrem mais condições para nos possibilitar um envolvimento intenso com os fenômenos investigados. Não impor- tam amostras aleatórias, mas grupos de sujeitos com vivências intensas nos fenômenos, sujeitos que também têm condições de manifestar suas experiências vivenciais com competência. DA NOITE AO DIA 37 Como coloca Heidegger (2000), a linguagem é a alma do ser. Assim, a fenomenologia valoriza de forma intensa a linguagem como modo de expressão dos fenômenos. Desse modo, nessa abordagem, a linguagem tem um significado muito especial. Não serve apenas para comunicar novas compreensões uma vez atingidas. Serve, muito mais, como modo de acesso aos fenômenos e às suas essências. Por essa razão, a abordagem fenomenológica tem, nas interações linguísticas, tais como entrevistas em profundidade, suas formas preferenciais de coletar informações. É por meio da linguagem que se dá a impregnação nos fenômenos. A fenomenologia como movimento filosófico próprio surge no início do século XX. Seu fundador foi Husserl, um filósofo matemático. Com seu retorno ao mundo vivido, com seu foco nas coisas mesmas, ele pretendeu dar um novo fundamento à ciência. Nesse foco original, destaca-se também o trabalho de Merleau-Ponty. A valorização do homem como centro do processo do conhecer logo se associa com o existencialismo, especialmente com Heidegger. Tanto a fenomenologia quanto o existencialismo têm fundamento dialético, no sentido de conceberem a realidade como em permanente movimento e histórica, ainda que não no sentido marxista. Nesta linha, a fenomenologia teve uma influência decisiva a partir de Sartre, que a integrou ao existencialismo e à dialética. Finalmente, essa corrente filosófica também se aproxima de uma perspectiva hermenêutica, ênfase trabalhada especialmente por Gadamer (1984) na obra Verdad y Método. Abordagem etnográfico-cultural A etnografia carrega um significado etimológico de descrição do estilo de vida de um grupo de pessoas acostumadas a viver juntas (MARTINEZ, 1994, p. 29). A abordagem etnográfico-cultural, tendo uma raiz fenome- nológica, organiza-se a partir do estruturalismo e dos estudos antropoló- gicos. Pretende chegar ao conhecimento e a verdades científicas a partir do estudo das culturas e das linguagens culturais. Sua verdade emerge da interação social. Nesse processo de construção de conhecimentos, ROQUE MORAES38 utiliza-se tanto a indução quanto a dedução e especialmente a intuição. Os estudos etnográficos são em sua essência pesquisas que têm como base a linguagem e os costumes de grupos culturais. A abordagem etnográfico-cultural fundamenta-se em uma concepção de realidade construída. As próprias culturas são modos de compreender realidades construídas socialmente dentro de certos grupos. Nesse senti- do, esse tipo de pesquisa pretende compreender e descrever diferentes realidades, tal como elaboradas socialmente dentro de certos grupos − realidades construídas histórica e intersubjetivamente. Em tudo isto a linguagem desempenha um papel primordial. Pretendendo uma compreensão e descrição de culturas, a abordagem etnográfico-cultural necessita trabalhar procurando sempre colocar-se na perspectiva do outro. Nisso assume uma base fenomenológica de valorização do sujeito e de sua subjetividade. Tendo em vista esses elementos, os estudos etnográficos exigem uma aproximação muito es- treita com as culturas que pretendem compreender, o que é conseguido especialmente a partir de dois métodos: a observação e a entrevista. A observação etnográfica é essencialmente participante, e a entrevista é sempre aprofundada, com retorno reiterado aos mesmos interlocutores para um gradativo impregnar-se na cultura em foco. Pelo que acaba de ser posto, a abordagem etnográfico-cultural su- pera a pretensão positivista da neutralidade. Focalizando a perspectiva dos sujeitos e informantes, esta abordagem valoriza de modo especial a subjetividade e intersubjetividade. Nisso estão presentes os valores culturais e sociais o tempo todo. Ainda que em determinados momentos de uma pesquisa etnográfica se exija o afastamento do pesquisador do contexto de sua pesquisa, em nenhum momento isso implica pretensão de neutralidade. Mesmo assim, é importante enfatizar que, nesse tipo de estudo, na expressão de seus resultados, o pesquisador sempre pretende falar sobre uma determinada cultura, distinguindo-se neste sentido de pesquisas de caráter mais participativo, em que o pesquisador se