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1ª PARTE: A QUÍMICA DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XVIII CAPÍTULO I: A QUÍMICA NO SÉCULO XVI O século XVI testemunhou mudanças profundas na sociedade europeia. A descoberta de novas terras com tantas coisas novas e insuspeitadas aguçou o sentimento de que o conhecimento dos antigos, fossem eles filósofos pagãos da antiguidade ou doutores cristãos do medievo, era limitado e havia muito mais para se conhecer do que se supunha até então. A dúvida sobre as certezas herdadas do passado teve um papel fundamental na construção da Revolução Científica que se desencadeou a partir do século XVI. Novas explicações tinham que ser buscadas fora dos arcabouços tradicionais, para dar conta de tanta novidade que aparecia. Simultaneamente, a ocupação e colonização de vastos continentes levou a uma gigantesca expansão das atividades manufatureiras na Europa, numa escala nunca vista. Com efeito, para a tarefa de colonização global era preciso dispor de quantidades imensas de armas e munição, inúmeros tipos de instrumentos metálicos, fossem de ferro, bronze ou outros metais e ligas, usados na agricultura, na construção de edifícios e em várias outras atividades, objetos os mais variados de cerâmica, vidro, couro, quantidades imensas de papel, e assim por diante. A atividade mineira e metalúrgica desenvolveu-se de forma intensa na Europa Central, sobretudo nas regiões de cultura germânica. Tudo isto produziu um importante corpo de conhecimento sobre os metais, sua obtenção, propriedades, etc, assim como a descoberta de novos metais, desconhecidos dos antigos. A comunicação entre pessoas e povos se intensificou pela rápida difusão da imprensa a partir de meados do século XV. Também a comunicação física entre pessoas aumentou, pelas viagens por todo o planeta, pelas constantes guerras, sobretudo as guerras de religião, advindas da quebra da hegemonia papal no Ocidente com as reformas da religião cristã em suas diversas modalidades. Muitas doenças novas, contagiosas ou não, difundiram-se rapidamente, como a sífilis, no primeiro caso, e a avitaminose C, ou escorbuto, no segundo. A medicina começou a mudar bastante nessa época, levando consigo a química. O começo da chamada "Longa Revolução Química", que duraria dois séculos e meio, data da primeira metade do século XVI, e teve dois eixos principais. O primeiro, nascido na primeira metade do século, começou com o químico e médico prático suíço Filipe Teofrasto Paracelso (1493-1541). Paracelso tinha um profundo senso místico e acreditava que a função da química era curar as doenças humanas. Ele fundou aquilo que se convencionou denominar iatroquímica, ou química medicinal. Para ele, a função do químico era preparar compostos específicos para curar as doenças. Ele foi o introdutor do conceito de etiologia das doenças, isto é, cada doença tem sua causa própria. Para ele, as causas eram todas químicas, por isso era com a química que as doenças deviam ser curadas. O corpo humano era, na sua concepção, um verdadeiro laboratório químico, onde um sem-número de reações eram processadas continuamente. Ele se insurgiu contra a teoria galênica, vinda da antiguidade clássica, em que a doença era encarada como uma perturbação no equilíbrio dos "humores" existentes no corpo humano. Havendo, por exemplo, excesso do humor sangue, o médico devia executar uma sangria no paciente. Estando este debilitado pela doença, muitas vezes o tratamento piorava a situação. Os medicamentos eram em geral de origem vegetal e se apresentavam como "panacéias", misturas às vezes bastante heterogêneas contendo dezenas de ingredientes. O conceito paracelsista de etiologia da doença levou a uma busca por medicamentos precisos para cada enfermidade. Paracelso também ampliou o leque de substâncias a usar, ao propor e praticar a síntese de novos medicamentos sintéticos de natureza inorgânica, em geral sais contendo mercúrio, ouro, antimônio, arsênio, enxofre e outros elementos. É bem verdade que muitos desses compostos são altamente tóxicos, mas alguns foram utilizados até o século XX, como o calomelano, ou cloreto mercuroso, sintetizado e descrito por Paracelso. Há um aspecto em sua química, contudo, mantidas as devidas ressalvas, que o aproxima de uma química medicinal extremamente moderna, qual seja a química medicinal inorgânica. Esta teve seu marco inicial em meados dos anos 60 do século passado, com o advento do uso da cisplatina, ou cis-diaminodicloroplatina(II), um composto totalmente inorgânico, no tratamento de vários tumores cancerosos. A partir daí este ramo da química medicinal se desenvolveu com grande vigor e hoje ocupa um lugar de grande importância nos programas de pesquisa no mundo inteiro. É com Paracelso que se inicia uma nova fase nos estudos da matéria e suas transformações. A antiga preocupação dos alquimistas com a transmutação elementar é deixada de lado como algo totalmente desimportante. O papel da química agora é entender o funcionamento do corpo humano e produzir medicamentos em laboratório para combater enfermidaddes específicas. A química chega a se confundir por vezes com a medicina ou a farmácia. A doutrina química volta-se para a arte de curar, dando à química um caráter ancilar à medicina, numa situação que perduraria até finais do século XVII. Em contraposição, a química dos mineradores e metalurgistas, daqueles que denominaríamos muito mais "engenheiros" hoje em dia, não se preocupa tanto com doutrinas e sim com resultados. É uma atividade empírica, pragmática, que busca produzir cada vez mais e melhor, com redução de custos e aumento de produtividade. Assim, podemos reconhecer nitidamente no século XVI duas vertentes distintas na atividade química. A primeira é representada pelos iatroquímicos, seguidores em maior ou menor grau das doutrinas paracelsistas, e cuja maior preocupação é a preparação de medicamentos químicos para a cura das doenças humanas. A segunda vertente, dos mineradores e metalurgistas, não se preocupa tanto com doutrinas, e sim com o aumento e a melhoria de seus resultados práticos. Paracelso, em que pesem seus méritos, foi também um grande polemista, tendo feito inimigos em vários sítios por onde passou. Em virtude dessas inimizades e da oposição que elas lhe granjearam, muitas de suas obras só puderam ser publicadas após sua morte. A leitura de seus textos é difícil, pela linguagem às vezes confusa e pelo grande misticismo que os permeia. A Figura 1 mostra o frontispício da obra de Paracelso intitulada De Vita Longa, dividido em cinco "livros", ou capítulos, publicada em Basiléia em 1566, embora a data não apareça no frontispício. A obra é um texto de medicina recheado de prescrições para remédios químicos. A Figura 2 apresenta a portada de um segundo livro de Paracelso, numa compilação de Leon Suábio, que contém ainda uma biografia do médico suíço e um catálogo de suas obras. Este segundo livro se intitula Philosophiae et Medicinae Utriusque Universae Compendium (Compêndio de toda a Filosofia e Medicina), tendo sido também publicado em Basiléia, porém em 1568, como se pode ler claramente no frontispício. Esta obra amplia a anterior e está encadernada juntamente com a primeira numa capa de pergaminho de época. A composição deste livro é certamente bem anterior à data de publicação, pois um dos prefácios que antecedem o texto é de autoria do famoso humanista da Renascença Erasmo de Roterdam, (1466-1536), falecido em Basiléia pouco antes de Paracelso, que morreria em Salzburg, onde está sepultado. O prefácio do humanista holandês, reproduzido na Fig. 3, começa com uma dedicatória reveladora da admiração de Erasmo pelo autor: "Ao muito perito nas coisas médicas, doutor Teofrasto Eremita, Erasmo de Roterdam". Ao final, vem a assinatura: "Erasmo de Roterdam, por sua própria mão". Figura 1. Paracelso, De Vita Longa, Basiléia, 1566. Figura 2. Paracelso, Philosophiaeet Medicinae Utriusque Universae Compendium, Basiléia, 1568. Figura 3. Prefácio de Erasmo de Roterdam ao livro de Paracelso Philosophiae et Medicinae Compendium Figura 4. Lazarus Ercker, frontispício de 1672, ostentando o título Aula Subterranea Domina Dominantium