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Resumo de Inteligência e Seg. Publica UNDADE I Inteligência e segurança pública: contexto, aspectos, conceitos, principais processos e aplicações Contextos gerais da atividade de inteligência O entendimento da palavra inteligência é, por vezes, bastante confuso. Isto se deve, principalmente, à sua polivalência. A definição de inteligência consiste na capacidade de raciocínio, entendimento, interpretação, pensamento e intelecto. Em suma, funções mentais capazes de gerar a resolução de problemas, situações e também o entendimento de fatos (FERREIRA, 2010, p. 432). Ao mesmo tempo em que representa algo simples, também representa algo bastante poderoso. Não é à toa que é utilizada em diversas categorias e campos do conhecimento científico. Diante disso, o presente tópico de estudo se propõe a apresentar o contexto geral da atividade de inteligência, apresentando os principais sentidos e significados, situando a inteligência nos diversos cabedais teóricos científicos existentes. Destaca-se, ainda, a atividade de inteligência e sua relação estrita com a área da segurança por meio de suas categorias. SENTIDOS E APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA O termo inteligência é bastante utilizado no mundo contemporâneo, sendo base de discussões em diversos campos do conhecimento. Atualmente, fala-se em Business Intelligence (BI), inteligência emocional, financeira, empresarial, militar, policial, criminal, de segurança pública, dentre outras. Não obstante suas diversas facetas, a inteligência está estritamente relacionada com a produção de informação. Trata-se de atividade que busca produzir algum conhecimento específico, de maneira que o seu resultado é o próprio conhecimento esperado (OLIVEIRA, 2013). Sentido amplo Em sentido amplo, inteligência envolve um processo sistemático que entrega um produto informacional sofisticado, ou seja, processado, analisado e orientado para assessorar processos de tomada de decisão (GONÇALVES, 2009, p. 13). Nas palavras de Cepik, em Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência, publicado em 2003, consiste em qualquer informação “coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisão qualquer” (p. 27). Sentido estrito Em sentido estrito, inteligência remete à segurança de Estado, tal qual preconizado por Sherman Kent, em Strategic Intelligence for American World Policy, publicado em 1965. É todo conhecimento que as autoridades superiores devem ter para resguardar os interesses nacionais. Ou seja, envolve a produção de informações necessárias para a defesa das instituições, soberania nacional e segurança dos cidadãos. Nesta vertente, inteligência é o mesmo que informação secreta, envolvendo, inclusive, “a coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou mesmo o conhecimento por parte dos alvos da ação” (CEPIK, 2003, p. 28). Sendo assim, a inteligência, em seu sentido estrito, é um tema, por natureza, fechado. As principais doutrinas e conhecimentos costumam ficar restritos aos órgãos de Estado, especialmente as instituições policiais, justamente porque muitas de suas ações e estratégias são desenvolvidas de maneira sigilosa. De fato, a sensibilidade da atividade faz com que em muitos países as principais fontes de conhecimento sobre inteligência provenham das leis editadas pelas autoridades governamentais (WHEATON; BEERBOWER, 2006, p. 323). CATEGORIAS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA A inteligência pode se manifestar de diversas maneiras no meio social. Apesar disso, durante muito tempo, o tema esteve automaticamente relacionado às preocupações com segurança, fato que se justifica a partir do entendimento da evolução histórica da inteligência. Não é à toa que o seu sentido estrito remete justamente às atividades de segurança. Cumpre ressaltar que a inteligência era considerada como um sinônimo para informações e notícias, sendo fundamental para as organizações militares em diversos momentos. As evidências históricas exemplificam que a atividade, durante o Império Romano e também durante o Feudalismo europeu (séculos IV ao XV), era majoritariamente de natureza informacional. CURIOSIDADE Em épocas em que não existia um fluxo de informações intenso, com jornais, imprensa, etc., a maioria das informações podiam ser consideradas como inteligência. As informações de domínio público eram muito precárias e os governos eram as instituições que possuíam maior expertise em produzi-las (especialmente para a cobrança de impostos e manutenção de documentos oficiais), mantendo sigilo sobre o que conheciam (HERMAN, 1996). Existem registros de que a atividade de inteligência, uma das mais antigas profissões do mundo, vem sendo utilizada, ainda que em menor escala, desde à Antiguidade, em lugares históricos que remetem à China, ao Oriente Próximo e ao Império Romano (CEPIK, 2003). Assim, historicamente, a atividade de inteligência possui três principais categorias, conforme mostra o Diagrama 1. A categoria básica da inteligência é a militar, sendo também sua manifestação mais antiga (GONÇALVES, 2009). Trata-se da principal categoria da inteligência, cujo objeto consiste na produção de subsídios estratégicos para auxílio na defesa e manutenção do Estado. Esta categoria é, portanto, aquela que se preocupa com a coleta de variadas informações, desde as mais básicas até as mais complexas, como prognósticos e simulação de cenários, envolvendo conhecimentos sobre topografia, clima, população, estatística, material bélico, comunicações, dentre outras. Com o fortalecimento do militarismo a partir do século XIX, a inteligência começa a se estruturar com maior vênia. Cabe ressaltar que o uso da inteligência para fins militares é o mais antigo, de modo que não se pode dizer o mesmo da sua institucionalização. De fato, a trajetória institucional da inteligência, conforme afirma Cepik, em Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência [...] é marcada por grandes descontinuidades entre os primeiros serviços secretos surgidos no contexto do absolutismo e as inúmeras organizações que configuram atualmente os sistemas nacionais de inteligência e segurança (p. 90). Contudo, é somente no século XX que a atividade se torna completamente institucionalizada. Ou seja, apesar de existir há bastante tempo, a inteligência militar era desenvolvida de forma precária, sem métodos claros e precisos, sendo composta basicamente de coleta de informações. Ainda que a passos lentos, as atividades da inteligência militar iniciam seu processo de estruturação mais robusto durante a segunda metade do século XIX, com os diversos conflitos bélicos que surgiram, como a Guerra Civil estadunidense (1860-64) e, depois, com as grandes guerras do século XX: Primeira Guerra Mundial (1914-18), Segunda Guerra Mundial (1939-45) e Guerra Fria (1947-1991). Também foram criados, a partir da categoria militar, os chamados sistemas nacionais de inteligência, sendo o período após a Segunda Guerra Mundial o auge deste desenvolvimento (WHEATON; BEERBOWER, 2006, p. 321). Cabe ressaltar a influência ativa de Sherman Kent, considerado o “pai” da inteligência moderna. Após servir durante a 2ª Guerra Mundial na Divisão de Análise e Pesquisa, órgão predecessor da Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA), Kent foi responsável por desenvolver o conceito de inteligência nas instituições norte-americanas no pós-guerra e durante a Guerra Fria. Seu trabalho influenciou, e influencia até hoje, a atividade de inteligência contemporânea em diversos países (FORD, 2007). Outra categoria importante da inteligência é a diplomática. Inicialmente, o uso dos serviços diplomáticos foi realizado para a coleta de informações comuns, sendo muito importantepara a institucionalização básica da inteligência, com um mínimo de organização dos registros informacionais em arquivos reutilizáveis, na Europa, a partir do século XVI (HERMAN, 1996, p. 12). A este sentido, cumpre ressaltar que a inteligência diplomática se desenvolveu antes da militar. Durante muito tempo, a dita foreign intelligence foi bastante explorada, sendo confundida com a atividade da diplomacia. Os diplomatas possuíam maior facilidade em coletar informações devido à sua imunidade diplomática, o que lhes conferia posicionamento privilegiado, além de maior facilidade para entrar e permanecer em territórios estrangeiros. Na época, a diplomacia floresceu na Europa de maneira que fosse bastante comum o trânsito de diplomatas entre países, os quais se encarregaram de facilitar a comunicação e as transações comerciais entre os países. Diante disso, essas representações passaram a ser utilizadas também para a coleta de informações, desde as mais básicas, como notícias sobre outras partes do mundo, até outras mais complexas, como espionagem sobre ameaças externas e conspiradores (CEPIK, 2003, p. 92). Pouco a pouco, os reinos e alguns países foram incrementando suas atividades de inteligência. Neste cenário, a diplomacia teve um papel fundamental, utilizando-se dos sistemas de correios que começavam a se desenvolver. À época, o grande desafio da inteligência se dava na tentativa de decifrar as comunicações (HERMAN, 1996, p. 11). De toda forma, pode-se dizer que diplomacia e inteligência foram separadas. CURIOSIDADE Diversos países ainda contam com órgãos diplomáticos encarregados de funções informacionais, como o Foreign and Commonwealth Office (FCO) da Grã-Bretanha, o qual não compõe o sistema de inteligência, mas produz informações para os órgãos de defesa, como o acompanhamento de cser_educacionals, negociações e tratados internacionais (CEPIK, 2003, p. 93). A inteligência doméstica também