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Análise do Livro Alguma Poesia

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OS LIVROS DA FUVEST
ALGUMA POESIA
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Análise da obra, seleção de textos 
FRANCISCO ACHCAR
Questionário
LAUDEMIR GUEDES FRAGOSO
Livro_Fuvest_ALGUMA POESIA_GABRIELA_2021 13/05/2021 08:21 Página 11
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira (MG), 1902 – Rio de Janeiro (RJ), 1987
1. INTRODUÇÃO
1.1. O “poeta da pedra”
Em 1928, Carlos Drummond de Andrade, então desconhecido, lançou,
na Revista de Antropofagia, o poema “No meio do caminho”:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
ALGUMA POESIA
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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O Modernismo, que eclodira em São Paulo na Semana de Arte Moderna
(1922), estava no auge de sua “fase heroica”. Fundada naquele ano de 1928,
por Oswald de Andrade, a Revista de Antropofagia representava a vanguarda
do movimento. O poema de Drummond, republicado dois anos depois em
seu livro de estreia, Alguma Poesia (1930), causou escândalo: a literatura
contava então com mais espaço social e uma novidade ainda podia chocar um
considerável número de pessoas. Drummond subitamente se tornou
conhecido: foi admirado ou ridicularizado – e até mesmo agredido – por
causa de seu poema audacioso, e a “pedra” passou a representar por
excelência a imagem de sua poesia.
“No meio do caminho” é um título carregado de alusões literárias
ilustres. “No meio do caminho de nossa vida” (“Nel mezzo del cammin di
nostra vita”) é o verso que inicia a grande viagem pelo inferno, purgatório
e paraíso, em um dos maiores poemas da humanidade, A Divina Comédia,
de Dante Alighieri (1265-1321). No Brasil, era muito admirado o célebre
“Nel mezzo del camin...”, soneto parnasiano do “príncipe dos poetas
brasileiros”, Olavo Bilac (1865-1918), que começa assim: “Cheguei.
Chegaste. Vinhas fatigada/E triste, e triste e fatigado eu vinha”.
O poema de Drummond soava como brincadeira irreverente,
desrespeito não só para com a venerável tradição literária, mas até para com
o leitor e a própria poesia. Um texto feito quase que só de repetições,
sem vírgulas, com fraseado vulgar: contra a gramática e a “boa linguagem”,
o poeta escrevia tinha, e não havia; nunca me esquecerei que, e não de que.
Tudo muito provocativo.
Entre os admiradores, “No meio do caminho” provocou interpretações
variadas: geralmente, entendeu-se pedra como símbolo do obstáculo e do
cansaço existencial (Mário de Andrade, Álvaro Lins), mas o poema também
foi lido como expressão da poética1 das primeiras obras de Drummond, uma
poética segundo a qual “a poesia surge quando o universo se torna insólito,
enigmático, embaraçoso – quando a vida já não é mais evidente” (José
Guilherme Merquior).
1 Poética: concepção, ou teoria, da poesia.
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Drummond colecionou, ao longo dos anos, críticas, comentários de
jornal, ataques pessoais, paródias – um copioso material referente ao
“poema da pedra”, que reuniu numa antologia publicada em 19672. Haroldo
de Campos, que foi dos que mais esclarecedoramente analisaram o estranho
texto, procurou desvendar o sentido, não da pedra, mas do modo de
composição do poema, particularmente do papel que as repetições
(redundâncias) nele representam3.
Partindo da oposição redundância x informação, que pode ser traduzida
por repetição x novidade, Haroldo de Campos mostra que a repetição
exagerada, por ser surpreendente, cria a novidade, a “informação estética”.
Esse processo de transformação da redundância em informação, da repetição
em novidade ocorre em outras obras de arte modernas, como o quadro
Quadrado branco sobre fundo branco (1918), do pintor russo Kazimir
Malevich. Mas isso não acontece só na arte: num campo de neve,
por exemplo, impressiona a repetição incessante de branco, como num
deserto a insistência interminável da areia. A frase “tinha uma pedra no meio
do caminho”, obsessivamente repetida, carrega-se de sentido inesperado.
A frase nova, que ocupa o centro do poema, apenas contrasta com a repe -
tição para reforçá-la, reintroduzindo-a como registro indelével da memória
(“Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra [...]”).
“No meio do caminho” não foi o primeiro poema que Drummond
publicou, mas foi seu batismo de fogo. Os ataques sofridos foram lembrados
mais de uma vez ao longo de sua obra, consagrada depois como das mais
notáveis de nossa literatura (um dos poucos casos de poesia em português
que merece relevo na literatura internacional). Não obstante a amplitude e
diversidade dessa obra, a imagem da “pedra no meio do caminho”
constituiu-se em seu símbolo mais marcante, pois o cerne da poesia de
Drummond contém, insistente, a expressão do impasse, da dificuldade, do
obstáculo, da frustração, da não transcendência4. Todos esses sentidos estão
presentes na indiferença da pedra.
2 Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, Rio de Janeiro, Editora do
Autor, 1967.
3 Haroldo de Campos, “Drummond, mestre de coisas”, in Metalinguagem & outras metas,
São Paulo, Perspectiva, 1992. Deste ensaio procedem também as citações de Haroldo de
Campos que faremos adiante.
4 Transcendente é o que está além da experiência imediata, o que supera (transcende) a
realidade sensível, circundante.
ALGUMA POESIA
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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1.2. Drummond e o Modernismo
O ano de 1930, em que Drummond fez sua estreia em livro – com
Alguma Poesia –, é marcado por acontecimentos de vulto na literatura
brasileira: Mário de Andrade, figura central do movimento modernista, lança
um livro importante, Remate de Males, que inicia nova fase em sua obra,
mais concentrada e intensa, e menos comprometida com os maneirismos da
“fase heroica” da batalha modernista; Manuel Bandeira, membro do
movimento e um de seus mestres, publica Libertinagem – livro em que se
apresenta mais decididamente moderno.
Nesse ano, aparece também Murilo Mendes e, pouco depois, ele e
Jorge de Lima inauguram a influência do surrealismo sobre a poesia brasileira.
Nosso Modernismo, ao mesmo tempo em que conquista posições decisivas
diante da literatura acadêmica combalida, acaba endossando uma volta a tons
pós-simbolistas algo decadentes, com a poesia “espiritual” de Augusto
Frederico Schmidt, Cecília Meireles e o Vinícius de Moraes da primeira fase. 
