Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
OS LIVROS DA FUVEST ALGUMA POESIA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Análise da obra, seleção de textos FRANCISCO ACHCAR Questionário LAUDEMIR GUEDES FRAGOSO Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 11 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 12 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Itabira (MG), 1902 – Rio de Janeiro (RJ), 1987 1. INTRODUÇÃO 1.1. O “poeta da pedra” Em 1928, Carlos Drummond de Andrade, então desconhecido, lançou, na Revista de Antropofagia, o poema “No meio do caminho”: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. ALGUMA POESIA 13 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 13 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 14 O Modernismo, que eclodira em São Paulo na Semana de Arte Moderna (1922), estava no auge de sua “fase heroica”. Fundada naquele ano de 1928, por Oswald de Andrade, a Revista de Antropofagia representava a vanguarda do movimento. O poema de Drummond, republicado dois anos depois em seu livro de estreia, Alguma Poesia (1930), causou escândalo: a literatura contava então com mais espaço social e uma novidade ainda podia chocar um considerável número de pessoas. Drummond subitamente se tornou conhecido: foi admirado ou ridicularizado – e até mesmo agredido – por causa de seu poema audacioso, e a “pedra” passou a representar por excelência a imagem de sua poesia. “No meio do caminho” é um título carregado de alusões literárias ilustres. “No meio do caminho de nossa vida” (“Nel mezzo del cammin di nostra vita”) é o verso que inicia a grande viagem pelo inferno, purgatório e paraíso, em um dos maiores poemas da humanidade, A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). No Brasil, era muito admirado o célebre “Nel mezzo del camin...”, soneto parnasiano do “príncipe dos poetas brasileiros”, Olavo Bilac (1865-1918), que começa assim: “Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada/E triste, e triste e fatigado eu vinha”. O poema de Drummond soava como brincadeira irreverente, desrespeito não só para com a venerável tradição literária, mas até para com o leitor e a própria poesia. Um texto feito quase que só de repetições, sem vírgulas, com fraseado vulgar: contra a gramática e a “boa linguagem”, o poeta escrevia tinha, e não havia; nunca me esquecerei que, e não de que. Tudo muito provocativo. Entre os admiradores, “No meio do caminho” provocou interpretações variadas: geralmente, entendeu-se pedra como símbolo do obstáculo e do cansaço existencial (Mário de Andrade, Álvaro Lins), mas o poema também foi lido como expressão da poética1 das primeiras obras de Drummond, uma poética segundo a qual “a poesia surge quando o universo se torna insólito, enigmático, embaraçoso – quando a vida já não é mais evidente” (José Guilherme Merquior). 1 Poética: concepção, ou teoria, da poesia. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 14 Drummond colecionou, ao longo dos anos, críticas, comentários de jornal, ataques pessoais, paródias – um copioso material referente ao “poema da pedra”, que reuniu numa antologia publicada em 19672. Haroldo de Campos, que foi dos que mais esclarecedoramente analisaram o estranho texto, procurou desvendar o sentido, não da pedra, mas do modo de composição do poema, particularmente do papel que as repetições (redundâncias) nele representam3. Partindo da oposição redundância x informação, que pode ser traduzida por repetição x novidade, Haroldo de Campos mostra que a repetição exagerada, por ser surpreendente, cria a novidade, a “informação estética”. Esse processo de transformação da redundância em informação, da repetição em novidade ocorre em outras obras de arte modernas, como o quadro Quadrado branco sobre fundo branco (1918), do pintor russo Kazimir Malevich. Mas isso não acontece só na arte: num campo de neve, por exemplo, impressiona a repetição incessante de branco, como num deserto a insistência interminável da areia. A frase “tinha uma pedra no meio do caminho”, obsessivamente repetida, carrega-se de sentido inesperado. A frase nova, que ocupa o centro do poema, apenas contrasta com a repe - tição para reforçá-la, reintroduzindo-a como registro indelével da memória (“Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra [...]”). “No meio do caminho” não foi o primeiro poema que Drummond publicou, mas foi seu batismo de fogo. Os ataques sofridos foram lembrados mais de uma vez ao longo de sua obra, consagrada depois como das mais notáveis de nossa literatura (um dos poucos casos de poesia em português que merece relevo na literatura internacional). Não obstante a amplitude e diversidade dessa obra, a imagem da “pedra no meio do caminho” constituiu-se em seu símbolo mais marcante, pois o cerne da poesia de Drummond contém, insistente, a expressão do impasse, da dificuldade, do obstáculo, da frustração, da não transcendência4. Todos esses sentidos estão presentes na indiferença da pedra. 2 Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1967. 3 Haroldo de Campos, “Drummond, mestre de coisas”, in Metalinguagem & outras metas, São Paulo, Perspectiva, 1992. Deste ensaio procedem também as citações de Haroldo de Campos que faremos adiante. 4 Transcendente é o que está além da experiência imediata, o que supera (transcende) a realidade sensível, circundante. ALGUMA POESIA 15 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 15 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 16 1.2. Drummond e o Modernismo O ano de 1930, em que Drummond fez sua estreia em livro – com Alguma Poesia –, é marcado por acontecimentos de vulto na literatura brasileira: Mário de Andrade, figura central do movimento modernista, lança um livro importante, Remate de Males, que inicia nova fase em sua obra, mais concentrada e intensa, e menos comprometida com os maneirismos da “fase heroica” da batalha modernista; Manuel Bandeira, membro do movimento e um de seus mestres, publica Libertinagem – livro em que se apresenta mais decididamente moderno. Nesse ano, aparece também Murilo Mendes e, pouco depois, ele e Jorge de Lima inauguram a influência do surrealismo sobre a poesia brasileira. Nosso Modernismo, ao mesmo tempo em que conquista posições decisivas diante da literatura acadêmica combalida, acaba endossando uma volta a tons pós-simbolistas algo decadentes, com a poesia “espiritual” de Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles e o Vinícius de Moraes da primeira fase. Na prosa, inicia-se o ciclo do neorrealismo do Nordeste (José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado), identificado como modernismo regionalista, porém inspirado em experiências de ficção do fim do século passado. Nessa segunda etapa modernista – que vai, grosso modo, de 1930 a 1945 –, a poesia brasileira não só vê afirmadas e desenvolvidas algumas das características mais marcantes de seu primeiro tempo (invenção rítmica – sobretudo na exploração do verso livre5 – humor, paródia6, temas cotidianos, linguagem coloquial7...), mas também realiza uma ampliação temática e uma diversificação de tendências de estilo que irão compor o seu perfil contemporâneo. Esse segundo momento é caracterizado, sobretudo, por: • generalização e aprofundamento da mistura de estilos (estilo misto ou mesclado), em que se combinam o elevado e o banal, o grave e o grotesco: temas sérios e problemáticos são tratados com linguagem vulgar, e o tom sublime é aplicado a assuntos “baixos” ou banais; 5 Verso livre: verso não metrificado, isto é, que não corresponde aos padrões métricos tradicionais. 