surgiu na Europa, posteriormente, no século XIX. A consolidação do modelo de estado-nação motivou o crescimento de uma espécie de policiamento especial nos países. Segundo Herman (1996), a inteligência policial voltada para o contexto interno surgiu no continente europeu como resposta ao medo que se instalava nos países de uma repetição da Revolução Francesa. Dessa forma, os Estados começaram a produzir inteligência sobre as suas próprias populações. É esta categoria que, posteriormente, dará início à inteligência especializada em segurança pública. Trajetória da atividade de inteligência de segurança pública A inteligência é aquela que se relaciona com a atividade da segurança e pode se manifestar de diversas maneiras: relacionada à defesa, ao militarismo, no combate ao crime, dentre outros. Basicamente, a inteligência, em sentido estrito (de segurança), objetiva a neutralização de dois tipos de ameaças: internas e externas. Traçando um paralelo com o que vimos sobre as categorias da inteligência, nota-se que elas nascem como resposta a ameaças externas, estando relacionadas com a inteligência militar e também, em menor escala, com a inteligência diplomática. Com o passar do tempo e o surgimento dos estados- nação, outras necessidades de proteção foram surgindo, dando origem à inteligência doméstica, mais preocupada com as ameaças internas. Com os avanços da criminalidade e da violência nos grandes centros urbanos, surgiu outra categoria específica da inteligência: a Inteligência de Segurança Pública. Diante desse panorama, vamos apresentar, em primeiro momento, a trajetória desta categoria da inteligência mais recente e, na sequência, vamos tratar um pouco da trajetória da inteligência no Brasil. O NASCIMENTO DA INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA A Inteligência de Segurança Pública nasceu como consequência da complexidade crescente das questões de segurança, com os incrementos no modus operandi das organizações criminosas, as quais se desenvolveram cooperando umas com as outras, criando verdadeiros conglomerados transnacionais, especialmente a partir dos anos 1970 (GONÇALVES, 2009, p. 37). Conforme define Mingardi, em “O trabalho da inteligência no controle do crime organizado”, publicado em 2007, a Inteligência de Segurança Pública possui vários nomes, como inteligência criminal, policial, dentre outros: Apesar de a expressão mais comum no Brasil ser Inteligência Policial, é preferível chamar a atividade de Inteligência Criminal. Um motivo é que não apenas as polícias trabalham nessa atividade, mas também outras instituições, co mo o Ministério Público, o Exército, as Guardas Municipais etc. (...) trata-se de uma atividade especializada e detentora de técnicas e métodos próprios. É considerada uma espécie de “prima pobre” da Inteligência de Estado e “prima distante” da Inteligência militar, que é a atividade mais antiga do ramo (p. 52). Este tipo de inteligência nasce derivada da inteligência doméstica, sendo, muitas vezes, difícil delimitar com precisão onde uma começa e a outra termina, uma vez que não é raro que as ações de security intelligence se confundam ou apresentem convergência com a chamada Inteligência de Segurança Pública (GONÇALVES, 2009, pp. 53-55). Na prática, a confusão de termos é bastante comum, mas o principal a ser destacado é que ambas são diferentes, pois possuem objetos e objetivos distintos. A diferença reside no fato de que a inteligência doméstica preocupa- se com ameaças à segurança e à integridade nacional oriundas de grupos subversivos, terroristas, espiões internos e externos, enquanto a inteligência em segurança pública tem foco em ameaças frutos da dinâmica criminal mais ou menos complexas, além de ser especializada nos assuntos de segurança pública. É um conjunto de processos sistemáticos (...) direcionados para o provimento de informação oportuna e pertinente sobre os padrões do crime e suas correlações de tendências, de modo a apoiar as áreas operacional e administrativa no planejamento e distribuição de recursos para prevenção e supressão de atividades criminais (GOTTLIEB; ARENBERG; SINGH, 2002 apud DANTAS; SOUZA, 2004, p. 1). O Quadro 2 sistematiza as principais diferenças entre os dois tipos de inteligência. Isso significa que, dentre outras atividades, a Inteligência de Segurança Pública se debruça sobre fatos como problemas de criminalidade, investigação criminal, prevenção da ordem e fiscalização, além de ser responsável pelo assessoramento das ações da polícia judicial e da polícia ostensiva (KRAEMER, 2015). Além disso, suas ações devem seguir o devido processo legal (procedimentos jurídicos dos códigos de processo civil, penal etc.), pois seu produto final serve como base para produção de provas, o que normalmente é publicizado ao final dos julgamentos. Desse modo, possui uma forma de gestão orientada a resultados, dispondo do poder de polícia e do poder punitivo do Estado. A inteligência doméstica não necessariamente segue o processo legal, pois seu produto final são relatórios para orientação governamental, ou seja, possuem formato variável e raramente são publicizados. Ademais, sua gestão é orientada por objetivos, que consistem na coleta e sistematização de qualquer informação estratégica relevante para salvaguarda nacional, não possuindo poder de polícia ou poder punitivo. Além disso, possui competência para investigar pessoas que não necessariamente estão em conflito com a lei, como postulantes a cargos de alto escalão nos governos, dentre outros. O SISTEMA DE INTELIGÊNCIA BRASILEIRO E A SEGURANÇA PÚBLICA A trajetória da inteligência no Brasil é bastante tardia em comparação com outros países. Formalmente, a primeira vez em que se falou no assunto foi em 1927, com a criação do Conselho de Defesa Nacional, a partir de decreto baixado pelo então presidente Washington Luís. O Conselho foi uma respostaàs ocorrências da década de 1920, como a Revolução Russa, a quebra da bolsa de Nova York, o crescimento do movimento operário e do movimento tenentista no Brasil, sendo um órgão consultivo, cuja função era estudar “questões de ordem financeira, econômica, bélica e moral relativas à defesa da pátria” (ANTUNES, 2001, p. 42). Anos depois, após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, na década de 1930-40, foram criados o novo Conselho de Segurança Nacional, responsável por coordenar estudos com o tema da segurança, e a Secretaria de Defesa Nacional. Esses órgãos passaram por reformulações após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o acirramento da disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética durante as décadas subsequentes, nos anos 1950-60. O país começava a se preocupar com um serviço de informações. Nos anos 60, com a ascensão dos militares ao poder, o sistema de inteligência foi catapultado. Conforme afirma Antunes, em SNI & ABIN: entre a teoria e a prática, publicado em 2001, a Lei n. 4.341, de 1964, instituiu o Serviço Nacional de Informação, e os militares também instituíram, em 1971, a Escola Nacional de Informações. As instituições de inteligência foram muito importantes para a sustentação do regime comandado pelos militares, especialmente durante o período armado da guerrilha do Araguaia. Com o recrudescimento da Guerra Fria e o processo de redemocratização no Brasil, as atividades de inteligência caíram em declínio. Os principais órgãos foram desmantelados pouco a pouco e muitos arquivos foram destruídos ou perdidos. Apenas durante meados da década de 1990, no Governo Fernando Henrique Cardoso, é que foi instituído o sistema de inteligência brasileiro. A Lei n. 9.883, de 7 de dezembro de 1999, criou a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). Dezenas de órgãos fazem parte da estrutura do Sisbin, que conta com a participação do Ministério do Meio Ambiente, do Banco Central do Brasil e até do Ministério da Defesa e Secretaria Nacional de Segurança Pública. A categoria da atividade de inteligência surgiu após os anos 2000. O Decreto Federal n. 3.695, de 21 de dezembro de 2000, criou o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública no âmbito do Sisbin, o qual tem por finalidade subsidiar a tomada de decisão estratégica nesse campo no âmbito dos órgãos federais da União. Nesse sentido, cabe pontuar que o protagonismo da Inteligência de Segurança Pública é dos órgãos estaduais, com as diversas polícias civil e militar das Unidades da Federação e do Distrito Federal, pois são quem executam as atividade de inteligência de segurança pública com maior vênia. Contudo, é preciso ressaltar que os órgãos federais têm cumprido importante papel na difusão e organização do conhecimento da atividade, seja por meio da Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública (DNISP), seja pela formação intelectual dos quadros pertencentes aos órgãos estaduais com os cursos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp/Ministério da Justiça). Nesta seara, por exemplo, foi editada, pelo Governo Federal, a Doutrina Nacional de Segurança Pública - DNISP, a qual trouxe o seguinte conceito para a Atividade de Inteligência de Segurança Pública - ISP: “A atividade de ISP é o exercício permanente e sistemático de ações especializadas para identificar, avaliar e acompanhar ameaças reais ou potenciais na esfera de Segurança Pública, basicamente orientadas para produção e salvaguarda de conhecimentos necessários para subsidiar os tomadores de decisão, para o planejamento e execução de uma política de Segurança Pública e das ações para prever, prevenir, neutralizar e reprimir atos criminosos de qualquer natureza que atentem à ordem pública, à incolumidade das pessoas e do patrimônio (BRASIL, 2014, p. 13). EXPLICANDO A categoria de Inteligência de Segurança Pública foi formalizada no Brasil em 2007, quando foi proposta a primeira versão da Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública – DNISP, e em entrou em vigência sua 4ª edição. A DNISP é fundamental na esfera educacional de Inteligência de Segurança Pública, haja vista “disponibilizar aos profissionais de Inteligência os fundamentos necessários para enfrentamento da criminalidade” (p. 71), conforme afirmam Hamada e Moreira, em “Referenciais básicos para a capacitação de profissionais de inteligência de segurança pública no Brasil”, publicado em 2017. Por fim, o Governo Federal sancionou, em 11 de junho de 2018, a Lei n. 13.675, que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Inteligência e contrainteligência Os termos inteligência e contrainteligência “são intrinsecamente ligados, não possuem limites precisos, uma vez que se interpenetram, interrelacionam-se e interdependem” (BRASIL, 2014, p. 16). São funções indissociáveis à atividade de inteligência. Ao mesmo tempo em que a atividade de inteligência busca obter informações do adverso, ela se encarrega de proteger suas próprias informações (COELHO, 2012, p. 49). É fundamental, portanto, que a inteligência se preocupe não somente em atacar, mas também em se defender. Assim, para se compreender melhor as minúcias da inteligência e da contrainteligência, demanda-se, neste tópico, uma diferenciação entre ambos os termos, bem como uma abordagem dos princípios e limites que lhes são inerentes. DEFINIÇÕES Embora o termo inteligência se confunda com a própria ideia de conhecimento ou informação analisada e envolva segredo ou informação secreta (CEPIK, 2003, p. 28), sua definição é multíplice. Dentre as diversas concepções, uma das mais conhecidas e aceitas é a do professor norte-americano Sherman Kent, que primeiro sistematizou o conhecimento de inteligência, descrevendo-a em três aspectos: i) conhecimento ou produto, ii) organização e iii) atividade ou processo (GONÇALVES, 2009, p. 7). Na primeira acepção, inteligência é conhecimento ou produto, se refere ao resultado do processo de produção, ou seja, é o próprio conhecimento produzido, como documentos e relatórios que exteriorizam conhecimento de inteligência. No segundo aspecto, inteligência é uma organização, é o conjunto de órgãos e organizações que atuam na produção de conhecimento de inteligência, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligência ou da Polícia Civil e Polícia Militar. Trata-se da estrutura funcional da inteligência. Por fim, o último aspecto, inteligência é atividade ou processo, diz respeito aos meios em que dados e informações são coletados, analisados e difundidos. É o sentido mais disseminado e adotado, inclusive pela legislação brasileira. A esses três aspectos, Abraham Shulsky e Dary Schmitt acrescentaram a característica mais notável: o sigilo na condução das atividades de inteligência pelas organizações que as exercem. “Esse caráter secreto se justifica pelo papel da inteligência para a garantia da segurança nacional e no apoio à política externa” (GONÇALVES, 2009, p. 10). Lowenthal, em Intelligence: from secrets to policy, publicado em 2009, traz outra característica: a inteligência se refere às informações que atendam às necessidades das autoridades governamentais que conduzem o Estado e que foram coletadas, processadas e analisadas para atender a essas necessidades. Ou seja, além do sigilo, a inteligência deve atender a sua finalidade de contribuir para o processo decisório governamental (GONÇALVES, 2009, p. 12). Com a junção dos três aspectos de Kent à ideia de Shulsky e Schmitt, a inteligência pode ser definida como os dados e informações coletados, analisados e difundidos (aspecto da inteligência como atividade ou processo) em forma de conhecimento (faceta da inteligência como produto ou conhecimento) pelas organizações (dimensãoda inteligência como organização), de forma sigilosa (principal característica da inteligência), e com a finalidade de assessorar o processo de tomada de decisões governamentais. Nas palavras de Cepik, em Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência, publicado em 2003: Serviços de inteligência são agências governamentais responsáveis pela coleta, pela análise e pela disseminação de informações consideradas relevantes para o processo de tomada de decisões e de implementação de políticas públicas nas áreas de política externa, defesa nacional e provimento de ordem pública (p. 13). Ao conceito abordado, a legislação brasileira que disciplina a atividade de inteligência adotou o aspecto de inteligência como atividade ou processo tal qual enunciado por Kent. No artigo 1º, §2º, da Lei n. 9.883, de 7 de dezembro de 1999, consta que inteligência é: [...] a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado. No mesmo sentido, o artigo 2º do Decreto n. 4.376, de 13 de setembro de 2002, dispõe que: Para os efeitos deste Decreto, entende-se como inteligência a atividade de obtenção e análise de dados e informações e de produção e difusão de conhecimentos, dentro e fora do território nacional, relativos a fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, a ação governamental, a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado. Já a Política Nacional de Inteligência - PNI, fixada pelo Decreto n. 8.793, de 29 de junho de 2016, define a atividade de inteligência como a: [...] atividade que objetiva produzir e difundir conhecimentos às autoridades competentes, relativos a fatos e situações que ocorram dentro e fora do território nacional, de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, a ação governamental e a salvaguarda da sociedade e do Estado. A inteligência é uma função que está ao lado da contrainteligência. Esta última se refere aos esforços de proteger a própria operação de inteligência contra o acesso ou perturbação do Estado ou serviço de inteligência hostil (LOWENTHAL, 2009, p. 263). São medidas, de acordo com Cepik, Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência, publicado em 2003, que dependem da “identificação das operações de coleta de inteligência de um adversário, da detecção e da neutralização dos meios intrusivos de obtenção de informações utilizados por um governo ou organização considerada hostil” (p. 57), não se limitando à contraespionagem, que é “o esforço produzido pela contra-inteligência no sentido de neutralizar ou destruir as atividades de espionagem dos adversários” (ANTUNES, 2001, p. 31). Em outros termos, a contraespionagem é apenas uma faceta da contrainteligência. Lowenthal (2009, p. 263) destaca três tipos de contrainteligência: i) de coleta; ii) defensiva; e iii) ofensiva. A primeira se refere à obtenção de informações em relação à capacidade de coleta de inteligência do adverso. A segunda visa frustrar as ofensivas da inteligência hostil. Já a contrainteligência ofensiva, ao identificar as ofensivas do oponente, busca manipular esses ataques, transformando o agente hostil em agente duplo ou transmitindo-lhe falsa informação para que ela possa ser replicada na inteligência adversa. A definição legal de contrainteligência é eminentemente do tipo defensiva, conforme dispõe o §3º do artigo 1º , da Lei n. 9.883, de 7 de dezembro de 1999, no qual “Entende-se como contra-inteligência a atividade que objetiva neutralizar a inteligência adversa”, bem como o Decreto n. 4.376, de 13 de setembro de 2002, que a descreve como: [...] a atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a inteligência adversa e ações de qualquer natureza que constituam ameaça à salvaguarda de dados, informações e conhecimentos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, bem como das áreas e dos meios que os retenham ou em que transitem. Embora a legislação se refira apenas a partes dos aspectos da contrainteligência, esta não se limita à neutralização da inteligência adversa, englobando também a obtenção de informações em relação à capacidade de coleta de inteligência do adverso e a manipulação das ofensivas identificadas. Sendo assim, a inteligência e a contrainteligência são funções da atividade de inteligência. A primeira busca produzir e difundir conhecimento. A segunda visa salvaguardar esse conhecimento do adverso. PRINCÍPIOS Os princípios são norteadores e orientadores de condutas e atividades, trazem em si uma finalidade a ser atingida, um ideal desejado. Não são apenas valores, mas também instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização do almejado (ÁVILA, 2011). As condutas e atividades, em geral, são irradiadas por princípios, cada qual com as suas especificidades. A Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública – DNISP os define como “proposições diretoras – as bases, os fundamentos, os alicerces, os pilares - que orientam e definem os caminhos da atividade. A aplicação de um deles deve ser harmônica aos demais” (BRASIL, 2014, p. 14). Embora não haja consenso doutrinário em relação a todos os princípios, é certo que todas as categorias dessa atividade são orientadas por princípios. Gonçalves, em Atividade de inteligência e legislação correlata, publicado em 2009, subdivide os princípios da atividade de inteligência em dois subconjuntos: princípios de caráter metodológico e técnico-operacional, ao lado do princípio da ética, abordado separadamente, o qual deve pautar a atividade de inteligência. O primeiro subconjunto é integrado por quatro princípios fundamentais da atividade de inteligência: objetividade, oportunidade, segurança e imparcialidade. O segundo refere-se a princípios que são relevantes para a produção de conhecimentos e para a garantia