mani- DA NOITE AO DIA 39 festa mais diretamente como componente efetivamente participante do grupo com que produz sua pesquisa. Os estudos etnográficos inserem-se na proposta de compreender. Não têm, por isso, pretensões explicativas, nem intenções de focalizar relações causais lineares. Ao invés disso, procuram compreender as tramas de inter-relações entre diferentes temas, domínios e conceitos (SPRADLEY, 1980) que constituem a cultura investigada. Seu objetivo é essencialmente qualitativo, focalizando sempre a perspectiva do todo, ainda que com consciência de que os significados atingidos serão sempre parciais, podendo constantemente ser construídos novos sentidos. Cada compreensão e descrição atingida representa um patamar estrutural atingido pelo pesquisador, sempre com possibilidade de ser superado. Os estudos etnográficos têm, na linguagem, uma forma preferencial de acesso às culturas que se propõem a investigar. A fala dos sujeitos e informantes culturais constitui elemento central da abordagem, ainda que complementada com observações intensas e aprofundadas no sentido de compreender e delimitar de modo mais completo as compreensões construídas. Neste sentido, tendo na fenomenologia seu fundamento, nesses tipos de pesquisa a linguagem representa muito mais do que a possibilidade de expressar os resultados das pesquisas. É elemento cons- tituinte da compreensão que vai sendo construída ao longo do processo. Conforme já apontado, pesquisas dentro da abordagem etnográfi- co-cultural têm na fenomenologia, na antropologia e no estruturalismo seus referenciais filosóficos. Entre alguns dos expoentes que merecem ser citados, além das referências a fenomenólogos já anteriormente feitas, está especialmente Levy Strauss, um dos fundadores do estruturalismo. Além dele, também merece ser referido o trabalho de Spradley, o qual sistematizou formas de pesquisa nessa abordagem. ROQUE MORAES40 Abordagem naturalístico-construtiva A abordagem naturalístico-construtiva pretende chegar à compreensão dos fenômenos e das problemáticas que investiga examinando-os no próprio contexto em que ocorrem. Fundamentada numa epistemologia in- terativa construtiva, pretende chegar ao conhecimento por aproximações gradativas baseadas na indução analítica. Um envolvimento intenso nos fenômenos ajuda a reunir informações sobre os objetos de pesquisa. Essas informações, submetidas a um processo de análise indutivo, possibilitam a gradativa explicitação de categorias e de uma estrutura compreensiva dos fenômenos, resultando daí suadescrição, interpretação e teorização. A abordagem naturalístico-construtiva assume uma realidade cons- truída pelos sujeitos. Partindo da impossibilidade de acesso e chegando ao concreto, procura trabalhar com mundos humanos, representados por construções linguísticas e discursivas. Por isso, focaliza de maneira especial os modos de percepção dos sujeitos que envolve, trabalhando especialmente com seus conhecimentos tácitos. Nisto também se incluem os conhecimentos, as crenças e os valores do próprio pesquisador. A valorização dos conhecimentos tácitos e implícitos dos sujeitos, assim como a opção por focalizar os fenômenos no próprio contexto em que ocorrem, carrega consigo o pressuposto da imersão da pesquisa nos valores dos participantes. Nesta perspectiva, a neutralidade é impossível. Todas as falas já estão impregnadas de teorias e ideologias, mesmo que não haja consciência disto por parte de todos os envolvidos. Esta superação da neutralidade no sentido positivista aparece especialmente pela admissão do pesquisador como principal instrumento de coleta de informações. A abordagem naturalístico-construtiva, por sua valorização dos conhecimentos tácitos dos envolvidos, sejam eles os participantes ou o próprio pesquisador, enfatiza a impossibilidade de um olhar teórico objetivo e neutro. Ao contrário, pode-se compreender este tipo de pes- quisa como visando à explicitação de teorias implícitas que os sujeitos construíram anteriormente de modo inconsciente, aplicando-se isto DA NOITE AO DIA 41 tanto aos envolvidos na pesquisa quanto ao pesquisador. As teorias, de algum modo, são reconstruídas a partir de manifestações linguísticas dos participantes. Das informações coletadas são produzidas, pelo esforço analítico do pesquisador, categorias emergentes. Essas, por sua vez, são estruturadas em forma de teorias emergentes, expressões formalizadas e abstratas de concepções