6 Paródia: imitação cômica de um texto literário. 7 Coloquial: próprio da conversa. Livro_Fuvest_ALGUMAPOESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 16 USUARIO Destacar • preocupação existencial de pretensões universalistas, com a exploração, em novos registros, de temas como o tempo, o amor e a morte (aqui se deve lembrar que a primeira fase modernista é mais ligada a assuntos nacionais e a temas do cotidiano e da atualidade, afastando-se dos “grandes temas” existenciais, associados à poesia do passado); • imagens arrojadas ou oníricas8 em associações inesperadas, revelando alguma influência do Surrealismo9 e da então recente voga da psicanálise de Freud, voltada para a exploração do inconsciente (essa influência surrealista, embora restrita, marcou a obra de poetas importantes, como Murilo Mendes e Jorge de Lima, e é notável em momentos isolados da poesia de Drummond); • envolvimento do escritor na problemática social, através da atitude de denúncia e revolta diante das injustiças, assim como da expressão de uma esperança utópica, de fundo socialista; • reflexão da poesia sobre a própria poesia, ou seja, autoconsciência do poeta em relação a seu próprio trabalho com as palavras. Esse programa encontra sua expressão superior na obra de Drummond, que o foi alargando e aprofundando, de livro em livro. Com A Rosa do Povo (1945), sua obra atingiu um dos pontos culminantes da estética modernista na poesia brasileira. A partir de então, numa série de livros que inclui Claro Enigma (1951), Drummond realizou a mais bem-sucedida tentativa de casar a linguagem renovadora do modernismo com padrões restauradores da linguagem poética da tradição (uso de metros regulares, adoção frequente de uma forma fixa como o soneto, fraseado de gosto clássico). 1.3. Vida e obra Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Descendente de família ligada às tradições dos povoadores, mine - radores e fazendeiros de sua região, cedo deixou a cidade natal – em 1916 – para estudar na capital do estado. Formado em Farmácia, dedicou-se ao jornalismo e ingressou no funcionalismo público. Em Belo Horizonte, 8 Onírico: próprio do (ou relativo ao) sonho. 9 Surrealismo: corrente artística de vanguarda, iniciada em 1924, que propunha uma arte brotada do inconsciente, sem controle da razão. ALGUMA POESIA 17 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 17 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 18 pertenceu ao grupo de renovação modernista e dirigiu sua efêmera publicação, A Revista (1925). Posteriormente, fixou-se no Rio de Janeiro, abandonando a militância cultural e dedicando-se à vida de funcionário público e à elaboração de suas poesias e crônicas (estas últimas, publicadas em grandes jornais, o fizeram muito lido e conhecido). Morreu no Rio de Janeiro, em 1987. Estreando em livro aos 28 anos, Drummond compôs até seus 60 anos (1962) a parte mais importante de sua obra – dez livros de poesia: Algu - ma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma (1951), Fazendeiro do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959), Lição de Coisas (1962). Todos esses livros foram coligidos, em 1969, no volume Reunião. Drummond publicou depois várias outras coletâneas de poesias (com relevo para Boitempo & A Falta que Ama, 1968; As Impurezas do Branco, 1973; A Paixão Medida, 1980). Em 1983, dezenove livros foram publicados sob o título Nova Reunião (2 volumes). Postuma mente, em 2015, depois de seus netos complementarem a obra com trechos de livros posteriores, foi publicado Nova Reunião: 23 livros de poesia. Além dessa grande obra poética, Drummond publicou volumes de prosa (Contos de Aprendiz, 1951, e várias coleções de crônicas). Essa prosa, embora lúcida, penetrante, não tem a inventividade e a tensão de sua poesia; é amena, agradável, apreciada pelo humor, pela elegância e agudeza. Drummond criou uma linguagem poética própria, original não só no panorama da literatura brasileira, mas também no da literatura internacional de nossa época. Como ocorre com a maioria dos poetas, sua obra apresenta desníveis, mas não é exagero afirmar que, em seus grandes momentos, ela coloca Drummond entre os maiores poetas do mundo. 1.4. Temas Na Antologia Poética que publicou em 1962, o próprio poeta classificou tematicamente sua poesia, distribuindo seus poemas por nove compartimentos, considerados “pontos de partida ou matéria de poesia”. A seguir, enumeramos e comentamos brevemente esses nove núcleos temáticos da poesia drummondiana, colocando ao lado de cada um o título da seção da Antologia a ele correspondente: Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 18 USUARIO Destacar USUARIO Destacar 1) o indivíduo: “um eu todo retorcido” (o indivíduo, na poesia de Drummond, é complicado, torturado, fragmentado); 2) a terra natal: “uma província: esta” (a profunda, dura, triste relação com o lugar de origem, que o indivíduo abandona, mas que não o abandona); 3) a família: “a família que me dei” (sem qualquer sentimentalismo – bem ao contrário –, o indivíduo interroga, sem alegria, a misteriosa realidade da família, que existe nele, em seu corpo, é parte de suas emoções e de seu imaginário); 4) amigos: “cantar de amigos” (título que joga com os “cantares” ou “cantigas de amigo” medievais; são homenagens a figuras admiradas, próximas ou distantes, como Machado de Assis, Charles Chaplin, Mário de Andrade ou Manuel Bandeira, em poemas às vezes de grande penetração crítica); 5) o choque social: “na praça de convites” (o espaço social, onde o indivíduo se expõe ao apelo dos outros e vive os dramas coletivos); 6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro” (ou o amor amargo: nada romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma forma amarga de conhecimento – conhecimento do outro, de si, do mundo); 7) a própria poesia: “poesia contemplada” (as “artes poéticas” de Drummond: poemas sobre o quê e o como da poesia); 8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas” (jogos com as palavras – atividade aparentemente infantil, mas poética em sua essência, e responsável por alguns dos mais espantosos e complexos poemas de Drummond); 9) uma visão (ou tentativa de) da existência: “tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” (questões e conjecturas sobre a existência, o “estar-aqui”, sobre o que há “no meio do caminho”). ALGUMA POESIA 19 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 19 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 20 2. ALGUMA POESIA 2.1. Filiação modernista: poesia epigramática Drummond é geralmente arrolado entre os poetas do período que se inicia em 1930, porque sua estreia em livro data daquele ano. Mas, em Alguma Poesia, há poemas que remontam a 1923 e, a partir de 1925, ele foi presença notável em algumas das mais importantes revistas do Modernismo, como é o caso da Revista de Antropofagia, antes mencionada. Esse primeiro livro, apesar de seu título despretensioso (ou aparentemente despretensioso), marca uma data importante na poesia brasileira, pela atrevida novidade de alguns poemas (em primeiro lugar, “No meio do caminho”), assim como pelo uso do coloquial e do epigramático10, que constituem prosseguimento da melhor tradição modernista, com poemas-piada na linha de Oswald de Andrade. Quanto ao título, ele não deve ter soado nada modesto aos conser - vadores: chamar poesia a textos como “No meio do caminho” ou “Poema de sete faces” parecia acintoso11 a ouvidos acadêmicos, que ainda rejeitavam o Modernismo e se compraziam na mistura parnasiano-simbolista que dava o tom da poesia não modernista praticada na época. 