da qualidade da inteligência produzida, e também totalizando em quatro: controle, clareza, simplicidade e amplitude. Por fim, há o princípio da ética que faz com que a atividade de inteligência seja pautada em preceitos éticos e leve “em conta os princípios legais e constitucionais aos quais está subordinada em um regime democrático. Importante registrar, também, o papel da ética na condução da atividade de inteligência” (GONÇALVES, 2009, p. 131). Os princípios integrantes do primeiro e segundo subconjuntos podem ser definidos conforme mostra o Quadro 3 LIMITES Em certa medida, os princípios da atividade de inteligência servem como limitadores da atividade de produção de conhecimento, a qual deve ser pautada na observância de suas determinações. Contudo, uma gama está disposta na existência do Estado Democrático de Direito, o qual impõe à sociedade a observância aos princípios constitucionais em vigor. Em especial, os princípios da transparência e do controle das ações governamentais se aplicam à atividade de inteligência, embora esta seja essencialmente sigilosa. Conciliar o princípio da transparência com o exercício da atividade de inteligência, que depende justamente do “segredo sobre seus métodos de atuação e suas fontes de informação para operar de forma eficaz” (CEPIK, 2003, p. 16), parece uma tarefa difícil. Todavia não é impossível. Trata-se de difícil discussão, principalmente por envolver aspectos “da relação entre segurança nacional, segredo governamental e controle das atividades de inteligência” (CEPIK, 2003, p. 137). Além disso, é importante impor a necessidade de justificação pública sobre a própria exigência do segredo naprodução de inteligência para que seja atendida a exigência de transparência, o que varia conforme cada uma das categorias de informações reguladas pelo sigilo. A principal justificação na categoria relacionada com a atuação governamental na defesa nacional e na política externa é o dano potencial que a apropriação de informações produzidas ou mantidas pelo governo por uma terceira parte poderia causar à segurança estatal e à própria segurança individual dos membros da coletividade (CEPIK, 2003, p. 152). Quanto ao princípio do controle, Cepik (2003, p. 159) traz sete tipos principais de mecanismos de controle público sobre as atividades de inteligência e segurança: As próprias eleições; A opinião pública informada pela mídia; Mandatos legais, delimitando as funções e missões das diferentes agências e áreas funcionais; Procedimentos judiciais de autorização de certas operações e de resolução de disputas de interpretação sobre os mandatos legais; inspetorias e corregedorias nos próprios órgãos de inteligência; outros mecanismos de cooperação e supervisão no Poder Executivo; mecanismos de supervisão e prestação de contas no Poder Legislativo. Por fim, a atividade de inteligência possui um limite extrínseco, qual seja, a atividade de inteligência adversa, mais especificamente a contrainteligência hostil, tendo em vista que “Estados ou outros atores buscam esconder informações de outros Estados ou atores, essa informação deve ser obtida por meios sigilosos ou encobertos” (GONÇALVES, 2009, p. 13). A inteligência de um Estado ou organização busca, essencialmente, a obtenção do dado negado ou protegido pela contrainteligência hostil. Quanto mais eficaz essa contrainteligência, mais limitada estará a produção de conhecimento por aquele que busca as informações sigilosas. De todo modo, “o manuseio do dado sigiloso, bem como as técnicas sigilosas para obtenção do dado negado, são inerentes à atividade de inteligência” (GONÇALVES, 2009, p. 13). Portanto, a inteligência de um Estado se depara com a atividade de inteligência de outro, o que dificulta a obtenção do dado negado ou protegido. Desse modo, os princípios gerais aplicados à inteligência, os princípios democráticos da transparência e do controle e a atividade de inteligência adversa são mecanismos limitadores do exercício da atividade de inteligência. Produção do conhecimento Para abordar o processo de produção do conhecimento, também denominado ciclo da inteligência, em que a informação é reunida, convertida em inteligência e entregue aos tomadores de decisão, é necessário entender o conceito de conhecimento. A DNISP de 2014 o conceitua como o resultado final “da utilização da metodologia de produção de conhecimento sobre dados e/ou conhecimentos anteriores”. Já Coelho, em Contrainteligência em segurança pública, publicado em 2012, define o conhecimento como “a informação de forma organizada, com contexto e entendimento. É assim o resultado da análise e interpretação da informação para aplicação final em alguma tomada de decisão” (p. 26). Ambos os conceitos relacionam o conhecimento ao resultado da produção de inteligência, ou seja, ao final do ciclo de inteligência, se chega ao conhecimento. Isso será demonstrado a seguir. CICLO DA INTELIGÊNCIA O ciclo da inteligência, também denominado como processo de produção de conhecimento, busca facilitar a compreensão da transformação da informação e demonstrar o fluxo dessas informações entre os diferentes atores envolvidos. É uma ideia que se refere aos estágios ou etapas da inteligência, desde o momento em que os tomadores de decisões governamentais percebem a necessidade de produção de informações até o momento em que lhes são entregues um produto de inteligência analítico, transformando “dados e/ou conhecimentos anteriores em conhecimentos avaliados, significativos, úteis, oportunos e seguros, de acordo com metodologia própria e específica” (BRASIL, 2014, p. 19). Pode-se dizer, ainda, que “é o processo por meio do qual a informação é reunida, convertida em inteligência e disponibilizada aos consumidores – tomadores de decisões” (GONÇALVES, 2009, p. 97), ou seja, a produção do conhecimento envolve uma metodologia específica, a qual “transforma dados em conhecimentos, com a finalidade de assessorar os usuários no processo decisório” (BRASIL, 2014, p. 14). Ainda, Lowenthal, em Intelligence: from secrets to policy, publicado em 2009, aborda que há sete tarefas principais: 1 identificação de requerimentos de inteligência: consiste em identificar os problemas ou áreas governamentais em que a inteligência pode contribuir; 2 coleta: é a fase que reúne informações; 3 processamento e exploração das informações coletadas; 4 análise e produção da inteligência; 5 disseminação para os tomadores de decisões governamentais; 6 consumo: se refere ao quanto essa inteligência será utilizada e como, se por meio de documentos escritos ou na forma oral; 7 feedback: é entendida como o momento em que os tomadores de decisões governamentais entregam aos produtores de conhecimento uma resposta sobre a utilidade do que foi produzido, bem como discutem eventuais ajustes. Herman, em Intelligence power in peace and war, publicado em 1996, desmembra a produção de conhecimento em fases que envolvem a coleta e análise, a disseminação do produto da inteligência, bem como o esforço em causar alguma reação no usuário, e a efetiva entrega e reação do usuário ao produto. A melhor definição, todavia, é utilizada pela doutrina brasileira, visto que sumariza as diversas fases pelas afinidades temáticas. Assim, o ciclo da inteligência compreende três fases ou etapas: orientação, produção e utilização. FASES DO CICLO DA INTELIGÊNCIA A orientação é a primeira fase do ciclo da inteligência. De acordo com Gonçalves, em Atividade de inteligência e legislação correlata, publicado em 2009, “relaciona-se às necessidades de inteligência, ou seja, às demandas por parte do usuário, do cliente da inteligência, do tomador de decisão (p. 100). As orientações advêm do plano de inteligência, da solicitação de uma agência congênere, da determinação de autoridade competente ou da atividade de inteligência quando a produção de conhecimento é iniciada pela própria atividade. Em âmbito estratégico, diz respeito à definição dos objetivos e fixação de diretrizes para a produção de conhecimento de inteligência. É uma etapa de suma importância, pois permite que os prestadores de serviço estabeleçam seus planos de atividade e façam o planejamento estratégico. Desse modo, as orientações são determinadas conforme as necessidades do usuário, impondo objetivos e diretrizes próprias para que o ciclo de conhecimento seja executado de modo a atender às necessidade do usuário. A produção é o momento em que ocorre efetivamente a atividade de inteligência. Nessa etapa há aplicação de metodologia específica para a produção do conhecimento. É composta por quatro subfases: planejamento, reunião de dados, processamento e formalização e difusão. A primeira subfase, planejamento, consiste no gerenciamento do trabalho de produção de conhecimento de forma lógica e sistematizada, “estabelecendo o objetivo ou necessidades, prazos, prioridades e cronologia, definindo os parâmetros e as técnicas a serem utilizadas” (BRASIL, 2014, p. 22). A segunda subfase, de produção e reunião de dados, se refere à obtenção de dados concernentes aos aspectos essenciais a conhecer. Engloba tanto ações de coleta quanto de busca. Há várias classificações quanto às fontes e aos meios de obtenção de dados. Gonçalves (2009, p. 107) apresenta os diferentes métodos de obtenção de dados conforme a natureza das fontes, classificando-as “quanto à sua confidencialidade (fontes abertas ou fontes classificadas/dado negado) ou quanto à origem dos dados(de fontes humanas ou de fontes técnico-científicas – ou seja aquelas obtidas por meios técnicos). A DNISP (2014) aborda que há duas fontes básicas de obtenção de dados: inteligência humana e inteligência eletrônica. No primeiro caso, o foco está no