Subdita Subditorum, Frankfurt Como exemplo da outra vertente da química do século XVI, apresenta-se aqui um livro que foi um dos primeiros compêndios de química analítica e metalúrgica. Seu autor, Lazarus Ercker, viveu entre 1530 e 1594 na Alemanha e na Boêmia. Em 1574 ele publicou em Praga sua grande obra, intitulada Beschreibung allerfürnemisten mineralischen Ertzt und Berckwercksarten, que pode ser traduzido como Descrição dos principais métodos de de mineração e tratamento de minérios. O livro teve uma edição posterior, em 1672-1673, organizada por Christianus Berwardus, que acrescentou um segundo frontispício (donde as duas datas de publicação mencionadas, cada uma correspondendo a um dos frontispícios). Esta edição saiu à luz em Frankfurt. O primeiro frontispício do livro, de 1672, está mostrado na Fig. 4 e se intitula Aula Subterrânea Domina Dominantium Subdita Subditorum, ou Aula Subterrânea, Senhora dos Dominantes, Súdita dos Súditos). O segundo frontispício do mesmo livro, do ano seguinte, é uma belíssima gravura com aspectos do que se discute no livro e com alegorias. Este segundo frontispício tem o título de Aula Subterranea alias Probier Buch Herrn Lazari Erckers (Aula Subterrânea, aliás Livro de Ensaios do Senhor Lazarus Ercker). Como o livro de Ercker é uma obra composta no século XVI, optou-se por sua colocação no presente capítulo, mesmo que a edição aqui mostrada seja do século XVII. Berwardus também acresentou à obra de Ercker sua própria composição, intitulada Interpres Phraseologiae Metallurgicae, ou Intérprete da Fraseologia Metalúrgica. A edição de Berwardus mantém todas as belíssimas xilogravuras da primeira edição, num total de 41 pranchas, das quais muitas ocupam praticamente uma página inteira do fólio. Estas gravuras mostram minas, laboratórios, equipamentos variados, fornalhas, em cenas populadas por personagens usando roupas do século XVI. Além da beleza desta edição, o presente exemplar ainda se encontra encadernado numa folha em pergaminho de um antifonário do século XVI. Na impossibilidade de apresentar todas as gravuras do livro, mostram-se aqui algumas delas, que ilustram como este é ao mesmo tempo um livro técnico e uma obra de arte. Figura 5. Lazarus Ercker, frontispício de 1673, com o título Aula Subterranea alias Probier Buch Herrn Lazari Erckers, Frankfurt Fig. 6. Introdução aos 5 "livros" em que se divide a obra de Ercker Fig. 7. A mineração do cobre, de Ercker Fig. 8. A mineração do chumbo, de Ercker Fig. 9. A mineração do ouro, de Ercker Fig. 10. O tratamento do minério, de Ercker Fig. 11. O laboratório para ensaios com minério de ouro, de Ercker Embora o século XVI tenha testemunhado, como já foi dito, o aparecimento de duas vertentes da química independentes da alquimia, está ainda se manteve viva e ativa pelo menos até o final do século XVII. Por isto, existem muitos livros do que se poderia denominar uma alquimia tardia, alguns dos quais bastante interessantes. Mesmo no século XVIII, pelo menos em sua primeira metade, produziram-se várias obras de alquimia, a qual, todavia, foi desaparecendo lentamente com o extraordinário progresso da química dos setecentos. A Figura 12 mostra o frontispício de um desses livros de alquimia tardia, "De Veritate et Antiquitate Artis Chemicae et Pulveris", ou "Da Antiguidade e Verdade da Arte da Química e do Pó". O livro é de autoria do médico e alquimista Robertus Vallensis e foi publicado em Leiden, na Holanda, em 1593, como se pode ler na portada. É também interessante reparar no subtítulo da obra, "sive Medicinae Philosophorum vel Auri Potabilis", que se traduz como "ou da Medicina dos Filósofos ou do ouro Potável". O livro é uma coletânea de textos de muitos escritores do assunto desde a antiguidade, com comentários do autor. É interessante observar uma mudança que já se havia operado há bastante tempo, pela qual as palavras alquimia e química são usadas indiferentemente com o mesmo sentido. O livro é uma verdadeira história da alquimia, ou pelo menos uma resenha de um grande número de autores sobre o assunto, desde o Antigo Testamento, chegando à Grécia e à Roma clássicas, e atravessando toda a Idade Média, tanto por seus autores islâmicos como latinos. Uma curiosidade interessante é que Isaac Newton possuía um exemplar deste livro em sua biblioteca, que compreendia um bom número de obras de alquimia. A Figura 13 reproduz as duas primeiras páginas do livro de Robertus Vallensis, com um poema encomiástico sobre o autor e o início do prefácio da obra. Este começa com uma descrição da origem por ele atribuída ao vocábulo química, aludindo à grande habilidade dos antigos artesãos alexandrinos na arte de fundir e trabalhar metais: "O nome da arte química foi tomado do vocábulo grego chemeia, que significa fusão." Fig. 12. Frontispício do livro de Robertus Vallensis, De Veritate et Antiquitate Artis Chemicae et Pulveris, Leiden, 1593 Fig. 13. Prefácio do livro de Robertus Vallensis, 1593 CAPÍTULO II: A QUÍMICA NO SÉCULO XVII O século XVII testemunhou uma enorme expansão das atividades químicas, continuando o fenômeno registrado na centúria anterior. Tanto as atividades empíricas foram incrementadas, como a química medicinal também ganhou enorme impulso, começando a penetrar as universidades, sobretudo dos países germânicos, desde o início dos anos seiscentos. Pela primeira vez, então, a química passa a ser uma matéria estudada nas academias, mas como uma disciplina ancilar à medicina. Por isto se pode afirmar que só é possível estudar a evolução da química se considerarmos o conjunto de várias atividades. Entre estas, a medicina e a farmácia têm um papel capital. Muitas obras químicas se tornam gradualmente menos obscuras, comparativamente à maioria dos textos alquímicos anteriores, ou mesmo a autores como Paracelso. Esta tendência, todavia, coexistiu com uma continuidade na prática da alquimia e da publicação de textos alquímicos. Basta lembrar o caso de Isaac Newton, um devotado alquimista ao longo de boa parte de sua vida, ao mesmo tempo em que desenvolvia a física e o cálculo infinitesimal. No século XVII surgiram químicos que deram à luz obras de grande abrangência e que influíram bastante sobre seus sucessores, como Johann Rudolph Glauber (1604-1670), Jan Baptist van Helmont (1577-1644) e Robert Boyle (1627-1691). O século XVII na exposição começa com a obra de um químico francês, Jean Béguin (1550-1620), autor de um livrinho que granjeou enorme popularidade e teve inúmeras edições. Trata-se do livro intitulado Tyrocinium Chymicum, cuja primeira edição data de 1610. A edição mostrada aqui é de 1659, o que mostra a durabilidade da obra no apreço dos químicos da época. A razão disto é que Béguin produziu um verdadeiro manual de laboratório, com a preocupação de dar um grande número de receitas para a preparação de medicamentos, sem muitas veleidades teóricas, o que permitiu a longevidade do livro. Todavia, ele mostra grande meticulosidade em citar um grande número de autores, sejam do passado, como Paracelso, ou contemporâneos, como Hartmann. Sua química medicinal é por ele referida como quimiatria, outra versão do termo iatroquímica, muito em voga na época. No prefácio, Béguin dá uma profissão de fé naquilo que ele considera o objetivo da química: "E seguramente o médico não produz nada de importância de que a quimiatria não seja grande parte". As Figuras 14 e 15 mostram,respectivamente, a gravura que ilustra a página de abertura do livro de Béguin e o frontispício do mesmo. Figs. 14 e 15. Página de abertura e frontispício de Tyrocinium Chymicum, de Jean Béguin, Genebra, 1659 Um outro autor de grande importância no Século XVII foi Jan Baptist van Helmont, médico e químico flamengo, que viveu e trabalhou em Bruxelas e suas imediações. Ao se designar philosophus per ignem, ou filósofo pelo fogo, van Helmont queria dizer que se considerava acima de tudo um químico, pois as operações principais levadas a cabo nos laboratórios eram conseguidas por meio do fogo, como as destilações, no caso dos líquidos, ou as calcinações, no caso dos sólidos. Van Helmont foi um importante adepto da química medicinal e a ele se atribui a criação da palavra gás, da