Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
BIBLIOTECA DA EDUCAÇAO Série 5 - E S T U m S DE LINGUAGEM Vi^t4me 5 Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmaia Brasileira do Uvro, SP. Brasil) 90-1612 Orlandí, Eni Pulcinellí. T m a à vista!; discurso do confronto: velho e novo mundo / Eni Pulcinelli Oriandí. — São Paulo: Coitez ; I Campinas. SP I: Editraa da Universidade Estadual de Campinas. 1990. — (Biblioteca da educação. Série 5. Estudos de l in g u a g ^ ; v. 5) Bibliografia ISBN 85-249-0275-2 1. América - Civilização - Influências européias 2. Aná lise do discurso 3. Europa-Civilização-Influências america nas 4. Linguagem e cultura I. Título. II. Série. C D D -401.41 - 306.4 -940 -970 índices para catálogo sistemático: 1. América: Civilização: Influências européias 970 2. Análise do discurso: C(»nunícação: L ín g u ag ^ 401.41 3. Cultura e linguagem: Sociologia 306.4 4. Discursos : Análise: Comunicação: Linguagem 401.41 5. Europa : Civilização : Influências americanas 940 6. Linguagem e cultura: Sociologia 306.4 EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS UNICAMP Reitor: Carlos Vogt Coordenador Geral da Universidade: José Martins Filho Conselho Editorial: Aécio Pereira Chagas, Alfredo Miguel Ozorio de Almeida, Attflio José Giarola, Vara Frateschi Vieira {Presidente), Eduardo GuimarScs, Hermdgenes de Freitas Leitão Filho, Jayme Antunes Maciel Júnior, Luiz Ccsar Marques Filho, Ubiratan D’Ambrosio. Diretor Executivo: Eduardo Guimarães 1990 Editora da Unicamp Rua Cecílio Feltrin, 253 Cidade Universitária — Barão Geraldo CEP 13083 — Campinas — SP - Brasil Tel.: (0192) 39.3157 ENI PULCINELLI ORL ANDI DISCURSO DO CONFRONTO: V E L H O E N O V O M U N D O CORT€Z 6DITORP Agradeço a todos aqueles que, com seu trabalho e seu apoio, me propiciaram o acesso à Biblioteca Nacional de Paris, à Biblioteca de Chantilly, à Biblioteca Mazzarini, ao Instituto Católico de Paris, à Propaganda Fide, ao Arquivo Secreto do Vaticano e ao Colégio Internacional dos Capuchinhos em Roma. Igualmente, agradeço à Fapesp e ao CNPq pelo auxílio con cedido. S U M A R I O Pré4imimr 7 IN T R O D U Ç Ã O : 0 DISCURSO DAS DESCOBERTAS I. Terra à Vista! /3 II. U m Percurso de Sentidos 18 1 ̂PARTE: E M TORNO DO MÉTODO E D O OBJETO I. Observações Sobre Análise de Discurso 25 II. Não o Outro, M as o Diferente 58 III . Civilização e Cultura 45 IV. Silêncio e Sentido 49 2^ PARTE: OS RELATOS ■ ✓ I. Pátria ou Terra: o índio e a Identidade Nacional II. A Dança das Gramáticas III . Reimpressão do Singular: U m Olhar Francês Sobre o Brasil 55 73 lOí IV. Domesticação e Proteção: o Discurso dos Padres na Raiz do Latifúndio 123 3^ PARTE: SITUAÇÕES Sobre a Língua: Algumas Palavras 157 I. Os Pataxós, Sua Língua, Sua Terra /62✓ II. O SujeitoTndio e o Seu Texto: U m M ito Assurini / 75 III. U m a Retórica do Oprimido: o Discurso dos Representantes Indígenas 209 C O N C LU Sà O : FALANDO A TORTO E A DIREITO I. 255 Ainda um Discurso da Descoberta Conteudismo: a Perfídia da Interpretação 243 III. N o Vão da Voz 249 Corpus e Corpo do Discurso 255 II. IV. Bibliografia geral 257 Pré-liminar Ao começar a construção desse texto, por volta de 1982, a intenção era falar sobre a retórica de contato entre índios e ocidentais. Como, através da linguagem, eu poderia apreciar o que se passa numa relação entre seres tão radicalmente dife rentes como o índio e o ocidental? Apenas comecei o trabalho e já me vi diante de outra forma desse mesmo assunto: os discursos da construção do “outro”. E, como o material de análise produziu um recorte específico, delimitei o tema: “os discursos dos missionários sobre o Brasil”. Que não ficou por muito tempo nesse lugar, pois a delimitação deu mais um passo: “o d isc u ^ francês sobre o Brasil” (já que os missionários eram franceses e havia também discursos de franceses que não eram missionários). Nessa altura fiquei sedu zida por outro título: “O olhar francês sobre o Brasil”, pois o “ver” alçou-se em seu sentido dominante. Título que imediata mente me lembrou o parentesco, sempre confuso, entre descobrir e conquistar. Esse último, marcado pela relação entre Europa e AmérícaT transfigurou-se em: “O discurso da colonização”. No entanto, não podia parar aí, pois fui me dando conta de que a colonização tem muitas formas, entre elas as que não são cate gorizadas sob a rubrica “colonização”. Entre história, antropologia, literatura e lingüística, o tema começou a se mostrar como um percurso em