Na prosa, inicia-se o ciclo do neorrealismo do Nordeste (José Américo
de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado),
identificado como modernismo regionalista, porém inspirado em
experiências de ficção do fim do século passado.
Nessa segunda etapa modernista – que vai, grosso modo, de 1930 a
1945 –, a poesia brasileira não só vê afirmadas e desenvolvidas algumas
das características mais marcantes de seu primeiro tempo (invenção
rítmica – sobretudo na exploração do verso livre5 – humor, paródia6, temas
cotidianos, linguagem coloquial7...), mas também realiza uma ampliação
temática e uma diversificação de tendências de estilo que irão compor o
seu perfil contemporâneo.
Esse segundo momento é caracterizado, sobretudo, por:
• generalização e aprofundamento da mistura de estilos (estilo misto
ou mesclado), em que se combinam o elevado e o banal, o grave e o
grotesco: temas sérios e problemáticos são tratados com linguagem vulgar,
e o tom sublime é aplicado a assuntos “baixos” ou banais;
5 Verso livre: verso não metrificado, isto é, que não corresponde aos padrões métricos
tradicionais. 
6 Paródia: imitação cômica de um texto literário.
7 Coloquial: próprio da conversa.
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USUARIO
Destacar
• preocupação existencial de pretensões universalistas, com a
exploração, em novos registros, de temas como o tempo, o amor e a morte
(aqui se deve lembrar que a primeira fase modernista é mais ligada a
assuntos nacionais e a temas do cotidiano e da atualidade, afastando-se dos
“grandes temas” existenciais, associados à poesia do passado);
• imagens arrojadas ou oníricas8 em associações inesperadas,
revelando alguma influência do Surrealismo9 e da então recente voga da
psicanálise de Freud, voltada para a exploração do inconsciente (essa
influência surrealista, embora restrita, marcou a obra de poetas importantes,
como Murilo Mendes e Jorge de Lima, e é notável em momentos isolados
da poesia de Drummond);
• envolvimento do escritor na problemática social, através da atitude
de denúncia e revolta diante das injustiças, assim como da expressão de uma
esperança utópica, de fundo socialista;
• reflexão da poesia sobre a própria poesia, ou seja, autoconsciência
do poeta em relação a seu próprio trabalho com as palavras.
Esse programa encontra sua expressão superior na obra de Drummond,
que o foi alargando e aprofundando, de livro em livro. Com A Rosa do Povo
(1945), sua obra atingiu um dos pontos culminantes da estética modernista
na poesia brasileira. A partir de então, numa série de livros que inclui
Claro Enigma (1951), Drummond realizou a mais bem-sucedida tentativa
de casar a linguagem renovadora do modernismo com padrões restauradores
da linguagem poética da tradição (uso de metros regulares, adoção frequente
de uma forma fixa como o soneto, fraseado de gosto clássico).
1.3. Vida e obra
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em
1902. Descendente de família ligada às tradições dos povoadores, mine -
radores e fazendeiros de sua região, cedo deixou a cidade natal – em 1916 –
para estudar na capital do estado. Formado em Farmácia, dedicou-se ao
jornalismo e ingressou no funcionalismo público. Em Belo Horizonte,
8 Onírico: próprio do (ou relativo ao) sonho.
9 Surrealismo: corrente artística de vanguarda, iniciada em 1924, que propunha uma arte
brotada do inconsciente, sem controle da razão.
ALGUMA POESIA
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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pertenceu ao grupo de renovação modernista e dirigiu sua efêmera
publicação, A Revista (1925). Posteriormente, fixou-se no Rio de Janeiro,
abandonando a militância cultural e dedicando-se à vida de funcionário
público e à elaboração de suas poesias e crônicas (estas últimas, publicadas
em grandes jornais, o fizeram muito lido e conhecido). Morreu no Rio de
Janeiro, em 1987.
Estreando em livro aos 28 anos, Drummond compôs até seus 60 anos
(1962) a parte mais importante de sua obra – dez livros de poesia: Algu -
ma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940),
José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma
(1951), Fazendeiro do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959), Lição de
Coisas (1962). Todos esses livros foram coligidos, em 1969, no volume
Reunião. Drummond publicou depois várias outras coletâneas de poesias
(com relevo para Boitempo & A Falta que Ama, 1968; As Impurezas do
Branco, 1973; A Paixão Medida, 1980). Em 1983, dezenove livros foram
publicados sob o título Nova Reunião (2 volumes). Postuma mente, em 2015,
depois de seus netos complementarem a obra com trechos de livros
posteriores, foi publicado Nova Reunião: 23 livros de poesia.
Além dessa grande obra poética, Drummond publicou volumes de
prosa (Contos de Aprendiz, 1951, e várias coleções de crônicas). Essa prosa,
embora lúcida, penetrante, não tem a inventividade e a tensão de sua poesia;
é amena, agradável, apreciada pelo humor, pela elegância e agudeza.
Drummond criou uma linguagem poética própria, original não só no
panorama da literatura brasileira, mas também no da literatura internacional
de nossa época. Como ocorre com a maioria dos poetas, sua obra apresenta
desníveis, mas não é exagero afirmar que, em seus grandes momentos, ela
coloca Drummond entre os maiores poetas do mundo.
1.4. Temas
Na Antologia Poética que publicou em 1962, o próprio poeta
classificou tematicamente sua poesia, distribuindo seus poemas por nove
compartimentos, considerados “pontos de partida ou matéria de poesia”.