palavra caos, de origem grega, que expressaria a "desordem" inerente a um gás, que não tem nem forma nem volume definidos. Muitos autores trabalharam com o conceito da conservação da matéria, muito antes de Lavoisier expressá-lo claramente ao final do século XVIII. Van Helmont talvez seja o mais conhecido, por causa de seu experimento do salgueiro. Ele tomou uma tina cheia de terra e pesou-a meticulosamente, obtendo um valor de 200 libras. Nessa tina plantou uma muda de salgueiro de 5 libras. A partir daí regou a planta apenas com água pura de chuva durante 5 anos. Ao cabo desse tempo, retirou o salgueiro e verificou que a tina com a terra seca continuava pesando 200 libras. O salgueiro havia crescido e agora pesava 269 libras e 3 onças. A interpretação helmontiana do ocorrido foi que a diferença na massa do salgueiro era devida à água adicionada, que se havia transmutado nos materiais que compunham a árvore. Embora a conclusão, em termos da reação ocorrida não satisfaça a um químico moderno, a preocupação quantitativa e o uso implícito do princípio de conservação da matéria sim. Van Helmont foi também um autor prolífico e teve seu filho Francisco Mercúrio como seguidor. A Fig. 16 reproduz a portada do magnífico fólio de sua grande obra, intitulada Ortus Medicinae (A Origem da Medicina), publicada postumamente por seu filho em 1667. O livro busca abranger toda a medicina da época, tratando-a sob um ponto de vista químico. Na página de rosto, de grande beleza, veem-se acima os retratos de van Helmont e de Francisco Mercúrio, este modesta-mente atrás do pai. A portada é ladeada por brasões heráldicos e conta ainda com duas alegorias femininas na parte de baixo, com inscrições latinas que podem ser traduzidas como "a natureza que pare" e a "sabedoria que nutre". Fig. 16. Frontispício de Ortus Medicinae, de Jan Baptist van Helmont, 4ª edição, Louvain, 1667 A figura 16 reproduz, portanto, o frontispício do livro Ortus Medicinae, de van Helmont. Serão abordados agora três químicos do século XVII cujas edições aqui apresentadas saíram à luz no século XVIII. São eles, respectivamente, Robert Boyle (1627-1691), Johann Joachim Becher (1635-1682) e Nicolas Lémery (1645- 1715). Robert Boyle foi uma figura singular na Inglaterra do século XVII. Amigo pessoal de Newton, sócio fundador da Royal Society, ele circulava entre cientistas devotados à matemática, à física e à astronomia, que incluíam, além do próprio Newton, Robert Hooke, Edmond Halley, Christopher Wren e muitos outros. A ciência boyliana, empírica ou não, caracteriza-se por uma ausência quase total de matemática, ao contrário daquela de seus amigos. Boyle escreveu sobre uma enorme variedade de assuntos em química e em física, além de incursões pela filosofia e pela teologia. Ele deu seu nome à lei que diz que a uma temperatura constante a pressão e o volume de um gás são inversamente proporcionais. Em química sua obra mais importante é sem dúvida "The Sceptical Chymist", obra marcadamente anti-paracelsista, publicada em 1661 em inglês, e não em latim como era mais comum. Um ano antes, em 1660, saíra sua obra denominada "New Experiments Physico-mechanical, Touching the Spring of Air and its Effects". Desses estudos sobre a elasticidade do ar surgiu sua lei dos gases referida acima. Boyle apresentou também uma teoria corpuscular que muitas vezes se considera como precursora da Teoria Atômica de Dalton, do início do século XIX. As partículas constituintes da matéria podem rearranjar-se de várias maneiras, de sorte que a transmutação elementar é possível. O ajuste das diferentes partículas de matéria explicaria a afinidade química, conceito bastante influenciado pela física newtoniana. As figuras mostradas são da primeira coletânea póstuma das obras de Boyle, publicada em três volumes, em 1725, por Peter Shaw. A coleção traz um bom número de ilustrações, realizadas com esmero e maestria. A Figura 17 traz o frontispício do primeiro volume, enquanto a Figura 18 mostra a gravura do 2º volume que ilustra sua bomba de vácuo original. Fig 17. Frontispício do 1º volume (de um total de três) de The Philosophical Works, Robert Boyle, Londres, 1725 Fig. 18. A bomba de vácuo original de Boyle, 2º vol. de "Works", Londres, 1725 O próximo autor a ser considerado é Johann Joachim Becher, médico e químico alemão do século XVII. Becher admitia três classes de "terras", que constituíam as diversas substâncias químicas. Os compostos eram formados por diferentes proporções de cada "terra", as quais eram denominadas por ele como "gorda", "vítrea" e "fluida". A primeira dava à substância a propriedade da combustibilidade, a segunda correspondia à propriedade da solidez e da incombustibilidade, como na maioria das rochas, e a terceira correspondia à fusibilidade e ao brilho metálico. Becher foi conselheiro comercial do Imperador Leopoldo I em Viena, e foi essencial no estabelecimento de várias manufaturas químicas no Império dos Habsburgo. Ele escreveu muitos livros sobre os assuntos mais diversos, como química, economia, matemática e mineração. Sua obra química mais influente, a Physica Subterranea, está aqui representada. O livro teve uma primeira edição em 1667 e várias edições posteriores. A edição aqui apresentada é a última, de 1738, e foi organizada por seu discípulo, o também médico e químico Georg Ernst Stahl (1660-1734), do qual nos ocuparemos mais adiante. Stahl foi também o autor do prefácio desta edição. A Figura 19 mostra a portada do livro, com uma bela mas enigmática gravura repleta de simbolismos de sabor alquímico. Em seguida, a Figura 20 mostra o frontispício em preto e vermelho do livro, o qual é apresentado por Stahl, à época também já falecido. Fig. 19. Johann Joachim Becher, portada de Physica Subterranea, plena de alegorias alquímicas Fig. 20. Johann Joachim Becher, frontispício de Physica Subterranea, Leipzig, 1738 O último autor do século XVII abordado nesta resenha é o francês Nicolas Lémery, autor de um dos livros mais longevos e vendidos da época, o Cours de Chymie. Sua primeira edição saiu em 1675, e a ela se seguiram várias edições francesas, assim como traduções em latim, inglês, alemão, holandês, italiano e espanhol. A edição mostrada aqui é a última, de 1757. Trata-se de uma edição póstuma, organizada pelo químico Théodore Baron d´Hénouville (1715-1768). Curiosamente, a morte de Baron em 1768 abriria uma vaga na Academia das Ciências de Paris, que viria a ser preenchida pelo jovem Lavoisier. Voltando ao livro de Lémery, seu texto é direto e claro, razão pela qual se tornaria tão popular. Ele respondia muitas das perguntas feitas na época, como se pode ver em sua definição de ácido: "...eu direi que a acidez de um licor consiste nas partículas de sal pontudas, as quais estão em agitação; e não creio que se me possa contestar que o ácido não tenha pontas, pois todas as experiências o mostram; basta prová-lopara sentir esta sensação: porque ele faz comichões na língua semelhantes ou muito parecidas com aquelas que se receberiam de alguma matéria cortada em pontas muito finas..." O livro de Lémery traz ainda uma bela gravura inicial, representando um químico em seu laboratório, e uma sequência de pranchas desdobráveis ao final, com ilustrações de equipamentos e operações de laboratório. A Figura 21 mostra o frontispício do livro, ao passo que a figura 22 apresenta a gravura que representa o laboratório. A Figura 23 reproduz o trecho em que aparece sua definição de ácido, que contém várias outras "evidências" para sustentar seu conceito. Finalmente, a Figura 24 corresponde a uma das pranchas desdobráveis do final do livro. Fig. 21. Nicolas Lémery, Cours de Chymie, Paris, 1757 Fig. 24. N. Lémery, Cours de Chymie, instrumentos de laboratório Fig. 22. N. Lémery, Cours de Chymie, O Laboratório do Químico CAPÍTULO III: A QUÍMICA NO SÉCULO XVIII O século XVIII começou com uma química mais amadurecida, distinguindo- se não só da alquimia moribunda como daquela química totalmente subordinada à medicina e à farmácia. Aqui já se vê uma ciência da natureza de pleno direito. Sua melhor expressão foi a formulação da Teoria do Flogisto pelo químico e médico alemão Georg Ernst Stahl, seguidor