2.2. Temas Os quarenta e nove poemas de Alguma Poesia já apresentam quase todos os nove temas (ver 1.4.) que o poeta discerniu em sua obra: falta apenas exemplo do tema “amigos”, embora não faltem poemas dedicados a amigos – em um dos casos, a dedicatória consta mesmo do título do texto (“Epigrama para Emílio Moura”). Levando-se sempre em conta que a atribuiçãodo poema a uma ou outra rubrica temática é muitas vezes problemática, e ainda que um mesmo poema pode ser associado a dois ou mais temas, pode-se propor a seguinte distribuição para quarenta e dois dos poemas desse livro: 10 Epigramático: referente a epigrama, ou seja, a poesia breve, satírica, de humor cortante e sutil. 11 Acinte: provocação. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 20 USUARIO Destacar USUARIO Destacar USUARIO Destacar USUARIO Sublinhar USUARIO Destacar a) o indivíduo: “Poema de sete faces”, “Também já fui brasileiro”, “Europa, França e Bahia”, “Moça e soldado”, “Música”, “Explicação”; b) a terra natal: “Lanterna mágica”, “Igreja”, “Festa no brejo”, “Jardim da Praça da Liberdade”, “Cidadezinha qualquer”, “Fuga”, “Cabaré mineiro”, “Romaria”; c) a família: “Infância”, “Sweet home”, “Família”, “Sesta”; d) o choque social: “Política”, “Poema do jornal”, “Nota social”, “Cora - ção numeroso”, “O sobrevivente”, “Anedota búlgara”, “Sociedade”, “Outubro 1930”; e) o conhecimento amoroso: “Casamento do céu e do inferno”, “Toada do amor”, “Cantiga de viúvo”, “Sentimental”, “Esperteza”, “Quadrilha”, “Iniciação amorosa”, “Balada do amor através das idades”, “Quero me casar”; f) a própria poesia: “Poesia”, “Poema que aconteceu”; g) exercícios lúdicos: “Construção”, “Política literária”, “Sinal de apito”; h) uma visão (ou tentativa de) da existência: “No meio do caminho”, “Cota zero”. Os sete poemas restantes (“A rua diferente”, “Lagoa”, “O que fizeram do Natal”, “Papai Noel às avessas”, “Epigrama para Emílio Moura”, “Elegia do rei de Sião” e “Poema da purificação”) desenvolvem temas diversos, embora, dependendo da perspectiva de leitura, alguns deles possam ser associados a um ou outro, ou a mais de um, dos temas elencados. 2.3. O indivíduo O “Poema de sete faces”, que abre Alguma poesia, ficou, já na época, tão célebre quanto “No meio do caminho” (ver 1.1.), tendo sido um dos textos que mais expuseram o autor à zombaria da crítica e dos leitores, como ele mesmo registrou depois: ...um poeta brasileiro, não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa. (“Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, in A Rosa do Povo, 1945.) ALGUMA POESIA 21 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 21 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 22 Trata-se de um dos mais notáveis poemas do livro de estreia de Drummond e, consequentemente, uma das mais memoráveis realizações daqueles anos “heroicos” do Modernismo12. POEMA DE SETE FACES Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche13 na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. 12 A fase chamada “heroica” do movimento modernista estende-se de 1922 a 1930. Embora publicado em 1930, esse poema de Drummond foi composto nos anos 1920 e é típico do clima literário daquele período. 13 Gauche (francês; pronúncia gôch): desajeitado (sentido literal: esquerdo). Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 22 USUARIO Destacar Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. As “sete faces” desse poema exploram cada uma um aspecto diferente do “eu todo retorcido”; em conjunto, elas funcionam como se fossem as diversas perspectivas de um quadro cubista, em que o sujeito, decomposto em suas formas a partir de vários ângulos, é remontado pela junção de fragmentos descontínuos. Como se verá, essa descontinuidade é excepcional em Alguma Poesia, pois os demais poemas geralmente se articulam sem rompimentos bruscos. Na primeira “face”, encontra-se um tema que se tornaria característico de Drummond: o “desajeitamento” existencial, nunca tratado com autopiedade e quase sempre envolvido em ironia. Aqui, temos uma elaboração nova do motivo tradicional do poeta desadaptado à vida: não é mais o gênio incompreendido e solitário dos românticos, mas sim o sujeito cuja inépcia tende antes ao ridículo que ao grandioso. A sua condenação não é obra de um deus que o consagra, mas sim de um “anjo torto” cuja obscuridade só reforça seu caráter grotesco. A segunda “face” é introduzida com uma quebra brusca de continuidade (como numa montagem cubista): somos confrontados agora com uma cena de rua, inesperada depois do contexto simbólico anterior do anjo torto que condena o poeta a ser gauche. Aqui aparece outro dos temas que seriam constantes na obra de Drummond: o desejo amoroso, que transfigura o mundo e o sujeito. (No último verso dessa segunda estrofe, deve subentender-se a conjunção se: “se não houvesse tantos desejos” – a elipse dessa conjunção, além de corresponder a um uso tradicional da língua culta, obedece a razões métricas, como veremos nos exercícios). A terceira “face” é a do espanto diante do mundo, escondido atrás da percepção aparentemente indiferente das coisas aparentemente banais. ALGUMA POESIA 23 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 23 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 24 A ausência de vírgulas na enumeração (“pernas brancas pretas amarelas”), que encontraremos repetidamente na poesia de Drummond, é expediente tipicamente modernista e visa aqui a criar uma justaposição rápida de imagens, apta a sugerir a sua simultaneidade14. A contraposição entre o coração e os olhos (“Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. / Porém meus olhos / não perguntam nada.”) parece exprimir um conflito entre o sentimento e o desejo, ou, nos termos de um crítico, entre a “sensualidade da percepção” e a “pureza do sentimento”. Esse contraste aparecerá outras vezes na obra de Drummond. A quarta “face” apresenta o confronto com o outro – o “semelhante diferente”. De um lado, o frágil “eu lírico”, desajustado e espantado diante do mundo, como o vimos nas “faces” anteriores; do outro lado, o homem convencional, o burguês forte, sério e seguro. A quinta “face” expõe o indivíduo “abandonado por Deus” – tema frequente na literatura de uma época de crise das crenças e valores tradicionais, uma época em que, como formulariam depois os pensadores existencialistas, o homem passou a sentir-se “jogado no mundo” e “condenado à liberdade”. É notável (embora pouco notada) aqui a referência às palavras de Cristo na cruz15. A sexta “face” reintroduz o tema do “espanto diante do mundo” e lhe acrescenta notações novas: a condenação do esteticismo (a “solução” para o formalismo poético não é solução para a vida) e a gigantesca afirmação emocional do sujeito. Esta última se exprime num verso que retoma um trecho magnífico e célebre de outro poeta mineiro, este do século XVIII, Tomás Antônio Gonzaga, que assim termina uma de suas mais belas “liras” de Marília de Dirceu: Eu tenho um coração maior que o mundo; Tu, formosa Marília, bem o sabes: Um coração, e basta, Onde tu mesma cabes. 14 O simultaneísmo foi um princípio modernista bastante generalizado, presente, por exemplo, no cubismo e no futurismo. No cubismo, servia à representação de aspectos diversos de um mesmo objeto, colhidos a partir de perspectivas diferentes; no futurismo, prestava-se ao objetivo de representar o movimento dos objetos e a rapidez da vida moderna. 