A seguir, enumeramos e comentamos brevemente esses nove núcleos
temáticos da poesia drummondiana, colocando ao lado de cada um o título
da seção da Antologia a ele correspondente:
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1) o indivíduo: “um eu todo retorcido” (o indivíduo, na poesia de
Drummond, é complicado, torturado, fragmentado); 
2) a terra natal: “uma província: esta” (a profunda, dura, triste relação
com o lugar de origem, que o indivíduo abandona, mas que não o
abandona);
3) a família: “a família que me dei” (sem qualquer sentimentalismo – bem
ao contrário –, o indivíduo interroga, sem alegria, a misteriosa realidade
da família, que existe nele, em seu corpo, é parte de suas emoções e de
seu imaginário); 
4) amigos: “cantar de amigos” (título que joga com os “cantares” ou
“cantigas de amigo” medievais; são homenagens a figuras admiradas,
próximas ou distantes, como Machado de Assis, Charles Chaplin,
Mário de Andrade ou Manuel Bandeira, em poemas às vezes de grande
penetração crítica); 
5) o choque social: “na praça de convites” (o espaço social, onde o
indivíduo se expõe ao apelo dos outros e vive os dramas coletivos);
6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro” (ou o amor amargo: nada
romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma forma amarga
de conhecimento – conhecimento do outro, de si, do mundo); 
7) a própria poesia: “poesia contemplada” (as “artes poéticas” de
Drummond: poemas sobre o quê e o como da poesia); 
8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas” (jogos com as palavras –
atividade aparentemente infantil, mas poética em sua essência, e
responsável por alguns dos mais espantosos e complexos poemas de
Drummond); 
9) uma visão (ou tentativa de) da existência: “tentativa de exploração e de
interpretação do estar-no-mundo” (questões e conjecturas sobre a
existência, o “estar-aqui”, sobre o que há “no meio do caminho”).
ALGUMA POESIA
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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2. ALGUMA POESIA
2.1. Filiação modernista: poesia epigramática
Drummond é geralmente arrolado entre os poetas do período que se
inicia em 1930, porque sua estreia em livro data daquele ano. Mas, em
Alguma Poesia, há poemas que remontam a 1923 e, a partir de 1925, ele foi
presença notável em algumas das mais importantes revistas do Modernismo,
como é o caso da Revista de Antropofagia, antes mencionada.
Esse primeiro livro, apesar de seu título despretensioso (ou
aparentemente despretensioso), marca uma data importante na poesia
brasileira, pela atrevida novidade de alguns poemas (em primeiro lugar, “No
meio do caminho”), assim como pelo uso do coloquial e do epigramático10,
que constituem prosseguimento da melhor tradição modernista, com
poemas-piada na linha de Oswald de Andrade.
Quanto ao título, ele não deve ter soado nada modesto aos conser -
vadores: chamar poesia a textos como “No meio do caminho” ou “Poema
de sete faces” parecia acintoso11 a ouvidos acadêmicos, que ainda rejeitavam
o Modernismo e se compraziam na mistura parnasiano-simbolista que dava
o tom da poesia não modernista praticada na época.
2.2. Temas
Os quarenta e nove poemas de Alguma Poesia já apresentam quase
todos os nove temas (ver 1.4.) que o poeta discerniu em sua obra: falta
apenas exemplo do tema “amigos”, embora não faltem poemas dedicados a
amigos – em um dos casos, a dedicatória consta mesmo do título do texto
(“Epigrama para Emílio Moura”). Levando-se sempre em conta que a
atribuiçãodo poema a uma ou outra rubrica temática é muitas vezes
problemática, e ainda que um mesmo poema pode ser associado a dois ou
mais temas, pode-se propor a seguinte distribuição para quarenta e dois dos
poemas desse livro:
10 Epigramático: referente a epigrama, ou seja, a poesia breve, satírica, de humor cortante
e sutil.
11 Acinte: provocação.
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Sublinhar
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Destacar
a) o indivíduo: “Poema de sete faces”, “Também já fui brasileiro”,
“Europa, França e Bahia”, “Moça e soldado”, “Música”, “Explicação”;
b) a terra natal: “Lanterna mágica”, “Igreja”, “Festa no brejo”, “Jardim da
Praça da Liberdade”, “Cidadezinha qualquer”, “Fuga”, “Cabaré
mineiro”, “Romaria”;
c) a família: “Infância”, “Sweet home”, “Família”, “Sesta”;
d) o choque social: “Política”, “Poema do jornal”, “Nota social”, “Cora -
ção numeroso”, “O sobrevivente”, “Anedota búlgara”, “Sociedade”,
“Outubro 1930”;
e) o conhecimento amoroso: “Casamento do céu e do inferno”, “Toada do
amor”, “Cantiga de viúvo”, “Sentimental”, “Esperteza”, “Quadrilha”,
“Iniciação amorosa”, “Balada do amor através das idades”, “Quero me
casar”;
f) a própria poesia: “Poesia”, “Poema que aconteceu”;
g) exercícios lúdicos: “Construção”, “Política literária”, “Sinal de apito”;
h) uma visão (ou tentativa de) da existência: “No meio do caminho”,
“Cota zero”.
Os sete poemas restantes (“A rua diferente”, “Lagoa”, “O que fizeram
do Natal”, “Papai Noel às avessas”, “Epigrama para Emílio Moura”, “Elegia
do rei de Sião” e “Poema da purificação”) desenvolvem temas diversos,
embora, dependendo da perspectiva de leitura, alguns deles possam ser
associados a um ou outro, ou a mais de um, dos temas elencados.
2.3. O indivíduo
O “Poema de sete faces”, que abre Alguma poesia, ficou, já na época,
tão célebre quanto “No meio do caminho” (ver 1.1.), tendo sido um dos
textos que mais expuseram o autor à zombaria da crítica e dos leitores, como
ele mesmo registrou depois:
...um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa.
(“Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, 
in A Rosa do Povo, 1945.)
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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Trata-se de um dos mais notáveis poemas do livro de estreia de
Drummond e, consequentemente, uma das mais memoráveis realizações
daqueles anos “heroicos” do Modernismo12.
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche13 na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
12 A fase chamada “heroica” do movimento modernista estende-se de 1922 a 1930. Embora
publicado em 1930, esse poema de Drummond foi composto nos anos 1920 e é típico do
clima literário daquele período.
13 Gauche (francês; pronúncia gôch): desajeitado (sentido literal: esquerdo).
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USUARIO
Destacar
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
As “sete faces” desse poema exploram cada uma um aspecto diferente
do “eu todo retorcido”; em conjunto, elas funcionam como se fossem as
diversas perspectivas de um quadro cubista, em que o sujeito, decomposto
em suas formas a partir de vários ângulos, é remontado pela junção de
fragmentos descontínuos. Como se verá, essa descontinuidade é excepcional
em Alguma Poesia, pois os demais poemas geralmente se articulam sem
rompimentos bruscos.
Na primeira “face”, encontra-se um tema que se tornaria característico
de Drummond: o “desajeitamento” existencial, nunca tratado com
autopiedade e quase sempre envolvido em ironia. Aqui, temos uma
elaboração nova do motivo tradicional do poeta desadaptado à vida: não é
mais o gênio incompreendido e solitário dos românticos, mas sim o sujeito
cuja inépcia tende antes ao ridículo que ao grandioso. A sua condenação
não é obra de um deus que o consagra, mas sim de um “anjo torto” cuja
obscuridade só reforça seu caráter grotesco.
