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Línguas e Culturas Macro-Jê Saberes entrecruzados Evandro Aparecido Soares da Silva Reitor Paulo Jorge da Silva Pró-Reitor do Câmpus Universitário do Araguaia Adam Luiz Claudino de Brito Gerente da Câmara de Extensão Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais Tereza Ramos de Carvalho Coordenadora do Curso de Letras Apoio financeiro CNPq Processo nº 407558/2017-9 Apoio Institucional Fundação Nacional do Índio – FUNAI Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – IL/UFMT Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas – IL/UnB LÍNGUAS E CULTURAS Macro-Jê Sab eres ent re cr uzados Maxwell Miranda Águeda Aparecida da Cruz Borges Áurea Cavalcante Santana Suseile Andrade Sousa (Organizadores) Barra do Garças, 2020 Organização Maxwell Miranda Águeda Aparecida da Cruz Borges Áurea Cavalcante Santana Suseile Andrade Sousa Conselho Editorial Ana Suelly Arruda Câmara Cabral (UnB) Angel Corbera Mori (UNICAMP), Ludoviko Carnasciali dos Santos (UEL) Julio Cezar Melatti (UnB) Maria do Socorro Pimentel da Silva (UFG) Marly Augusta Lopes de Magalhães (UFMT) Mônica Maria dos Santos (UFMT) Mônica Cidele da Cruz (UNEMAT) Tereza Ramos de Carvalho (UFMT) Vanessa Lea (UNICAMP) Wilmar da Rocha D’Angelis (UNICAMP) Revisão Maxwell Gomes Miranda Eduardo Santos Gonçalves Monteiro Águeda Aparecida da Cruz Borges Ilustração da Capa Maial Paikan Kayapó Elaboração de Mapa Itamar Sales Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– L779 Línguas e culturas Macro-Jê / organizadores Maxwell Miranda, Águeda Aparecida da Cruz Borges, Áurea Cavalcante Santana, Suseile Andrade Sousa. -- Barra do Garças, MT: GEDELLI/UFMT, 2020. 444p. : v. 9 ISBN 978-65-00-02975-8. 1. Antropologia. 2. Índios - Línguas. 3. Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Línguas. Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Culturas. 5. Índios da América do Sul - Brasil. I. Título. CDD 301 –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Índice para Catálogo Sistemático (CDD) Antropologia = 301 Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Línguas - 498.3 Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Culturas - 980.1 Índios da América do Sul - Brasil = 980.41 Apresentação Esta obra reúne algumas das contribuições apresentadas durante o IX Encontro Macro-Jê, o qual foi realizado na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças - MT, de 20 a 22 de junho de 2018. Tendo o diálogo interdisciplinar entre ciências afins como uma de suas características singulares, o evento reuniu docentes, pesquisadores, discentes da graduação e pós-graduação, indígenas e não indígenas, para participação, apresentação e divulgação de pesquisas, com vistas a aprofundar e ampliar o conhecimento científico, considerando a relação sujeito/línguas/culturas Macro-Jê, a partir de diversas perspectivas teóricas. Inicialmente, idealizado pelo Prof. Dr. Ludoviko Carnasciali dos Santos (Universidade Estadual de Londrina), os encontros sobre línguas e culturas Macro-Jê expandiram-se e consolidaram-se como um importante espaço de reflexões/discussões tanto teóricas quanto práticas em campos do conhecimento que se dialogam e reafirmam o papel fundamental das ciências na pesquisa, documentação e manutenção da diversidade linguística no Brasil e no mundo. Dentre os agrupamentos linguísticos existentes nas terras baixas da América do Sul, a constituição de uma unidade genética “Macro-Jê” foi concebida por Rodrigues (1999: 165) como uma “hipótese em trabalho”, considerando os esforços precedentes e aqueles que se sucederam nessa direção, já que as informações disponíveis variam em quantidade e qualidade para um empreendimento histórico-comparativo mais abrangente. Mesmo assim, nos últimos anos, o número de pesquisas Línguas e Culturas Macro-Jê 6 sobre línguas Macro-Jê aumentou consideravelmente, sobretudo, em função da expansão e acesso a Programas de Pós-Graduação em Universidades brasileiras, bem como a presença de pesquisadores indígenas nesses programas. Do ponto de vista linguístico, as línguas Macro-Jê exibem fenômenos e padrões gramaticais bastante incomuns, especialmente, no contexto sul-americano, evidenciando sua relevância para a Linguística e, num sentido mais amplo, para a compreensão da própria linguagem humana. Já em uma perspectiva antropológica, os estudos têm destacado e contribuído para a compreensão de sistemas complexos de organização social e outras manifestações culturais a ela associados. Numa visão prática, os conhecimentos produzidos dão suporte para o planejamento e execução de políticas educacionais, como formação de professores/pesquisadores indígenas em cursos de Licenciaturas Interculturais, voltadas para a valorização e manutenção da identidade linguística e cultural desses povos. Seguindo a tradição das edições anteriores, no IX Encontro Macro-Jê, as mulheres cientistas, linguistas e antropólogas, na impossibilidade de fazê-lo a todas pessoalmente, foram homenageadas pelo pioneirismo no investimento à pesquisa científica com esses povos, línguas e culturas, bem como pela formação de novos pesquisadores. Os nomes representativos dessas mulheres estão registrados no texto de homenagem. Ao imprimir neste livro, grande parte dos artigos apresentados/ debatidos durante o evento reiteramos a relevância não apenas científica, mas, também, o compromisso ético, político e social com os povos Macro-Jê e indígenas de um modo geral. Em tempos de constantes Saberes entrecruzados 7 ameaças contra os povos originários, vindas de diferentes agentes e instituições, mais que resistir, é preciso lutar e defender as garantias constitucionais dessas populações. Por isso mesmo, é preciso agradecer as parcerias e tomamos deste espaço de apresentação para fazê-lo, especialmente, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo subsídio financeiro (Processo nº 407558/2017-9), sem o qual provavelmente seria inviável a realização desse evento. Expressamos nossos agradecimentos à Universidade Federal de Mato Grosso e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL/ UFMT), pelo apoio institucional e financeiro na concessão de diárias e passagens aos convidados; à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Coordenações Regionais de Barra do Garças e Palmas (TO), bem como as Coordenações Técnicas Locais de Canarana, Juína e São Felix do Araguaia (MT), as quais viabilizaram a vinda de representantes indígenas dos povos Boe-Bororo, Kĩsêdjê, Rikbaktsá, Karajá, Javaé e Krahô. Contamos, ainda, com o auxílio da Prof.ª Dr.ª Beleni Salete Grando (Faculdade de Educação/UFMT), Coordenadora do Projeto Rede de Saberes Indígenas na Escola UFMT/MEC, pela doação de bolsas. Nossa gratidão à Coordenação do Curso de Letras, na pessoa da Prof.ª Dr.ª Tereza Ramos de Carvalho, e da Prof.ª Me. Mônica Maria dos Santos por estarem conosco nessa empreitada. O IX Encontro Macro-Jê não teria se tornado possível se não fosse a colaboração fundamental e imensurável dos monitores do curso de Letras durante os dias de evento, sob a coordenação do Prof. Victor Santos, a quem estendemos nosso profundo agradecimento. Línguas e Culturas Macro-Jê 8 Deixemos que o Sumário oriente o leitor e que o mergulho em cada texto possa contribuir para discussões que provoquem debates profícuos em torno do conjunto diverso de objetos de análise e de reflexões teórico/ práticas que ordenaram o IX Macro-Jê e estão materializadas neste livro. Prof. Dr. Maxwell Gomes Miranda Prof.ª Dr.ª Águeda Aparecida da Cruz Borges Sumário Introdução Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 15 Homenagem às Mulheres Cientistas Águeda Aparecida da Cruz Borges 29 Antropologia Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê JulioCezar Melatti 37 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre e no valor simbólico do feminino gerados pela aproximação com a sociedade regional no Brasil Central Vanessa Lea | Maial Paiakan Kaiapó 95 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia karajá e suas transformações Macro-Jê Eduardo S. Nunes 119 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo Maria Elisa Ladeira 139 O tripartido sistema de parentesco Xavante Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon 153 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco macro-jê e a mitologia do roubo do fogo da onça Guilherme Falleiros 177 Porque o parentesco é sempre triádico Marcela S. Coelho de Souza 193 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território Lilian Brandt Calçavara 221 Linguística Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas Maxwell Miranda 243 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô) Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô 293 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira 311 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin 329 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê) Ana Suelly Arruda Câmara Cabral | Eliseu Waduipi Xavante Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda 353 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) Lucivaldo S. Costa | Quélvia S. Tavares | Mirelly Paolla B. Carvalho 393 Notas de Campo Reflexões sobre escrita etnográfica: um breve relato de reviravoltas do trabalho de campo entre os Krahô Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 409 Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico Lilian Brandt Calçavara 421 Sobre os Autores 433 Distribuição geográfica das línguas e culturas Macro-Jê (Rodrigues 1999) Mapa elaborado por Itamar Sales (2020) Abreviaturas 1 Primeira Pessoa 1+2 Primeira