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HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO V (IDADE CONTEMPORÂNEA) Jana Cândida Castro dos Santos As cidades e as reformas urbanas no século XIX Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever o movimento da reforma urbana na Europa. � Identificar os projetos de reforma urbana no Brasil. � Reconhecer a herança da reforma urbana. Introdução Os avanços tecnológicos abriram caminho para mudanças técnicas e estéticas, fazendo surgir a cidade industrial do século XIX. Ao longo de todo esse século, assiste-se a uma forte migração do campo para a cidade, e consequente aumento da população urbana. Esse intenso aumento demográfico, por sua vez, exige respostas do espaço urbano em termos de habitações, novos equipamentos e serviços urbanos. Por meio de princípios higienistas e de embelezamento das grandes capitais, as reformas urbanas buscaram solucionar o caos instalado nas cidades. Neste capítulo, você verá a descrição do movimento da reforma ur- bana na Europa e identificará projetos de reforma urbana no Brasil, de modo a reconhecer a herança da reforma urbana. Cidade do século XIX e movimento de reforma Revolução Industrial e cidade A Revolução Industrial do século XIX teve um forte impacto nas cidades e no modo de habitá-las. Na arquitetura, notam-se mudanças em relação aos procedimentos construtivos e técnicos, assim como em relação às exigências arquitetônicas, enquanto que, na cidade, vemos o aumento dos problemas urbanos e transformações da paisagem. São deste período, conhecido como o século da indústria e do progresso, as invenções revolucionárias: a má- quina a vapor, o motor das indústrias, a força dos barcos e locomotivas, o dínamo – responsável por gerar eletricidade e tornar possível o abastecimento da população através da rede pública –, o telégrafo, o telefone, entre outras (ALONSO PEREIRA, 2010). Na segunda metade do século XIX, a Europa se vê imersa em uma vida moderna, onde o progresso se vincula à materialização de locomotivas, projetos urbanísticos, bondes e rede pública de eletricidade. Para Alonso Pereira (2010, p. 204), é “[...] quando os fundamentos socioeconômicos e arquitetônicos fixados anteriormente alcançam seu adequado desenvolvimento e manifestação”; e neste caso se refletem também no campo do urbanismo e dos ideais urbanos. A locomotiva e a rodovia revolucionam os sistemas de comunicação urbanos e interurbanos, e com isso são definidas novas portas da cidade e uma nova forma de organizar o tráfego urbano. Neste contexto vemos novas necessidades, formas de vida urbana e de arquitetura. As redes públicas urbanas (gás e eletricidade), em seguida, também impac- tam o meio urbano, visto que “[...] permitem a iluminação de ruas e praças, e com isso a vida noturna das cidades, convertendo Paris — e, por extensão, todas as grandes capitais — em ville lumière (cidades iluminadas)”, segundo Alonso Pereira (2010, p. 204). Por fim, cita-se o telégrafo e o telefone, que trazem revoluções no campo das comunicações. Neste período também tem destaque a criação do elevador. Siemens constrói seu primeiro elevador em 1881, generalizando a invenção hidráulica de Elisha Otis (1853), que permite a edificação em altura e torna possível o aparecimento de novas tipologias edificatórias (industriais, comerciais e residenciais) e, finalmente, dos grandes arranha- -céus construídos pelos arquitetos americanos (ALONSO PEREIRA, 2010). As cidades e as reformas urbanas no século XIX2 Com as novas invenções, volta-se a pensar a cidade em função da máquina, da circulação e dos transportes (ALONSO PEREIRA, 2010). Como exemplos do urbanismo com caráter científico, racional e progressista, consequência da Revolução Industrial, temos: � Cidade linear (Soria): modelo de cidade concebido pelo urbanista es- panhol Arturo Soria y Mata no final do século XIX, construído como um bairro experimental em Madrid, na Espanha, entre 1894 e a década de 1920, formado a partir de um eixo central. � Cidade motorizada (Hénard): Eugène Hénard foi um urbanista francês dedicado ao desenvolvimento da cidade de Paris. Entre suas ideias