teóricas tácitas já construídas implicitamente pelos sujeitos da pesquisa. Dentre os elementos-chave desta abordagem estão o exame de ocor- rências naturais dos fenômenos, com valorização dos contextos em que ocorrem; a utilização do próprio pesquisador como principal instrumento de pesquisa, valorizando-se especialmente seu conhecimento tácito no sentido de aproximação gradativa aos fenômenos; o uso de metodologias qualitativas e de modo especial a indução analítica, método pelo qual uma comparação constante entre as informações coletadas possibilita a emer- gência gradativa de categorias e teorias. As pesquisas nesta abordagem constituem essencialmente estudos de caso, não tendo pretensões de generalização estatística, mas visando principalmente à compreensão dos fenômenos investigados. Desse modo, o método característico dessa abordagem envolve uma impregnação aprofundada nos fenômenos para a obtenção de suas descrições e interpretações. Das informações reunidas especialmente por meio de entrevistas aprofundadas são construídas categorias e hi- póteses de trabalho que, de modo reiterativo, são aperfeiçoadas e com- plementadas até atingir-se a clareza desejada nas construções teóricas assim produzidas. O planejamento é emergente, com uma definição de amostra por processos de saturação. Finalmente, os resultados atingidos são negociados com os envolvidos, estabelecendo-se dessa forma uma validação das teorias emergentes dentro do próprio ambiente natural em que se dá a construção. Emerge daí um novo tipo de extensão dos resultados a outros contextos − a generalização naturalística. Nas caracterizações feitas até esse momento, fica evidente o papel e o sentido da linguagem nessa abordagem. Ela não representa apenas ROQUE MORAES42 uma forma de expressar os resultados, mas é fundamental na constitui- ção das compreensões construídas ao longo do processo. A linguagem e o discurso são formas preferenciais de acesso aos fenômenos e às pro- blemáticas focalizados. A análise de informações linguísticas constitui a forma de chegar à compreensão dos fenômenos, construindo-se a partir das informações coletadas as categorias e teorias utilizadas na descrição e interpretação dos objetos de pesquisa. A abordagem naturalístico-construtiva, que também poderíamos denominar genericamente abordagem qualitativa-construtiva, tem raízes evidentes na fenomenologia, representadas pelo respeito aos sujeitos e seus modos de compreender os fenômenos. Outro movimento filosófi- co-epistemológico evidentemente presente é o construtivismo. Proposta originariamente por Lincoln e Guba (1985), esta abordagem mostra uma aproximação muito grande com inúmeras pesquisas que têm sido con- duzidas dentro da educação e ciências sociais sob o enfoque qualitativo. Abordagem histórico-narrativa A abordagem de pesquisa que denominamos histórico-narrativa constitui um modo de pesquisa que pretende chegar a novos conhecimentos por meio da narrativa, descrição e interpretação de histórias vivenciadas pelos sujeitos participantes, incluindo sempre o próprio pesquisador. É uma abordagem essencialmente qualitativa que, além de pretender su- perar o reducionismo do paradigma dominante, se opõe ao formalismo excessivo de diferentes abordagens qualitativas. Nesse sentido, as inter- pretações e teorizações mais aprofundadas são solicitadas aos próprios leitores, sempre no sentido de uma maior diversidade de possibilidades de compreensão dos fenômenos. Entre os leitores, se incluem todos os participantes da pesquisa. A abordagem histórico-narrativa concebe a realidade como cons- truída pelos sujeitos. Esta construção dá-se preferencialmente a partir da sucessão de pequenas histórias, em que são valorizados os aspectos DA NOITE AO DIA 43 subjetivos da vivência humana. No seu exercício de superação da “grande narrativa”, a narrativa do paradigma dominante, segundo terminologia de Clandinin e Connelly (2000), enfatiza-se uma perspectiva multicultural, em que a história é escrita a partir de um encadeamento de pequenas narrativas, sempre com ênfase nas perspectivas dos sujeitos envolvidos. A abordagem histórico-narrativa parte da consideração dos sujeitos com seus valores e teorias. Representando um resgate histórico, bio- gráfico e autobiográfico, este tipo de pesquisa está sempre imerso em valores, exigindo inclusive do próprio leitor este tipo de envolvimento. Pesquisas desta natureza solicitam uma parceria empática dos