Pessoa Dual 2 Segunda Pessoa 3 Terceira Pessoa a Agente de verbo transitivo abl Ablativo abs Absolutivo acb Acabado acc Acusativo adm Admirativo alat/allt Alativo all.imp Imperativo Alativo anim Animado ap Antipassivo art Artigo asp Aspecto ass Associativo asv Asseverativo aten Atenuativo aum/aug Aumentativo aux Auxiliar caus Causativo col Coletivizador com/comt Comitativo cond Condicional cond.temp Condicional Temporal corr Correferencial chm Chamativo cnj Conjunção cnt Conectivo ctfg Centrífugo ctg Contíguo ctpt Centrípeto dat Dativo def Definido dem Demonstrativo dem.prox Demonstrativo próximo desd Desiderativo det Determinante detr Detrimentivo (Posposição) dim Diminutivo dir Direcional distr Distributivo ds/sd Sujeito Diferente dual Dual dub Dubtativo enf Enfático epistm Epistêmico (Modalidade) erg Ergativo estat Estativo exist Existencial excl Exclusivo exort Exortativo fem Feminino fin Conjunção de finalidade foc Foco fut Futuro gen Genitivo gr Grupo hort Hortativo hrs Ouvi dizer (Hearsay) hum Humano imp Imperativo (Modo) imperf Imperfectivo inan Inanimado incl Inclusivo ind Indicativo (Modo) indef Indefinido inef Inefectivo iness Inessivo inf Infinitivo intens Intensivo instr Instrumental (Posposição) int Interrogativo irls Irrealis iter Iterativo loc Locativo masc Masculino mov Movimento ms Marca de Sujeito n.ag Nome de Agente nctg Não-Contíguo nmlz Nominalizador nsg Não singular neg Negação nom Nominativo o Paciente de verbo transitivo obl Oblíquo obj Objeto part.pac Particípio Paciente pas/pst Passado pass Passivo pauc Paucal perf Perfectivo perm.imp Imperativo permansivo pl Plural posp Posposição poss Possessivo prob Probabilidade prog Progressivo proh Proibitivo prom Promissivo prt Partícula rcpr Recíproco rdpl Reduplicação real.intr Real Intransitivo reflx Reflexivo rel Prefixo Relacional r1/rel.c Prefixo Relacional de constituência r2/rel.nc Prefixo Relacional de não constituência rls ~ real Realis (Modo) rlz Realizado S Sujeito de verbo intransitivo SA Sujeito de verbo intransitivo alinhado com o argumento A SO Sujeito de verbo intransitivo alinhado com o argumento O sg Singular ss/ms Mesmo Sujeito subj Subjuntivo (Modo) suj Sujeito top Tópico traj Trajetória v Verbo Introdução Maxwell Miranda Universidade Federal de Mato Grosso Eduardo Santos Gonçalves Monteiro Fundação Nacional do Índio – FUNAI Ao longo das duas últimas décadas, temos assistido a um crescimento exponencial de estudos desenvolvidos em diferentes áreas do conhecimento e perspectivas teórico-metodológicas acerca da unidade hipotética ‘Macro-Jê’. Esta unidade compreende diversos povos, cuja maioria encontrava-se a leste do Brasil, indo desde o Sertão nordestino até à Mata Atlântica na região sudeste, e diferentes partes do interior. Atualmente, boa parte dos povos Macro-Jê encontra-se na área de transição entre o Cerrado e Amazônia, Pantanal sul-mato- grossense e nos planaltos da região sul. A colonização do território brasileiro, em diferentes épocas, propósitos e direções, converge, por um lado, para relações entre povos indígenas e frentes de expansão que os viam (e veem) como supostos obstáculos ao dito “desenvolvimento econômico” e a certa “marcha inexorável” da história. Neste processo, as consequentes perdas sofridas por estes povos originários foram e são irreparáveis – entre elas, a devastação de culturas e a morte de diversas línguas indígenas (cf. Rodrigues 1993). Por outro lado, a mobilidade espacial característica de muitos povos macro-jê, aliada à capacidade de ocupar e adaptar-se a diferentes ecossistemas e à comentada “resiliência cultural” Jê, são certamente fatores básicos para entender a sobrevivência e a vivacidade de muitas de suas línguas e culturas nos dias atuais. Do ponto de vista científico, a compreensão dos modos como essas línguas se organizam e funcionam e as dinâmicas em torno das quais os atores sociais interagem em Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 16 diferentes instâncias da vida social, política e ritual, constituem peças fundamentais para a proposição de políticas alternativas às do Estado brasileiro para o fortalecimento e empoderamento dos povos indígenas, com vistas à garantia de seus direitos constitucionais. No campo das Ciências Humanas e Sociais, desde o século XIX, o interesse pelo estudo das línguas e culturas macro-jê reside nas peculiaridades e particularidades que elas apresentam em comparação com outros agrupamentos linguístico-culturais das terras baixas sul-americanas. Do ponto de vista linguístico, a hipótese de um agrupamento genético Macro-Jê adotada aqui é aquela formulada por Rodrigues (1986, 1999), de acordo com o qual é constituído por 12 famílias linguísticas – Bororo, Guató, Jê, Maxakalí, Karajá, Kamakã, Krenák (Botocudo), Karirí, Ofayé, Purí, Rikbaktsá e Yaathe. Propostas de inclusão de outros membros no tronco Macro-Jê têm sido sugeridas por Adelaar (2008), para a língua Chiquitano (família Chiquitano), e por Ribeiro e der Voort (2010) para as línguas Arikapú e Djeoromitxí (família Jabutí). Rodrigues (2002: 11-12), na ocasião do I Encontro sobre línguas Jê, delimitou o que poderia ser considerado uma agenda de pesquisa para as línguas dessa família, mas perfeitamente aplicável ao tronco Macro-Jê, ao definir como “tarefas básicas imediatas”: (a) comparação lexical dentro de cada grupo e reconstrução das respectivas proto-línguas: (1) setentrional, (2) central, (3) revisão e ampliação de Wiesemann para o meridional; (b) comparação de sub-sistemas gramaticais: marcadores de pessoa, marcadores relacionais, nominatividade x ergatividade, posposições, marcadores evidenciais etc.; (c) revisão da comparação fonológica de Davis com novas línguas, novos detalhes e novos pontos de vista; (d) ampliação da comparação lexical, incluindo os campos semânticos da fauna, flora e da cultura. Desses tópicos, alguns têm sido com frequência objeto de análise desde a década de 80 a partir de línguasparticulares, como por exemplo, o estudo de Urban (1985) sobre a língua Xokleng, ou abrangendo um conjunto mais amplo de línguas, como o trabalho de Wiesemann (1986) envolvendo línguas das famílias Jê, Karajá e Rikbaktsá. Atualmente, Introdução 17 muitas informações sobre essas línguas tornaram-se disponíveis graças ao aumento considerável de pesquisas desenvolvidas no âmbito de Programas de Pós-Graduação em Linguística. Mesmo com o avanço notável no estudo das línguas Macro-Jê, além da revisão e ampliação da comparação fonológica e lexical de Davis (1966, 1968), há muitos pontos que necessitam de um exame mais aprofundado e acrescentados à lista de Rodrigues (2002), com o propósito de oferecer um perfil tipológico mais abrangente dessas línguas, incluindo tópicos como negação, distinções de atos de fala, tempo, aspecto, modo, modalidade, mecanismos de mudança de valência verbal – construções causativas, aplicativas, antipassivas e médias –, estratégias de combinação oracional, via coordenação ou subordinação, entre outros. Esse empreendimento analítico-descritivo pode revelar-nos as afinidades gramaticais decorrentes de herança genética ou induzidas por contato linguístico com povos de outras matrizes linguístico-culturais. Já a partir da perspectiva antropológica, as culturas Macro-Jê têm constantemente desafiado quaisquer tentativas de importação direta de modelos antropológicos trazidos de outros contextos e continentes. Muitos dos traços mais marcantes das sociedades Jê foram ressaltados já nos trabalhos etnográficos pioneiros de Curt Nimuendajú, difundindo- se por meio de antropólogos como Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss. Assim, a etnografia Jê insere-se, desde meados da década de 1940, no circuito de uma antropologia comparativa mundial e formula os problemas teóricos que ela suscita (Carneiro da Cunha 1993: 82). A atenção dos especialistas prontamente se voltou à “estrutura social altamente complicada” destes grupos, “comportando vários sistemas de metades que se entrecruzam, dotados de funções específicas, clãs, classes de idade, associações esportivas ou rituais e outras formas de agrupamento” (Lévi-Strauss 2008: 133 [1952]). Ressalte-se aqui o célebre paradoxo Jê, que intrigou gerações de antropólogos pela suposta incoerência entre uma cultura material marcada pela simplicidade e uma organização social extremamente complexa. Tal descompasso constituiu-se a pedra de torque do ambicioso projeto Harvard-Brasil Central, que reuniu uma série de pesquisadores (dentre os quais Julio Cezar Mellati, um dos autores deste livro) na realização de um reestudo e um balanço comparativo das sociedades Jê e Bororo. Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 18 O potencial do trabalho comparativo, aliás, é ampliado pelo “ar de família” cultural dos grupos Macro-Jê (cf. Carneiro da Cunha 1993; Lopes da Silva 1986 [1980]), o que torna possível pensá-los como um conjunto de transformações e compará-los de maneira metodologicamente rigorosa. Não se trata, por outro lado, de um debate encerrado: as reflexões a respeito das relações entre os povos Macro- Jê renovam-se constantemente a partir de um diálogo crítico com os esforços comparativos anteriores. Um exemplo disso, contido neste volume, é a revisão teórica proposta por Eduardo Nunes a respeito de certa “atipia” classificatória imputada aos Karajá. As contribuições dos estudos Macro-Jê continuam a mostrar sua relevância em meio à dinâmica intensa de debates, críticas e revisões nos campos e questões centrais da etnologia americanista. Os textos da obra Os textos que compõem a presente obra são versões ampliadas e revisadas dos trabalhos apresentados na ocasião do IX Encontro Macro- Jê (2018), na Universidade Federal de Mato Grosso, em Barra do Garças, e estão divididos em três partes: Antropologia, Linguística e Notas de Campo. Nesta seção, apresentamos uma síntese dos textos, a fim de oferecer aos leitores e leitoras os temas abordados e suas respectivas contribuições. Julio Cezar Melatti inicia a seção Antropologia com o texto, Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê, no qual o autor procura “semelhanças culturais entre os povos que falam ou falaram línguas do tronco Macro-Jê” e apresenta um panorama dos tópicos mais recorrentes na pesquisa antropológica e etnológica acerca dos povos Macro-Jê desde a década de 70. Ao partir da pergunta, “em que as culturas dos povos Macro-Jê se parecem?” Melatti examina alguns traços socioculturais e sua presença nas diversas sociedades Macro-Jê, como a corrida de toras, variações no formato da aldeia, uso de batoques auriculares e labiais, círculo feminino, esquemas de terminologia de parentesco, casamento e transmissão de nomes pessoais, o dualismo da pessoa bororo, amizade formal, nomes pessoais de prestígio, riqueza simbólica, presença dos mortos. O autor finaliza Introdução 19 seu texto destacando as tradições arqueológicas que são características dos povos Macro-Jê. Em seguida, o texto, Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre e no valor simbólico do feminino gerados pela aproximação com a sociedade regional no Brasil Central, de Vanessa Lea e Maial Paiakan Kayapó, é marcado por “um intercruzamento de perspectivas”, em que de um lado, tem-se a perspectiva de uma antropóloga que, ao longo de quatro décadas, realiza pesquisa junto aos Mẽtyktire, um dos povos Mẽbêngôkre (Kayapó), e de outro, o olhar de uma mulher indígena que estuou na cidade e formou-se em Direito, para defender os direitos de seu povo. As autoras abordam a questão de gênero para o povo Mẽbêngôkre, exemplificando essa situação com o que vem sendo discutido em outros países latino-americanos, como na Guatemala e Bolívia. Embora muitos povos amazônicos valorizem e continuem naturalizando os homens como representantes de suas comunidades, similarmente ao caso da Bolívia, algumas exceções a esse cenário começa a surgir a leste do Xingu, em que mulheres mẽbêngôkre vêm assumindo funções de chefia de aldeias. Nesse sentido, é significativa a afirmação de Maial, de acordo com a qual “[...] o feminismo entra no sentido de dar voz às mulheres, de dar espaço a elas de representação dentro do movimento indígena, mas não no sentido de interferir na cultura. As mulheres não querem realizar as mesmas atividades que os homens, por exemplo, não querem caçar e pescar. Elas têm suas próprias atividades e saberes [...]” (grifos nossos). O texto encerra chamando- nos a atenção para o fato de que “[O]s antropólogos contribuíram para o silenciamento das mulheres Mẽbêngôkre, relegando-as à “periferia” da aldeia”, algo que pode ser estendido a outras sociedades indígenas, em que as mulheres na maioria das vezes ocupam um lugar secundário nas descrições etnográficas, e alerta-nos para o etnocentrismo de demandas de promoção de igualdade de gênero, cujos valores podem ser contraditórios aos dos povos indígenas. Eduardo Soares Nunes, em Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia karajá e suas transformações Macro-Jê, busca problematizar certo “desencaixe tipológico” Karajá (Inỹ), evidenciado pelo silêncio quase absoluto sobre este povo no seio do clássico debate em torno dos modelos teóricos de sociedades multidualistas do Brasil Central. Assim, propõe Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 20 um “experimento analítico” a partir das possibilidades de transformação disponíveis no caso Karajá, provocando uma reflexão sobre o caráter auto evidente dos planos de aldeia e da própria circularidade das aldeias Jê-Bororo. Estabelecendo um profícuo diálogo entre a etnografia Karajá e panará, argumenta que a disposição espacial da aldeia Karajá é uma variante estrutural cujas possibilidades de transformação evidenciam e, mais ainda, radicalizam um ponto de inversão fundamental em relação à imagem tradicional do dualismo assimétrico Jê: o centro daaldeia, antes de seu o lugar da “cultura”, mostra-se como local por excelência da alteridade. A partir daí, Nunes explora desdobramentos possíveis por meio de seu trabalho etnográfico nas aldeia Karajá, Burudina e Santa Isabel, onde o leitor acompanha a exposição de múltiplas oposições, seja entre cidade e rio/mato, oeste e leste, ou entre homens e mulheres, em paralelo com a demonstração do rendimento heurístico do ex-centrismo Karajá e de sua aproximação analítica com o conjunto Macro-Jê, tomado como amplo grupo de transformações. A contribuição de Maria Elisa Ladeira, intitulada Não é bom fazer ituare com irmão próprio mesmo, recupera parte de sua dissertação publicada em 1982, já considerada um clássico dos estudos Jê, para discutir o tema da nominação entre os Timbira, conjunto de povos situados no Tocantins, Maranhão e Pará que compartilha intimamente traços culturais e linguísticos entre si. Após ressaltar a importância da nominação para o mapeamento e o estabelecimento de relações e de padrões específicos de comportamento entre pessoas dos diversos povos Timbira, a autora argumenta que o processo de transmissão de nomes constitui, de forma articulada e complementar às trocas matrimoniais, o domínio das alianças entre os grupos domésticos e segmentos residenciais no seio destes povos. Assim, a partir da descrição etnográfica da relação de nominação chamada “fazer ituare”, estabelecida desde criança entre dois irmãos de sexo oposto que se comprometem a trocar seus nomes, Ladeira realiza uma revisão crítica da bibliografia disponível sobre o tema entre os povos Timbira, que supunha uma correlação entre nome e residência, em que os possíveis nominadores se encontram em posição genealógica bastante próxima de ego, o que excluía categorias de parentes patrilaterais localizadas em outros segmentos residenciais. Introdução 21 Nesses modelos, a circulação de nomes masculinos mantinha-se restrita aos seus segmentos de origem, de modo a “compensar” o padrão de residência uxorilocal praticado. Ao contrário, a autora argumenta que a distância genealógica ideal para fazer ituare é maior do que se admitia anteriormente. Esta distância permite que os nomes circulem para fora de seus segmentos residenciais de origem, reforçando laços entre parentes patrilaterais dispersos pelos diferentes segmentos da aldeia e abrindo possibilidades de redefinição do gradiente de “parentes próximos” e “parentes distantes”, fundamental na definição dos casamentos. Evidencia-se, assim, a complementaridade das trocas de nomes e trocas de cônjuges para o estabelecimento e a transformação de alianças constitutivas da socialidade timbira. O tripartido sistema de parentesco Xavante, de Marcos de Miranda Ramires e Boaventura Walua Xanon, tem como ponto central a apresentação de uma “etnografia dos sistemas de parentesco xavante”, resultante de trabalho de campo realizado entre os Xavante (autodenominados A’uwẽ) na Terra Indígena Marãiwatsédé, localizada no nordeste do Estado de Mato Grosso. Iniciando seu texto com uma breve revisão bibliográfica acerca de aspectos relevantes dos sistemas de relações xavante que possuem ressonâncias com seu sistema de parentesco, os autores passam a apresentar os resultados da sistematização parcial da terminologia de parentesco a’uwẽ, dispostos visualmente em diagramas. Por meio de um cotejamento pormenorizado dos dados obtidos em campo com um conjunto considerável de obras da bibliografia antropológica disponível a respeito dos Xavante, Ramires e Xanon apontam ajustes, aproximações e contrastes entre estes materiais, sugerindo a existência de uma “tripartição do vocabulário de parentesco a’uwẽ” em consanguíneos paralelos, consanguíneos cruzados (cognatos cruzados) e afins e uma revisão do suposto caráter sociocentrado deste sistema de parentesco. Temos, em seguida, a contribuição de Guilherme Falleiros, entitulada Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco macro-jê e a mitologia do roubo do fogo da onça. Retornando ao universo das Mitológicas lévi-straussianas, o autor evoca o tema mítico, caro a muitos povos Jê, do roubo do fogo da onça. Ao longo da argumentação apresentada, Falleiros busca introduzir Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 22 a perspectiva xavante - a’uwẽ no seio do grupo de transformações analisado por Lévi-Strauss em sua obra. Ao fazê-lo, busca revisar criticamente tal análise, apresentando nuances às conclusões lévi- straussianas que apontam para a afinidade potencial (cunhadio) como foco da relação estabelecida entre humanidade e a onça. Ao contrário, a potência concedida à onça, esta inimiga da humanidade, mas detentora de um dos tesouros culturais fundamentais para os homens, pode ser atribuição, sugere o autor, tanto da filiação potencial da relação estabelecida entre humano e onça quanto da condição de avô – posição mais aproximada da potência cósmica original – deste último na relação com o jovem xavante. Em Porque o parentesco é sempre triádico, Marcela Coelho de Souza apresenta uma reflexão crítica sobre pressupostos fundamentais da teorização antropológica clássica a partir do problema dos termos triádicos de parentesco. Seu objetivo é indicar como tal questão “transborda interesses especializados” e impõe um “deslocamento no entendimento convencional na Antropologia, e na forma como as teorias dos parentesco foram construídas e vêm sendo