15 “Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz dizendo: Eli, Eli, iemá sabactâni, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Mateus 27:46; também Marcos15:34. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 24 USUARIO Destacar USUARIO Sublinhar USUARIO Sublinhar USUARIO Destacar Na sétima e última “face”, negando ironicamente o arroubo romântico da estrofe anterior (o “coração maior que o mundo”), o sujeito como que se desculpa de sua efusão emocional, atribuindo-a ao sentimentalismo causado por eflúvios lunares e etílicos, como se o que foi dito se devesse à “emoção do momento” e à bebedeira... 2.4. A terra natal Um dos mais célebres poemas que desenvolvem o tema em epígrafe é a seguinte joia de concisão epigramática: CIDADEZINHA QUALQUER Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. Neste poema, o elemento central é a “fanopeia”, ou seja, a construção do significado através de imagens (isso ocorre também, em Alguma Poesia, no poema “Construção”, por exemplo). De fato, o texto funciona como um cromo16, um quadrinho singelo de aspectos de uma pequena cidade; mas não se trata, como é habitual nesse tipo de evocação, de uma ilustração lírica, pitoresca ou sentimental, e sim de um epigrama crítico e irônico. A expressão “vida besta”, da exclamação final (bem mineira ou caipira no seu “eta”), passou a designar, para certos comentadores da obra do poeta, um tema, ou subtema, associado à área temática da vida provinciana, ou seja, no caso de Drummond, da “terra natal”. 16 Cromo: figura colorida, constituindo pequeno impresso recortado para colagem em álbuns etc., ou imagem maior para pendurar em parede. ALGUMA POESIA 25 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 25 USUARIO Destacar USUARIO Sublinhar USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 26 2.5. A família O tema da “vida besta” pode também se associar aos temas da província natal e da família, como ocorre no poema seguinte. FAMÍLIA Três meninos e duas meninas, sendo uma ainda de colo. A cozinheira preta, a copeira mulata, o papagaio, o gato, o cachorro, as galinhas gordas no palmo de horta e a mulher que trata de tudo. A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, o cigarro, o trabalho, a reza, a goiabada na sobremesa de domingo, o palito nos dentes contentes, o gramofone rouco toda noite e a mulher que trata de tudo. O agiota, o leiteiro, o turco17, o médico uma vez por mês, o bilhete18 todas as semanas branco19! mas a esperança sempre verde, a mulher que trata de tudo e a felicidade. Diferentemente do que se verá na quase totalidade dos poemas drummondianos da família, aqui não há amargura, nostalgia ou qualquer gravidade; ao contrário, o poema tem uma leveza encantadora, que, através de 17 Turco: árabe (designação corrente até hoje no Brasil, embora seja de notar que turcos não são árabes). Aqui, refere-se ao “turco da prestação”, ou seja, o mascate árabe que vendia seus produtos a prazo pelas cidades do interior e a elas retornava periodicamente para cobrar as prestações. A venda a prazo de pequenos bens de consumo (tecidos, guarda-chuvas etc.) foi, no Brasil, uma inovação dos “turcos”. 18 Bilhete: bilhete de loteria. 19 Branco: não premiado. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 26 USUARIO Destacar uma simples estrutura de coordenação aditiva, desemboca no magnífico efeito cômico final. Trata-se de uma longa enumeração dos “materiais da vida” provinciana, limitada e satisfeita na mediocridade do aconchego familiar, com tudo no seu devido lugar, inclusive os preconceitos e as injustiças (os pretos e mulatos como serviçais, a mulher como factótum20 – por isso presente em toda parte, concluindo todas as seções da enumeração), resultando o conjunto, muito ironicamente, na “felicidade” – o ideal pequeno-burguês de felicidade, que o antiburguês Flaubert21 considerava imoral. 2.6. O choque social O poema-piada é uma das expressões que, nesse livro inicial de Drummond, tem o tema da “praça dos convites”, ou seja, o “ser-com”, a vida em sociedade. Ele pode ter a brevidade epigramática de “Anedota búlgara” ou conter uma narrativa de extensão um pouco maior, como em “Sociedade”. Nesses poemas, não está presente a gravidade dos poemas políticos posteriores de Drummond, sobretudo dos poemas de largo sopro de A Rosa do Povo (1945), embora o tom grave apareça por momentos em outros poemas de Alguma Poesia que se referem ao “choque social” (“Outubro 1930”, “Política”, “Coração numeroso”). O tom jocoso, contudo, não mascara a denúncia: ANEDOTA BÚLGARA Era uma vez um czar naturalista 22 que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas ficou muito espantado e achou uma barbaridade. 20 Factótum (do latim factotum “faz tudo”): pau para toda obra. 21 Gustave Flaubert (pronúncia: güstav flobérr – sendo o ü uma vogal que fica entre i e u, um i com os lábios arredondados, e o o fechado, flô): escritor francês (1821-1880), um dos maiores mestres do Realismo, autor do célebre romance Madame Bovary. 22 Naturalista: estudioso de história natural, ou seja, das ciências naturais; aqui, trata-se de um amante da natureza. ALGUMA POESIA 27 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 27 USUARIO Destacar USUARIO Sublinhar USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 28 Aqui, a referência a ditadores sanguinários foi profética no que se refere ao Brasil, que não tinha vivido ainda os dois regimes repressivos e violentos que conheceu no século XX: o “Estado Novo” (1937-1945) de Getúlio Vargas e a ditadura militar nascida da chamada “Revolução” de 1964. “Sociedade” pode ser considerado uma espécie de poema-piada desenvolvido. Agora, o conteúdo não é político, mas trata-se igualmente de um aspecto do “ser-com-os-outros”, a vida na “praça de convites”: SOCIEDADE O homem disse para o amigo: — Breve irei a tua casa e levarei minha mulher. O amigo enfeitou a casa e quando o homem chegou com a mulher, soltou uma dúzia de foguetes. O homem comeu e bebeu. A mulher bebeu e cantou. Os dois dançaram. O amigo estava muito satisfeito. Quando foi hora de sair, o amigo disse para o homem: — Breve irei a tua casa. E apertou a mão dos dois. No caminho o homem resmungava: — Ora essa, era o que faltava. E a mulher ajunta: — Que idiota. — A casa é um ninho de pulgas. — Reparaste o bife queimado? O piano ruim e a comida pouca. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 28 E todas as quintas-feiras eles voltam à casa do amigo que ainda não pôde retribuir a visita. 