destaca-se a de “perímetro de radiação”; para ela seria necessária uma via circular que recolhesse as circulações radiais, amenizando o trânsito em sentido centro-periferia. � Cidade industrial (Tony Garnier): proposta pelo arquiteto francês Tony Garnier no início do século XX, com ênfase na setorização do espaço urbano. � Cidade nova (Sant’Elia): Antonio Sant'Elia propôs desenhos de grande impacto para a Città Nuova (Cidade Nova), com ênfase nos princípios futuristas. Seu modelo de cidade, desenhado por volta de 1912, exaltava arranha-céus, passarelas e vias suspensas para veículos. Com a Revolução Industrial surgem os progressos técnicos, os novos materiais e a industrialização da construção, assim como as novas maneiras de pensar, construir e reformar as cidades. Cidade do século XIX Com as mudanças técnicas e estéticas, mencionadas anteriormente, vemos um novo tipo de cidade surgir – a cidade industrial do século XIX, primeiramente devido ao aumento demográfico. Ao longo de todo o século XIX, se assiste a uma forte migração do campo para a cidade; a população urbana durante o período é praticamente triplicada, o que exigiu respostas do espaço urbano em termos de habitações, novos equipamentos e serviços. 3As cidades e as reformas urbanas no século XIX Dados do aumento demográfico � Século XVIII: aproximadamente 180 milhões de habitantes. � 1800 a 1914: aproximadamente 450 milhões. Durante o século XIX, a população europeia se torna duas vezes e meia maior (ALONSO PEREIRA, 2010). Enquanto isso, a revolução econômica traz consigo novos projetos e infra- estruturas industriais, também levando ao crescimento dos núcleos urbanos. Juntas, as revoluções demográfica e econômica trazem consequências que se manifestam ao longo do século sem que exista no primeiro momento instru- mentos capazes de gerenciar o crescimento e ordenar a distribuição territorial. Alonso Pereira (2010, p. 209) revela que: Na metade do século, a insuficiência dessas expansões interiores chega a forçar uma expansão exterior de duas formas distintas: a expansão espontânea em forma de subúrbios e bairros próximos ao assentamento urbano inicial, e a expansão planejada em forma de ampliações de cidades e planos urbanísticos. Vê-se que há duas formas de crescimento das cidades em razão das migra- ções originadas pela industrialização. Por um lado, as expansões planejadas ordenam os assentamentos burgueses e conseguem orientar a urbanização dos novos espaços, ao contrário da espontânea. Em decorrência, temos os contrates entre os bairros burgueses e as favelas e bairros dos proletariados. E são exatamente em meio a essas contradições – indústria e burguesia – que são geradas as primeiras alternativas urbanas. A cidade do século XIX se modela às novas infraestruturas viárias e de transporte, das quais temos a locomotiva e os bondes, enquanto o traçado viário, separando o público e o privado, passa a constituir o princípio gerador da trama urbana. As ruas antigas, antes geralmente estreitas e irregulares, dão lugar a novas ruas, largas e regulares, passando pelos bairros novos e antigos. As novas ruas atuam como articulações entre a cidade e seus distintos bairros. As cidades e as reformas urbanas no século XIX4 A ampliação da cidade se une à transformação e reforma da parte histórica, em que as novas intervenções acarretam rupturas no tecido urbano a partir de demolições de prédios em massa. São previstos novos eixos a atravessar a cidade para “[...] conectar suas estruturas fundamentais e tornar habitáveis os recintos antigos” (ALONSO PEREIRA, 2010, p. 210). A cidade europeia do século XIX vai se moldando e unindo as novas malhas às históricas, formando um mosaico urbano a partir de diversas peças, como revela Alonso Pereira (2010). Reformas urbanasNo período marcado por expansões e intervenções urbanas nas capitais eu- ropeias, Paris se torna um modelo arquitetônico e urbano de difusão interna- cional, fundamentado no Plano de Haussmann. Georges Eugène Haussmann (1809–1891), conhecido principalmente como Barão Haussmann, foi prefeito do antigo departamento do Sena (que na época incluía os atuais departamentos de