des/re-construídas”. Para tanto, a autora parte do trabalho da antropóloga (e uma das autoras deste livro) Vanessa Lea junto aos Mẽbengôkre, de estudiosos de casos australianos, e os exemplos trazidos a partir de sua própria relação e colaboração com Jamthô Kisêdjê, professor e cursista de licenciatura indígena. Privilegiando uma abordagem pragmática da elocução das relações de parentesco, Coelho de Souza aponta para a produtividade de esquemas pensados para representar as relações triádicas, que reinserem a classificação num contexto interacional específico. A autora ressalta o caráter lógico do fenômeno, argumentando que as relações de parentesco sempre são, logicamente, triádicas, ao contrário da codificação e conceitualização que classifica relações diádicas a partir de regras de equivalência entre posições genealógicas, segundo as escolas e modelos clássicos da Antropologia do parentesco. Na determinação das relações de parentesco, ressalta a autora, seria fundamental considerar a simultaneidade e divergência de perspectivas envolvidas, o que é explicitado pela possibilidade, cara às relações triádicas, da distinção Introdução 23 entre o ponto de referência a partir do qual a relação é calculada no sistema (propositus) e de ego (locutor). Em Ilha do Bananal em chamas: os Karajá e o fogo em seu território, Lilian Brandt Calçavara caracteriza os diversos usos do fogo que ocorrem e que ocorriam anteriormente na Ilha do Bananal (Terra Indígena Parque do Araguaia), bem como os impactos destes na vida dos Karajá. São utilizados como referências mapas, pesquisas sobre o Manejo Integrado do Fogo (MIF), conhecimentos tradicionais indígenas relacionados ao uso do fogo e sobre a antropologia da tecnologia. Durante o processo de pesquisa, a autora também produziu o vídeo “Mifando a Ilha”, com entrevistas de indígenas e especialistas, além de registros do manejo do fogo realizado em 2016. Os textos da seção Linguística contemplam abordagens tanto sincrônicas quanto diacrônicas na descrição e análise de fenômenos gramaticais comuns às línguas Macro-Jê. Maxwell Miranda abre a seção com o texto, Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas, no qual são exploradas as possibilidades e potencialidades a partir do modelo da teoria da Gramaticalização proposto por Heine et al. (1991) e Heine e Kuteva (2002, 2007). É salientado que apesar de haver algumas tentativas de abordar mudança gramatical, tal como foi delimitadopor Rodrigues (2002), elas são ainda bastante limitadas para fins de reconstrução interna da família Jê. O texto de Miranda descreve e explica o desenvolvimento histórico de categorias gramaticais, como marcadores de número, aumentativo vs. diminutivo, e posposições ou expressões locativas envolvendo nomes de partes do corpo. Considerando que o perfil morfológico de boa parte das línguas Jê é predominantemente analítico, não é surpreendente que as funções gramaticais coexistam com aqueles usos lexicais, ou que antigas formas gramaticais ainda convivam lado a lado com aquelas mais novas, conforme é previsto na teoria da Gramaticalização. O texto ainda pontua que conceber os fatos a partir dessa teoria, não pressupõe a substituição de métodos clássicos da Linguística Histórica, como Método Comparativo e da Reconstrução Interna, mas antes os complementa. Januacele da Costa e Fábia Fulni-ô, em seu texto, Modo e Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 24 Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô), apresentam uma discussão preliminar da modalidade nessa língua. Trata-se da única língua da família de mesma denominação e também a única língua indígena falada no Nordeste, destacando-se, entre as línguas Macro-Jê, por sua excepcional morfologia verbal. A expressão formal de distintos valores modais, em Yaathe, “[...] é quase sempre mista, com uma ou mais de uma ocorrendo na morfologia e uma ou mais de uma se realizando através de partículas ou verbos modais.” As autoras fundamentam a presente análise na perspectiva de Frawley (1992), com dados linguísticos de primeira-mão. É destacado também que um estudo cuidadoso dos usos e das interações do sistema modal com outros sistemas gramaticais é necessário, a fim de contemplar fatores semânticos, além dos significados básicos, pragmáticos e discursivos. Dando continuidade aos textos da seção de Linguística, Damaris Kaninsãnh Felisbino e Marcelo Silveira, em Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir, cujos propósitos são “investigar o uso das variações do verbo tĩg (ir), que ocorrem quando falantes respondem a uma pergunta” e “entender como e por que ocorre essa variação em termos sociolinguísticos.” O estudo baseia-se na Sociolinguística Variacionista e investiga a variação na pronúncia do verbo tĩg ‘ir’, que alterna entre uma forma padrão [tĩŋ] e uma forma não padrão estigmatizada tnhĩg [tʃĩŋ]. Conforme é salientado pelos autores, pretende-se preencher uma lacuna nas pesquisas destinadas à variação linguística em línguas indígenas brasileiras, especialmente em Kaingang, com vistas a contribuir para a elaboração de uma gramática pedagógica dessa língua. O texto de Mário André Coelho da Silva e Andrey Nikulin, Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí, explora a expressão morfológica de três categorias flexionais de verbos nessa língua: indexação dos argumentos de pessoa, modo e contiguidade. Contrariamente a visão difundida de que “[...] diversas línguas Macro- Jê, dentre elas o Maxakalí, contam, no geral, com uma morfologia flexional extremamente simples” (Ribeiro 2006), os autores, contudo, mostram que o verbo nessa língua é mais complexo do que apresentado em descrições anteriores. A complexidade morfológica do verbo em Maxakalí é demonstrada pela intrincada relação entre categorias gramaticais, processos fonológicos, morfofonológicos e constituência Introdução 25 sintática. Os fatos analisados pelos autores lançam novas perspectivas para a compreensão da morfologia verbal da língua Maxakalí. O artigo Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê), de Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, Eliseu Waduipi Xavante, Luis Miguel Rojas-Berscia e Maxwell Miranda, trata da expressão de número em predicados verbais nas línguas Xavante e Xerente, ambas pertencentes ao sub-ramo Central da família Jê. A partir do trabalho de Cavalcante (1987) sobre o Kaingang falado em São Paulo, os autores discutem as particularidades das línguas Jê Centrais, especialmente o Xavante, no que diz respeito à distinção ternária de número – singular, dual e plural – por meio de partículas especiais que combinam os traços de número/pessoa. Além de nomes e pronomes, esta distinção aplica-se também a raízes verbais alternantes na relação entre o núcleo verbal e seus argumentos, de predicados verbais e nominais. Assim, os autores defendem que o sistema de concordância de línguas Jê Centrais atende ao Princípio de Transparência Semântica (Seuren & Wekker 1986), de acordo com o qual a expressão e marcação de número, por meio de diferentes operadores, aumenta o nível de transparência semântica, evitando ambiguidades tanto da perspectiva do falante quanto do interlocutor. Lucivaldo Silva da Costa, Quélvia Souza Tavares e Mirelly Paolla Borges de Carvalho, em Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê), examinam predicados não-verbais – nominais, locativos, possessivos e existenciais, com base em critérios semânticos e morfossintáticos. A partir de uma perspectiva tipológica e funcional, os autores argumentam que não há verbos cópula nessa língua e a principal estratégia morfossintática empregada na maior parte dos predicados não-verbais é a justaposição, similarmente ao que é encontrado em outras línguas Jê. Por se tratar de uma variedade Timbira ainda com estudos descritivos, o presente trabalho é uma contribuição às ações de documentação e revitalização da língua falada pelo povo Kỳikatêjê. A seção Notas de Campos é destinada a problematizações levantadas a partir da pesquisa de campo junto a comunidades indígenas e que podem ser tomadas como diretrizes para futuras incursões. O texto Reflexões sobre escrita etnográfica: um breve relato de reviravoltas Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 26 do trabalho de campo entre os Krahô, escrito por Eduardo Monteiro, dedica-se a tratar das relações estabelecidas entre o trabalho de campo e a escrita etnográfica, refletindo sobre a abertura extraordinária para a imprevisibilidade destas relações e algumas de suas implicações no trabalho etnográfico. Para tanto, apresenta um pequeno caso etnográfico ocorrido durante sua pesquisa entre os Krahô (autodenominados mẽhĩ), que acaba se revelando como insight que provoca uma inflexão fundamental tanto para o modo como o autor apreende os aspectos da socialidade mẽhĩ abordados em sua pesquisa quanto para a forma como organiza textualmente este processo compreensivo. Assim, Monteiro aponta como, a partir de uma série de convergências, que envolvem o reencontro com o pequeno trecho de seu caderno de campo e a aproximação com o debate antropológico acerca do conceito de teoria etnográfica, foi possível perceber como uma reflexão sobre o conceito krahô de amijkĩ, cujo campo semântico é constituído por categorias como “festa” e “alegria”, poderia se tornar o eixo estruturante de sua pesquisa. O povo Xerente do Araguaia é formado por descendentes dos Xerente que vieram para a região do Araguaia em busca de melhores condições de vida. No artigo Xerente do Araguaia e a luta pelo ‘reconhecimento’ étnico, Lilian Brandt Calçavara discute a demanda do grupo por um “reconhecimento” do