A segunda “face” é introduzida com uma quebra brusca de continuidade
(como numa montagem cubista): somos confrontados agora com uma cena
de rua, inesperada depois do contexto simbólico anterior do anjo torto que
condena o poeta a ser gauche. Aqui aparece outro dos temas que seriam
constantes na obra de Drummond: o desejo amoroso, que transfigura o
mundo e o sujeito. (No último verso dessa segunda estrofe, deve 
subentender-se a conjunção se: “se não houvesse tantos desejos” – a elipse
dessa conjunção, além de corresponder a um uso tradicional da língua culta,
obedece a razões métricas, como veremos nos exercícios).
A terceira “face” é a do espanto diante do mundo, escondido atrás da
percepção aparentemente indiferente das coisas aparentemente banais.
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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A ausência de vírgulas na enumeração (“pernas brancas pretas amarelas”),
que encontraremos repetidamente na poesia de Drummond, é expediente
tipicamente modernista e visa aqui a criar uma justaposição rápida de
imagens, apta a sugerir a sua simultaneidade14. A contraposição entre o
coração e os olhos (“Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
coração. / Porém meus olhos / não perguntam nada.”) parece exprimir um
conflito entre o sentimento e o desejo, ou, nos termos de um crítico, entre a
“sensualidade da percepção” e a “pureza do sentimento”. Esse contraste
aparecerá outras vezes na obra de Drummond.
A quarta “face” apresenta o confronto com o outro – o “semelhante
diferente”. De um lado, o frágil “eu lírico”, desajustado e espantado diante
do mundo, como o vimos nas “faces” anteriores; do outro lado, o homem
convencional, o burguês forte, sério e seguro.
A quinta “face” expõe o indivíduo “abandonado por Deus” – tema
frequente na literatura de uma época de crise das crenças e valores
tradicionais, uma época em que, como formulariam depois os pensadores
existencialistas, o homem passou a sentir-se “jogado no mundo” e
“condenado à liberdade”. É notável (embora pouco notada) aqui a referência
às palavras de Cristo na cruz15.
A sexta “face” reintroduz o tema do “espanto diante do mundo” e lhe
acrescenta notações novas: a condenação do esteticismo (a “solução” para
o formalismo poético não é solução para a vida) e a gigantesca afirmação
emocional do sujeito. Esta última se exprime num verso que retoma um
trecho magnífico e célebre de outro poeta mineiro, este do século XVIII,
Tomás Antônio Gonzaga, que assim termina uma de suas mais belas “liras”
de Marília de Dirceu:
Eu tenho um coração maior que o mundo;
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração, e basta,
Onde tu mesma cabes.
14 O simultaneísmo foi um princípio modernista bastante generalizado, presente, por
exemplo, no cubismo e no futurismo. No cubismo, servia à representação de aspectos
diversos de um mesmo objeto, colhidos a partir de perspectivas diferentes; no futurismo,
prestava-se ao objetivo de representar o movimento dos objetos e a rapidez da vida
moderna.
15 “Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz dizendo: Eli, Eli, iemá sabactâni, que
quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Mateus 27:46; também
Marcos15:34.
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Destacar
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Sublinhar
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Destacar
Na sétima e última “face”, negando ironicamente o arroubo romântico
da estrofe anterior (o “coração maior que o mundo”), o sujeito como que
se desculpa de sua efusão emocional, atribuindo-a ao sentimentalismo
causado por eflúvios lunares e etílicos, como se o que foi dito se devesse à
“emoção do momento” e à bebedeira...
2.4. A terra natal
Um dos mais célebres poemas que desenvolvem o tema em epígrafe é
a seguinte joia de concisão epigramática: 
CIDADEZINHA QUALQUER
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Neste poema, o elemento central é a “fanopeia”, ou seja, a construção
do significado através de imagens (isso ocorre também, em Alguma Poesia,
no poema “Construção”, por exemplo). De fato, o texto funciona como um
cromo16, um quadrinho singelo de aspectos de uma pequena cidade; mas
não se trata, como é habitual nesse tipo de evocação, de uma ilustração
lírica, pitoresca ou sentimental, e sim de um epigrama crítico e irônico.
A expressão “vida besta”, da exclamação final (bem mineira ou caipira no
seu “eta”), passou a designar, para certos comentadores da obra do poeta, um
tema, ou subtema, associado à área temática da vida provinciana, ou seja, no
caso de Drummond, da “terra natal”.
16 Cromo: figura colorida, constituindo pequeno impresso recortado para colagem em álbuns
etc., ou imagem maior para pendurar em parede.
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2.5. A família
O tema da “vida besta” pode também se associar aos temas da província
natal e da família, como ocorre no poema seguinte.
FAMÍLIA
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco17, 
o médico uma vez por mês,
o bilhete18 todas as semanas
branco19! mas a esperança sempre verde,
a mulher que trata de tudo
e a felicidade.
Diferentemente do que se verá na quase totalidade dos poemas
drummondianos da família, aqui não há amargura, nostalgia ou qualquer
gravidade; ao contrário, o poema tem uma leveza encantadora, que, através de
17 Turco: árabe (designação corrente até hoje no Brasil, embora seja de notar que turcos não
são árabes). Aqui, refere-se ao “turco da prestação”, ou seja, o mascate árabe que vendia
seus produtos a prazo pelas cidades do interior e a elas retornava periodicamente para cobrar
as prestações. A venda a prazo de pequenos bens de consumo (tecidos, guarda-chuvas
etc.) foi, no Brasil, uma inovação dos “turcos”.
18 Bilhete: bilhete de loteria.
19 Branco: não premiado.
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uma simples estrutura de coordenação aditiva, desemboca no magnífico efeito
cômico final. Trata-se de uma longa enumeração dos “materiais da vida”
provinciana, limitada e satisfeita na mediocridade do aconchego familiar, com
tudo no seu devido lugar, inclusive os preconceitos e as injustiças (os pretos
e mulatos como serviçais, a mulher como factótum20 – por isso presente em
toda parte, concluindo todas as seções da enumeração), resultando o conjunto,
muito ironicamente, na “felicidade” – o ideal pequeno-burguês de felicidade,
que o antiburguês Flaubert21 considerava imoral.