2.7. O conhecimento amoroso Também o tema amoroso foi, nesse livro, motivo de epigramas, dos quais o mais famoso, e talvez o mais brilhante, é “Quadrilha”: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. A enfiada de desencontros amorosos que constitui essa engenhosa “Quadrilha” (lembremos que quadrilha é uma dança de salão em que os membros dos casais dançantes vão-se alternando) é graciosamente narrada através de associações ligadas aos nomes próprios, que constituem o principal material linguístico de que se serve aqui o poeta. Aos prenomes (João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili) opõe-se o nome J. Pinto Fernandes, o único a que falta o prenome (só aparece a inicial J.) e o único a ser apresentado com sobrenome. Prenomes (ou possivelmente apelido, no caso de Lili) são usados em relações próximas, informais ou íntimas, e não sugerem mais do que relações pessoais. Quanto a inicial e sobrenome, a sugestão não é de relação pessoal, informalidade ou intimidade, bem ao contrário: pensa-se em formalidade social ou relações de negócio (J. Pinto Fernandes poderia ser o nomeusado, não entre amigos ou amantes, mas numa conta bancária ou na designação de uma firma). Curiosamente, todos os prenomes, menos Lili, são explicitamente sujeitos do verbo amar (todos amavam) e implicitamente do verbo casar na negativa (nenhum casou). Lili é sujeito do verbo amar na negativa (“não amava ninguém”) e positivamente do verbo casar. E o que é significativo é que Lili se casou, não com um prenome, mas com inicial e sobrenome. Ora, se, no contexto do poema, o ALGUMA POESIA 29 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 29 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 30 grupo dos prenomes liga-se a intimidade, a amor e a não casa mento, enquanto o outro grupo, constituído por Lili e J. Pinto Fernandes, é em tudo oposto ao primeiro, pois aqui os sentidos são de não intimidade, não amor e casamento... O mesmo tom brincalhão está presente em outros poemas de tema amoroso constantes de Alguma Poesia, como veremos adiante, em “Balada do amor através das idades” (ver 3.) e em “Toada do amor” (ver 4.). No poema seguinte, o tema amoroso cruza-se com o do “eu todo retorcido”. SENTIMENTAL Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! — Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: “Neste país é proibido sonhar.” 2.8. A própria poesia A poesia metalinguística, isto é, a poesia voltada para a própria poesia (“poesia contemplada”, nos termos do poeta), corresponde a alguma das mais estupendas realizações de Drummond, sobretudo em seu grande livro de 1945, A Rosa do Povo. Mas já em Alguma Poesia esse tema comparece num poema, talvez em dois. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 30 USUARIO Destacar USUARIO Sublinhar USUARIO Sublinhar USUARIO Sublinhar POESIA Gastei uma hora pensando em um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira. Muito curiosamente, essa concepção de poesia como algo inefável, isto é, indizível, como algo para que pode não haver palavras é uma concepção substancialista de todo diferente daquela que encontraremos nos poemas metalinguísticos de A Rosa do Povo, já mencionados. Podemos dizer que se trata de uma concepção substancialista porque a poesia é vista como algo em si, uma substância independente das palavras, que existe fora delas e para a qual elas podem não ser suficientes: a poesia pode não estar no poema, o poema pode não se realizar, mas existe “a poesia deste momento”, que não demanda palavras. No livro de 1945, a consideração do fenômeno poético será inteiramente diversa, oposta mesmo ao que está implicado no poema que estamos lendo. Uma das importantes peças metalinguísticas daquele livro, “Procura da poesia”, assim se inicia: PROCURA DA POESIA Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. No momento culminante do mesmo poema, a poesia é indissociavel - mente ligada ao trabalho com as palavras: ALGUMA POESIA 31 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 31 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 32 Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. [...] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Portanto, não se trata mais de poesia como substância independente das palavras, mas sim como o resultado do trabalho com elas, trabalho que vem a ser a busca de uma chave para o segredo das palavras. O outro poema que, neste livro, pode ser considerado como relativo à temática da “poesia contemplada” é o seguinte, que forma um par muito interessante e revelador com o texto que acabamos de ler. POEMA QUE ACONTECEU Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. A mão que escreve este poema não sabe que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse. Este é como que o oposto complementar de “Poesia”: num, o poema não acontece, apesar dos esforços do sujeito, mas existe “a poesia deste momento”; no outro, o momento não parece particularmente poético (nada ocorre, nem no mundo, nem no sujeito), mas o poema acontece, apesar da total indiferença do sujeito. Portanto, parodiando uma frase bíblica, pode-se dizer que o espírito da poesia, para o Drummond estreante, sopra onde quer, a despeito dos esforços do poeta. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 32 USUARIO Destacar 2.9. Exercícios lúdicos Entre os poemas que Drummond considera brincadeiras ou jogos com as palavras, conta-se o seguinte: POLÍTICA LITERÁRIA A Manuel Bandeira23 O poeta municipal discute com o poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz24. Mais um esplêndido poema-piada. Agora, a sátira mordaz volta-se para os costumes literários do país – o ciúme, o desejo de poder, a mesquinharia provinciana e ridícula daquele grupo que o grande poeta romano Horácio (século I a.C.) chamou de “a irascível raça dos vates” 25. (Anote-se, a propó - sito, que Drummond sempre teve grande desprezo pela chamada “vida lite - rária” e sempre evitou as corriolas intelectuais, como comprova, por exemplo, o fato de ele nunca ter aceitado entrar para a Academia Brasileira de Letras.) 2.10. Uma visão (ou tentativa de) da existência Dos dois poemas de Alguma Poesia que, segundo a classificação do próprio poeta, versam temática existencial, já vimos um, “No meio do caminho”. O outro é: COTA ZERO Stop. A vida parou ou foi o automóvel? 23 Antologia Poética, Drummond, Record, 2010, p. 93. 24 Tirar ouro do nariz: expressão popular, corrente sobretudo em Minas, que significa tirar sujeira do nariz. 25 Irascível: que se ira com facilidade, irritável. Vate: poeta (designação solene, já que a palavra também significa “profeta”). ALGUMA POESIA 33 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 33 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 34 Na sua extrema simplicidade e concisão, este é um texto admirável sobre um fenômeno central de nossa existência moderna: a crescente e alarmante dependência da vida em relação aos produtos da tecnologia. O automóvel, naquele tempo, era a última palavra da técnica, e a vida já não podia prescindir dele. Hoje, poderíamos aplicar a mesma constatação a muitos outros engenhos ou engenhocas, sendo o computador o último e, parece, o mais definitivo deles. 3. LEITURA 3.1. “Lanterna Mágica – IV – Itabira” LANTERNA MÁGICA – IV – ITABIRA Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos. Os meninos seguem para a escola. Os homens olham para o chão. Os ingleses compram a mina. Só, na porta da venda, Tutu caramujo cisma na derrota [incomparável. 3.2. “Poema do jornal” POEMA DO JORNAL O fato não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensanguentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o meeting. A pena escreve. Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 34 3.3. “Infância” INFÂNCIA A Abgar Renault 26 Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entremangueiras lia a história de Robinson Crusoé 27. Comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom. Minha mãe ficava sentada cosendo28 olhando para mim: — Psiu... Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo! Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. 26 Antologia Poética, Drummond, Record, 2010, p. 93. 27 Robinson Crusoé: herói do romance do mesmo nome, de autoria do escritor inglês Daniel Defoe (pronúncia déniel difôu), publicado em 1719. Robinson Crusoé é um marinheiro que naufraga e, graças a sua habilidade e esperteza, sobrevive durante anos numa pequena ilha nos trópicos. 