de Becher. Stahl, um médico e professor de medicina, tratava a química como uma ciência independente, sem nenhuma sujeição à medicina. Ele considerava a existência de uma distinção fundamental entre a química de laboratório e aquela que ocorria nos seres vivos. A Teoria do Animismo, mais tarde denominado Vitalismo, surgiu com ele e durou até o século XIX. Muito já se escreveu sobre sua teoria mais famosa, a do flogisto, de modo que só se falará dela aqui de forma breve. A partir do conceito becheriano de "terra pinguis", ou "terra gorda", um dos componentes dos compostos químicos, de acordo com Becher, Stahl desenvolveu o conceito de inflamabilidade, ou "flogisto", do grego, para denominar aquilo que se desprende quando uma substância arde. A madeira, o azeite, o carvão são todos materiais ricos em flogisto, pois queimam-se quase totalmente, restando apenas um pequeno resíduo de cinzas. Os metais também se "queimam", embora o termo apropriado neste caso seja que eles se calcinam, originando "cais", aquilo que mais tarde Lavoisier viria a denominar óxidos. A teoria de Stahl foi a primeira teoria química de aplicação ampla, capaz de explicar um enorme número de fenômenos. Se um metal, ao se calcinar, perde flogisto, então se se conseguir devolver flogisto ao produto da calcinação, a cal, será possível regenerar o metal original. Esta é a reação de redução, familiar a todos os metalurgistas. Por exemplo, tanto a cal de ferro ou de estanho, quando aquecidas com carvão, dão os metais respectivos. Então a teoria de Stahl era capaz de explicar muitos fenômenos, compreendendo tanto as reações diretas como as inversas. Por isso ela logrou aos poucos uma enorme aceitação e dominou toda a química da maior parte do século XVIII, até ser substituída pela química lavoisiana no último quartel do século. A Teoria do Flogisto foi publicada por Stahl em várias de suas obras desde o final do século XVII. Todavia, a versão francesa de seu livro de 1718, traduzida pelo enciclopedista Barão Dietrich d´Holbach (1723-1789) com o título de Traité du Soufre, ou Tratado do Enxofre, publicada em 1766, é considerada por muitos a melhor exposição da Teoria do Flogisto feita por seu autor. Ele está apresentado aqui na Figura 25. Enquanto Stahl desenvolvia seus trabalhos na Universidade de Halle e mais tarde na Corte de Berlim, seu contemporâneo Herman Boerhaave (1668-1738) pontificava na Universidade de Leiden, na Holanda. Também professor de medicina e química, Boerhaave divergia de seu colega alemão ao defender a iatrofísica, uma interpretação mecanicista para o funcionamento do corpo humano, com uma profunda influência de Newton. Todavia, num ponto os dois convergiam, ao considerarem a química como uma ciência autônoma da natureza, e não um ramo da medicina. Apresenta-se aqui na Figura 26 a primeira tradução inglesa da obra de Boerhaave, intitulada A New Method of Chemistry, publicada em 1727. Figura 25. Georg Ernst Stahl, Traité du Soufre, Paris, 1766 Logo após os primeiros anos do século XVIII a química passou a ser dominada pelo estudo dos gases, constituindo a chamada "química pneumática". Foi graças a esses estudos que a ciência química pôde desenvolver-se e chegar a um estado que podemos reconhecer como bastante "moderno" nas últimas décadas do século. Um marco decisivo na química pneumática foi a descoberta, em 1756, por Joseph Black (1728- 1799), professor de química e medicina na Universidade de Edimburgo, do ar fixo, que conhecemos como dióxido de carbono. Black descobriu, ao investigar a magnesia alba, ou carbonato de magnésio, que ela efervescia ao ser posta em ácidos, e o ar liberado coincidia com aquele produzido nas fermentações levadas a cabo nas cervejarias. Fig. 26. Herman Boerhaave, frontispício de A New Method of Chemistry, Londres, 1727 Ele mostrou de forma inequívoca que se tratava de um gás diferente do ar atmosférico e pela primeira vez ficou demonstrada a existência de um gás distinto do ar. O nome ar fixo foi cunhado por Black em virtude de aquele ar estar fixado num sólido, a magnesia alba, e poder ser liberado por uma ação química. Com o decorrer do século XVIII vários outros gases foram descobertos: o ar inflamável, ou hidrogênio, por Henry Cavendish (1731-1810), em 1766; o ar mefítico, ou nitrogênio, por Daniel Rutherford (1749-1819), em 1772; e o ar do fogo, por Carl Wilhelm Scheele (1742-1786), em 1772, chamado em 1774 de ar desflogisticado por Joseph Priestley (1733-1804), e de ar vital, mais tarde oxigênio, por Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794), em 1776. Em suma, havia uma grande atividade em vários países europeus envolvendo o estudo dos gases. Uma obra de grande importância nesse desenvolvimento da química dos gases foi a publicação de Joseph Priestley (1733-1804) intitulada Experiments and Observations on Different Kinds of Air, publicada em três volumes em 1777. O químico inglês foi um dos mais notáveis experimentalistas do século XVIII, tendo- se notabilizado em muitas áreas, sobretudo na química pneumática. Ele aperfeiçoou os métodos para a obtenção de vários gases e foi um dos descobridores do oxigênio, como se relatará mais adiante. Ele o obtinha pela decomposição térmica do óxido de mercúrio, um método de laboratório muito conhecido até hoje. Um pormenor curioso da carreira de Priestley foi a reação que ele executou ao fazer dois gases, a amônia e o cloreto de hidrogênio, passarem por um longo tubo de vidro, cada gás vindo de uma extremidade. Ao se encontrarem no meio do tubo, os dois gases reagiam, originando um pó branco, o cloreto de amônio. Esta foi a primeira vez que se obteve um sólido diretamente a partir de dois gases, mostrando de vez por todas que os gases são tão materiais como os sólidos e os líquidos, ou seja, retirando-lhes qualquer estatuto particular como se fossem alguma classe especial da matéria. Aqui se mostram, nas Figuras 27 a 30, o frontispício da edição de 1790 do livro de Priestley sobre os gases, juntamente com três das belas pranchas que ilustram a obra, ilustrações que estão todas agrupadas no volume 1. Fig. 27. Joseph Priestley, frontispício de Experiments and Observations on Different Kinds of Air, Londres, 1790. Fig. 28. Priestley, 1790, vol 1, Prancha I Fig. 29. Priestley, 1790, vol.1, Prancha II, mostrando parte do laboratóriodo químico inglês Fig. 30. Priestley, 1790, vol.1, Prancha VIII Como ilustração de que a química da segunda metade do século XVIII já estava bastante desenvolvida e bem próxima de nós, até mesmo antes do final da revolução lavoisiana, mostra-se aqui um livro monográfico sobre o estanho, em que a química deste elemento é analisada extensamente. O livro, intitulado Recherches Chimiques sur l´Étain, de autoria de Pierre Bayen (1725- 1798) e Louis Charlard (? - 1798) surgiu de um projeto de pesquisa encomendado pelo governo francês, que desejava saber se era verdade que o estanho usado nos utensílios usados à mesa pelos soldados do exército continha arsênio, como se propalava. Os autores executaram um magnífico projeto de investigação, que os levou a demonstrar a inexistência de arsênio no estanho. Toda a investigação e seus resultados foram publicados nesse livro interessantíssimo, cujo frontispício é dado na Figura 31. Um importante químico sueco do século XVIII foi Torbern Olof Bergman (1735-1784). A ele se deve a distinção das substâncias em orgânicas e inorgânicas. Entre sua vasta bibliografia, mostra-se aqui a tradução francesa de sua obra intitulada Manuel du Minéralogiste; ou Sciagraphie du Règne Minéral Distribuée D`Après L´Analyse Chimique, publicada em 1792, em dois volumes. O livro trata não apenas de mineralogia, mas é um tratado bastante abrangente de química inorgânica. Fig. 31. Bayen e Charlard, frontispício de Recherches Chimiques sur l´Étain, de Paris, 1781 É preciso lembrar que a palavra fóssil na época designava qualquer mineral existente na terra. Por isso diz Bergman em seu livro: "Dá-se o nome de Reino Mineral às substâncias fósseis que se encontram na terra, que não possuem nenhuma estrutura orgânica, ou que a tenham perdido, como as petrificações. São necessários caracteres particulares para reconhecer os