participan- tes, procurando o pesquisador entrar no pensamento ou na percepção dos envolvidos, concretizando isto a partir da narrativa de suas histórias vivenciadas, com valores, ideologias e contexto. Segundo Clandinin e Connelly (2000), trata-se de uma objetividade de profundidade, supe- rando pretensas objetividades e neutralidades do paradigma tradicional, a grande narrativa. A superação deste paradigma, com pretensão de uma visão única e uniforme, conduz a uma multiplicidade de narrativas dependentes das culturas, dos valores e de outros aspectos que indivi- dualizam ou particularizam as histórias de diferentes grupos. Nisso, essa abordagem insere-se decisivamente na pós-modernidade. Tendo em vista sua ênfase em construir novas compreensões dos fenômenos a partir da perspectiva do outro, essa abordagem de pesquisa não assume previamente um referencial teórico. As histórias vivenciadas são interpretadas a partir de sua descrição, e não a partir de teorias pre- viamente assumidas. Isso não significa que o pesquisador não necessite explicitar com clareza suas pré-concepções teóricas e ideológicas, mas que ele deve procurar também mostrar como essas pré-concepções poderão influir nas suas próprias interpretações. Ao recusar enquadrar asexperiências dos participantes em quadros referenciais adotados a priori, a pesquisa histórico-narrativa pretende superar o formalismo característico de muitas pesquisas. A recusa de in- terpretar as vivências e histórias dos envolvidos a partir de teorias formais ROQUE MORAES44 adotadas antes do exame das histórias também se reflete nos modos de interpretação. Em geral, neste tipo de pesquisa não se adianta interpre- tações e teorizações aos leitores, mas deixa-se ao leitor a interpretação e teorização, ainda que o pesquisador também possa exercer este papel de leitor. Neste sentido, a pesquisa procura valorizar a multiculturalida- de e respeitar os diferentes modos de compreensão dos leitores e dos participantes de uma pesquisa. Um dos elementos-chave da abordagem histórico-narrativa são as histórias de vida como forma de resgatar dados para a análise. Este tipo de pesquisa constitui uma forma de caracterizar os fenômenos da experiência humana vivida, incluindo os sentimentos que envolvem os seres humanos em suas trajetórias de experiências vivenciadas. Nisso valoriza-se uma atitude fenomenológica de respeito às subjetividades dos envolvidos e do próprio pesquisador. Além do foco nas vivências e histórias de vida dos sujeitos envolvidos, essa abordagem caracteriza-se por adotar a narrativa como modo de investigação e expressão dos resultados. Neste sentido, explora como elementos centrais a continuidade, interação, temporalidade, ação e contexto (CLANDININ e CONNELLY, 2000). A abordagem histórico-narrativa é essencialmente qualitativa, pro- curando qualificar a experiência vivida dos sujeitos participantes. Pode valorizar a descrição, compreensão e interpretação, procurando sempre ampliar a consciência em relação aos fenômenos que investiga, tanto do pesquisador como dos sujeitos envolvidos. Metodologicamente, essa abordagem concentra-se na reunião, or- ganização e apresentação de histórias vivenciadas pelos sujeitos partici- pantes em relação a um fenômeno foco. O direcionamento da pesquisa é estabelecido dentro do processo, não pressupondo questões de natureza teórico-formal como ponto de partida. Neste sentido, a evolução da pesquisa exige uma intensa impregnação nas histórias e no contexto em que se concretizam, tentando organizá-las para uma narrativa clara e coerente. Nisso, o processo se volta tanto ao passado quanto ao presente, DA NOITE AO DIA 45 além de fazer prospecções ao futuro. Além desses movimentos para trás e para frente, o pesquisador também procura movimentar-se para fora e para dentro do fenômeno, segundo sugestões de Clandinin e Connelly (2000), significando o para fora uma ampliação horizontal no fenômeno e o para dentro um aprofundamento no sentido vertical. A impregnação nos fenômenos investigados exige e possibilita uma grande diversidade de formas de acesso às histórias dos sujeitos participan- tes. Nisso incluem-se entrevistas não estruturadas, informações obtidas por meio de observação participante ou não, diários, documentos, fotos, materiais escritos como normas e regulamentos, relatos a partir de cartas, históricos de vida, notas de campo, entre outros. Na coleta desses tipos de informações, o foco são sempre