28 Coser: costurar. ALGUMA POESIA 35 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 35 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 36 3.4. “Balada do amor através das idades” BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES Eu te gosto, você me gosta desde tempos imemoriais29. Eu era grego, você troiana, troiana mas não Helena. Saí do cavalo de pau para matar seu irmão. Matei, brigamos, morremos. 30 Virei soldado romano, perseguidor de cristãos. Na porta da catacumba31 encontrei-te novamente. Mas quando vi você nua caída na areia do circo e o leão que vinha vindo, dei um pulo desesperado e o leão comeu nós dois.32 Depois fui pirata mouro, flagelo33 da Tripolitânia34. Toquei fogo na fragata 29 Imemorial: antiquíssimo. 30 Nesta primeira estrofe, faz-se referência à Guerra de Troia, tema de Ilíada, poema épico do século VII a.C., de Homero. Segundo a Ilíada, a causa da guerra foi o rapto de Helena, mulher do rei da cidade grega de Esparta, pelo príncipe troiano Páris. Depois de dez anos de lutas, o guerreiro grego Ulisses cria um estratagema: o exército grego finge retirar-se e deixa de presente aos troianos um gigantesco cavalo de madeira diante das muralhas de Troia. Como os troianos consideravam o cavalo um presente sagrado, recolheram-no dentro da cidade, ignorando que ele escondia em seu interior soldados gregos. Assim Troia é invadida, saqueada e queimada e os gregos vencem a guerra. 31 Catacumba: galeria subterrânea em cuja parede se faziam tumbas, onde foram sepultados os primeiros cristãos. 32 Nesta estrofe, faz-se referência à perseguição dos cristãos iniciada pelo imperador romano Nero no século I d.C. Nessa época, construiu-se, em Roma, o Coliseu, uma espécie de teatro ao ar livre, onde homens eram impelidos a lutar com feras em espetáculos públicos. 33 Flagelo: grande calamidade. 34 Tripolitânia: região da Líbia, no norte da África. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 36 onde você se escondia da fúria de meu bergantim35. Mas quando ia te pegar e te fazer minha escrava, você fez o sinal-da-cruz e rasgou o peito a punhal... Me suicidei também. Depois (tempos mais amenos) fui cortesão de Versailles, espirituoso e devasso. Você cismou de ser freira... Pulei muro de convento mas complicações políticas nos levaram à guilhotina. 36 Hoje sou moço moderno, remo, pulo, danço, boxo, tenho dinheiro no banco. Você é uma loura notável, boxa, dança, pula, rema. Seu pai é que não faz gosto. Mas depois de mil peripécias37, eu, herói da Paramount38, te abraço, beijo e casamos.39 35 Bergantim: antiga embarcação a vela e remo. 36 Nesta estrofe, faz-se referência à luxuosa vida na corte do rei francês Luís XIV, no Palácio de Versalhes (em francês, Versailles, pronúncia versáie), onde vivia, perto de Paris. Com a Revolução Francesa, Luís XIV, a rainha Maria Antonieta e muitos outros, entre eles nobres que viviam naquele palácio, tiveram suas cabeças cortadas na guilhotina. 37 Peripécia: incidente, aventura. 38 Nesta estrofe, faz-se referência ao famoso estúdio cinematográfico de Hollywood, Paramount (pronúncia péramaunt), que teve seu auge nas décadas de 1930 e 1940, com a produção de filmes, em sua maioria, caracterizados por final feliz. 39 Um outro poema sobre relações amorosas, do mesmo autor, também brincalhão, mas pessimista, é “Quadrilha”. ALGUMA POESIA 37 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 37 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 38 3.5. “Casamento do céu e do inferno” CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO No azul do céu de metileno a lua irônica diurética é uma gravura de sala de jantar. 40 Anjos da guarda em expedição noturna velam sonos púberes espantando mosquitos de cortinados e grinaldas. Pela escada em espiral diz-que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-láctea, vaga-lumeando... Por uma frincha o diabo espreita com o olho torto. Diabo tem uma luneta que varre léguas de sete léguas e tem o ouvido fino que nem violino. São Pedro dorme e o relógio do céu ronca mecânico. Diabo espreita por uma frincha. Lá embaixo suspiram bocas machucadas. Suspiram rezas? Suspiram manso, de amor. 40 O poema é montado pela mescla de temas e palavras poéticas e não poéticas, jogando com associações inesperadas, cômicas e dessacralizadoras de imagens e ideias: o “céu de metileno”, a lua ao estilo de gravura barata e os mosquitos são coisas triviais, que a poesia clássica ou “séria” considerava indignas. Também palavras como “diurética”, “tresmalhadas” e “ronca”, ou expressões coloquiais como “diz-que”, “que nem”, eram expurgadas da poesia acadêmica. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 38 E os corpos enrolados ficam mais enrolados ainda e a carne penetra na carne. Que a vontade de Deus se cumpra! Tirante Laura e talvez Beatriz, o resto vai para o inferno. 41 3.6. “Também já fui brasileiro” TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO Eu também já fui brasileiro moreno como vocês. Ponteei viola, guiei forde e aprendi na mesa dos bares que o nacionalismo é uma virtude. Mas há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam. 42 Eu também já fui poeta. Bastava olhar para mulher, pensava logo nas estrelas e outros substantivos celestes. Mas eram tantas, o céu tamanho, minha poesia perturbou-se. 43 41 O tom de paródia, a ótica grotesca e o olhar corrosivo são as tônicas da cena lírica do poema: a lua romântica é reduzida a uma gravura de mau gosto; os anjos expedicionários espantam mosquitos; as virgens extraviadas no céu remetem-nos intertextual e ironicamente a tema explorado por Olavo Bilac. Os elementos do catolicismo são tratados com irreverência: anjos, diabo, São Pedro. A paisagem estelar, celeste, nada tem com a moldura platônica de Petrarca e Bilac. Observe que, em meio às situações mais prosaicas, nem a musa idealizada de Dante Alighieri (Beatriz) escapa. 42 Nessa estrofe, próxima do poema “O Poeta Come Amendoim”, de Mário de Andrade, a proposição “nacionalista” de Drummond enfrenta os seus limites — a consciência de que a modernidade apaga uma certa noção “romântica” e idealizadora do passado do país. 43 A associação entre mulher e estrelas, entre a amada e as paisagens celestes é uma tônica da poesia lírico-amorosa, desde os sonetos de Petrarca até os de Olavo Bilac, o Poeta das Estrelas. Essa estrofe deixa explícita a recusa ao petrarquismo banalizado, aos clichês romântico-parnasianos e à tradição clássica. ALGUMA POESIA 39 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 39 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 40 Eu também já tive meu ritmo. Fazia isso, dizia aquilo. E meus amigos me queriam, meus inimigos me odiavam. Eu irônico deslizava satisfeito de ter meu ritmo. Mas acabei confundindo tudo. Hoje não deslizo mais não, não sou irônico mais não, não tenho ritmo mais não44. 3.7. “Europa, França e Bahia” EUROPA, FRANÇA E BAHIA Meus olhos brasileiros sonhando exotismos. Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. Os cais bolorentos de livros judeus e a água suja doSena escorrendo sabedoria. O pulo da Mancha num segundo. Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas. Tarifas bancos fábricas trustes craques. Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete [para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar. E a lua de Londres como um remorso. Submarinos inúteis retalham mares vencidos. O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados. Hamburgo, embigo do mundo. Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros [dentro de alguns anos. 44 A negação do ritmo regular, metrificado, previsível não impede que a poesia drummon - diana tenha ritmo: é, muitas vezes, um ritmo dissonante, áspero, sincopado, mas existe. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 40 A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados, vulcões que nunca estiveram acesos a não ser na cabeça de Mussolini. E a Suíça cândida se oferece numa coleção de postais de altitudes altíssimas. Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa45. Não há mais Turquia. O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar. Mas a Rússia tem as cores da vida. A Rússia é vermelha e branca. Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e [no túmulo de Lenin em Moscou parece que um [coração enorme está batendo, batendo mas não bate igual ao da gente… Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a “Canção do Exílio”. Como era mesmo a “Canção do Exílio”? Eu tão esquecido de minha terra… Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá! 46 45 A recusa dos modelos europeus (“Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa”) e a busca de uma identidade brasileira são elos de ligação entre Drummond e os primeiros modernistas. A decadência da França, o imperialismo inglês, os prenúncios do nazismo alemão e do fascismo italiano, o absenteísmo da Suíça são ironizados pelo poeta. Significativamente, ele poupa a Rússia, que “tem as cores da vida”, mas cujo coração “não bate igual ao da gente”. 46 Parodiando Gonçalves Dias, Drummond exorciza a tendência estrangeirizante, invocando a emblemática “Canção do Exílio”. Nessa linha de valorização e (re)leitura do Brasil, seguem-se os oito poemas de “Lanterna Mágica” (“Belo Horizonte”, “Sabará”, “Caeté”, “Itabira”, “São João del-Rei”, “Nova Friburgo”, “Rio de Janeiro” e “Bahia”). ALGUMA POESIA 41 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 41 USUARIO Destacar CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 42 3.8. “Papai Noel às avessas” PAPAI NOEL ÀS AVESSAS A Afonso Arinos (sobrinho) Papai Noel entrou pela porta dos fundos (no Brasil as chaminés não são praticáveis), entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Tateando na escuridão torceu o comutador e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, achou um queijo e comeu. Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças (no Brasil os Papais Noéis são todos de cara raspada) e avançou pelo corredor branco de luar. Aquele quarto é o das crianças. Papai Noel entrou compenetrado. Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos soldados mulheres elefantes navios e um presidente de república de celuloide. Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo no interminável lenço vermelho de alcobaça. Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por [causa do aperto47. Os pequenos continuavam dormindo. Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo. Papai Noel voltou de manso para a cozinha, apagou a luz, saiu pela porta dos fundos. Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes. 47 Aqui, a ironia se estabelece na situação esdrúxula do Papai Noel que rouba presentes. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 42 3.9. “Explicação” EXPLICAÇÃO Meu verso é minha consolação. Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. 48 Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres, folha de taioba, pouco importa: tudo serve. Para louvar a Deus como para aliviar o peito, queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos é que faço meu verso. E meu verso me agrada49. Meu verso me agrada sempre... Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota. Eu bem me entendo. Não sou alegre. Sou até muito triste. A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa. Há dias em que ando na rua de olhos baixos para que ninguém desconfie, ninguém perceba que passei a noite inteira chorando. Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson, de repente ouço a voz de uma viola... saio desanimado. Ah, ser filho de fazendeiro! À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo, é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de50. E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria. 48 Essa reflexão sobre a própria poesia ainda está distante da densa posição metalinguística de “O Lutador”, “Mãos Dadas”, “Consideração do Poema” e, principalmente, “Procura da Poesia”, síntese da arte poética drummondiana. 49 Subsiste ainda uma visão subjetiva e evasionista do que é poesia, subordinada ao individualismo narcisista. 50 A atomização da palavra, tônica do livro Lição de Coisas, faz aqui seus primeiros ensaios. ALGUMA POESIA 43 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 43 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 44 Aquela casa de nove andares comerciais é muito interessante. A casa colonial da fazenda também era... No elevador penso na roça, na roça penso no elevador. Quem me fez assim foi minha gente e minha terra e eu gosto bem de ter nascido com essa tara. Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa. A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente. O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos. Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só 51, lê o seu jornal, mete a língua no governo, queixa-se da vida (a vida está tão cara) e no fim dá certo. Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou. Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta? 51 A catilinária antieuropeizante não implica a exaltação ufanista da terra natal, onde “tudo é uma canalha só”. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 44 4. EXERCÍCIOS Texto para as questões de 1 a 3. TOADA DO AMOR E o amor sempre nessa toada: briga perdoa perdoa briga. Não se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece. Só o amor volta para brigar, para perdoar, amor cachorro bandido trem. Mas, se não fosse ele, também que graça que a vida tinha? Mariquita, dá cá o pito, no teu pito está o infinito. 1. Nesse poema, o tratamento da temática amorosa é característico da primeira fase do Modernismo? Por quê? 2. “Neste poema, a não utilização de rimas é uma forma de combater a estética parnasiana.” – A seu ver, essa afirmativa está correta? Justifique sua resposta. 3. Transcreva do texto algum(ns) elemento(s) que você considere caracte - rístico(s) da linguagem utilizada pelos modernistas. Explique o que o leva a considerar que tais elementos sejam modernistas. ALGUMA POESIA 45 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 45 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 46 Texto para as questões de 4 a 8. CIDADEZINHA QUALQUER Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. 4. (FUVEST) – Que aspectos da realidade nacional estão representados nas duas primeiras estrofes? 5. (FUVEST) – Que valoresestão implícitos no ponto de vista adotado pelo poeta no último verso do poema? 6. (FUVEST) – A mesma oração repete-se nos versos 4, 5 e 6, mudando apenas o sujeito. Exponha, com base no próprio poema, a intenção contida tanto na mudança quanto na repetição. 7. (FUVEST) – Ainda nesses versos, a oração mantém a mesma ordem de construção, invertendo-a no 7.o verso. Explique a consequência da inversão na visão que se oferece da cidadezinha. 