ser humano. No segundo, o foco está no “uso de equipamentos eletrônicos ou sistemas informatizados, inclusive aqueles conectados à rede mundial de computadores, para obtenção de dados. Pode ser classificada como inteligência de sinais, imagens e de dados” (BRASIL, 2014, p. 25). Por sua vez, Cepik (2003, p. 18) afirma que são três as principais fontes típicas a partir das quais as informações são obtidas: “a inteligência obtida a partir de fontes humanas (humint), a inteligência obtida a partir de interceptação de comunicações e de outros sinais eletromagnéticos (sigint) e a inteligência obtida a partir de imagens (imint)”. Após as referidas subfases, planejamento e reunião de dados inicia a terceira subfase da produção, o processamento, que basicamente consiste na interpretação desses dados. Concluído o processamento, ocorre a formalização e difusão do conhecimento, quarta subfase da produção, por meio de documentos de inteligência disponibilizados aos usuários ou a outras atividades de inteligência. A última fase é a utilização. Embora o conhecimento já esteja produzido, o ciclo da inteligência é concluído somente após a utilização pelo usuário. Essa etapa permite que novas demandas sejam geradas “em virtude das necessidades do usuário e o processo é retroalimentado” (GONÇALVES, 2009, p. 104). Inteligência de segurança pública e cenários prospectivos de criminalidade e violência A atividade de inteligência de segurança pública é aquela que busca produzir conhecimento para subsidiar a tomada de decisão e a formulação de estratégias de enfrentamento à criminalidade e à violência. É prioritariamente executada pelas forças policiais nos níveis federal, estadual e municipal. Atua identificando, avaliando e acompanhando ameaças reais ou potenciais na esfera de segurança pública, além de produzir conhecimentos que subsidiam ações “para prever, prevenir, neutralizar e reprimir atos criminosos de qualquer natureza que atentem à ordem pública, à incolumidade das pessoas e do patrimônio” (BRASIL, 2014, p.13). Essa atividade permite a produção de conhecimento tático e estratégico para prevenção e repressão criminais utilizadas quando apenas a produção de evidências se mostra insuficiente para enfrentamento, em especial, da criminalidade organizada. A segurança pública é um dos grandes desafios do Brasil. Segundo as Nações Unidas em relatório publicado em 2019, o Brasil tem uma das maiores taxas de mortalidade do mundo. Os dados apontam que o número de homicídios dolosos durante os anos de 1991 e 2017 superou a marca aproximada de 1,2 milhão de pessoas. Diante deste cenário, a inteligência possui importante ferramental para a melhoria do padrão de segurança brasileiro. CRIMINALIDADE E VIOLÊNCIA - UMA GRANDE AMEAÇA A segurança pública no Brasil lida com o crescimento exacerbado da criminalidade e da violência, cujas maiores ameaças internas envolvem a atuação de organizações criminosas no narcotráfico e no comércio clandestino de armas, altos índices de homicídios, violência generalizada, principalmente nos grandes centros urbanos, dentre outras. Esse quadro “impõe uma série de desafios para os governantes no sentido de construção de políticas públicas eficazes” (HAMADA; MOREIRA, 2020, p. 5), ao mesmo tempo em que preocupa a sociedade brasileira diante de grandes incertezas sobre o futuro. Fala-se nas organizações criminosas como um grande problema para a segurança pública. Todavia, nem tudo que o senso comum chama de organização criminosa realmente se encaixa como tal. Nesse sentido, para uma organização ser considerada criminosa, ela deve se encaixar em quatro características: hierarquia, previsão de lucros, divisão do trabalho, planejamento empresarial e simbiose com o Estado. Estudos mostram que o fortalecimento das organizações criminosas está vinculado ao aumento da população carcerária (FÁBIO, 2016 apud FERREIRA, 2017). A cadeia é a grande gestora dessas organizações, onde surgiram as principais facções do País nos estados do Rio de Janeiro e em São Paulo (MINGARDI, 2007). O crime organizado possui ramificações nos mais diversos tipos de atividades ilícitas, “do narcotráfico à extorsão e corrupção, passando pela prostituição, tráfico de pessoas e órgãos, tráfico de armas e lavagem de dinheiro”, além das organizações criminosas cooperarem entre si, formando verdadeiros conglomerados transnacionais promotores de delitos (GONÇALVES, 2009, p. 55). Assim, a atividade de inteligência de segurança pública é capaz de contribuir para o controle da criminalidade e da violência, em especial do aumento e fortalecimento das organizações criminais, por meio da produção de conhecimentos “confiáveis e utilizáveis dotando as instituições repressivas de informações que permitam entender o problema e elaborar estratégias eficientes” (MINGARDI, 2007, p. 67). Ou seja, atuando não só para repressão, mas principalmente para prevenção, permitindo o planejamento de estratégias de ação das autoridades no contexto da segurança pública. De toda maneira, a inteligência, ainda não é largamente utilizada na segurança pública, mas vem se desenvolvendo nos últimos anos (KRAEMER, 2015). COMO A INTELIGÊNCIA PODE AJUDAR A SEGURANÇA PÚBLICA No contexto de crescimento exacerbado da criminalidade e da violência, a atividade de inteligência de segurança pública exerce importante papel ao proporcionar diagnósticos e prognósticos sobre a evolução de situações de criminalidade e violência, entregando, dentre outros, conhecimento do tipo estimativo ou prospectivo que permitem opinião sobre a evolução futura dessas situações por meio de métodos prospectivos complementares ao processo de produção, além de produzir conhecimentos em médio e longo prazo, auxiliando na formulação de políticas, estratégias, planos e ações para enfrentar os desafios futuros e evitando surpresas estratégicas. De acordo com Hamada e Moreira, em “A inteligência estratégica como atividade essencial para as instituições de segurança pública”, publicado em 2020, essa inteligência estimativa ou prospectiva tem por base “as avaliações das ameaças e riscos, das suas consequências e dos possíveis resultados de cenário alternativos” (p. 11), gerando conhecimento voltado para a antecipação e adaptação a cenários futuros, o que diminui incertezas e minimiza surpresas. A ideia de prospectiva está amparada no tripé composto pela antecipação, ação e apropriação. Já os cenários são um instrumento de gestão que apoia o processo decisório e, por meio de monitoramento de variáveis e atores, “sinaliza com antecedência a necessidade de serem feitos ajustes ou mesmo revistas as estratégias pretendida e deliberada” (FERREIRA, 2015, p. 23). A análise prospectiva permite, por exemplo, identificar as tendências de ação do crime organizado e suas tipologias. “Por meio dessas variáveis, é possível traçar linhas mestras de ação na prevenção e no combate às organizações criminosas, em escala nacional, além de criar instrumentos para cooperação com outros entes da comunidade internacional” (GONÇALVES, 2004, p. 19). Algumas técnicas são úteis e importantes para a prospecção de cenários, das quais se destacam: brainstorming; painel de especialistas; técnica de simulação; analogia histórica; elaboração de cenários; extrapolação de tendências em séries temporais; matriz de incerteza crítica; sinéctica; questionários e entrevistas; teoria dos jogos; dentre outras (HAMADA; MOREIRA, 2020, p. 12). Já em relação às metodologias de prospecção de cenários utilizadas pelas grandes organizações, ganham destaque: da Global BusinessNetwork (GBN); Grumbach; Porte; Prospec; Sagres; ESG; Metodologia Policial Militar de Construção de Cenários, dentre outras. Outra importante ferramenta ao combate da criminalidade é a análise criminal, técnica acessória à produção do conhecimento e que permite “identificar padrões do crime e correlações de tendências da violência e da criminalidade, a fim de assessorar o planejamento para a distribuição eficaz de meios e recursos de Segurança Pública”, de modo a prevenir, controlar e reprimir o ato criminoso (BRASIL, 2014, pp. 28-29). A identificação desses padrões “é essencial para que haja uma intervenção que impacte o ambiente criminal, decorrente da habilidade da inteligência em processar e influenciar o pensamento estratégico dos tomadores de decisão” (RATCLIFFE, 2009 apud HAMADA; MOREIRA, 2020, p. 9). Há uma perfeita interação entre i) a análise de inteligência criminal estratégica, que identifica padrões criminais; ii) os tomadores de decisão, que são influenciados por esse conhecimento produzido pela inteligência; e iii) o ambiente criminal, que é impactado pela estratégia abordada pelos tomadores de decisão. Desse modo, a inteligência de segurança pública é de suma importância no combate à criminalidade e à violência, uma vez que, por meio da inteligência estimativa, é possível produzir conhecimento de cenários prospectivos. Da mesma forma, por meio da análise de inteligência criminal, identificamos padrões criminais, o que permite formulação de estratégias por parte dos tomadores de decisão, impactando o ambiente criminal e evitando surpresas futuras. UNIDADE II Segurança pública aplicada: inovação, tecnologia e sistemas O avanço tecnológico é uma constante no mundo contemporâneo, e afeta, em sua integralidade, diversos aspectos da vida social. A transformação social é cada vez mais intensa e rápida, o que tem impactado, inclusive, as atividades criminosas. Por um lado, tem-se cada vez menos os já não mais tradicionais roubos, furtos e violência de rua; por outro, os crimes tecnológicos, como as fraudes e os estelionatos por meio digital, vêm aumentando nas últimas décadas. A tecnologia