Paris, Hauts-de-Seine, Seine-Saint-Denis e Val-de-Marne), entre os anos de 1853 e 1870. Haussmann foi responsável pela reforma urbana de Paris, seguindo determinações de Napoleão III, e tornou-se assim muito conhecido na história do urbanismo e das cidades. O plano previa a remodelação da cidade unida ao seu crescimento através do traçado urbano e novos equipamentos. O novo sistema viário (Figura 1) indicava grandes bulevares e articulação das vias, tanto aproveitando as exis- tentes como criando outras, ora em zonas de expansão, ora rompendo o tecido histórico. Além disso, a atuação de Haussmann acarretou, segundo Alonso Pereira (2010, p. 211), “[...] a divisão administrativa da cidade em bairros e distritos” e previa “[...] a adoção de cada um dos equipamentos urbanos correspondentes: prefeituras, escolas, igrejas, mercados etc.” (ALONSO PEREIRA, 2010, p. 211). 5As cidades e as reformas urbanas no século XIX Figura 1. A Paris de Haussmann, modelo arquitetônico e urbano. Fonte: Alonso Pereira (2010, p. 211). É preciso destacar que os equipamentos propostos e os seus edifícios correspondentes foram locados em lotes especiais de maneira a isolá-los como edificações singulares e convertê-los assim em monumentos. E em relação ao tecido residencial urbano, os edifícios privados obrigatoriamente deviam harmonizar-se com os vizinhos, articulando-se com eles de acordo com os critérios de unidades, seguindo as leis municipais. Enquanto Paris adotou uma expansão orgânica, através da conjugação de artérias radiais e anelares, as metrópoles latinas optaram por opor uma malha ortogonal ao traçado irregular das cidades. Nesse âmbito havia dois esquemas reguladores — centralização e descentralização. A maioria dos planos adotava a primeira opção — “[...] considerando a cidade herdada como centro da nova trama urbana” —, como explica Alonso Pereira (2010, p. 212), enquanto outros elegiam a trama autônoma — “[...] conectada, mas não subordinada à anterior” (ALONSO PEREIRA, 2010, p. 212). As cidades e as reformas urbanas no século XIX6 Entre os tantos casos de ampliações, como Atenas e Madri, Turim e Bilbao, o do Plano de Cerdà (1859) para Barcelona (Figura 2) é um exemplo paradig- mático, em vista de suas previsões para o futuro crescimento da cidade e da modelagem da Teoria Geral da Urbanização do autor. O engenheiro urbanista catalão propôs “[...] uma organização policêntrica com bairros diferentes que gozam de autonomia entre si e com a Barcelona histórica” (ALONSO PEREIRA, 2010, p. 212). A partir da relação com a memória da cidade é que Cerdà constrói uma nova malha viária personalizada, propõe avenidas ortogonais ou diagonais, em consonância com a história urbana. Figura 2. O plano de Cerdà — exemplo paradigmático das ampliações do século XIX. À direita, a cidade antes da ampliação; ao lado, a implantação na malha urbana existente de Barcelona. Fonte: Alonso Pereira (2010, p. 212). Teoria Geral da Urbanização Com modernidade extrema, nessa teoria Ildenfonso Cerdà imagina a cidade de dentro para fora. Em primeiro lugar, ele define o elemento primário: a quadra, cujo agrupamento determina o bairro, e estes, por sua vez, definem o setor urbano, cada um em torno de seus correspondentes centros de bairro e distrito. A cidade será a soma desses setores urbanos vertebrados linearmente por uma avenida principal e equipados convenientemente na escala metropolitana (ALONSO PEREIRA, 2010). 7As cidades e as reformas urbanas no século XIX Já no caso da cidade americana do século XIX, temos em geral o desen- volvimento de sistemas hipodâmicos construídos a partir de um traçado em tabuleiro xadrez, com extraordinária regularidade para resolver o aumento demográfico. Dentre os exemplos, temos Buenos Aires e Chicago, mas tem destaque a ilha de Manhattan em Nova York (Figura 3). Sua superfície, similar à da ampliação de Barcelona, é atravessada por grandes avenidas longitudinais combinadas a 150 ruas transversais separadas de forma uniforme. As ruas definem quadras iguais, que, por sua vez, permitem inúmeras possibilidades de construção urbana, segundo Alonso Pereira (2010). Figura 3. Entorno da cidade