fósseis, distingui- los entre si no espaço e no tempo; e chama-se Mineralogia a ciência que define seus caracteres." A Figura 32 mostra o frontispício do volume 1 da obra de Bergman. Fig. 32. Torbern Bergman, Manuel du Minéralogiste, ou Sciagraphie du Règne Minéral, Distribuée D`Après L´Analyse Chimique, vol. 1, Paris, 1792 Muito próximo de Bergman encontramos um outro notável químico sueco, um dos maiores experimentalistas do século XVIII, Carl Wilhelm Scheele (1742-1784). Este modesto boticário, lutando a vida inteira com a pobreza que o assolava, conseguiu, não obstante, construir um edifício magnífico de realizações científicas de primeira grandeza. Sem mencionar os inúmeros compostos por ele descobertos, basta apontar sua experiência de 1772, em que ele descobriu que o dióxido de manganês, ao ser aquecido, libera um ar, por ele denominado ar do fogo, com propriedades inusitadas. Este ar fazia com que uma brasa ardesse até consumir-se completamente e o carvão em pó se inflamasse espontaneamente. Scheele também produziu o mesmo ar por uma série de reações químicas, como o aquecimento do óxido de mercúrio, do carbonato de prata, do nitrato de magnésio e do nitrato de potássio. Como ele só viria a publicar seus resultados vários anos mais tarde, por muito tempo não foi considerado o verdadeiro descobridor do oxigênio. Em 1774 Priestley obteve o mesmo ar de Scheele e logo publicou seus resultados, e Lavoisier, a partir de 1776, mostrou o que era aquele novo gás e sua importância essencial na reação de combustão, assim como muitas de suas outras propriedades. Por isso, não faz muito sentido opor os três na busca da paternidade da descoberta do oxigênio, e sim estabelecer que esta foi uma descoberta conjunta dos três eminentes químicos. Os experimentos de Scheele foram publicados em 1777, e aqui se mostra a tradução francesa de seu livro seminal, o Traité Chimique de L´Air et du Feu, dado à luz em 1781, cujo frontispício está na Figura 33. Fig. 33. Carl Wilhelm Scheele, Traité Chimique de L´Air et du Feu, Paris, 1781; note-se a tradução para o francês dos prenomes do autor Nas últimas décadas do século XVIII a química estava portanto em plena efervescência, com uma plêiade de grandes nomes, alguns deles já abordados aqui, produzindo trabalhos brilhantes. Destes, o nome mais celebrado é o de Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), pela abrangência de sua obra e pelo rumo novo que ele imprimiu à química, assim como por sua enorme influência sobre o pensamento químico. A mudança na química ao final do século XVIII, contou com um grande número de protagonistas, mas teve em Lavoisier seu ator mais destacado. Este fenômeno histórico é conhecido como Revolução Química. Na verdade, ela foi a culminação daquele longo processo iniciado no século XVI com Paracelso, mas que teve em Lavoisier seu grande final. O que, pois, constituiu a obra do químico francês? Como já escrevi em outra ocasião, Lavoisier encarnou o auge de um longo processo de transformação da química, desde que ela se distanciou da alquimia, no século XVI, emergindo como uma ciência autônoma, sobre bases empíricas e racionais, no início do século XVIII. Em que consistiu esse processo e qual é sua importância? Lavoisier não foi um descobridor de novas substâncias, o que surpreende muitas pessoas. Ele soube mostrar como as substâncias interagem, o que é preciso para que as interações ocorram e o que acontece nessas interações. Ele dotou a química de uma enorme coerência interna, mostrando que é essencial descrever os fenômenos não só qualitativamente como quantitativamente. Para isso tornou-se um mestre nas determinações de massa e de volume. Conseguiu resolver de uma vez o grande enigma do século XVIII e de todos os séculos anteriores sobre a natureza da combustão. Mostrou que este fenômeno está ligado a inúmeros outros de natureza semelhante, como a oxidação dos metais, a respiração dos animais, a redução dos minérios a metais, a síntese e a decomposição da água. Estabeleceu uma forma operacional para o princípio de conservação da matéria e um conceito moderno de elemento químico, retirando o caráter elementar de misturas como o ar atmosférico ou de compostos como a água. Foi um pioneiro da química orgânica, da físico-química e da análise química; criou com Laplace a calorimetria e delineou alguns aspectos da química biológica. A ênfase lavoisiana em medir e pesar tudo levou-o a bater de frente com a teoria stahliana do flogisto, substituíndo-a pela teoria da combustão pelo oxigênio, que é a nossa teoria atual. De acordo com Stahl, como se viu, o processo de combustão ou de calcinação consiste na perda de flogisto pelo corpo que arde ou que se calcina. Enquanto os químicos se contentassem com explicações qualitativas apenas, a teoria funcionava. Ora, alguns materiais, como o carvão ou a madeira, ardem com diminuição de massa, ao passo que o antimônio, o estanho ou o chumbo se calcinam dando um produto mais pesado. Como conciliar estes dados com a idéia de que em todos esses casos havia a perda de alguma coisa, o flogisto? Lavoisier inovou, pois além de levar em conta os aspectos qualitativos, também pesou meticulosamente todos os reagentes e produtos, fossem eles sólidos, líquidos ou gases. Assim fazendo, resulta que a combustão ou a calcinação levam sempre a um aumento de massa. Sua conclusão foi de que no processo algo se liga quimicamente ao corpo que arde. Suas pesquisas o levaram a demonstrar que aquilo que se une ao corpo inflamável é o oxigênio, que representa cerca de 21% do ar atmosférico. Finalmente estava resolvido o enigma multimilenar da natureza da combustão. Lavoisier publicou dezenas de comunicações nas Memórias da Academia das Ciências de Paris. Também deu à luz dois livros muito importantes, os Opuscules Physiques et Chimiques, de 1774, e o Traité Élémentaire deChimie, de 1789, este em dois volumes. Ele também foi co-autor, junto com Guyton de Morveau, Claude Louis Berthollet e Antoine de Fourcroy, do Méthode de Nomenclature Chimique, publicado em 1787, de que em boa parte resulta a nomenclatura inorgânica que usamos ainda hoje. A obra dos quatro químicos franceses buscava estabelecer normas mais gerais e racionais para uma nomenclatura química sistemática, em substituição à caótica nomenclatura então usada. Ã Figura 34 mostra o frontispício do livro com a nova nomenclatura química que se propunha. Fig. 34. Morveau, Lavoisier, Bertholet (sic) e de Fourcroy, Méthode de Nomenclature Chimique, Paris, 1787 No século XIX, durante o Segundo Império, o governo de Napoleão III decidiu honrar a memória ultrajada de Lavoisier publicando suas obras completas. Isto foi feito entre 1862 e 1868 sob a supervisão do químico Jean Baptiste Dumas (1800-1884), resultando em quatro volumes muito bem cuidados e com ilustrações primorosas, que reeditam os livros e as memórias de Lavoisier. A estes quatro volumes seguiram-se mais tarde, em 1892-1893, mais dois volumes, publicados sob a respon- sabilidade de Louis Édouard Grimaux (1835-1900), historiador da química e biógrafo de Lavoisier. Fig. 35. Retrato de Lavoisier, Oeuvres, vol. 1, 1864 A Figura 35 reproduz a belíssima gravura com o retrato de Lavoisier que abre o primeiro volume de suas obras completas, conhecidas como Oeuvres. A Figura 36 reproduz o frontispíco do primeiro volume das Oeuvres, de 1864. As datas de publicação não seguem necessariamente a sequên-cia dos volumes. Fig. 36. Lavoisier, Oeuvres, frontispício do primeiro volume, que contém o Traité Élémentaire de Chimie A seguir serão mostradas mais algumas das excelentes ilustrações que acompanhavam as edições originais das obras de Lavoisier em vida e que foram fielmente reproduzidas na edição póstuma do século XIX. A Figura 37 consiste no desenho feito por Madame Lavoisier, ilustradora de todo o Traité e colaboradora científica do marido, para a Prancha VI do livro, que reproduz o calorímetro inventado por Lavoisier e Laplace. A Figura 38 mostra um pormenor da mesma figura, com a assinatura da artista, Marie-Anne Pierrette Paulze Lavoisier. Fig. 37. Lavoisier, Prancha VI do Traité Élémentaire de Chimie, como o calorímetro de Lavoisier e Laplace, desenhado