8. Na metáfora se substitui uma palavra por outra quando entre elas há relação de semelhança; exemplo: as pérolas de sua boca. Na metonímia se substitui uma palavra por outra quando elas designam coisas associadas por contiguidade, ou seja, proximidade (no espaço, no tempo ou nas ideias); exemplo: beber um copo. Em janelas, no verso “Devagar... as janelas olham”, ocorre uma dessas figuras. Qual? Explique. Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 46 9. (FUVEST) – Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a “Canção do Exílio”. Como era mesmo a “Canção do Exílio”? Eu tão esquecido de minha terra… Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá! (Carlos Drummond de Andrade, “Europa, França e Bahia”, Alguma poesia) Neste excerto, a citação e a presença de trechos .......................... constituem um caso de .................... . Os espaços pontilhados da frase acima deverão ser preenchidos, respectivamente, com o que está em: a) do famoso poema de Álvares de Azevedo/ discurso indireto. b) da conhecida canção de Noel Rosa/ paródia. c) do célebre poema de Gonçalves Dias/ intertextualidade. d) da célebre composição de Villa-Lobos/ ironia. e) do famoso poema de Mário de Andrade/ metalinguagem. 10. (FUVEST) – Refere-se corretamente a Alguma poesia, de Drummond, a seguinte afirmação: a) A imagem do poeta como “gauche” revela a sua militância na poesia engajada e participante, de esquerda. b) As oposições sujeito-mundo e província-metrópole são fundamentais em vários poemas. c) A filiação modernista do livro liberou o poeta das preocupações com a elaboração formal dos poemas. d) O livro não contém textos metalinguísticos, o que caracteriza a primeira fase do autor. e) A ironia e o humor evitam que o eu lírico se distancie ou se isole, propor - cionando-lhe a comunhão com o mundo exterior. ALGUMA POESIA 47 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 47 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 48 5. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS 1. Sim, o tom brincalhão com que o poeta trata o tema amoroso é típico da fase dita “heroica” (1922-1930) do movimento modernista. Uma das inovações do Modernismo, no Brasil, consistiu em misturar registros estilísticos, ou seja, tratar assuntos considerados sérios e elevados (o amor entre eles) com um tom debochado e uma linguagem zombeteira. O exemplo mais sintético dessa tendência modernista encontra-se no seguinte poema de Oswald de Andrade, cuja influência está presente no primeiro livro de Drummond: amor Humor (Note-se que o poema está completo: uma palavra de título, com inicial minúscula, e uma palavra de texto.) 2. A afirmativa não é correta, porque os modernistas não eram necessa - riamente contra o uso da rima (tanto que muitos, inclusive Drummond, usaram-na com frequência), mas sim contra o seu uso puramente ornamental, formalista, típico do Parnasianismo. Segundo diversos modernistas, os parnasianos buscavam antes de tudo excessos formais, como rimas raras e difíceis, e sacrificavam o poema a esse formalismo, produzindo obras vazias, embora “bem-acabadas”. Não obstante, a simples ausência de rimas num poema modernista não significa que se trate de “uma forma de combater a estética parnasiana”. 3. É própria da linguagem modernista a ausência de vírgulas numa enumeração como “briga perdoa perdoa briga”. A falta de vírgulas visa a fazer que o enunciado sugira a simultaneidade ou, como é o caso aqui, a rápida sucessão das ações enumeradas. O mesmo se pode dizer da outra enumeração, “amor cachorro bandido trem”. Outro traço modernista está no uso de palavras “vulgares”, condenadas pelas poéticas conservadoras, sobretudo o Parnasianismo. Neste caso, está o verbo xingar, assim como os qualificativos cachorro, bandido e trem, esta última na acepção, corrente em Minas, de “coisa inútil, traste”. Também construções de um coloquialismo completamente informal, considerado baixo e impróprio de um poema de amor, encontram-se presentes no poema de Drummond, como se encontravam antes nas obras de diversos modernistas. É o caso de “a gente vive...” (em vez de Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 48 vive-se ou vivemos), “se não fosse ele, também / que graça que a vida tinha?” (em vez de sem ele, que graça teria a vida?), “dá cá o pito” (em vez de dá-me o pito). Esta última palavra, por sinal, também é um vulgarismo para indicar cachimbo. 4. Os aspectos da realidade social representados nas duas primeiras estrofes são a vida das pequenas cidades do interior, bastante simples, bucólica (“bananeiras”, “laranjeiras”, “pomar”), com lirismo singelo (“pomar amor cantar”), e a monotonia decorrente de um cotidiano bastante limitado e modorrento (“Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar.”). Até a atividade bisbilhoteira das pessoas – muito interessadas umas nas vidas das outras, nesse ambiente acanhado –, até essa atividade não foge aos padrões daquela vida sem sobressaltos (“Devagar... as janelas olham.”). (Deve-se lembrar que, quando foi publicado o livro de Drummond, em 1930, a população brasileira era majoritariamente rural.) 5. O último verso do poema (“Eta vida besta, meu Deus.”) opõe o poeta, irônica e criticamente, ao universo provinciano e monótono da cidade - zinha qualquer. Nesse verso, está implícita uma ideologia cosmopolita, das grandes cidades, com vida moderna, informação rápida, valores dinâmicos; portanto, o avesso da mesmice da cidadezinha do interior. 6. As repetições (“Um [...] vai devagar”) sugerem a monotonia presente no cotidiano da cidadezinha. Na mudança de sujeitos (homem, cachorro, burro), nota-se uma intenção de generalização, ou seja, a mesmice e a lentidão são atributos de todos os seres vivos que habitam a pequena cidade, pessoas ou animais. Além disso, os termos da enumeração contida nesses versos se oferecem a interpretações irônicas: por um lado, homens e animais aparecem nivelados; por outro lado, a palavra burro pode, além de designar o animal, sugerir a vida pouco inteligente do lugar. 7. A inversão dá ainda maior realce ao advérbio devagar, agora colocado no início da frase. É como se a lentidão envolvesse a tudo e a todos na cidadezinha, os que agem (vai...vai...vai) e os que espiam (olham). 8. A figura em questão é uma metonímia, pois janelas indicam as pessoas que espiam através delas. Entre as janelas e as pessoas que olham há, evidentemente, contiguidade, não semelhança. ALGUMA POESIA 49 Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 49 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 50 9. O excerto final do poema de Drummond, uma frustrante peregrinação pela Europa do entreguerras, fala do regresso ao Brasil, identificado pelas imagens que a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, converteu em ícones do saudosismo: a palmeira e o sabiá. A delicada ironia drummondiana torna irrelevante o esquecimento da terra natal e do poema romântico diante da comovida apóstrofe que encerra o poema: “Ai terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!”. Resposta: C 10. “No meio do caminho” é exemplo de poema em que um eu lírico se vê em crise diante do mundo à sua frente – no caso, a pedra, metáfora de problemáticas que aparecem durante a trajetória existencial do eu poemático. “Cidadezinha qualquer” demonstra o confronto entre a mesmice entediante das pequenas localidades brasileiras (a província) e a perspectiva de quem tem contato com o universo dos grandes centros urbanos (a metrópole). Resposta: B Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_202113/05/2021 08:21 Página 50
Compartilhar