de Nova York e construção da ilha de Manhattan. Fonte: Alonso Pereira (2010, p. 213). O esquematismo presente na maioria dos planos de expansão do século XIX foi criticado, e isso abriu caminho para uma renovação da cidade e da arquitetura. Nesse contexto temos a publicação de Construção de cidades segundo princípios artísticos, de Camillo Sitte, em 1889 — nesta obra Sitte expõe suas teorias urbanísticas abordando a dimensão estética das cidades para além das necessidades funcionais, e exaltando a construção da cidade a partir da visão do cidadão - e o início dos preparativos para a Exposição Universal de Chicago realizada em 1893. Nas palavras de Alonso Pereira (2010, p. 213), As cidades e as reformas urbanas no século XIX8 “[...] ambos assinalam, no âmbito internacional, o ponto de partida dessa nova visão urbana que une monumentalidade e o pitoresco e propõe conjuntamente a dignificação da cidade: a cidade como obra de arte, como ideal arquitetônico e urbano”. Esse ideal se difunde por toda parte até 1900, quando os métodos que nortearam a expansão urbana do século XIX começam a ser repensados e a cidade passa a ser vista como um organismo complexo. Sistema hipodâmico: plano urbanístico utilizado pelos gregos, no qual a cidade era traçada com ruas paralelas e perpendiculares a uma grande avenida. Reformas urbanas no Brasil O movimento de ação reformadora que se difundiu pelas cidades europeias teve seu impacto também na América do Sul. No Brasil, as reformas urbanas começaram a ser discutidas desde o último quartel do século XIX e foram postergadas até o século seguinte. Rio de Janeiro O Rio de Janeiro, capital do país, adentrava o século XX com uma estrutura urbana ainda colonial marcada por ruas estreitas e sinuosas, adaptadas ao terreno acidentado, com arquitetura e equipamentos urbanos compatíveis com a herança dos tempos coloniais. Desde o século XIX, a capital carioca era vista como foco de doenças e desordem na ocupação do espaço urbano, pois convivia ainda com a falta de infraestrutura urbana – “[...] como falta de água, esgotamento sanitário ineficiente, calçamento precário, deficiência de iluminação, além de um porto sensivelmente inadequado à movimentação de mercadorias que por ele transitavam” (AZEVEDO, 2008, p. 9). Na Figura 4, uma foto do Rio de Janeiro em 1865. 9As cidades e as reformas urbanas no século XIX Figura 4. Rio de Janeiro em 1865, então capital do Império do Brasil. Fonte: Leuzinger ([ca 1865]). Combinados a esses problemas urbanos, tem-se um forte crescimento da população carioca durante a segunda metade do século XIX, com destaque para a virada do século. As causas desse crescimento são variadas: o fim da escravidão, o crescimento e a diversificação das camadas médias urbanas e o grande contingente de imigrantes estrangeiros. Somente uma grande reforma urbana no Rio de Janeiro daria cabo de tantos problemas urbanos, que já se refletiam nas esferas política e econômica. Desse modo, Azevedo (2008, p. 11) revela: A reforma urbana do Rio de Janeiro vinha, portanto, entre outros ofícios, buscar angariar a simpatia do regime entre a opinião pública brasileira e a população da capital federal, dado fundamental para a conquista da boa governança, uma dificuldade patente durante a primeira década da República. As cidades e as reformas urbanas no século XIX10 Assim, buscando equacionar tanto os objetivos cariocas comoos objetivos nacionais, a reforma urbana foi dividida em duas frentes, uma sob comando do governo federal e outra sob responsabilidade do municipal. A primeira se responsabilizaria pela reforma e ampliação do porto, das áreas próximas e pela construção de três avenidas para que as mercadorias pudessem ser escoadas (a saber, a atual Avenida Rodrigues Alves, à margem do porto, a atual Avenida Francisco Bicalho e a atual Avenida Rio Branco). O restante da cidade ficou a cargo da reforma urbana municipal, cujo responsável foi o engenheiro Pereira Passos, nomeado prefeito da cidade em 1902. Pereira Passos, nascido em 1836, formou-se em engenharia pela Escola Militar do Largo de São Francisco e, logo após, vai para a França influenciado pelo pai, que