Estado. Esta demanda contradiz a legislação indigenista, que entende que o pertencimento étnico se dá através da autodeclaração e do reconhecimento do grupo. Em busca desse “reconhecimento”, a pesquisadora acompanhou lideranças do povo Xerente do Aarguaia, que residem em Mato Grosso, em uma viagem aos Xerente, em Tocantins. A pesquisa trouxe à tona outra contradição: o que os Xerente entendem como constitutivo do “ser Xerente” é substancialmente diferente da compreensão que os Xerente do Araguaia têm sobre esse pertencimento étnico. Essas diferenças não colocam a identidade indígena dos Xerente do Araguaia em cheque, mas sim a fragilidade do Estado para lidar com a diversidade que constitui os povos indígenas. Os estudos presentes nesta obra éuma pequena fração de um conjunto mais amplo de pesquisas realizadas a partir de e com povos Macro-Jê no campo das Ciências Humanas e Sociais. Em tempos em Introdução 27 que a Ciência é constantemente vilipendiada, suas ações postas em dúvida e os investimentos financeiros cada vez mais escassos, promover e difundir os resultados de tais pesquisas à sociedade, em geral, mais que necessário e urgente, é um ato político contra quaisquer iniciativas que busquem silenciar ou apagar da História o papel de cientistas na formação do pensamento crítico. Assim, esperamos que os leitores e as leitoras possam conhecer e compreender uma parcela da diversidade das culturas e línguas dos povos originários que existe e resiste no Brasil. Referências Adelaar, Willem F. H. 2008. Relações externas do Macro-Jê: o caso do Chiquitano. In: Stella Telles & Aldir Santos de Paula (Eds.). Topica- lizando Macro-Jê. Recife: NECTAR, pp. 9-28. Carneiro da Cunha, Manuela. 1993. 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Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 28 Heine, Bernd. Kuteva, Tania. 2007. The genesis of grammar – A recon- struction. Oxford: Oxford University Press. _____. 2002. World lexicon of grammaticalization. Cambridge: Cam- bridge University Press. Ribeiro, Eduardo R. 2006. Macro-Jê. In: Brown, Keith (Ed.). Encyclope- dia of Language and Linguistics. 2ª ed. Oxford: Elsevier, pp. 422-426. Ribeiro, Eduardo R.; der Voort, Hein van. 2010. Nimuendajú was right: the inclusion of the Jabutí language family in the Macro-Jê stock. International Journal of American Linguistics, vol. 76(4), pp. 517–70. Rodrigues, Aryon Dall’Igna. 1986. Línguas brasíleiras - para o conheci- mento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola. _____. 1993. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. Re- vista Delta - Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Apli- cada, vol. 9, n. 1, pp. 83-103. _____. 1999. Macro-Jê. In: R. M. W. Dixon; Alexandra Y. Aikhenvald (Eds.). 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Tübingen: Gunther Narr Verlag, pp. 359-380. 29 Homenagem às Mulheres Cientistas Águeda Aparecida da Cruz Borges Universidade Federal de Mato Grosso Aprendeu a ler lendo números. Brincar com números era o que mais a divertia e de noite sonhava com Arquimedes. O pai proibia: – Isso não é coisa de mulher – dizia. Quando a Revolução Francesa fundou a Escola Politécnica, Sophie Germain tinha dezoito anos. Quis entrar. Fecharam as portas na sua cara: – Isso não é coisa de mulher – disseram. Por conta própria, sozinha, estudou, pesquisou, inventou. Enviava seus trabalhos, por correio, ao professor Lagrange. Sophie assinava Monsieur Antoine-August Le Blanc, e as- sim evitava que o exímio mestre respondesse: – Isso não é coisa de mulher. Fazia dez anos que se correspondiam, de matemático a ma- temático, quando o professor soube que ele era ela. A partir de então, Sophie foi a única mulher aceita no mas- culino Olimpo da ciência europeia: nas matemáticas, apro- fundando teoremas, e depois na física, onde revolucionou o estudo das superfícies elásticas. Um século depois, suas contribuições ajudaram a se tornar possível, entre outras coisas, a torre Eiffel. A torre tem gravados os nomes de vários cientistas. Sophie não está lá. Em seu atestado de óbito, de 1831, aparece como dona de casa, e não como cientista: – Isso não é coisa de mulher – disse o funcionário. (Galeano 2008: 191). Enunciar é, de certo modo, colocar um espaço político em funcionamento. Por exemplo, se enuncio: eu sou mulher, eu sou esposa, eu sou mãe, eu sou professora, eu sou mulher pesquisadora... nesses dizeres me subjetivo. Pensando assim, a posição para falar, agora, com o objetivo de homenagear algumas mulheres (por representação) é por identificação, até porque, ainda que não tenhamos uma convivência, não sejamos parentes, somos mulheres. O certo é que os aspectos que Línguas e Culturas Macro-Jê 30 nos aproximam são muito mais do que os que nos afastam, um deles é a língua. O meu desejo era poder dizer nas línguas todas que estiveram presentes no IX Encontro Macro-Jê, mas a história de aprendizagem das línguas não me permitiu aprendê-las, eu mal sei um pouco sobre elas. No entanto, fico feliz em me inscrever no espaço de múltiplas línguas e saber que nenhuma delas funciona sozinha; somos pessoas atreladas por diversas línguas, embora, principalmente no meio acadêmico, muitos considerem que haja uma língua de ciência, o inglês. Na academia, além da disputa entre sujeitos na corrida pela produtividade, há, também, uma disputa entre línguas. Espaços como o desse Evento servem para fazer ruir essa disputa e, no mínimo, criar aberturas para novos/outros conhecimentos linguísticos, especialmente, no que tange às línguas dos povos originários. Esse começo de conversa me leva ao objetivo deste texto, qual seja o de homenagear mulheres fortes que ocupam um lugar privilegiado nesse espaço de produção científica, pois, assim como nas línguas, historicamente, o lugar de ciência para as mulheres também foi/é lugar de disputa e, apesar de esforços, ainda é relegado à margem ou à ausência ou a afirmações de que, em algum momento, as carreiras da ciência, frisando poucas exceções em áreas, por exemplo, relacionadas ao ‘cuidado’, como é o caso da enfermagem, eram consideradas território de homens e, ao mesmo tempo, a área das ‘letras’ era mais feminino vinculado ao imaginário de sexo frágil, de maternidade, de mulher do lar. Se tomarmos um tempo e lançarmos o olhar para o passado, vamos perceber que esse preconceito não poderia estar mais equivocado, vocês/nós e aqui eu falo de um Nós coletivo, no desejo de juntar a maior quantidade de mulheres que romperam/rompem com esse imaginário, sabemos que não funciona assim. Vejamos o que nos escreve Velho: Uma vez feita a opção pela carreira científica, a mulher se depara com o conflito da maternidade, da atenção e obrigação com a família vis-a- vis as exigências da vida acadêmica. Algumas sucumbem e optam pela família, outras, pela academia, e um número decide combinar as duas. Sobre essas últimas, não é necessário dizer quanto têm que se desdobrar para darconta não apenas das tarefas múltiplas, mas também para Saberes entrecruzados 31 conviver com a consciência duplamente culposa: por não se dedicar mais aos filhos e por não ser tão produtiva quanto se esperaria (ou gostaria). (Velho 2006: xv). Temos muitos exemplos de mulheres que, ao longo da história, se destacaram nas áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática e eu destaco, das Ciências Humanas e Sociais. Inclusive, na história do patriarcado, há inúmeros casos nos quais os homens se aproveitaram dos conhecimentos das mulheres para brilhar com seus trabalhos. Quero redizer com isso que o lugar da mulher na produção científica é, também, um lugar de lutas e não pode ser desvinculado da luta de gênero, da luta étnica. As mulheres indígenas, especialmente, são lideranças fundamentais na luta dos povos pelo reconhecimento de sua terra, de sua identidade. As diferentes etnias brasileiras estão representadas na atuação e participação política de muitas mulheres indígenas. Como tantas outras, elas também se veem, muitas vezes, divididas entre tantos afazeres e responsabilidades, além de enfrentar como nós a violência de gênero que irrompe sempre que levantam sua voz. Porém, essas mulheres enfrentam questões que dificilmente encontram simpatia da população brasileira e que, geralmente, são ignoradas por mulheres ocidentais. Da mesma maneira que a história formal apaga os feitos de mulheres, no movimento feminista a atuação de mulheres não- ocidentais, também, é desconhecida de grande parte. Portanto, aproveito deste momento de homenagem para sublinhar e apoiar a luta de mulheres indígenas, ressaltando a diversidade étnica. De algum modo, a visibilidade de mulheres indígenas, não apenas no mundo acadêmico, nas nossas pesquisas é possibilitada pelo enfrentamento de mulheres não indígenas, neste caso, eu afirmo, no desenvolvimento de pesquisas, no deslocamento para o convívio em áreas indígenas, reiterando que, também, as mulheres não indígenas são/foram ofuscadas nas suas histórias de mulheres/pesquisadoras. Para representar tais mulheres, na ocasião dessa edição do Encontro Macro-Jê, homenageamos as mulheres cientistas, à título de representação, na impossibilidade de nomear todas as mulheres que Línguas e Culturas Macro-Jê 32 contribuíram e contribuem para o estudo das línguas e culturas dos povos indígenas. Prof.ª Dr.ª Ana Suelly Arruda Câmara Cabral – Universidade de Brasília Prof.ª Dr.ª Aracy Lopes da Silva (in memoriam) – Universidade de São Paulo Prof.ª Ms. Creuza Prũmkwỳj Krahô – SEDUC/Tocantins Prof.ª Dr.ª Iara Ferraz – Universidade Estácio de Sá Prof.ª Dr.ª Januacele da Costa – Universidade Federal de Alagoas Prof.