2.6. O choque social
O poema-piada é uma das expressões que, nesse livro inicial de
Drummond, tem o tema da “praça dos convites”, ou seja, o “ser-com”, a
vida em sociedade. Ele pode ter a brevidade epigramática de “Anedota
búlgara” ou conter uma narrativa de extensão um pouco maior, como em
“Sociedade”. Nesses poemas, não está presente a gravidade dos poemas
políticos posteriores de Drummond, sobretudo dos poemas de largo sopro
de A Rosa do Povo (1945), embora o tom grave apareça por momentos em
outros poemas de Alguma Poesia que se referem ao “choque social”
(“Outubro 1930”, “Política”, “Coração numeroso”). O tom jocoso, contudo,
não mascara a denúncia:
ANEDOTA BÚLGARA
Era uma vez um czar naturalista 22
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
20 Factótum (do latim factotum “faz tudo”): pau para toda obra.
21 Gustave Flaubert (pronúncia: güstav flobérr – sendo o ü uma vogal que fica entre i e u,
um i com os lábios arredondados, e o o fechado, flô): escritor francês (1821-1880), um dos
maiores mestres do Realismo, autor do célebre romance Madame Bovary.
22 Naturalista: estudioso de história natural, ou seja, das ciências naturais; aqui, trata-se de
um amante da natureza.
ALGUMA POESIA
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Aqui, a referência a ditadores sanguinários foi profética no que se refere
ao Brasil, que não tinha vivido ainda os dois regimes repressivos e violentos
que conheceu no século XX: o “Estado Novo” (1937-1945) de Getúlio
Vargas e a ditadura militar nascida da chamada “Revolução” de 1964.
“Sociedade” pode ser considerado uma espécie de poema-piada
desenvolvido. Agora, o conteúdo não é político, mas trata-se igualmente de
um aspecto do “ser-com-os-outros”, a vida na “praça de convites”:
SOCIEDADE
O homem disse para o amigo:
— Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
— Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmungava:
— Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: — Que idiota.
— A casa é um ninho de pulgas. 
— Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
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E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
2.7. O conhecimento amoroso
Também o tema amoroso foi, nesse livro, motivo de epigramas, dos
quais o mais famoso, e talvez o mais brilhante, é “Quadrilha”:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
A enfiada de desencontros amorosos que constitui essa engenhosa
“Quadrilha” (lembremos que quadrilha é uma dança de salão em que os
membros dos casais dançantes vão-se alternando) é graciosamente narrada
através de associações ligadas aos nomes próprios, que constituem o
principal material linguístico de que se serve aqui o poeta. Aos prenomes
(João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili) opõe-se o nome J. Pinto
Fernandes, o único a que falta o prenome (só aparece a inicial J.) e o único
a ser apresentado com sobrenome. Prenomes (ou possivelmente apelido, no
caso de Lili) são usados em relações próximas, informais ou íntimas, e não
sugerem mais do que relações pessoais. Quanto a inicial e sobrenome, a
sugestão não é de relação pessoal, informalidade ou intimidade, bem ao
contrário: pensa-se em formalidade social ou relações de negócio (J. Pinto
Fernandes poderia ser o nomeusado, não entre amigos ou amantes, mas
numa conta bancária ou na designação de uma firma). Curiosamente, todos
os prenomes, menos Lili, são explicitamente sujeitos do verbo amar (todos
amavam) e implicitamente do verbo casar na negativa (nenhum casou). Lili
é sujeito do verbo amar na negativa (“não amava ninguém”) e positivamente
do verbo casar. E o que é significativo é que Lili se casou, não com um
prenome, mas com inicial e sobrenome. Ora, se, no contexto do poema, o
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grupo dos prenomes liga-se a intimidade, a amor e a não casa mento,
enquanto o outro grupo, constituído por Lili e J. Pinto Fernandes, é em tudo
oposto ao primeiro, pois aqui os sentidos são de não intimidade, não amor e
casamento...
O mesmo tom brincalhão está presente em outros poemas de tema
amoroso constantes de Alguma Poesia, como veremos adiante, em “Balada
do amor através das idades” (ver 3.) e em “Toada do amor” (ver 4.).
No poema seguinte, o tema amoroso cruza-se com o do “eu todo
retorcido”.
SENTIMENTAL
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
— Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”
2.8. A própria poesia
A poesia metalinguística, isto é, a poesia voltada para a própria poesia
(“poesia contemplada”, nos termos do poeta), corresponde a alguma das
mais estupendas realizações de Drummond, sobretudo em seu grande livro
de 1945, A Rosa do Povo. Mas já em Alguma Poesia esse tema comparece
num poema, talvez em dois.
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POESIA
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo. 
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Muito curiosamente, essa concepção de poesia como algo inefável, isto
é, indizível, como algo para que pode não haver palavras é uma concepção
substancialista de todo diferente daquela que encontraremos nos poemas
metalinguísticos de A Rosa do Povo, já mencionados. Podemos dizer que se
trata de uma concepção substancialista porque a poesia é vista como algo
em si, uma substância independente das palavras, que existe fora delas e
para a qual elas podem não ser suficientes: a poesia pode não estar no
poema, o poema pode não se realizar, mas existe “a poesia deste momento”,
que não demanda palavras. No livro de 1945, a consideração do fenômeno
poético será inteiramente diversa, oposta mesmo ao que está implicado no
poema que estamos lendo. Uma das importantes peças metalinguísticas
daquele livro, “Procura da poesia”, assim se inicia:
PROCURA DA POESIA
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
No momento culminante do mesmo poema, a poesia é indissociavel -
mente ligada ao trabalho com as palavras:
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Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. 
[...]
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Portanto, não se trata mais de poesia como substância independente das
palavras, mas sim como o resultado do trabalho com elas, trabalho que vem
a ser a busca de uma chave para o segredo das palavras.
O outro poema que, neste livro, pode ser considerado como relativo à
temática da “poesia contemplada” é o seguinte, que forma um par muito
interessante e revelador com o texto que acabamos de ler.
POEMA QUE ACONTECEU
Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.
Este é como que o oposto complementar de “Poesia”: num, o poema
não acontece, apesar dos esforços do sujeito, mas existe “a poesia deste
momento”; no outro, o momento não parece particularmente poético (nada
ocorre, nem no mundo, nem no sujeito), mas o poema acontece, apesar da
total indiferença do sujeito. Portanto, parodiando uma frase bíblica, pode-se
dizer que o espírito da poesia, para o Drummond estreante, sopra onde quer,
a despeito dos esforços do poeta.