pretendia corrigir-lhe o rumo assumido pela escolha de uma profissão com baixo status social no Brasil do século XIX. Em Paris, acompanhou parte da grande reforma urbana de Haussmann e atuou como engenheiro auxiliar em obras de estradas férreas no interior da França. Após alguns anos, retorna ao Brasil, onde desenvolve uma carreira como engenheiro no serviço público imperial até assumir a chefia da Comissão de Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, em 1874 (AZEVEDO, 2008). A reforma carioca — em termos de sua arquitetura e equipamentos urbanos, arranjo viário e urbanístico — buscou referências na capital e na cultura fran- cesa de modo geral, sem almejar uma cópia da reforma urbana de Haussmann, como alerta Azevedo (2008) em sua pesquisa. Na concepção urbanística, Pereira Passos primou pelo resgate da dimensão de totalidade da cidade e de seu caráter orgânico, que é ameaçado frente ao crescimento acelerado das urbes modernas do século XIX. A Figura 5 é uma fotografia de 1909 da Avenida Central, idealizada por Pereira Passos. 11As cidades e as reformas urbanas no século XIX Figura 5. Avenida Central. À esquerda, o Theatro Municipal; à direita, a Escola Nacional de Belas Artes (foto de Marc Ferrez [1909]). Pereira Passos idealizou e realizou a Avenida Central, com 1.800 metros de comprimento e 33 metros de largura, a atual Avenida Rio Branco, um dos mais importantes logradouros da cidade ainda hoje a exercer o papel de centro econômico e administrativo. É considerada um dos marcos de sua administração. Fonte: Ferrez ([ca 1909]). Para Passos, o intuito era “[...] interconectar as diversas regiões da urbe, facilitando e estimulando a circulação entre elas, a fim de que a cidade possa não só ser pensada, mas também funcionar como um todo orgânico”, além de preservar o centro histórico da cidade em termos urbanos e arquitetônicos (AZEVEDO, 2008, p. 15). Para saber mais detalhes sobre a reforma urbana do Rio de Janeiro, leia o artigo “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana”, de André Nunes de Azevedo (2015). As cidades e as reformas urbanas no século XIX12 Salvador Muitos autores reconhecem Paris como uma referência para as diversas re- formulações de cidades pelo mundo, entre elas algumas brasileiras. Além da cidade do Rio de Janeiro, são consideradas como uma influência recebida de Haussmann as reformas realizadas em Salvador e Belém. No início do século XX, Salvador era o retrato de uma cidade suja, com deficiência de moradias e transportes, onde cortiços e outros tipos de moradias insalubres eram construídos de maneira desordenada e precária. A Figura 6, a seguir, mostra o Pelourinho em 1900. Segundo Britto, Mello e Matta (2017, p. 112): As moradias nesta época eram, em sua grande maioria, sobrados e casas térreas, com a precariedade de higiene e muitas vezes em ruínas, habitadas normalmente por ex- escravos alforriados à procura de oportunidade de trabalho no centro urbano. Salvador possuía um grande fluxo de população e sua estrutura colonial prejudicava tal processo. As epidemias de doenças como tuberculose, febre amarela, cólera, febre tifoide eram constantes, a cidade necessitava de mudanças. A elite na época se envergonhava com tal situação e passou a idealizar uma cidade “civilizada”, o que ajudou a reforma acontecer, assim como a visão econômica, que tinha como objetivo ligar o porto de Salvador a outras áreas, através de meios de transportes rápidos, confortáveis e baratos Figura 6. O Pelourinho em 1900. Fonte: Salvador Bahia, Brazil, street scene ([ca 1900]). 