ª Dr.ª Leopoldina Araújo – Universidade Federal do Pará Prof.ª Dr.ª Lux Boelitz Vidal – Universidade de São Paulo Prof.ª Dr.ª Marcela Coelho de Souza – Universidade de Brasília Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Pimentel – Universidade Federal de Goiás Prof.ª Dr.ª Maria Elisa Ladeira – Universidade de São Paulo Prof.ª Dr.ª Silvia Lucia Bigonjal Braggio – Universidade Federal de Goiás Quantos outros nomes ecoaram no espaço!!! Todas vocês e as que já se foram e as que estão por vir determinam o quadro de mudanças, pois são muitas as mulheres vinculadas a importantes descobertas científicas; vocês representam parte significativa dentre elas e se me coube elaborar este texto, digo que o fiz com enorme prazer. Infelizmente, a ciência no nosso país está passando por um período turbulento. Depois de anos de austeridade, a pesquisa no Brasil teme que a redução no orçamento federal, atropele de morte a nossa produção científica. A política globalizadora, individualista, os discursos pós- modernos vêm camuflando a realidade racista, classista, patriarcal na qual vivemos, colocando-nos em um marco que minimiza o fator histórico de mais de 500 anos de colonização. Atualmente, o chamado neocolonialismo, as leis migratórias, os centros de internamento para migrantes, o reforço das fronteiras e outros, se inscrevem tão fortemente e produzem diferentes barreiras infranqueáveis, que segregam e que, se não atentarmos, passam despercebidas como se não existissem. Saberes entrecruzados 33 Penso que precisamos desenvolver estratégias de relação entre as diferenças e para o nosso fortalecimento e inscrição na Ciência que produzimos, embora saibamos que a teoria, por si, não destrói o preconceito, o racismo, o classismo e toda forma de apagamento, de violência, em específico, de mulheres. São necessários atos visíveis, práticos, públicos! Por exemplo, reconhecer que diferenças existem entre nós, entre indígenas e não indígenas. As diferenças não são o que nos separam. O que nos separa é o não reconhecimento delas e, obviamente, as distorções em apagá-las. Que Nós, mulheres, brasileiras indígenas, negras, ribeirinhas, quilombolas, urbanas, trans, cientistas ou não, consigamos nos livrar dos “grampos”1 que nos aprisionam por sermos mulheres e que a ciência seja nossa aliada! Referências Galeano, Eduardo. 2008. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM. Velho, L. Prefácio. In: Santos, L. W.; Ichikawa, E. Y.; Cargano, D. F. (Org.). Ciência, tecnologia e gênero: desvelando o feminino na construção do conhecimento. Londrina: IAPAR, 2006. 1 Participação da Creuza Prũmkwỳj Krahô no IX Macro-Jê (2018), na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças. Antropologia 37 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê1 Julio Cezar Melatti Universidade de Brasília Introdução Geralmente, se supõe que os povos falantes de línguas de um mesmo tronco resultem de sucessivas divisões de um único povo bem mais antigo com a consequente diversificação de sua língua em várias outras dela derivadas. Essas línguas recentes mantêm muitas semelhanças com aquela língua remota, tanto no vocabulário como em outras características. Tal como acontece com as línguas, o restante da cultura daquele povo antigo pode deixar vestígios, nas culturas dos povos recentes, provenientes das sucessivas cisões. Por isso, os etnólogos sempre esperam que povos falantes de línguas da mesma família e até do mesmo tronco mostrem algumas semelhanças culturais não linguísticas entre si. É possível conjecturar que assim tenha acontecido com as culturas dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê. Por conseguinte, o propósito deste texto é procurar semelhanças culturais entre os povos que falam ou falaram línguas deste tronco. Não vou fazer isso sozinho, nem estou muito preparado para fazê-lo. Mas, ao fazê-lo, é preciso da ajuda de indígenas ou não, falantes ou não dessas línguas. Na figura 1 a seguir apresento as 12 famílias incluídas no tronco Macro-Jê. Algumas dessas famílias só incluem uma língua, uma vez que as informações disponíveis sobre elas não são suficientes para que outras línguas sejam colocadas na mesma família. No entanto podem ter existido e desaparecido sem chegarem a nosso conhecimento. As famílias, portanto, podem conter uma só língua, como uma classe ter um só elemento. 1 Este texto foi redigido como suporte para discussão no IX Encontro Macro-Jê, Uni- versidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Câmpus Universitário do Araguaia, Barra do Garças, MT, em 2018. Julio Cezar Melatti 38 Figura 1. Famílias do tronco Macro-Jê A Figura 1 acompanha, de modo aproximado, a distribuição geográfica das famílias. No centro e numa célula mais ampla está a família Jê, pois suas línguas, mais numerosas do que as das demais famílias, distribuem-se desde o Maranhão e o Pará até o Rio Grande do Sul. No interior dessa grande célula, está a da família Karajá, cujas línguas se distribuem ao longo do Araguaia, que tem povos Jê ao norte, a leste e a oeste. À esquerda da célula Jê, estão as das famílias Rikbaktsá, Bororo, Guató e Ofayé, pois ficam a oeste dos Jê, as duas primeiras em Mato Grosso e as outras duasem Mato Grosso do Sul. À direita da célula Jê estão as que lhe ficam a leste: Karirí, da Paraíba ao rio São Francisco; Yaathe (que inclui a língua dos Fulni-ô) em Pernambuco; Kamakã, no sul da Bahia e norte do Espírito Santo; Maxakalí, na fronteira Minas Gerais−Espírito Santo; Botocudo, no interior de Minas Gerais; e Purí, na fronteira Minas Gerais−Espírito Santo−Rio de Janeiro. Os povos Jê-falantes são comumente distribuídos em três grupos: os do Norte, os Centrais e os do Sul. Os do Norte falam as seguintes línguas: Timbira, Apinajé, Kayapó, Suyá e Panará. Duas dessas línguas são faladas por mais de um povo: a língua Timbira, pelos Canela (Ramkôkamekrá), Apãniekrá, Pykôbjê, Krĩkati, Krẽjê e Kukôjkamekrá do Maranhão, pelos Parkatêjê (Gavião) do Pará e pelos Krahô do Tocantins; a língua dos Suyá também é falada pelos Tapayuna no norte de Mato Grosso. Ainda, quanto aos Jê do Norte, fica-me a dúvida se os Panarás se incluem entre eles, pois Odair Giraldin apresenta fortes argumentos em favor da tese de que eles são os antigos Caiapó do Sul,2 2 Optou-se por manter a grafia da palavra ‘Caiapó do Sul’, já convencionalizada na Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê 39 que viveram junto ao rio Paraná e seus formadores, na fronteira São Paulo−Mato Grosso do Sul, no Triângulo Mineiro e no sul de Goiás. Será que sua língua é parecida com as dos Jê do Norte? Ou será que seu território se estendia desde a fronteira Pará−Mato Grosso, onde vivem hoje, até o rio Paraná, tendo daí recuado até se recolherem novamente à extremidade norte? Os Jê Centrais têm uma só língua, o Akwẽ, falada pelos Xavante, de Mato Grosso, Xerente, de Tocantins, porém não mais falada pelos Xakriabá, de Minas Gerais. É assim que parece indicar a tabela da pág. 56 do livro Línguas Brasileiras de Aryon Dall’Igna Rodrigues (1986). Porém, a bibliografia indicada na nota de rodapé nº 3, pp. 50-52, dá a impressão de tomar como distintas as línguas Xavante e Xerente. Quanto aos Jê do Sul, os Kaingang e os Xokleng falam línguas distintas, conforme a referida tabela, mas nada consta dos Xokleng na bibliografia da citada nota de rodapé. Vale notar que Jules Henry (1964), no livro Jungle People, sobre os Xokleng, chama-os todo o tempo de Kaingang. Quanto à família Karajá, a referida tabela nela inclui três línguas: Karajá, Javaé e Xambioá. Todas faladas ao longo do Araguaia. Passando às quatro famílias que ficam a oeste da família Jê, a Rikbaktsá, a Guató e a Ofayé só incluem uma língua cada. A família Bororo abrange duas línguas: Bororo e Umutina. Esta última, segundo informe recente, está reduzida a um só falante. Por sua vez, das seis famílias a leste da Jê, duas incluem línguas atualmente faladas: a Yaathe, que contém uma única língua, a dos Fulni-ô; e a Maxakalí, de cujas línguas, Maxakalí, Pataxó e Pataxó Hãhãhãe, somente a primeira continua a ser falada. Da família Karirí, nenhuma língua é mais falada, mas de duas delas há boa documentação, datada da passagem do século XVII para o XVIII: o Kipeá e o Dzubukuá. As línguas da família Kamakã (Kamakã, Mongoió, Kotoxó, Meniên) se falaram até a primeira metade do século XX. As da família Purí (Purí, Coroado, Coropó), até o final do século XIX. Das línguas da família Botocudo (Krenák e Nakrehé), pouca informação se consegue nos dias de hoje dos descendentes daqueles que as falaram. literatura linguística, histórica e etnológica, para diferenciar esse povo dos atuais gru- pos Kayapó localizados no sul e sudeste do estado do Pará e norte e nordeste de Mato Grosso que se autodenominam mẽbêngôkre. Julio Cezar Melatti 40 1. Reconstituição histórica com ajuda dos estudos linguísticos Greg Urban (1998) inicia sua contribuição ao volume História dos Índios, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, com a seguinte pergunta: “O que podemos aprender acerca da história pré- colombiana do Brasil pelo estudo de línguas ameríndias historicamente documentadas?” E ele, então, explica que, no estado atual das pesquisas linguísticas no Brasil, a reconstituição do passado ainda não pode ser realizada de modo satisfatório. Porém, mesmo diante das deficiências ainda existentes, que não vou detalhar aqui, Urban resolve arriscar reconstituir como as línguas indígenas tiveram origem em outras precedentes e vieram a se distribuir geograficamente no Brasil. Começa pelo tronco Macro-Jê (Urban 1998: 90-91) (cf. mapa na p. 88), que é aquele que nos