por Mme. Lavoisier, que assina em baixo, à direita Fig. 38. Pormenor da Figura 37, mostrando a assinatura de Madame Lavoisier Fig. 39. Lavoisier, Oeuvres, vol. II, Prancha III, 1862. Reprodução de ilustração da memória de Lavoisier e Meusnier sobre a decomposição da água, lida na Academia em 1784 e por ela publicada, com o título de Mémoire où on prouve, par la décomposition de l´eau, que ce fluide n´est point une substance simple, et qu´il y a plusieurs moyens d´obtenir en grand l´air inflammable qui y entre comme principe constituant Fig. 40. Lavoisier, Oeuvres, vol. II, Prancha VII. Ilustração reproduzida da primeira memória de Lavoisier, premiada e publicada pela Academia em 1765, sobre a Iluminação de uma grande cidade. Na época ele contava 22 anos de idade 41. Lavoisier, Oeuvres, vol. III, 1865, Prancha IX. Experimentos executados nos anos 1770, com uma enorme lente convergente para concentrar os raios do sol Fig. 42. Lavoisier, Oeuvres, vol. IV, Prancha I, 1868. Ilustração da Mémoire sur une nouvelle Méthode distillatoire appliquée à la distillation des eaux-de-vie et à celle de l´eau de mer, 1775. Esta ilustração seria utilizada pelo Abbé Rosier em obra de 1781, a qual foi traduzida no Brasil por José Pinto de Azeredo, acrescida de muitas notas e publicada por João Manso Pereira na forma do livro Memória sobre uma Nova Construção do Alambique, Lisboa, 1805 Mesmo após a morte infamante de Lavoisier, a química francesa manteve seu brilho. Um exemplo disso é o livro em dois volumes de Claude Louis Berthollet, Essai de Statistique Chimique, de 1803, cujo frontispício se apresenta na Figura 43. Com esta obra termina este capítulo relativo à química do século XVIII. Um pormenor curioso deste frontispício é a existência de duas datas, no calendário republicano revolucionário francês e no calendário gregoriano. O calendário revolucionário havia sido adotado no ano da proclamação da república, 1792, por isso o ano de 1803 vem como ano XI. No ano seguinte Napoleão Bonaparte extinguiria tanto o calendário republicano como a própria república, sagrando-se Imperador. CAPÍTULO IV: A DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII A química moderna, bem como as outras ciências, como a física e a história natural, foram institucionalizadas em Portugal com a grande reforma efetuada na Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal em 1772. Isto não significa, como muitos já sustentaram, que não houvesse qualquer manifestação científica no país. No reinado do D. João V (1706-1750) alguns tópicos científicos foram ativamente estudados, sobretudo pelos militares, como essenciais á demarcação, posse e defesa dos imensos territórios portugueses no ultramar. Desta maneira, a matemática, a astronomia, a geodésia, a balística, a metalurgia, o fabrico e o uso da pólvora foram assuntos da maior importância que vários engenheiros militares, sobretudo, perseguiram com denodo. Pode-se muitas vezes vislumbrar o que está ocorrendo lançando mão de evidências indiretas, como a divulgação científica disponibilizada para a população. Por isso, este relato tratará inicialmente deste item, ou seja, mostrará por meio de alguns exemplos como a ciência era divulgada entre a população leiga. Em seguida se mostrará como se deu o desenvolvimento da ciência acadêmica. Os primeiros exemplos são de divulgação popular da ciência, ou daquilo que se acreditava fosse ciência. Em seguida veremos a divulgação da ciência erudita. A figura 44 mostra à esquerda o frontispício de um livro curioso publicado em 1759 sob forma de 15 fascículos, aqui reunidos num único volume. Ele é um tipo daquilo que poderíamos chamar de pseudo-ciência, pois, sob o manto de invocar autoridades do passado, divulga crendices e superstições de todo tipo. O autor, José Ângelo de Moraes, publicou a obra sob o pseudônimo de José Maregelo de Osan, um anagrama óbvio de seu nome. O texto consta de perguntas em verso do discípulo ao mestre, que também responde com versos. Em seguida, seguem-se citações de autoridades antigas, que o mestre invoca para apoiar suas respostas, por mais estapafúrdias que sejam. À direita da Figura 44 vê-se um exemplo de dúvida do discípulo, neste caso correspondendo à 14ª semana, assim como a resposta do mestre. Fig. 44. José Maregelo de Osan (José Ângelo de Moraes), O Discípulo Instruído pelos Mestres mais Sábios nos Segredos Naturaes das Sciencias, Lisboa, 1759, frontispício e diálogo entre discípulo e mestre na 14ª semana de estudos O livro seguinte foi publicado no mesmo ano de 1759. Seu autor foi Pedro Norberto de Aucourt e Padilha, e ele se intitula Raridades da Natureza e da Arte, Divididas pelos Quatro Elementos. A obra é dedicada ao Rei D. José I. A maior parte das "raridades" são aquelas da terra, seguindo-se as da água, do ar e do fogo. Ao final há dois capítulos sobre Magia Natural e Magia Artificial, respectivamente. Alguns dos relatos são interessantes. Por exemplo, na seção sobre o ar há a primeira menção, embora sucinta, publicada em Portugal sobre os experimentos de Bartolomeu Lourenço de Gusmão com os balões de ar quente, executados cinquenta anos antes. O tom geral do livro, todavia, é de muita crendice e superstição, o que o torna também interessante como fonte de informação preciosa sobrea mentalidade da época. A Figura 45 mostra seu frontispício. Fig. 45. Pedro Norberto de Aucourt e Padilha, Raridades da Natureza e da Arte, Divididas pelos Quatro Elementos, Lisboa, 1759 A Figura 46 mostra, à esquerda, a dedicatória do autor das Raridades ao Rei D. José, e à direita a curtíssima menção a Bartolomeu Lourenço de Gusmão. A razão de se inserir aqui a dedicatória ao Rei ficará clara um pouco mais adiante. Os Fig. 46. Pedro Norberto de Aucourt e Padilha, Raridades da Natureza e da Arte, dedicatória a D.José I (à esquerda) e menção a Bartolomeu de Gusmão (à direita) Os próximos exemplos retratam a divulgação científica de natureza erudita, refletindo em muitos aspectos o estado de desenvolvimento científico da Europa da segunda metade do século XVIII. Estas publicações são, portanto, completamente distintas das duas mostradas anteriormente. A primeira delas é a Recreação Filosófica, ou Diálogo sobre a Filosofia Natural, para Instrução de Pessoas Curiosas, que não Frequentaram as Aulas, em 10 volumes, de autoria do Padre Oratoriano Teodoro de Almeida. Esta é uma obra de enorme importância para o Portugal do século XVIII, e sobre ela muito se tem escrito. A Congregação do Oratório, fundada na Itália por São Filipe Néri, dava enorme importância ao estudo da ciência, cujo estudo serviria de base à própria fé cristã. Esta postura contrapunha os oratorianos aos jesuítas, para os quais a fé precedia tudo, mesmo que muitos jesuítas também tenham sido grandes cultores das ciências. Em Portugal, todavia, o confronto esteve sempre latente, até a expulsão dos inacianos em 1759. Mais tarde os próprios oratorianos também entrariam em choque com o despotismo pombalino. A Recreação Filosófica é uma obra de muito interesse, pois foi das primeiras publicações a introduzir a ciência moderna em Portugal, como, por exemplo, a física newtoniana, que é bastante discutida e explicada por Teodoro de Almeida. A publicação dos dez volumes se estendeu de 1751 a 1800, com várias edições e reedições. A coleção aqui tratada vai de 1786, que é a data do primeiro volume, a 1800, que marca a publicação do décimo tomo, embora o 3º e o 4º tomos ostentem a data de 1803, e o tomo 7 a de 1805, tratando-se evidentemente de reimpressões, embora todos os volumes tenham exatamente a mesma encadernação de época. O texto é apresentado sob a forma de diálogos filosóficos, que se desenrolam sempre à tarde, entre várias personagens, como Eugênio e Teodósio, presentes no primeiro volume, e outras que depois se acrescentam. Os diálogos compreendem 50 tardes, seguidas de mais 19 que ocupam os dois últimos volumes e se ocupam de assuntos de religião, moral e teologia. A Figura 47 apresenta as duas páginas de abertura do primeiro volume da Recreação, mostrando um retrato do autor e o frontispício da obra. É curioso que a data de publicação do volume é 1786, mas a legenda sob o retrato de Teodoro de