13As cidades e as reformas urbanas no século XIX As primeiras intervenções em Salvador foram realizadas na parte baixa da cidade com o objetivo de ampliar sua área, reformar o porto, melhorar sua circulação e salubridade. Em relação à rede viária existente, foi melhorada a ligação entre a parte alta e a parte baixa da cidade, e implantada uma ferrovia. Na malha urbana - caracterizada por ruas estreias e sinuosas, herança colonial - foram abertas ruas largas, onde as vias principais eram pavimentadas. Nelas foram incluídos serviços de água, de esgotamento, iluminação e transporte público. Deve-se ressaltar que, aqui, segundo Porto e outros autores (2007, p. 2716), “[...] a diferença é que a malha se alarga, mas não há mudança no traçado urbano”. Na Figura 7, vemos uma imagem de Salvador em 1875. Figura 7. Salvador em 1875. Fonte: Lindemann ([ca 1875]). As grandes reformas na capital baiana foram propostas por José Joaquim Seabra (1855-1942), governador da Bahia entre os anos de 1912 a 1916 e depois de 1920 a 1924, com o objetivo de promover o progresso e a modernização de Salvador, para transformá-la em uma potência do Brasil. Para representar a modernidade, antigos logradouros e prédios antigos foram arrasados, elegendo- As cidades e as reformas urbanas no século XIX14 -se novos espaços. A Avenida Sete de Setembro é um exemplo das novas construções. Nas palavras de Britto, Mello e Matta (2017, p. 112), Joaquim Seabra almejava “[...] o embelezamento da cidade e a instalação do progresso a qualquer custo, mesmo que fosse preciso derrubar monumentos e edifícios que faziam parte do patrimônio histórico da cidade”. As reformas tiveram início entre 1912 e 1916, seguindo até a década de 1940, em vista da higiene, funcionalidade, fluidez e novas tipologias arquitetônicas, como revelam os autores. Belém No caso de Belém, as reformas urbanas foram assumidas pelo intendente municipal Antônio Lemos, que assumiu o posto em 1897, no auge da economia da borracha. Naquele período a maior parte dos investimentos se voltou para os sistemas viário urbano, de saneamento e de iluminação pública. A exemplo da capital francesa, Belém estava passando por um processo de “embelezamento estratégico”, nas palavras de Porto e outros autores (2007). Lemos exaltava os palacetes como o padrão edilício a ser reproduzido ao longo do espaço urbano (CRUZ, 1973 apud PORTO et al., 2007), como se vê na Figura 8. Figura 8. Palacete Bibi Costa. Fonte: Porto et al. (2007, p. 2716). 15As cidades e as reformas urbanas no século XIX Durante a administração de Lemos, o bairro chamado “Marco” foi me- lhorado, com a abertura de novas vias no sentido nordeste-sudeste, de modo a adequar-se à intensificação do tráfego (Figura 9). Segundo Porto e outros autores (2007, p. 2716), as ruas principais abertas apresentavam 44 metros de largura, enquanto as transversais, 22 metros, configurando uma malha ortogonal e regular, onde as quadras mediam 125 x 250 metros. O plano de urbanização do bairro também compreendia os parques e áreas verdes, a exemplo da reforma feita no Bosque Rodrigues Alves. Figura 9. Avenida Tito Franco (atual Avenida Almirante Barroso), via de saída da cidade de Belém. Fonte: Porto et al. (2007, p. 2716). Antonio Lemos ainda adotou um código de posturas para determinar normas para as novas construções, o que acabou retirando a população de renda mais baixa do centro da cidade. A legislação proibia a permanência e a construção de “barracos” nos bulevares construídos. No entanto o código foi mais abrangente no bairro do Marco, caracterizando-o de maneira diferente do restante da cidade.Desse modo, o bairro do Marco foi considerado como “[...] a primeira obra de planejamento urbano realizada em Belém” (PORTO et al., 2007, p. 2716). As cidades e as reformas urbanas no século XIX16 Herança da reforma urbana Herança “haussmaniana” A partir das reformas empreendidas na capital francesa entre os anos de 1853, a cidade se tornou a “Paris de Haussmann”. Os melhoramentos no espaço urbano se deram com a execução de redes de iluminação, esgoto, transporte público, abertura de vias, construção de parques e edifícios públicos baseados em princípios higienistas. As reformas foram guiadas por três princípios básicos: “[...] circulação acessível e confortável dentro da cidade; eliminação da insalubridade nos bairros densos; revalorização e reenquadramento dos monumentos, unindo-os através de eixos viários”, de acordo com Porto e outros autores (2007, p. 2715). Na metrópole francesa do século XIX, o espaço público passa a ser va- lorizado em decorrência da abertura de bulevares, construção de praças e superação do então traçado urbano medieval. Adotam-se novas retículas viárias, que permitem um tráfego