interessa. Diz que a família Jê teria surgido há três mil anos (1000 a.C.) e o tronco Macro-Jê, que a inclui, há cinco ou seis mil (3000- 4000 a.C.). Supõe que os pontos de dispersão das línguas da família Jê estariam entre os rios São Francisco e o Tocantins. E a primeira separação que houve nessa família se deu entre os Jê Meridionais (Kaingang e Xokleng) e o resto. Entre um e dois mil anos atrás (1-1000 a.D.) houve uma segunda cisão, que ocorreu entre os Jê Centrais (Xavante, Xerente, Xakriabá, Akroá) e os Setentrionais (Timbira, Kayapó, Suyá). Refere-se a um estudo de Joan Boswood que sugere ser a língua Rikbaktsá (que mantém com o proto-Jê uma taxa de 38% de cognatos) mais próxima das línguas Jê do que o Karajá ou o Maxakalí. Urban tem dúvidas quanto à inclusão das línguas Bororo, Yaathe (dos Fulni-ô) e Ofayé no tronco Macro-Jê. Admite ainda que, se um estudo mostrasse que as línguas Kamakã, Maxakalí, Botocudo e Purí são remotamente relacionadas entre si, considerando também seu acentuado afastamento da família Jê, o leste do planalto Brasileiro seria um possível lugar de dispersão das línguas do tronco Macro-Jê. Em trabalho anterior, sua tese de doutorado, Greg Urban (1978: 39-40, 277-280) apresenta uma reconstituição hipotética do surgimento das principais divisões da família linguística Jê acompanhada de algumas características socioculturais. A sociedade que deu origem às atuais sociedades Jê teria sofrido uma primeira cisão, originando os Jê Meridionais, de um lado, e os demais Jê de outro. Os Jê Meridionais se separaram em Kaingang e Xokleng; os demais se separaram em Jê Centrais (Xavantes, Xerentes) e Jê Setentrionais (Timbira, Kayapó, Suyá). Grupos de descendência patrilinear existentes na sociedade original teriam se mantido na primeira cisão; mas, na segunda, esses Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê 41 grupos teriam se mantido num dos ramos (Kaingang, Jê Centrais), mas não no outro (Xokleng, Jê Setentrionais). Urban observa também que a transmissão de nomes se faz entre adultos e imaturos no caso dos Jê Centrais e do Norte, mas entre mortos e imaturos vivos, no caso dos Jê do sul. Figura 2. Evolução da estrutura social Jê, segundo Urban (1998) O esquema acima, com que tento resumir a reconstituição histórica de Urban, é apenas um pequeno galho que brota do tronco Macro-Jê. Considera apenas a família Jê. Faltam os outros galhos, as outras famílias, que brotariam de pontos mais inferiores do tronco. Não sei se os estudos linguísticos já permitem acrescentar mais algum deles no esquema. A pesquisa etnológica não tem como fazer. Aliás, deixando as línguas à parte, os itens culturais podem se deslocar geograficamente de duas maneiras: levados por migrantes que deles se valem ou passados por difusão entre povos vizinhos. Aliás, o mito de Sol e Lua contado pelos Maxakalí, anotado e traduzido pelo linguista Harold Popovich (1971), lembra os mesmos personagens narrados pelos Timbira. Dos seis episódios apresentados por Popovich, quatro versam sobre os mesmos temas do mito Timbira. O mais parecido é o da obtenção do penacho do pica-pau. Os outros – a origem da morte, a do trabalho e a da mulher – nem tanto. A semelhança é mais acentuada nas relações entre os dois personagens: o Sol, mais sabido, e Lua, imitador, canhestro e desastrado. Teriam os Maxakalí e Julio Cezar Melatti 42 os Timbira herdado o mito de ancestrais comuns ou a narrativa lhes foi passadade uma outra fonte por difusão? 2. Alguns períodos críticos do contato interétnico O contato interétnico não é tema deste texto, mas, destacar certos períodos críticos vividos por distintos povos Macro-Jê, talvez nos ajude a entender por que, numa comparação entre suas culturas, algumas nos brindam com dados mais significativos do que outras. No mapa abaixo, destaco oito áreas geográficas que, em diferentes períodos históricos, foram cenário de acontecimentos de caráter interétnico que afetaram, entre outros povos, os Macro-Jê que nelas viviam. Numerei-as em frouxa ordem cronológica e passo a caracterizá- las de modo breve. 2.1 Interior do Nordeste desde os meados do século XVII aos princípios do seguinte Após a retirada dos holandeses, pairavam sobre alguns grupos indígenas acusações de que haviam sido seus aliados e, o que era considerado ainda pior, que adotaram sua religião, o protestantismo, uma heresia aos olhos dos colonizadores católicos portugueses. Além dos missionários encarregados de estabelecer aldeamentos, criadores de gado expandiam seus rebanhos, bandeirantes paulistas apresavam indígenas (um deles, Domingos Jorge Velho, destruidor do quilombo dos Palmares). Havia, também, várias expedições contra aqueles grupos indígenas que resistiam ao avanço dos colonos e que recrutavam combatentes entre os povos já submissos ao controle português. A esse conjunto de conflitos armados tem-se aplicado o nome de Guerra dos Bárbaros, aliás tema de um livro do historiador Pedro Puntoni (2000). Por sua vez, Cristina Pompa, na segunda parte de sua tese de doutorado, focaliza a ação dos missionários e dá atenção aos fragmentos simbólicos das culturas indígenas que as fontes históricas deixam entrever e não mais encontráveis junto aos povos indígenas nordestinos dos dias de hoje. Suponho que seu livro Religião como Tradução (2003), que não li, reproduza, integralmente, a tese (2001), que li. Dois catecismos em língua Kipeá e um em língua Dzubukuá, produzidos por missionários nessa época, constituem a fonte para o conhecimento desses idiomas não mais falados, incluídos na família Karirí. Sua referência bibliográfica Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê 43 está no livro Línguas Brasileiras de Aryon Dall’Igna Rodrigues (1986: 50-52, nota 3). Figura 3. Contato interétnico entre povos Macro-Jê 2.2 Resistência dos indígenas de Mato Grosso ao avanço dos bandeirantes paulistas sobre as áreas auríferas na primeira metade do século XVIII Não sei muito sobre isso. Mas, no que tange aos povos Macro- Jê, dando uma olhada no livro Expansão Geográfica do Brasil Colonial de Basílio de Magalhães (1978: 165-187), podemos ver (p. 183) que o governador de São Paulo, D. Luís de Mascarenhas, sob cuja jurisdição estavam Mato Grosso e Goiás, tinha em mente exterminar os Caiapó do Sul (Panará). Com esse objetivo, conseguiu que o sertanista Antônio Pires de Campos conduzisse 500 Bororo de Cuiabá para atacá-los. Desse modo, o sertanista afastou-os do caminho que conduzia de São Paulo a Goiás e guarneceu suas margens com as aldeias de Rio das Pedras, Santana e Lanhoso, nelas colocando seus auxiliares indígenas. Os Bororos guardaram na memória esses confrontos, pois lembro- me de ter lido no livro Os Bororos Orientais, dos padres Colbacchini e Albisetti (1942), que, no início do século XX, eles, ainda, consideravam os “caiamó” como seus inimigos (a conferir). Julio Cezar Melatti 44 2.3 Os aldeamentos da capitania de Goiás na segunda metade do século XVIII Quando a produção aurífera começa a declinar e, sob a legislação assimilacionista portuguesa de iniciativa do Marquês de Pombal, regulamentada pelo Diretório dos Índios (1757), criaram-se vários aldeamentos, não dirigidos por missionários, que os indígenas eram incentivados a povoar, de modo a ficarem mais próximos dos colonizadores e interagirem com eles. Enumero a seguir os aldeamentos. No sul do atual estado do Tocantins ficavam: a) São Francisco Xavier do Duro, para os Xakriabá, b) São José do Duro (ou Formiga), para os Akroá, ambos próximos à atual Dianópolis, e c) Nova Beira, para os Karajá e Javaé, no sudeste da Ilha do Bananal. Relativamente próximos à sede da capitania, a atual cidade de Goiás, estavam: d) Carretão ou Pedro III, próximo à atual Crixás, para os Xavante, e) São José de Mossâmedes, hoje cidade do mesmo nome, para Akroá, Xavante, Karajá, Javaé, Karijó e Naudez, e f) Maria I, para os Caiapó do Sul. No Triângulo Mineiro, que então fazia parte da capitania de Goiás: g) Rio das Pedras, h) Rio das Velhas (ou Santa Ana ou Aldeia dos Índios), atual Indianópolis, para os Xakriabá, e i) Lanhoso, próximo à atual Uberaba. Os seis primeiros aldeamentos foram tema de um livro de Marivone Matos Chaim (1974); os três últimos, do Triângulo Mineiro, ela apenas os enumera (ibid.: 81, nota 30). Aliás esses três últimos, a julgar pelos seus nomes, são as mesmas aldeias criadas pelo sertanista que combateu os Caiapó do Sul com ajuda dos Bororos. Note-se que foi no Triângulo Mineiro que um topógrafo, no início do século XX, anotou uma lista de palavras da língua dos Caiapó do Sul que serviu como um dos principais argumentos para identificá-los com os Panará (Giraldin 1997). Os atuais Tapuio, estudados por Rita Heloisa de Almeida (1985, 2003), são os descendentes dos indígenas moradores do aldeamento do Carretão. Em suma, a maioria dos habitantes indígenas dos aldeamentos da capitania de Goiás eram falantes de línguas do tronco Macro-Jê: Xavante, Xerente, Xakriabá, Akroá, Karajá, Javaé, Caiapó do Sul. Sobre os “Naudez” nada sei dizer. 