Almeida dá seu ano de morte, 1804. Então, ou o retrato foi adicionado posteriormente, ou o volume é uma reedição do início do século XIX, mantendo-se a data original do frontispício, o que talvez seja mais provável. Figura 47. Recreação Filosófica, com o retrato do autor, Teodoro de Almeida, e o frontispício do primeiro volume, Lisboa, 1786 A Figura 48 mostra a dedicatória presente ao Rei D. José I no primeiro volume da Recreação Filosófica, que tem a data de 1786. Aqui ocorreu uma curiosidade muito interessante. A vinheta com a efígie de D. José é a mesma que havia aparecido na dedicatória do livro de Pedro Norberto, de 1759, mostrada pouco atrás, 27 anos antes da presente publicação (Fig. 46). A Figura 49 apresenta uma confrontação das duas vinhetas lado a lado. Figura 48. Teodoro de Almeida, Recreação Filosófica, dedicatória a D. José Figura 49. Comparação entre as vinhetas com a efígie de D. José I nos livros de Pedro Norberto de Padilha (1759) e de Teodoro de Almeida (1786) As Figuras 50 a 53 reproduzem algumas das belas gravuras que ilustram a obra de Teodoro de Almeida Fig. 50. Recreação Filosófica, vol. 1, 1786, estampa 2: roldanas, atrito, força dos ventos, etc Fig. 51. Recreação Filosófica, vol. 2, 1787, estampa 2: experimentos de óptica Fig. 52. Recreação Filosófica, vol. 3, 1803, estampa 4: experimentos de hidrostática Fig. 53. Recreação Filosófica, vol. 4, 1803, estampa 2: experimentos de óptica, incluindo o esquema de um microscópio O último exemplo de obra de divulgação científica de natureza erudita é o Jornal Enciclopédico, que começou a ser publicado por Félix Antonio Castrioto em 1779. Após este primeiro ano ele foi interrompido e só voltou a sair em 1788, sob a direção do médico, farmacêutico e químico Manoel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1829). O volume constante desta mostra engloba estes dois anos, 1779 e 1788. O Jornal Enciclopédico procurava dar notícia de tudo o que ocorria na Europa em relação às ciências, e também se ocupava bastante das publicações científicas e dos progressos havidos em Portugal. A Figura 54 apresenta a bela portada e o frontispício do primeiro número do Jornal. Fig. 54. Portada e frontispício do primeiro número do Jornal Enciclopédico, Lisboa, 1779 No número correspondendo a 1788 Manoel Joaquim Henriques de Paiva inseriu uma crítica cruel ao livro de estreia do jovem químico brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, publicado no ano anterior, a Dissertação sobre a Fermentação em Geral e suas Espécies. Embora o livro seja uma obra pequena e despretenciosa, esta crítica ferina gerou uma profunda inimizade entre os dois. A crítica ocupa quase duas páginas do Jornal Enciclopédico, que estão reproduzidas na Figura 55. Fig. 55. Resenha bastante crítica do livro de estréia do químico brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, cujo nome está grafado numa variante, pelo editor do Jornal Enciclopédico Manoel Joaquim Henriques de Paiva, publicada em 1788. CAPÍTULO V: O terremoto político que abriu as portas à ciência moderna em Portugal Este curto capítulo foi inserido para contextualizar um fenômeno de importância capital para Portugal e para o Brasil, que foi a institucionalização da ciência européia contemporânea no Portugal da segunda metade do século XVIII. No reinado de D. José I Portugal foi sacudido pelo devastador terremoto que destruiu Lisboa, em 1755, e pelas profundas reformas introduzidas pelo todo-poderoso ministro do Rei, Sebastião José de Carvalho e Melo, que se tornaria em 1759 Conde de Oeiras e dez anos depois Marquês de Pombal. Havia dois enormes obstáculos no caminho de Carvalho e Melo em seu projeto de modernização do país e implantação do regime político que se tornou conhecido por "despotismo esclarecido". Estes dois obstáculos eram a nobreza e a Companhia de Jesus. A nobreza precisava ser dominada, eliminando quaisquer resquícios feudais, de forma a que se consolidasse o poder absoluto do Rei e a primazia do Estado. A Companhia de Jesus detinha uma riqueza e um poder consideráveis, tanto no Reino como no Ultramar, constituindo-se assim num grande empecilho ao projeto político de Carvalho e Melo. Os dois obstáculos foram resolvidos no mesmo ano, 1759. No ano anterior D. José I havia sofrido um atentado a bala, em que estariam envolvidas algumas das famílias mais nobres e antigas de Portugal, os Duques de Aveiro e os Marqueses de Távora. Não cabe aqui entrar em pormenores sobre este episódio, apenas dizer rapidamente que, após um processo sumário, os nobres, suas famílias e até vários de seus serviçais foram julgados e condenados, seguindo-se uma execução infamante dos réus, num espetáculo público com requintes de barbarismo e crueldade. Este episódio desferiu um golpe de mortenas pretensões de poder dos nobres. A denúncia de uma associação dos jesuítas com a tentativa de regicídio foi o pretexto para finalizar uma campanha anti-jesuítica que já vinha de algum tempo. Finalmente, no mesmo ano de 1759, todos os jesuítas foram expulsos sumariamente de Portugal e suas colônias. Agora Sebastião José, aquinhoado por seu soberano nesse mesmo ano com o primeiro de seus títulos de nobreza, estava livre para empreender suas reformas. Estas atingiram praticamente toda a vida do país. Do ponto de vista que nos interessa aqui, o ensino, que antes se concentrava pesadamente nas mãos dos jesuítas, pôde ser profundamente reformado, a começar pela Universidade de Coimbra, onde a ciência moderna havia sido até então anátema. A Universidade foi profundamente alterada, criando-se novos estatutos que buscavam inseri-la num contexto europeu moderno. Carvalho e Melo criou uma nova Faculdade na Universidade, a de Filosofia, entendendo- se por este nome a Filosofia Natural, compreendendo a Química, a Física e a História Natural. Vários professores estrangeiros foram trazidos para tratar desses novos assuntos. A nova Universidade reformada abriu suas portas em 1772, e foi nela que um numeroso grupo de brasileiros notáveis estudou e pesquisou as ciências, notadamente as ciências da matéria, nessas décadas finais do século XVIII e nas primeiras do século seguinte. A Figura 56 mostra um documento que não é de ciência ou tampouco um livro. Trata-se da primeira e da penúltima página de um alvará impresso original, firmado pelo Rei e por seu ministro, recém-promovido a Conde de Oeiras, com a data de 3 de setembro de 1759. Este alvará, assim como vários outros da época, da lavra de Carvalho e Melo, mostra a linguagem virulenta e insultuosa que se cultivava nos documentos oficiais contra os jesuítas. Fig. 56. Alvará de D. José I, de 3 de setembro de 1759, em que o Rei ordena que se recolham à Torre do Tombo, em Lisboa, e em diversos outros locais do Reino, papéis que sirvam para lembrar à posteridade as iniquidades imputadas aos jesuítas. A virulência da linguagem é impressionante, mesmo com os jesuítas já expulsos de Portugal e de seus domínios. CAPÍTULO VI: A QUÍMICA MODERNA EM PORTUGAL A química não era ensinada na Universidade de Coimbra antes da reforma pombalina. As publicações que versavam sobre química até então eram as obras médicas e farmacêuticas. Um sobrinho e seguidor do famoso químico francês Nicolas Lémery, já abordado anteriormente, instalou-se em Portugal e publicou uma sequência de livros de farmácia e química medicinal na primeira metade do século XVIII. Seu nome foi aportuguesado e ele se assinava João Vigier (1662- 1723). A Figura 57 mostra à esquerda o frontispício de um de seus livros, o Tesouro Apolíneo, de 1745. No subtítulo o autor mostra sua inclinação: Tesouro Apolíneo Galênico, Químico, Cirúrgico, Farmacêutico, ou Compêndio de Remédios para Ricos e Pobres. Na Figura 57 à direita está reproduzida uma página do livro em que o autor apresenta uma série de remédios para ulcerações, boa parte dos quais sintéticos e contendo metais, dentro da tradição iatroquímica. João Vigier também dá em seu livro uma grande ênfase a medicamentos de origem vegetal, incluindo muitos materiais provenientes de possessões do Ultramar, como o Brasil. Figura 57. João Vigier, Tesouro Apolíneo, Lisboa, 1745: à esquerda se vê o frontispício do livro e