fluido pelo centro da cidade. O quarteirão ganha permeabilidade, enquanto que para suprir o déficit habitacional são construídas casas populares. Mas é importante ressaltar que as reformas de Haussmann almejavam uma cidade moderna, burguesa, mesmo que para isso fosse necessário pôr abaixo centenas de edifícios. As reformas trouxeram vias amplas e aspectos mais salubres para a cidade industrial, no entanto, acentuaram a segregação social, tal como enfatizam Porto e outros autores (2007), com a criação de quarteirões para os ricos e outros para os pobres. As reformas encabeçadas por Haussmann acabaram criando um molde para a melhoria do espaço urbano, como afirmam os autores — “[...] abertura de grandes avenidas, demolições de velhas edificações, higienização da cidade e implantação de serviços urbanos” (PORTO et al., 2007, p. 2715), tornando-se uma grande influência para as remodelações das cidades europeias, assim como para as brasileiras. Herança de Cerdá Além da herança das reformas encabeçadas por Haussmann, devemos res- saltar também a herança deixada por Cerdà, um dos primeiros teóricos do urbanismo da época moderna. Salienta-se que Cerdà, segundo Debrassi (2006), foi responsável por introduzir o conceito de urbanização, com o intuito de instaurar uma nova ciência dos estudos das cidades, de onde se derivou mais tarde a disciplina Urbanismo, como hoje a conhecemos. Juntamente 17As cidades e as reformas urbanas no século XIX aos parâmetros inovadores do plano de reformas para Barcelona, Cerdà apresenta uma extensa produção gráfica no campo do urbanismo, a partir de diferentes detalhes que permitem construir uma cidade. Para Francoise Choay, a obra de Cerdà é “[...] a certidão de nascimento e o arquétipo das teorias do urbanismo”, e por isso sua grande importância (CHOAY, 1985 apud DEBRASSI, 2006, p. 74). Assim podemos concluir que o arquiteto que conceituou o plano regulador de Barcelona deixa uma importante herança, já que também traz à luz o termo “urbanismo”, e se coloca como o primeiro teórico da disciplina como ciência. ALONSO PEREIRA, J. R. Introdução à história da arquitetura: das origens ao Século XXI. Porto Alegre: Bookman, 2010. ARAUJO, V. O papel da fotografia na construção simbólica das reformas urbanas. Rio de Janeiro, 1904–1906. Urbana, v. 6, n. 9, p. 47-69, ago./dez., 2014. Disponível em: https:// periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/download/8642616/pdf/. Acesso em: 02 set. 2019. AZEVEDO, A. N. As reformas urbanas de Camilo Sitte e Pereira Passos: a modernidade do Rio de Janeiro e de Viena sob a égide da tradição. Revista Intellectus, ano 7, v. 2, 2008. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/ view/27642/19828. Acesso em: 02 set. 2019. BRITTO, L.; MELLO, M.; MATTA, R. O processo de transformação urbana de Salvador-BA. Revista de Desenvolvimento Econômico — RDE, ano 19, v. 2, n. 37, p. 111–127, ago. 2017. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/rde/article/viewFile/4680/3232. Acesso em: 02 set. 2019. CHOAY, F. A regra e o modelo. 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Acesso em: 02 set. 2019. LINDEMANN, R. View from Salvador, province of Bahia. [ca 1875]. 1 fotografia. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Salvador_Brasil_1875.jpg. Acesso em: 02 set. 2019. PORTO, A. L. G. et al. A influência “Haussmanniana” nas intervenções urbanísticas em cidades brasileiras. In: ENCONTRO LATINO AMERICANO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 11., 2007, São José dos Campos; ENCONTRO LATINO AMERICANO DE PÓS-GRADUAÇÃO, 7., 2007, São José dos Campos. Anais [...]. São José dos Campos, SP: Univap, 2007. Disponível em: http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2007/trabalhos/sociais/epg/EPG00214_01O. pdf. Acesso em: 02 set. 2019. SALVADOR Bahia, Brazil, street scene. [ca 1900]. 1 fotografia. Disponível em: https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:SalvadorBahia1900.jpg. Acesso em: 02 set. 2019. SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Ática, 1992. 19As cidades e as reformas urbanas no século XIX
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