2.4 Os criadores de gado continuam para oeste, avançando sobre as terras habitadas pelos Timbira de meados do século XVIII a meados do XIX Segundo Curt Nimuendajú (1946: 3), as notícias sobre os Timbira remontam ao século XVIII no Piauí, onde se restringiriam ao baixo Canindé, a seu subafluente Piauí e ao baixo Gurgueia. Teriam Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê 45 invadido a Vila da Mocha (atual Oeiras), sede da capitania, em 1728. O número de povos Timbira no sul do Maranhão no início século XIX era significativo. Nimuendajú, com base nos cronistas, dá notícias de pelo menos 15 (1946: 15-36). Um desses cronistas é Francisco de Paula Ribeiro, que, em três memórias, narra de como foram os combates entre povos Timbira e criadores de gado. Português, sargento-mor ou major de tropas regulares que combatiam os Timbira, desaprovava a maneira desleal e perversa com que os criadores de gado lidavam com os índios. No norte do Maranhão, em vez de pecuária, praticava-se a agricultura comercial do arroz e do algodão. Por isso, os Timbira aprisionados eram conduzidos como escravos para lá. Também podiam ser embarcados no rio Tocantins para serem vendidos em Belém. A carta-régia de 5 de setembro de 1811, assinada pelo príncipe regente D. João contra os Karajás, Apinajé , Xerente, Xavante e Canoeiros, do Brasil central, reconhecia que a hostilidade dos índios se devia aos maus-tratos que tinham recebido de alguns comandantes de aldeia, mas agora não havia outra medida a tomar senão intimidá-los ou até destruí-los. Autorizava escravizar os índios aprisionados com armas na mão por 10 anos ou mais, enquanto durasse a sua “atrocidade”. Essa carta foi interpretada como também aplicável aos Timbira, e o comerciante Francisco de Magalhães, fundador de Carolina, na margem do rio Tocantins, aproveitou-se disso para remeter muitos índios escravizados para Belém. O fato é que, após tanta espoliação e abusos, na segunda metade do século XIX e na primeira do seguinte, a população Timbira se estagnou ou diminuiu. Esses povos, também, não continuaram a se multiplicar por cisão de aldeias. Pelo contrário: aqueles que estavam mais dizimados eram absorvidos pelos que gozavam de uma situação melhor. William Crocker conta como em 1900 os Txocamecrá foramrecebidos ritualmente para integrarem a aldeia dos Canela (ditos Ramkôkamekrá). 2.5 Frentes de expansão sobre os povos falantes de línguas das famílias Kamacã, Maxakalí, Botocudo e Purí durante o século XIX A região fronteiriça entre os atuais estados de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro ficou um tanto à margem do interesse dos colonizadores durante os três séculos de domínio lusitano. Com a decadência da extração do ouro em Minas Gerais, essa região, cujas matas serviram como barreira para evitar o desvio do precioso metal da cobrança do quinto e da exportação legal, tornou-se atrativa para a exploração econômica e os povos indígenas que aí viviam tornaram-se um Julio Cezar Melatti 46 obstáculo a ser removido para os empreendedores agrários, pecuaristas, mineradores e mesmo para o pequeno agricultor. A violência que desencaderam contra os índios foi apoiada pela carta-régia do príncipe- regente D. João de 13/05/1808, que declarava guerra ofensiva contra os botocudos de Minas Gerais, até quando pedissem paz “movidos pelo justo terror”. Outra, de 01/04/1809, estabelecia a escravidão por 15 anos a partir do batismo do prisioneiro, ou a partir da idade de 14 anos para os rapazes e de 12 anos para as moças. Um artigo de Maria Hilda Paraíso (1992) detalha toda a campanha contra os botocudos, desde a movimentação de tropas, recrutamento de voluntários, cooptação de indígenas já submetidos, aldeamento de botocudos junto a guarnições policiais, fortemente apoiada pelo governo real, depois imperial, e das províncias, que perdurou pela primeira metade do século XIX. A situação dos Maxakalí, que talvez não tenham sofrido campanha tão dura, mas também passaram por repressão e espoliação dos invasores de suas terras, é tema de um volume que inclui artigos de Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella de Amorim e Sonia de Almeida Marcato (1980). José Otávio Aguiar (2010) aborda a situação dos Purí e Coroados na mesma época. Mas nada encontrei sobre a situação dos povos da família linguística Kamakã. 2.6 Os Jê do Sul frente à imigração europeia e a expansão cafeeira na segunda metade do século XIX e início do seguinte Os Kaingang, então chamados de coroados, e os Xokleng, apelidados de Botocudos, já tinham algum contato com os brancos no período colonial, pois um caminho ligava Viamão (perto da atual Porto Alegre) a Sorocaba, em São Paulo. Burros criados no Rio Grande do Sul eram levados até a feira de Sorocaba e aí vendidos para serem conduzidos às regiões auríferas. No tempo do Segundo Império, houve até missão capuchinha entre os Kaingang do Paraná (Amoroso 1998). Porém, companhias de colonização, ao venderem a imigrantes europeus terras habitadas por índios como se estivessem desocupadas, desencadeiam o conflito entre uns e outros. A situação mais aguda, que se prolonga até a segunda década do século XX, é a dos Xokleng, em Santa Catarina (Santos 1970, 1973). Os bugreiros, homens que, com sua tropa armada, vendiam seus serviços àqueles que desejavam desembaraçar-se da presença dos índios, massacravam-nos. Além disso, em São Paulo, desencadeia-se o conflito com os Kaingang, no começo do século XX, com a construção de ferrovias, estimuladas pela expansão dos cafezais, Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê 47 que entram pelas terras indígenas. A gravidade e prolongamento desses conflitos chegam às cidades, onde a opinião pública se divide, uns a favor da extinção dos índios em nome do progresso, outros que propõem uma solução humanitária. A solução virá com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910. 2.7 Expansão dos Kayapó por sucessivas cisões de suas aldeias, a partir do final do século XIX e prolongando-se pelo seguinte Em sua tese de doutorado, Terence Turner (1966: 48-78) reconstitui a história desse processo, que continuava no tempo de sua pesquisa de campo. Depois dele, Gustaaf Verswijver (1978) continuou a historiá- lo. Sem entrar em detalhes, a partir da margem esquerda do baixo Araguaia, os Kayapó deslocaram-se para oeste, cindindo-se primeiro em dois ramos, os Xikrin e Gorotire, e destes, mais tarde, destacaram-se os Menkragnoti. Imagino que os Timbira podem ter passado por um processo semelhante, multiplicando-se em vários povos no Piauí e no Maranhão em séculos precedentes ao XIX, quando, alcançados pelas fazendas de gado, foram dizimados, enfraqueceram-se e estagnaram-se. Mas os Kayapó ficaram a salvo dos criadores de gado, que encontraram uma barreira no Araguaia, além da qual começava a floresta amazônica, que não podia ser transformada em pastagens com a tecnologia da época. 2.8 Expansão das agropecuárias no norte do estado de Mato Grosso na segunda metade do século XX Nessa região se formam três importantes rios: o Xingu, o Teles Pires e o Juruena. Os dois últimos, por sua vez, formam o Tapajós. Nela as agropecuárias foram precedidas por seringueiros, além de, a leste, pela criação do Parque Nacional (depois, Indígena) do Xingu (PIX) e, a oeste, pelos instaladores da linha telegráfica dirigidos por Rondon e pela missão jesuítica sediada em Utiariti. O avanço das agropecuárias sobre as terras dos indígenas sujeitou-os a violências, desalojamento, contaminação por moléstias, depopulação, de modo que, em alguns casos, achou-se mais fácil transferi-los para o PIX do que lhes garantir a defesa dos territórios originais. Limitando-me aos Jê, um dos povos transferidos foram os Tapayuna, retirados das vizinhanças do alto Juruena e levados a morar junto com os Suyá , que já estavam no Xingu desde longa data (Karl von den Steinen aí os encontrara em 1884), sob Julio Cezar Melatti 48 alegação de que ambos falavam a mesma língua, pois teriam constituído um único povo no passado. Além disso, ambos estavam muito reduzidos em população e a união os ajudaria a se recuperar. Depois de alguns anos de vida em comum, os Tapayuna resolveram ir viver junto aos Mekrangnotire, na Terra Indígena Capoto-Jarina, que fica logo ao norte do PIX, apenas separada pela estrada BR-80. Outro povo Jê transferido para o PIX foram os Panará, retirados de suas terras no rio Peixoto de Azevedo, afluente do Teles Pires, e no alto Iriri, afluente do Xingu. Depois de alguns anos no PIX, os Panará conseguiram recuperar parte das terras de que tinham sido espoliados e para lá voltaram. Na região há ainda os Rikbaktsá, falantes de uma língua do tronco Macro-Jê, do trecho acima e abaixo da confluência do rio Arinos com o Juruena, que, depois de passarem por problemas semelhantes aos sofridos pelos Tapayuna e Panará, conseguiram manter-se no mesmo trecho em três terras indígenas que lhes foram reconhecidas. 3. Corridas de toras Volto, então, a minha pergunta inicial, que é: em que as culturas dos povos Macro-Jê se parecem? Que caminho tomar para esboçar alguma resposta? Resolvi começar por aquilo que é mais visível e palpável. Por que não as corridas de toras? E com a vantagem de Curt Nimuendajú (2001) já ter feito o trabalho para nós. Teria sido desejável que os tradutores (Hans Peter Welper & Elena Welper) de seu texto de 1934 (data constante do final da tradução, p. 182) para o português tivessem escrito uma nota que informasse se o original em alemão foi publicado; e também por que foi necessário traduzi-lo, se Nimuendajú escrevera uma versão em português em 1944, como dão a entender as notas de rodapé da pág. 154. A preocupação de Nimuendajú é combater a ideia muito difundida de que a corrida de toras é um teste para o acesso ao casamento. Ele quer demonstrar que na realidade ela é um esporte e que, também, está relacionada a rituais. Por isso, discorre longamente sobre metades e outros grupos rituais dos Canela (Ramkôkamekrá) e Apinajé, cujos membros participam nas corridas. Mas, o que nos interessa mais de perto aqui é o mapa (2001: 173) em que marca os povos indígenas que fazem ou faziam corridas de toras, seguido de uma tabela
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