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2.9. Exercícios lúdicos
Entre os poemas que Drummond considera brincadeiras ou jogos com
as palavras, conta-se o seguinte:
POLÍTICA LITERÁRIA
A Manuel Bandeira23
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz24. 
Mais um esplêndido poema-piada. Agora, a sátira mordaz volta-se para
os costumes literários do país – o ciúme, o desejo de poder, a mesquinharia
provinciana e ridícula daquele grupo que o grande poeta romano Horácio
(século I a.C.) chamou de “a irascível raça dos vates” 25. (Anote-se, a propó -
sito, que Drummond sempre teve grande desprezo pela chamada “vida lite -
rária” e sempre evitou as corriolas intelectuais, como comprova, por exemplo,
o fato de ele nunca ter aceitado entrar para a Academia Brasileira de Letras.)
2.10. Uma visão (ou tentativa de) da existência
Dos dois poemas de Alguma Poesia que, segundo a classificação do
próprio poeta, versam temática existencial, já vimos um, “No meio do
caminho”. O outro é:
COTA ZERO
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
23 Antologia Poética, Drummond, Record, 2010, p. 93.
24 Tirar ouro do nariz: expressão popular, corrente sobretudo em Minas, que significa tirar
sujeira do nariz.
25 Irascível: que se ira com facilidade, irritável. Vate: poeta (designação solene, já que a
palavra também significa “profeta”).
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Na sua extrema simplicidade e concisão, este é um texto admirável
sobre um fenômeno central de nossa existência moderna: a crescente e
alarmante dependência da vida em relação aos produtos da tecnologia.
O automóvel, naquele tempo, era a última palavra da técnica, e a vida já
não podia prescindir dele. Hoje, poderíamos aplicar a mesma constatação a
muitos outros engenhos ou engenhocas, sendo o computador o último e,
parece, o mais definitivo deles.
3. LEITURA
3.1. “Lanterna Mágica – IV – Itabira” 
LANTERNA MÁGICA – IV – ITABIRA
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu caramujo cisma na derrota 
[incomparável.
3.2. “Poema do jornal”
POEMA DO JORNAL
O fato não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.
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3.3. “Infância”
INFÂNCIA
A Abgar Renault 26
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entremangueiras
lia a história de Robinson Crusoé 27. 
Comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo28
olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
26 Antologia Poética, Drummond, Record, 2010, p. 93.
27 Robinson Crusoé: herói do romance do mesmo nome, de autoria do escritor inglês Daniel
Defoe (pronúncia déniel difôu), publicado em 1719. Robinson Crusoé é um marinheiro que
naufraga e, graças a sua habilidade e esperteza, sobrevive durante anos numa pequena
ilha nos trópicos.
28 Coser: costurar.
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3.4. “Balada do amor através das idades”
BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais29.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos. 30
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba31
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.32
Depois fui pirata mouro,
flagelo33 da Tripolitânia34.
Toquei fogo na fragata
29 Imemorial: antiquíssimo.
30 Nesta primeira estrofe, faz-se referência à Guerra de Troia, tema de Ilíada, poema épico
do século VII a.C., de Homero. Segundo a Ilíada, a causa da guerra foi o rapto de Helena,
mulher do rei da cidade grega de Esparta, pelo príncipe troiano Páris. Depois de dez anos
de lutas, o guerreiro grego Ulisses cria um estratagema: o exército grego finge retirar-se
e deixa de presente aos troianos um gigantesco cavalo de madeira diante das muralhas de
Troia. Como os troianos consideravam o cavalo um presente sagrado, recolheram-no
dentro da cidade, ignorando que ele escondia em seu interior soldados gregos. Assim Troia
é invadida, saqueada e queimada e os gregos vencem a guerra.
31 Catacumba: galeria subterrânea em cuja parede se faziam tumbas, onde foram sepultados
os primeiros cristãos.
32 Nesta estrofe, faz-se referência à perseguição dos cristãos iniciada pelo imperador romano
Nero no século I d.C. Nessa época, construiu-se, em Roma, o Coliseu, uma espécie de
teatro ao ar livre, onde homens eram impelidos a lutar com feras em espetáculos públicos.
33 Flagelo: grande calamidade.
34 Tripolitânia: região da Líbia, no norte da África.
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onde você se escondia
da fúria de meu bergantim35. 
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina. 36
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias37,
eu, herói da Paramount38,
te abraço, beijo e casamos.39
35 Bergantim: antiga embarcação a vela e remo.
36 Nesta estrofe, faz-se referência à luxuosa vida na corte do rei francês Luís XIV, no Palácio
de Versalhes (em francês, Versailles, pronúncia versáie), onde vivia, perto de Paris. Com
a Revolução Francesa, Luís XIV, a rainha Maria Antonieta e muitos outros, entre eles
nobres que viviam naquele palácio, tiveram suas cabeças cortadas na guilhotina.
37 Peripécia: incidente, aventura.
38 Nesta estrofe, faz-se referência ao famoso estúdio cinematográfico de Hollywood,
Paramount (pronúncia péramaunt), que teve seu auge nas décadas de 1930 e 1940, com
a produção de filmes, em sua maioria, caracterizados por final feliz.
39 Um outro poema sobre relações amorosas, do mesmo autor, também brincalhão, mas
pessimista, é “Quadrilha”.
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3.5. “Casamento do céu e do inferno”
CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO
No azul do céu de metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar. 40
Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.
Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporadas à via-láctea,
vaga-lumeando...
Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.
Diabo tem uma luneta
que varre léguas de sete léguas
e tem o ouvido fino
que nem violino.
São Pedro dorme
e o relógio do céu ronca mecânico.
Diabo espreita por uma frincha.
Lá embaixo
suspiram bocas machucadas.
Suspiram rezas? Suspiram manso,
de amor.
40 O poema é montado pela mescla de temas e palavras poéticas e não poéticas, jogando
com associações inesperadas, cômicas e dessacralizadoras de imagens e ideias: o “céu de
metileno”, a lua ao estilo de gravura barata e os mosquitos são coisas triviais, que a poesia
clássica ou “séria” considerava indignas. Também palavras como “diurética”,
“tresmalhadas” e “ronca”, ou expressões coloquiais como “diz-que”, “que nem”, eram
expurgadas da poesia acadêmica.