também vem sendo desenvolvida para uso na prevenção ao crime. Cada vez mais, organizações de segurança utilizam novos recursos para combater o crime. Contudo, a inovação policial, destinada à segurança pública, vai muito além da sua relação com as recentes tecnologias digitais. SEGURANÇA PÚBLICA E INOVAÇÃO POLICIAL Inovações são reflexo direto das crises e dos novos dilemas, e são produzidas quando existe incompatibilidade entre os problemas e o sistema vigente, normalmente obsoleto. Inovação significa a aplicação de conhecimentos, técnicas, experiências e práticas no desenvolvimento de sistemas, produtos e serviços (SILVA, 2003). No contexto da segurança, exatamente a partir da ineficiência das práticas tradicionais, é que nasce a inovação policial, ou seja, uma nova forma de lidar com os problemas de segurança (WEISBURD; BRAGA, 2006). Na seara da segurança pública, a chamada inovação policial pode ser caracterizada como a mudança que visa ao atendimento de demandas sociais relacionadas à segurança pública, envolvendo a melhoria de processos, tratamento de informações e coleta de dados, e integração de sistemas, de maneira a gerar vantagens para os órgãos policiais (ABDI, 2010). Assim, a inovação policial pode apresentar-se sob a forma programática, administrativa, tecnológica e estratégica (MOORE; SPARROW; SPELMAN, 1997). Inovação programática – A inovação programática consiste na instituição de novos métodos, programas e políticas capazes de alterar o uso dos recursos para o alcance de novos objetivos. Vai desde o uso de policiais para prover educação sobre drogas nas escolas até treinamento de resistência à violência contra mulheres. Inovação administrativa – A inovação administrativa são todas as mudanças estabelecidas em procedimentos, ou seja, nas atividades policiais que não são finalísticas (relacionadas à atividade-fim da polícia). Vai desde os meios de preparação para operações até métodos de recrutamento de polícias, treinamento e, até mesmo, a forma de mensuração da performance policial (WEISBURD; BRAGA, 2006). Inovação tecnológica – A inovação tecnológica, por sua vez, é a que depende do uso de novas peças ou dispositivos, equipamentos capazes de aumentar o capital ferramental das polícias, como armas, análise de DNA e softwares de mapeamento e inteligência. Atualmente é a mais aparente, por conta dos avanços tecnológicos, contudo isso não significa que é a que tem o maior fluxo de ocorrência. Na verdade, conforme fica bem aparente, a inovação é um fenômeno relativamente simples nos termos em que se trata de uma mudança em relação às práticas estabelecidas. Isso não é algo muito difícil de ocorrer nas organizações policiais, e não há que se falar em primazia de algum tipo de inovação sobre a outra. Inovação estratégica – Por fim, a inovação estratégica representa mudanças na filosofia e orientação, o que vem das esferas superiores das organizações e afeta as operações de todo corpo policial; basicamente, é a forma como a polícia constrói o significado do que faz. Um exemplo é o entendimento policial diferente a partir da identificação de dependentes químicos como pessoas usuárias de drogas ou traficantes, o que altera a forma de tratamento da polícia para com ela (WEISBURD; BRAGA, 2006). Ainda que a ideia de inovação esteja bastante relacionada ao emprego de novas tecnologias, como softwares, computadores, smartphones e outros gadgets, não deve ser feita essa limitação, pois inovação, em geral, remete ao sentido de vantagem (SILVA, 2003). XEMPLIFICANDO É bastante ilustrativo pensarmos que tanto a invenção da máquina a vapor, no século XVIII, quanto a máquina de Gutenberg, que imprimia livros no século XV, foram importantes inovações tecnológicas, pois permitiram o acontecimento de transformações radicais na época em que foram instauradas (SILVA, 2003; LINARDI, 2018). Assim, de maneira geral, quando se fala em inovação, basicamente, há a mudança de algum paradigma, de algum conceito ou prática anteriormente estabelecido, visto que o conceito é bastante amplo. Da mesma forma, quando a ideia de inovação se volta ao contexto de segurança pública, a visão não deve ser restrita, pois o entendimento não deve ficar limitado a um dos vários tipos de inovação. Conforme vimos, a inovação policial, além de seu aspecto tecnológico, pode manifestar-se de forma programática, administrativa e estratégica. Mais uma vez: o fator diferencial para avaliarmos se algo diz respeito à inovação é a vantagem, a revolução gerada. Retomando a questão inicial, para algo ser considerado uma verdadeira inovação o invento deve ir além do discurso, de se autoproclamar inovador. Ele deve gerar uma ruptura, uma mudança visível e persistente. Uma verdadeira inovação é aquela que quebra paradigmas, que transforma profundamente a forma de se fazer algo, e isso se aplica também à segurança pública. O que definirá se câmeras corporais, drones, reconhecimento facial, biometria ou outras tecnologias serão realmente inovadoras é o grau de transformação que elas propiciam e não seu “revestimento” tecnológico (SOUZA et al., 2018, p. 7– 8). Nesse diapasão, é fácil perceber que a inovação pode ocorrer em qualquer lugar, inclusive nos diferentes níveis da atividade policial. Há de se falar em inovação nos diversos sistemas gerenciais e nos sistemas operacionais da área da segurança pública, já que os tipos de inovação são igualmente relevantes. O nível gerencial é o que se preocupa com a elaboração das diretrizes e metodologias para toda a atividade policial, e é relacionado à cadeia de comando propriamente dita. Já o nível operacionalé o que se ocupa com a execução, na ponta da atividade policial; se o nível gerencial avalia, propõe, estuda e sugere inovações, o nível operacional é o que vai colocar em prática e realizar os feedbacks para as instâncias superiores do nível gerencial. Exatamente por isso, os tipos de inovação são importantes para ambos os níveis da atividade policial. SOLUÇÕES TECNOLÓGICAS APLICADAS À SEGURANÇA PÚBLICA Ainda que o entendimento de inovações aplicadas à segurança pública não se limite ao meio digital, as novas tecnologias, sem dúvida, vêm ganhando cada vez mais destaque. Isso se deve ao volume massivo de mudanças que a inovação nos meios digitais vem causando em todas as esferas sociais, o que também se aplica à segurança pública. De acordo com as suas finalidades, as soluções tecnológicas digitais recentes destinam-se a: De fato, a inovação tecnológica vem ganhando muito destaque pela proporção de mudanças que tem gerado. Vejamos, em detalhes, algumas das principais soluções. // Biometria A biometria é um método de checagem de pessoas e identificação com base em características do perfil individual de cada pessoa. Os sistemas de controle biométrico são aqueles que captam, codificam e armazenam informações da estrutura humana para análise por meio de sistemas analógicos e digitais. É bastante antiga, mas ganhou bastante força com os avanços tecnológicos recentes (ABDI, 2010). Existem dois tipos principais de biometria: sistemas de verificação e sistemas de identificação. Os primeiros são aqueles que se utilizam de processos do tipo um para um, ou seja, comparam informações captadas de uma pessoa com as informações existentes no banco de dados para identificação. Já os segundos são sistemas baseados em processos de um para muitos, buscando um casamento das informações de uma pessoa com as de outras (ABDI, 2010). Entre as características físicas mais comuns de serem detectadas nos sistemas, há a impressão digital, aparência facial, padrão da íris, geometria das mãos, DNA, padrão das veias, retina e geometria. Além disso, entre as características comportamentais, há sistemas que analisam a voz, modo de assinatura, modo de andar e movimentos faciais (DALL’IGNA et al., 2016). Entre as características físicas mais comuns de serem detectadas nos sistemas, há a impressão digital, aparência facial, padrão da íris, geometria das mãos, DNA, padrão das veias, retina e geometria. Além disso, entre as características comportamentais, há sistemas que analisam a voz, modo de assinatura, modo de andar e movimentos faciais (DALL’IGNA et al., 2016). Ainda assim, as tecnologias de reconhecimento de padrões por vídeo podem ser entendidas como “sistemas que trabalham em conjunto com câmeras de vídeo para detecção de objetos perigosos, reconhecimento de padrões em imagens” (ABDI, 2010, p. 59). Na verdade, para além do reconhecimento facial, esse tipo de sistema vem sendo aprimorado para ser utilizado no reconhecimento de objetos, diferenciando, por exemplo, pessoas, armas, automóveis, placas etc., e para identificação de padrões de comportamento, como ações características de furto, roubo, agressão, entre outros (ABDI, 2010). Ademais, esse tipo de sistema permite que as autoridades possam checar visualmente e em tempo real ameaças à segurança em locais públicos, ou seja, são muito eficientes por permitirem que poucos policiais possam cobrir a segurança de grandes áreas. Para além do uso em locais críticos, como aeroportos e grandes centros, a tecnologia pode ser utilizada em vias urbanas, shoppings, rodoviárias e áreas de grande circulação de pessoas. // Sistema de informação geográfica (SIG) Os ditos SIGs visam aprimorar as investigações criminais a partir dos padrões em sua localização. Ainda que o uso de informações geográficas e as análises espaciais não sejam uma novidade no trabalho policial, remetendo seu uso ao início do século XX, foi somente com o avanço da tecnologia que houve uma grande virada na sua utilização (ANSELIN; GRIFFITHS; TITA, 2008). EXPLICANDO Os boletins de ocorrência ainda são a principal fonte de