histórias que os sujeitos participantes vivenciaram em relação aos fenômenos sob investigação. De algum modo no processo de coleta de material são produzidas narrativas que depois são integradas na produção do texto narrativo da pesquisa. A organização desses relatos históricos se dá de diversas formas: apresentações orais, representações dramáticas, além, evidentemente, do relato narrativo escrito. Em todas elas, o autor da narração não arrasta até o território de sua mente o leitor, mas sai ao seu encontro. Enfatiza- se sempre a importância de deixar ao próprio leitor a abertura para suas próprias interpretações, não lhe sendo imposta uma visão unilateral referente ao fenômeno. Na abordagem histórico-narrativa, está evidente a valorização da linguagem como constituinte das compreensões a serem atingidas na pesquisa. A pesquisa narrativa produz uma história a partir de um discurso explícito ou implícito dos participantes. Autor e leitor se envolvem em processos linguísticos de narração, interpretação e compreensão dos fenômenos estudados. Desse modo, entendemos que a linguagem se faz presente ao longo de todo o processo de pesquisa nesta abordagem. É constituinte das histórias e da compreensão construída, além de ser elemento fundamental na comunicação dos resultados. ROQUE MORAES46 A pesquisa narrativa encontra-se associada a muitas áreas do conhe- cimento, como teoria literária, história, antropologia, etnografia, artes, filosofia, psicologia e linguística. De todas elas extrai seus pressupostos e encaminhamentos metodológicos. A abordagem histórico-narrativa constitui uma abordagem relativa- mente recente de pesquisa qualitativa. Aproxima-se decisivamente dos movimentos pós-modernos e pós-estruturalistas por sua valorização da multiculturalidade, com foco em questões de gênero, raça e valorização da diversidade cultural. Abordagem crítico-dialética A abordagem de pesquisa crítico-dialética pode ser descrita como voltada para a produção de novos conhecimentos por meio da lógica dialética. Essencialmente fundamentada na crítica, parte sempre do questiona- mento de um conhecimento existente no sentido de sua superação. Daí surgem antíteses, novas formas de conceber o mesmo conhecimento que, uma vez validadas, constituirão as novas teses. Por essa sua natureza, o conhecimento resultante dessa abordagem será mais caracterizado por sua veracidade do que por sua verdade absoluta, pelo certo ao invés do verdadeiro (SANTOS, 2000). Em suas versões pós-modernas, concen- tra-se cada vez mais no discurso, não só como modo de constituição do conhecimento como do próprio sujeito cognoscente. O conhecimento neste sentido é dado pelo discurso e o sujeito tem papel muito reduzido em sua constituição, ainda que possa envolver-se na sua reconstrução. Tendo em vista seu fundamento dialético, essa abordagem de pesquisa concebe a realidade como em constante movimento, em um contínuo vir a ser. Tal como o próprio discurso, a realidade constitui uma construção coletiva, expressando o resultado do movimento contraditório das forças que nele intervém. Nessa abordagem, portanto, assume-se uma realidade construída pelos sujeitos, ainda que não individualmente. Estando imer- sos nesse movimento desde que nascem, os indivíduos, seguidamente DA NOITE AO DIA 47 não tem consciência das forças e pressões que comandam e direcionam suas ações. Exige-se nesse sentido uma conscientização possibilitando uma transformação das realidades dadas para formas mais avançadas e socialmente aceitáveis. Por isso essa abordagem sempre é crítica em relação à realidade e tem como meta sua transformação. Tomar consciência é superar a alienação dos sujeitos. Isso implica su- perar a representação objetiva de realidade que seguidamente é inculcada nos sujeitos pelo discurso. É tomar consciência das forças ideológicas que estão por trás de qualquer discurso, implicando valores e verdades que, de modo geral, não são questionados. Assumir essa abordagem de pesquisa, portanto, é superar a neutralidade, aproximando pesquisador e pesquisados, residindo nisso sua qualidade política. Esta imbricação de valores no processo da pesquisa, fundada na opção dialética crítica, também implica o respeito a diversificados pontos de vista de diferentes sujeitos envolvidos. Isso tem sido valorizado especialmente em alguns tipos de pesquisa, como a pesquisa participante e a pesquisa-ação.
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