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E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra na carne.
Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz,
o resto vai para o inferno. 41
3.6. “Também já fui brasileiro”
TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO
Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam. 42
Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se. 43
41 O tom de paródia, a ótica grotesca e o olhar corrosivo são as tônicas da cena lírica do
poema: a lua romântica é reduzida a uma gravura de mau gosto; os anjos expedicionários
espantam mosquitos; as virgens extraviadas no céu remetem-nos intertextual e
ironicamente a tema explorado por Olavo Bilac. Os elementos do catolicismo são tratados
com irreverência: anjos, diabo, São Pedro. A paisagem estelar, celeste, nada tem com a
moldura platônica de Petrarca e Bilac. Observe que, em meio às situações mais prosaicas,
nem a musa idealizada de Dante Alighieri (Beatriz) escapa.
42 Nessa estrofe, próxima do poema “O Poeta Come Amendoim”, de Mário de Andrade, a
proposição “nacionalista” de Drummond enfrenta os seus limites — a consciência de que
a modernidade apaga uma certa noção “romântica” e idealizadora do passado do país.
43 A associação entre mulher e estrelas, entre a amada e as paisagens celestes é uma tônica
da poesia lírico-amorosa, desde os sonetos de Petrarca até os de Olavo Bilac, o Poeta das
Estrelas. Essa estrofe deixa explícita a recusa ao petrarquismo banalizado, aos clichês
romântico-parnasianos e à tradição clássica.
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não44.
3.7. “Europa, França e Bahia”
EUROPA, FRANÇA E BAHIA
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja doSena escorrendo sabedoria.
O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete 
[para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.
Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros 
[dentro de alguns anos.
44 A negação do ritmo regular, metrificado, previsível não impede que a poesia drummon -
diana tenha ritmo: é, muitas vezes, um ritmo dissonante, áspero, sincopado, mas existe. 
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A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suíça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.
Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa45. 
Não há mais Turquia.
O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e 
[no túmulo de Lenin em Moscou parece que um 
[coração enorme está batendo, batendo
mas não bate igual ao da gente…
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do Exílio”.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra…
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá! 46
45 A recusa dos modelos europeus (“Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa”) e a busca
de uma identidade brasileira são elos de ligação entre Drummond e os primeiros
modernistas. A decadência da França, o imperialismo inglês, os prenúncios do nazismo
alemão e do fascismo italiano, o absenteísmo da Suíça são ironizados pelo poeta.
Significativamente, ele poupa a Rússia, que “tem as cores da vida”, mas cujo coração
“não bate igual ao da gente”. 
46 Parodiando Gonçalves Dias, Drummond exorciza a tendência estrangeirizante, invocando
a emblemática “Canção do Exílio”. Nessa linha de valorização e (re)leitura do Brasil,
seguem-se os oito poemas de “Lanterna Mágica” (“Belo Horizonte”, “Sabará”, “Caeté”,
“Itabira”, “São João del-Rei”, “Nova Friburgo”, “Rio de Janeiro” e “Bahia”). 
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USUARIO
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3.8. “Papai Noel às avessas”
PAPAI NOEL ÀS AVESSAS
A Afonso Arinos (sobrinho)
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai Noel entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celuloide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por 
[causa do aperto47.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
47 Aqui, a ironia se estabelece na situação esdrúxula do Papai Noel que rouba presentes. 
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3.9. “Explicação”
EXPLICAÇÃO
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. 48
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada49. 
Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole,
[preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de50. 
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
48 Essa reflexão sobre a própria poesia ainda está distante da densa posição metalinguística
de “O Lutador”, “Mãos Dadas”, “Consideração do Poema” e, principalmente, “Procura da
Poesia”, síntese da arte poética drummondiana. 
49 Subsiste ainda uma visão subjetiva e evasionista do que é poesia, subordinada ao
individualismo narcisista. 
50 A atomização da palavra, tônica do livro Lição de Coisas, faz aqui seus primeiros ensaios. 
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Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só 51,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
51 A catilinária antieuropeizante não implica a exaltação ufanista da terra natal, onde “tudo
é uma canalha só”. 
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4. EXERCÍCIOS
Texto para as questões de 1 a 3.
TOADA DO AMOR
E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele, também 
que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.
1. Nesse poema, o tratamento da temática amorosa é característico da
primeira fase do Modernismo? Por quê?
2. “Neste poema, a não utilização de rimas é uma forma de combater a
estética parnasiana.” – A seu ver, essa afirmativa está correta? Justifique
sua resposta.
3. Transcreva do texto algum(ns) elemento(s) que você considere caracte -
rístico(s) da linguagem utilizada pelos modernistas. Explique o que o leva
a considerar que tais elementos sejam modernistas.
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Texto para as questões de 4 a 8.
CIDADEZINHA QUALQUER
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
4. (FUVEST) – Que aspectos da realidade nacional estão representados
nas duas primeiras estrofes?
5. (FUVEST) – Que valoresestão implícitos no ponto de vista adotado
pelo poeta no último verso do poema?
6. (FUVEST) – A mesma oração repete-se nos versos 4, 5 e 6, mudando
apenas o sujeito. Exponha, com base no próprio poema, a intenção contida
tanto na mudança quanto na repetição.
7. (FUVEST) – Ainda nesses versos, a oração mantém a mesma ordem de
construção, invertendo-a no 7.o verso. Explique a consequência da inversão
na visão que se oferece da cidadezinha.
8. Na metáfora se substitui uma palavra por outra quando entre elas há
relação de semelhança; exemplo: as pérolas de sua boca. Na metonímia se
substitui uma palavra por outra quando elas designam coisas associadas por
contiguidade, ou seja, proximidade (no espaço, no tempo ou nas ideias);
exemplo: beber um copo. Em janelas, no verso “Devagar... as janelas
olham”, ocorre uma dessas figuras. Qual? Explique.
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9. (FUVEST) –
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do Exílio”.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra…
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!
(Carlos Drummond de Andrade, “Europa, França e
Bahia”, Alguma poesia)
Neste excerto, a citação e a presença de trechos .......................... constituem
um caso de .................... .
Os espaços pontilhados da frase acima deverão ser preenchidos,
respectivamente, com o que está em:
a) do famoso poema de Álvares de Azevedo/ discurso indireto.
b) da conhecida canção de Noel Rosa/ paródia.
c) do célebre poema de Gonçalves Dias/ intertextualidade.
d) da célebre composição de Villa-Lobos/ ironia.
e) do famoso poema de Mário de Andrade/ metalinguagem.