informação geográfica para mapeamento do crime. Por meio deles, a polícia consegue identificar as chamadas zonas quentes (hot spots) do crime, o que possibilita uma alocação do efetivo policial. Boa parte disso se dá por conta da fragmentação existente entre os distritos policiais. Ainda que os policiais consigam identificar, individualmente, áreas com maior ocorrência de criminalidade, fica difícil ter uma imagem do todo que seja mais consistente, inclusive não apenas quando se fala em bairros, ou distritos, mas de cidades e estados (algo que mudou radicalmente com a integração de dados gerados pelos sistemas de informação geográfica) (ANSELIN; GRIFFITHS; TITA, 2008). Daí provém a inovação da capacidade de integração dos dados. As ferramentas de geocodificação funcionam a partir da transformação de endereços em localizações geográficas precisas (coordenadas geográficas bidimensionais). A partir dessa transformação, é feita a análise espacial, que consiste na plotagem dos dados em mapas bidimensionais, e é possível a agregação de dados por diferentes escopos (ANSELIN; GRIFFITHS; TITA, 2008). Na verdade, a simplicidade da ferramenta é seu grande diferencial, pois é possível visualizar diversos recortes, como data da ocorrência, hora, época do ano, tipo de crime, armas utilizadas, entre outros, permitindo que a polícia descubra os chamados padrões do crime. De fato, as pesquisas mostram que o crime não é aleatório e não ocorre de maneira uniforme, mas tende a repetir-se em locais com fatores específicos (ANSELIN; GRIFFITHS; TITA, 2008). Assim, esse tipo de informação facilita às forças de segurança planejarem as estratégias e táticas de respostas mais adequadas a cada tipo de ocorrência. A Figura 4 ilustra um exemplo do sistema de informações geográficas. As áreas mais escuras têm maior incidência criminal nos termos da população residente em cada distrito, e os pontos são os homicídios propriamente ditos. Repare que fica fácil definir onde devem ser concentrados os esforços policiais para a redução do número de homicídios. Apesar dos SIGs serem úteis para o planejamento policial, eles não se resumem a isso, pois podem ser utilizados, por exemplo, na integração com sistemas de posicionamento global (GPS) em tempo real, permitindo, também, boa solução para controle de tráfego, localização de viaturas, planejamento de ações rápidas e envio de reforços em ocorrências em andamento (SORENSEN, 1997). Inclusive, essas são algumas das principais funcionalidades recentes que as tecnologias digitais proporcionam a esses sistemas. // Armamento não letal São equipamentos desenhados para incapacitar matéria ou pessoas, minimizando o risco de fatalidade e danos permanentes. Enquanto as armas convencionais, ou letais, visam à destruição física de seus alvos, por explosão, penetração ou fragmentação, as armas não letais visam prevenir o funcionamento dos seus alvos, tendo consequências, geralmente, reversíveis. São cada vez mais fundamentais no mundo atual, considerando as pressões pela diminuição do número de fatalidades, a redução de conflitos belicosos com o estabelecimento do jogo de forças no cenário geopolítico mundial e os avanços na tecnologia propriamente ditos, o que aumentou a precisão e eficiência das armas não letais (ALEXANDER, 1999). O uso de armas não letais não deve ser confundido como um fator de limitação da polícia, mas o contrário. O adequado uso da força pelo aparato do Estado, materializado nas forças de segurança, é uma eficiente forma de legitimação dos atores sociais encarregados da segurança pública, garantindo-lhes ferramentas de diferentes níveis para o exercício do trabalho (ALEXANDER, 1999). De fato, não se trata de substituiras ferramentas utilizadas pelas forças policiais, mas de garantir proporcionalidade no uso da força conforme os diferentes tipos de situação, o que pode ser feito a partir do adequado treinamento dos operadores. Os tipos mais comuns são mostrados no Quadro 1. Na Figura 5, é possível identificar várias armas não letais sendo empregadas. Além da arma com munição não letal, há granadas de gás lacrimogêneo e cassetetes. Cabe ressaltar que as armas não letais, apesar do nome, devem ser utilizadas com o adequado preparo e treinamento, visto que o uso indiscriminado ou excessivo pode causar danos semelhantes à tortura, ou também, em casos extremos, causar a morte. Assim, o treinamento de seus operadores é indispensável. // Drones e VANTs Drone consiste em qualquer veículo capaz de realizar tarefas de forma autônoma, por via terrestre, marítima ou aérea. Ainda que sejam muito populares atualmente, os drones foram criados pelo exército estadunidense no início do século XX, e utilizados em diversas guerras. Seu uso mais efetivo deu-se recentemente, nos anos 2000, no conflito entre os EUA e o Afeganistão, quando o uso de drones deixou de ser experimental (PERES, 2015). Os drones mais comuns no meio militar, ou também na área da segurança pública, são denominados VANTs (veículos autônomos não tripulados). Conforme o Departamento de Defesa Americano, o VANT é: Veículo aéreo movido à propulsão que não transporta um operador humano, usa forças aerodinâmicas para impulsionar-se, pode voar autonomamente ou ser pilotado remotamente, ser usado uma única vez ou em várias missões e carregar armamentos letais ou não letais. Veículos balísticos ou semibalísticos, mísseis de cruzeiro e projéteis de artilharia não são considerados veículos aéreos não tripulados (PERES, 2015, p. 31). Para além do uso em combate, os drones são muito úteis no cumprimento de missões de reconhecimento, identificação e patrulhamento de territórios e fronteiras, e podem ser utilizados com bastante versatilidade, ora como armamento, ora como transporte, além de possuírem a capacidade de autonomia sem operador. SOLUÇÕES ESTRATÉGICAS APLICADAS À SEGURANÇA PÚBLICA Ainda no contexto das soluções, é oportuno que se demonstre que diversas inovações na trajetória das organizações policiais não contaram com o aparato tecnológico da Era Digital. As soluções aqui apresentadas são de caráter estratégico e, em princípio, representam maiores mudanças nos paradigmas do que nas ferramentas. De toda forma, isso não significa que essas mudanças dispensem tecnologias e, de fato, elas podem sim ser operacionalizadas por meio de ferramentas digitais. O ponto é que seu diferencial provém de mudanças gerenciais, estratégicas. Entre as principais inovações desse tipo, podemos citar algumas ocorridas no final do século XX nas principais polícias do mundo: policiamento comunitário, policiamento de janelas quebradas e terceiros interessados (WEISBURD; BRAGA, 2006). Trataremos delas brevemente. // Policiamento comunitário O policiamento comunitário é uma estratégia inovadora que busca criar uma cultura nos departamentos policiais. Mais do que um produto, é um processo que busca reduzir o crime a partir do envolvimento dos cidadãos, resolução de problemas e descentralização. Na esfera do envolvimento da comunidade, espera-se que a polícia consiga desenvolver parcerias com organizações civis e com membros da comunidade. É preciso que a polícia consiga ouvir a comunidade e a ajude a resolver os seus principais problemas. A ideia é que o combate ao crime também dependa da comunidade (SKOGAN, 2006). É fácil perceber que essa inovação é uma mudança de paradigma, pois reorienta a forma que a polícia realiza várias atividades. A proximidade com a comunidade requer treinamento específico dos policiais: requer que as tropas estejam em constante contato, que disponibilizem tempo e que conheçam a realidade local para além de estarem presentes apenas quando alguma ocorrência criminal ocorre. Envolve, também, programas educacionais, para que a polícia se aproxime da população (SKOGAN, 2006). Um exemplo bastante popular aqui no Brasil é o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), realizado nas escolas de todo o País. Nesse sentido, a proximidade é fundamental para que a resolução de problemas e a descentralização ocorram, visto que a polícia consegue identificar com antecedência possíveis situações-problema. Em vez de ter uma abordagem investigativa, após a ocorrência de fatos, a orientação de resolução de problemas busca treinar os agentes para que identifiquem situações antes que ocorram, ou seja, antes que o crime ocorra, os policiais já estão treinados a identificar indícios de fatos precursores (SKOGAN, 2006). O exemplo do Proerd ilustra bem a tentativa de orientar crianças e jovens antes que ocorra seu aliciamento para uso de drogas. // Policiamento das janelas quebradas (broken windows) A teoria das janelas quebradas originou uma espécie de policiamento de mesmo nome. Basicamente, a teoria aponta um ciclo psicológico no qual a existência de desordem gera o crescimento do medo, o que leva ao abandono e, consequentemente, a mais declínio social (que se volta para a desordem). Nos EUA, na década de 1970, com o crescimento da criminalidade e da circulação de informações sobre crimes, as pessoas passaram a ter mais medo, ainda que a maioria delas não fosse vítima de crimes. Com o tempo, os cidadãos deixaram de ocupar os espaços públicos e a rua, trancando-se em casa devido a esse medo e deixando aqueles espaços vulneráveis à dominação do crime. Nesse contexto, um simples sinal de desordem, como uma janela quebrada, afeta a psicologia coletiva, alimentando o ciclo (TAYLOR, 2006). A metáfora das janelas quebradas tem relação direta com a política de tolerância zero aplicada na cidade de Nova York nos anos de 1990 (TAYLOR, 2006). A ideia era varrer o crime das ruas, incluindo qualquer tipo transgressão tida como moral, como bebedeira, prostituição