à direita uma lista de remédios sintéticos iatroquímicos Como a Universidade de Coimbra nunca havia tido química em seu currículo, importou-se de Pádua o Professor Domingos Vandelli (1735-1816), químico e naturalista. Vandelli inaugurou seus trabalhos na Universidade reformada a partir de 1772. Ele teve como incumbência implantar o ensino de química e de botânica, além do Jardim Botânico da Universidade, ao qual se somou mais tarde o Jardim Botânico do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Vandelli foi um professor extraordinário, capaz de motivar e entusiasmar seus alunos, mesmo nunca tendo sido um químico notável no que se refere ao trabalho de investigação. Ele também esteve presente na fundação e na condução por vários anos de muitas atividades da Academia Real das Ciências de Lisboa. Dele se diz que sempre foi mais naturalista que químico, mas esta é uma acusação injusta que só leva em conta as realizações de um pesquisador. Vandelli foi sobretudo um grande professor. Basta dar os nomes de alguns de seus alunos que se destacaram para isto ficar claro, como os brasileiros José Álvares Maciel, Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, José Bonifácio de Andrada e Silva, Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá e vários outros, além de muitos portugueses de carreira científica ilustre, como Thomé Rodrigues Sobral, seu sucessor e continuador na cátedra. Vandelli publicou inúmeras comunicações nas Memórias da Academia Real da Ciências de Lisboa, sobre os assuntos mais variados. Também publicou livros de história natural e botânica, mas nenhum de química. Isto seria feito por seus discípulos. Como exemplo do que foi dito, a Figura 58 apresenta a dedicatória à Rainha D. Maria I e o frontispício de um livro de Vandelli, publicado em 1788, intitulado Dicionário dos Termos Técnicos de História Natural. Trata-se de uma compilação adaptada ao português de obra de Lineu. Fig. 58. Domingos Vandelli, dedicatória e frontispício do Dicionário dos Termos Técnicos de História Natural, Coimbra, 1788 Juntamente com o Dicionário, o volume que o contém também traz encadernado junto uma outra obra de Vandelli, a Memória sobre a Utilidade dos Jardins Botânicos. Este livro tem ao final uma grande série de pranchas desdobráveis com ilustrações as mais variadas. Fig. 59. Domingos Vandelli, Memória sobre a Utilidade dos Jardins Botânicos, Coimbra, 1788 A Figura 59 mostra a página de abertura da obra, que não apresenta um frontispício tradicional. Já a Figura 60 reproduz uma das pranchas do final, com ilustrações de insetos. Um dos discípulos mais notáveis de Vandelli foi o brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva Telles (1764-1804), referido anteriormente. Ele publicou vários livros, dos quais os três mais importantes serão aqui mostrados. No ano de sua formatura em Coimbra, 1788, ele deu à luz a primeira parte dos Elementos de Química, obra dedicada à Sociedade Literária do Rio de Janeiro, uma associação científica que havia sido fundada na capital do Brasil em 1786 pelo Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos. A segunda parte do livro foi publicada dois anos depois, em 1790. O autor variou bastante a forma de grafar seu nome, como se pode ver nos frontispícios das duas partes do livro, mostrados na Figura 61. Os Elementos de Química são o primeiro livro de química escrito por um brasileiro, e o primeiro em língua portuguesa a retratar a nova química do final do século XVIII. Fig. 60. Domingos Vandelli, obra citada, Coimbra, 1788 O livro de Seabra Telles reflete bem a química da época, revelando um conhecimento extenso da literatura corrente e um pendor para a execução de experimentos de laboratório. O texto abrange toda a química e é redigido de forma clara e direta, podendo ser seguido sem qualquer dificuldade por um leitor moderno. No mesmo ano em que saiu a primeira parte, o autor também publicou sua Dissertação sobre o Calor, dedicada a seu colega e amigo José Bonifácio de Andrada e Silva, cuja fama científica futura eclipsaria Seabra Telles. Este nunca teve seu talento reconhecido e morreria prematuramente antes de completar 40 anos. Fig. 61. Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, Elementos de Química, Coimbra, 1788- 1790. Frontispícios das Partes I e II, respectivamente Na Dissertação sobre o Calor, que normalmente é encadernada junto com os Elementos deQuímica, Seabra Telles faz cálculos interessantes nos quais utiliza implicitamente conceitos ainda não formalizados na ciência de sua época, que são o Primeiro Princípio da Termodinâmica e a Lei de Hess, ambos explicitados apenas em meados do século XIX. A Figura 62 mostra o frontispício da Dissertação. O terceiro livro de Vicente Seabra Telles aqui presente é a Nomenclatura Química Portuguesa, Francesa e Latina, publicado em Lisboa em 1801, na Casa Literária do Arco do Cego, dirigida pelo famoso botânico brasileiro Frei José Mariano da Conceição Veloso. Este livro de Seabra Telles é uma adaptação para o português da nomenclatura lavoisiana de 1787, já relatada neste texto. O livro do químico brasileiro foi inteiramente calcado naquele dos quatro químicos franceses. Ele tem uma enorme importância, pois legou à língua portuguesa boa parte dos termos inorgânicos que usamos até hoje, Se dizemos sulfato e sulfito, por exemplo, é porque estes termos foram introduzidos pelo livro de Seabra Telles. Para o que chamamos sulfeto ele escrevia sulfureto, forma que mais tarde se modificou para a atual. Fig. 62. Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, Dissertação sobre o Calor, Coimbra, 1788 A Figura 63 mostra o frontispício e uma página do livro, com os termos químicos em português, francês e latim, bem como, quando existiam, os nomes antigos. Fig. 63. Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, Nomenclatura Química, Lisboa, 1801. Frontispício e página do livro O sucessor de Vandelli na cátedra, Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829), não chegou a publicar nenhum livro de sua lavra. Como ele usou o laboratório da universidade para fabricar pólvora a ser usada contra os invasores franceses durante as guerras napoleônicas, as tropas invasoras atearam fogo a sua casa, destruindo-lhe a preciosa biblioteca. Com ela teriam perecido os originais de um compêndio de química que ele havia composto e que se perdeu. Por isso seu único livro publicado é uma tradução do longo verbete de Guyton de Morveau na Encyclopédie Méthodique sobre afinidades, tradução está dada à luz em 1793 com o nome de Tratado das Afinidades Químicas. A Figura 64 reproduz seu frontispício. Com a vinda da Corte e do Governo português para o Rio de Janeiro em 1808, finalmente o ensino da química, assim como muitas outras iniciativas, foi institucionalizado oficialmente, no currículo da nova Academia Real Militar, criada pelo Príncipe Regente em 1810. Para lecionar a cadeira foi trazido um professor britânico, Daniel Gardner, que trabalhou no Rio de Janeiro até jubilar-se em 1825. Em 1810 a nova Impressão Régia publicou um livrinho despretensioso de sua autoria, o Syllabus, ou Compêndio das Lições de Química. Este é um livro extremamente raro, e consta tão somente de títulos e rápidas explicações dos tópicos a serem abordados no curso. Ele é uma espécie de programa comentado da disciplina. Fig. 64. Thomé Rodrigues Sobral, Tratado das Afinidades Químicas, Coimbra, 1793 O livro texto preconizado pelas autoridades como compêndio de química nas aulas de Gardner é uma tradução por Manoel Joaquim Henriques de Paiva da Filosofia Química de Antoine François de Fourcroy (1755-1809). Esta tradução, publicada em Lisboa em 1801, foi então o primeiro livro texto de química usado num curso regular da disciplina no Brasil. Com este livro concluo este longo percurso através de três séculos de química através de seus textos. A figura 65 mostra o frontispício do livro, que merece ser conhecido pelos químicos brasileiros. Figura 65. Manoel Joaquim Henriques de Paiva, Filosofia Química ou Verdades Fundamentais da Química Moderna, tradução da obra de Antoine François de Fourcroy, Lisboa, 1801
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