10. (FUVEST) – Refere-se corretamente a Alguma poesia, de Drummond,
a seguinte afirmação:
a) A imagem do poeta como “gauche” revela a sua militância na poesia
engajada e participante, de esquerda.
b) As oposições sujeito-mundo e província-metrópole são fundamentais
em vários poemas.
c) A filiação modernista do livro liberou o poeta das preocupações com a
elaboração formal dos poemas.
d) O livro não contém textos metalinguísticos, o que caracteriza a primeira
fase do autor.
e) A ironia e o humor evitam que o eu lírico se distancie ou se isole, propor -
cionando-lhe a comunhão com o mundo exterior.
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5. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS
1. Sim, o tom brincalhão com que o poeta trata o tema amoroso é típico
da fase dita “heroica” (1922-1930) do movimento modernista. Uma
das inovações do Modernismo, no Brasil, consistiu em misturar
registros estilísticos, ou seja, tratar assuntos considerados sérios e
elevados (o amor entre eles) com um tom debochado e uma linguagem
zombeteira. O exemplo mais sintético dessa tendência modernista
encontra-se no seguinte poema de Oswald de Andrade, cuja influência
está presente no primeiro livro de Drummond:
amor
Humor
(Note-se que o poema está completo: uma palavra de título, com inicial
minúscula, e uma palavra de texto.)
2. A afirmativa não é correta, porque os modernistas não eram necessa -
riamente contra o uso da rima (tanto que muitos, inclusive Drummond,
usaram-na com frequência), mas sim contra o seu uso puramente
ornamental, formalista, típico do Parnasianismo. Segundo diversos
modernistas, os parnasianos buscavam antes de tudo excessos formais,
como rimas raras e difíceis, e sacrificavam o poema a esse formalismo,
produzindo obras vazias, embora “bem-acabadas”. Não obstante, a
simples ausência de rimas num poema modernista não significa que se
trate de “uma forma de combater a estética parnasiana”.
3. É própria da linguagem modernista a ausência de vírgulas numa
enumeração como “briga perdoa perdoa briga”. A falta de vírgulas
visa a fazer que o enunciado sugira a simultaneidade ou, como é o caso
aqui, a rápida sucessão das ações enumeradas. O mesmo se pode dizer
da outra enumeração, “amor cachorro bandido trem”. Outro traço
modernista está no uso de palavras “vulgares”, condenadas pelas
poéticas conservadoras, sobretudo o Parnasianismo. Neste caso, está o
verbo xingar, assim como os qualificativos cachorro, bandido e trem,
esta última na acepção, corrente em Minas, de “coisa inútil, traste”.
Também construções de um coloquialismo completamente informal,
considerado baixo e impróprio de um poema de amor, encontram-se
presentes no poema de Drummond, como se encontravam antes nas
obras de diversos modernistas. É o caso de “a gente vive...” (em vez de
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vive-se ou vivemos), “se não fosse ele, também / que graça que a vida
tinha?” (em vez de sem ele, que graça teria a vida?), “dá cá o pito”
(em vez de dá-me o pito). Esta última palavra, por sinal, também é um
vulgarismo para indicar cachimbo.
4. Os aspectos da realidade social representados nas duas primeiras estrofes
são a vida das pequenas cidades do interior, bastante simples, bucólica
(“bananeiras”, “laranjeiras”, “pomar”), com lirismo singelo (“pomar
amor cantar”), e a monotonia decorrente de um cotidiano bastante
limitado e modorrento (“Um homem vai devagar. / Um cachorro vai
devagar. / Um burro vai devagar.”). Até a atividade bisbilhoteira das
pessoas – muito interessadas umas nas vidas das outras, nesse ambiente
acanhado –, até essa atividade não foge aos padrões daquela vida sem
sobressaltos (“Devagar... as janelas olham.”). (Deve-se lembrar que,
quando foi publicado o livro de Drummond, em 1930, a população
brasileira era majoritariamente rural.)
5. O último verso do poema (“Eta vida besta, meu Deus.”) opõe o poeta,
irônica e criticamente, ao universo provinciano e monótono da cidade -
zinha qualquer. Nesse verso, está implícita uma ideologia cosmopolita,
das grandes cidades, com vida moderna, informação rápida, valores
dinâmicos; portanto, o avesso da mesmice da cidadezinha do interior.
6. As repetições (“Um [...] vai devagar”) sugerem a monotonia presente
no cotidiano da cidadezinha. Na mudança de sujeitos (homem, cachorro,
burro), nota-se uma intenção de generalização, ou seja, a mesmice e a
lentidão são atributos de todos os seres vivos que habitam a pequena
cidade, pessoas ou animais. Além disso, os termos da enumeração contida
nesses versos se oferecem a interpretações irônicas: por um lado, homens
e animais aparecem nivelados; por outro lado, a palavra burro pode, além
de designar o animal, sugerir a vida pouco inteligente do lugar.
7. A inversão dá ainda maior realce ao advérbio devagar, agora colocado
no início da frase. É como se a lentidão envolvesse a tudo e a todos na
cidadezinha, os que agem (vai...vai...vai) e os que espiam (olham).
8. A figura em questão é uma metonímia, pois janelas indicam as pessoas
que espiam através delas. Entre as janelas e as pessoas que olham há,
evidentemente, contiguidade, não semelhança. 
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9. O excerto final do poema de Drummond, uma frustrante peregrinação
pela Europa do entreguerras, fala do regresso ao Brasil, identificado
pelas imagens que a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, converteu
em ícones do saudosismo: a palmeira e o sabiá. A delicada ironia
drummondiana torna irrelevante o esquecimento da terra natal e do
poema romântico diante da comovida apóstrofe que encerra o poema:
“Ai terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!”.
Resposta: C
10. “No meio do caminho” é exemplo de poema em que um eu lírico se vê
em crise diante do mundo à sua frente – no caso, a pedra, metáfora de
problemáticas que aparecem durante a trajetória existencial do eu
poemático. “Cidadezinha qualquer” demonstra o confronto entre a
mesmice entediante das pequenas localidades brasileiras (a província)
e a perspectiva de quem tem contato com o universo dos grandes
centros urbanos (a metrópole).
Resposta: B
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