etc., endereçando respostas para qualquer mínimo sinal de desordem nas localidades. Com isso, as organizações policiais esperavam tratar o viés psicológico de medo existente, servindo, inclusive, para demonstrar aos criminosos que aquelas localidades não estavam propícias para o crime. Ainda que haja muitas críticas, o fato é que houve redução na criminalidade registrada na cidade de Nova York. Ademais, a ideia de combater o medo e a tratar a psicologia da população representou uma grande inovação, de modo que, até hoje, diversas instituições preocupam-se em medir a sensação de insegurança da população (SOUSA; KELLING, 2006; PARADELLA, 2018). // Terceiros interessados A política dos terceiros interessados é definida como os esforços das forças de segurança para persuadir e obter a colaboração de organizações da sociedade civil ou pessoas influentes a fim de que contribuam para a prevenção do crime. Podem ser pais, empresários, líderes comunitários, servidores públicos, entre outros (MAZEROLLE; RANSLEY, 2006). Nesse sentido, as organizações policiais podem dispor de meios coercitivos ou de meios argumentativos (MAZEROLLE; RANSLEY, 2006). Um exemplo do primeiro são normas que obrigam particulares a cederem imagens de monitoramento em vídeo para as polícias, ou também a instalação de alarmes conectados às forças de segurança, como no caso das instituições financeiras. Em relação aos meios argumentativos, um exemplo são os projetos de cooperação desenvolvidos pela polícia com outras instituições, com a finalidade de colaborar para a prevenção criminal. Em Brasília, por exemplo, a polícia civil firmou termos de cooperação com a companhia energética para facilitar a prevenção de crimes contra a infraestrutura de energia. Ferramentas de gestão, comunicação e gerenciamento da informaçãoaplicadas à segurança pública A sociedade do final do século XX experimentou transformações ocorridas em diversas áreas, engendrando um grande fluxo e compartilhamento de informações, notícias e conhecimentos no mundo como um todo, culminando na denominada sociedade da informação (SILVA et al., 2008). Esses aspectos fizeram com que a sociedade fosse alcançada, como um todo, pelo desenvolvimento da Tecnologia da Informação, que, com sua capacidade sem paralelo de gerar, manipular e avaliar dados, foi e é aplicada como suporte à gestão de informações, de modo a subsidiar a tomada de decisões mais eficazes e eficientes, amparadas em informações de qualidade, úteis e significativas. A gestão e o gerenciamento de informações no âmbito da segurança pública, diante da emergência da sociedade da informação, necessitam de bons sistemas integrados de informação e de comunicação, amparados em uma boa estrutura tecnológica. Embora sejam termos indissociáveis (a gestão, o gerenciamento, a informação, a comunicação e a tecnologia) aplicados simultaneamente em um sistema que envolve o manuseio de informações, eles são separadamente conceituados, a fim de que seja possível a melhor compreensão do conteúdo. Assim, antes de adentrarmos os sistemas aplicados à segurança pública, serão conceituados os termos sistema de informação, sistema de comunicação, Tecnologia da Informação e sistema de gestão. Posteriormente, serão apresentados os diversos sistemas de gestão, comunicação e gerenciamento de informações aplicados à segurança pública. SISTEMAS DE INFORMAÇÃO, DE COMUNICAÇÃO, DE GESTÃO E DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO O sistema de informação (SI) é um processo dinâmico que permite criar relação entre os dados e transformá-los em informação útil, por meio de um conjunto de conhecimentos. É composto por um conjunto de elementos inter- relacionados que permitem a coleta, manipulação, armazenamento e disseminação de dados e informações, além de fornecer um “mecanismo de realimentação (feedback) para atingir um objetivo” (STAIR; REYNOLDS, 2015, p. 4). Os sistemas de informação são fundamentais para o apoio a processos de tomada de decisão e para a gestão de uma organização (LAUDON; LAUDON, 2014). Dentro desse contexto, os dados são fatos brutos ou eventos que ainda não foram analisados, organizados e dispostos para que pudessem ser entendidos e utilizados por uma instituição, organização ou por uma atividade (LAUDON; LAUDON, 2014). Por sua vez, informação é o mesmo que dados modelados (em um formato significativo e útil) por meio do sistema de informação (SI), ou seja, são os fatos organizados, processados e com valor adicional (STAIR; REYNOLDS, 2016). Em outras palavras, são dados que já foram minimamente organizados. Por fim, conhecimento remete ao entendimento sobre um conjunto de informações, refletindo a utilidade dele (STAIR; REYNOLDS, 2015). Trata-se, pois, de informações prontas para serem utilizadas. Tenha em mente que, no caso de informações, elas são dados minimamente tratados, e o conhecimento requer, além de informações tratadas, que elas sejam úteis e completas para uma tomada de decisão. O SI, então, é formado por quatro fases: entrada, processamento, saída e feedback. A entrada relaciona-se à captura de dados brutos, que pode ocorrer, por exemplo, por meio de uma ligação de um cidadão ao número de telefone 190 (sistema de atendimento de emergência). O processamento (manipulação e armazenamento) refere-se às atividades de tratamento, com a conversão e/ou transformação das entradas em saídas úteis, ou seja, os dados brutos são convertidos em uma forma mais significativa e útil. Já a saída (disseminação) é a etapa que transfere as informações úteis às pessoas ou às atividades que as utilizarão. Por fim, os SIs requerem uma resposta (feedback), para que sejam possíveis ajustes nas atividades de entrada, processamento e saída, com a retroalimentação do sistema (FURTADO, 2002; LAUDON; LAUDON, 2014). Outra importante ferramenta que auxilia a tomada de decisão é a comunicação. De nada adiantaria o uso de um bom SI sem uma boa estrutura de comunicação; ela envolve “implicitamente a informação transmitida de um ponto a outro por uma sucessão de processos” (HAYKIN, 2004, p. 19). O processo de comunicação é composto por cinco componentes que formam o sistema de comunicação (SC): a fonte de informação, o transmissor, o canal ou meio de transmissão, o receptor e o destino da informação (HAYKIN; MOHER, 2010). O propósito de um SC é entregar uma mensagem de uma fonte de informação, em um formato reconhecível, a um usuário final, que está fisicamente separado da fonte de informação. Esse SC pode ser de dois tipos: sistema de comunicação digital e sistema de comunicação analógico. A diferença entre ambos está na informação que será transmitida, que poderá ser digital ou analógica (HAYKIN; MOHER, 2010). Nesse sentido, o SI produz informações úteis e significativas, e o SC permite que elas sejam entregues ao usuário final. Todavia, diante da complexidade da sociedade e das organizações, há a necessidade do uso de tecnologias para o melhor compartilhamento e gestão das informações. A Tecnologia da Informação (TI) consiste, exatamente, no conjunto de recursos utilizados para o desenvolvimento de atividades que subsidiarão um sistema de informação ou um sistema de comunicação, com coleta, tratamento, processamento e armazenamento de dados, de forma ágil. Conforme pode-se notar, a TI é fundamental para os sistemas, devido ao grande fluxo de informações que temos e seu aspecto quantitativo. Além disso, há necessidade de gerar, manipular e avaliar dados, gerando informação significativa e útil (o aspecto qualitativo da informação) (FURTADO, 2002; STAIR; REYNOLDS, 2015). Diante disso, os elementos dos sistemas de informação ou de comunicação que se utilizam da TI para funcionamento são: hardware, software, bancos de dados, telecomunicações, pessoas e procedimentos, sendo que os quatro primeiros também são elementos da própria TI (STAIR; REYNOLDS, 2015). O hardware equivale aos equipamentos computacionais que permitem realizar atividades de entrada, processamento, armazenagem e saída, tais como teclado e mouse (dispositivos de entrada), chips do computador (dispositivos de processamento e armazenamento), impressoras e telas de computadores (dispositivos de saída), entre outros. Já os softwares servem para comandar a operação do computador; podem ser sistemas operacionais ou aplicativos, por exemplo (STAIR; REYNOLDS, 2015). Os bancos de dados são informações organizadas de modo que se evidenciem as suas relações, envolvendo tecnologia de armazenamento de dados (STAIR; REYNOLDS, 2015; LAUDON; LAUDON, 2014). As telecomunicações são transmissões de sinais eletrônicos com vistas à comunicação, as quais podem se dar por meio de transmissão com fio, sem fio e via satélite (STAIR; REYNOLDS, 2015). A telecomunicação visa ligar diversos equipamentos, transferindo dados de um local para muitos, permitindo a formação de uma rede de compartilhamento de dados ou recursos, tal como a internet, a maior rede existente, e as intranets, redes internas baseadas na tecnologia da internet (LAUDON; LAUDON, 2014). CURIOSIDADE A internet é o sistema de comunicação público com maior abrangência do mundo. Ela teve início nos anos 1970, como uma rede criada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América. Ela foi criada com o intuito de conectar cientistas e professores universitários ao redor do mundo (LAUDON; LAUDON, 2014). As pessoas referem-se aos funcionários responsáveis por executar e administrar as diversas funções do sistema e aos usuários dos sistemas (STAIR; REYNOLDS, 2015). Por fim, os procedimentos são as estratégias, políticas, métodos e regras aplicadas ao sistema, ditadas pela ferramenta de
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