linha reta: as formas colonizadoras do discurso do conhecimento. Descobrir, conquistar, dar a conhecer. Isto, no interior da perspectiva fou- caultiana, não acrescentaria grande coisa ao par saber/poder, mas, na perspectiva do discurso em que trabalho, me dizia muito mais; a) O apagamento da história pela noção de cultura; b) A produção material do que, apagado, toma ò nome de ideo logia; c) A intervenção crítica na história da ciência através de um modo de observação que propõe um confronto entre o dis curso da descoberta (de lá para cá) e o da origem (daqui para cá); d) Finalmente, a viagem como descoberta, a viagem como posse, a viagem como administração, a viagem como missão, a viagem como diário íntimo, a viagem como possível, a viagem como turismo. Na relação de contato entre culturas diferentes, entre conti nentes diferentes e com diferentes histórias, não deixou de ser 0 centro de minhas atenções a questão crucial da linguagem. E, por um certo tempo, estive convencida de que o mais importante da minha pesquisa, aquilo que me interessava fundamentalmen te, era o estabelecimento e a circulação ^ fo rm a s de discurso (político, cien^ico, literário, religioso) na, Europa_em sua rela- çaõ com a América (sobretudo o Brasil). Dito de forma mais biêve e direta: como a descoberta do N^vo Mundo refletiu na retórica européia, isto é, na própria configuração das suasjprmas de discurso? O objetivo seria, então, compreender a formação de modelos discursivos e as práticas ideológicas produzidas no con fronto da ciência, a religião, o direito e a política (sobretudo social). Mas, para não ficar no passado, puxei para mais perto a relação entre ser índio e ser brasileiro: os discursos das lide ranças indígenas refletindo a relação do contato, o imaginário de uma língua nossa apagando a nossa língua mais real, os limites confusos entre o índio e o brasileiro. Nessa longa caminhada, outros escreveram sobre algumas das coisas que eu estava observando. Mas não apressei meus passos, mesmo correndo o risco de não ser a primeira a dizer. Porque não aposto no "conteúdo”, no “dado”, na “informação”. 8 mas na construção dos sentidos e esse meu texto será sempre esse meu texto no seu modo de significar, com sua contribuição específica. Porém, sempre se corre o risco do engano. E sei menos hoje 0 que é que descobri do que acreditava saber no início de meu trabalho. Para me sustentar com algum peso nessa afirma ção, lembro Fellini, que, falando de um seu novo filme (A Voz da Lua, inspirado no título de um livro que se chama A Voz do Poço), disse a um repórter, como resposta, sobre “o que” era seu filme: “Não sei”. O repórter insistiu: “Mas o senhor não terminou o filme?”. Ele respondeu, não exatamente com estas minhas palavras: Terminei. Mas não sei sobre ‘o que’ é. Não sei ‘o que’ significa. Ele tem algo a ver com outros filmes que fiz e que lembram minha infância. Filmes em que uso grandes espaços, árvores, e que vão construindo sentidos como transparências sobre transparências. Quer dizer, as transparências não fazem ver melhor, não definem com maior precisão. Elas complicam, con-fui^em. Dão espessara": à cada vez que releio meu texto, vejo outros sentidos que já estão, ou poderiam estar, aí mais desenvolvidos ou trazidos à tona talvez com mais convicção. Mas deixo o texto um tanto transparente. Porque eu mesma não sei todas as conseqüências de falar, ou de compreender, isso que foi meuobjeto de atenção e de reflexão nessa pesquisa: algumas das falas ou algumas situa ções de fala da nossa história passada e presente. Mas sei que é ao conceito de discurso e à curiosidade de entender o que se aloja na noção desgastada e malcompreendida da ideologia que devo essa minha escrita. É assim que eu gostaria de saber lido* esse meu trabalho: sentidos que chegam com a mesma incerteza do viajante que acaba por dizer sobretudo o que não sabe sobre aquilo que, desconhecido, veio a conhecer. E que está sempre mais além. Como está sempre mais além o sentido profundo do que imagi namos ser 0 que chamamos Brasil Á Autora Campinas, fevereiro de 1990. INTRODUÇÃO: O Discurso das Descobertas Gentes da Europa: nunca vos trouxera O mar e o vento a nós. Ah! não debalde Estendeu entre nós a natureza Todo esse plano espaço imenso de águas. . . Basílio da Gama, Cacambo I. Terra à Vista! Esse é o enunciado inaugural do Brasil. Repetido ritualis- ticamente a cada vez que navios encontram onde aportar, não se trata de uma fala original. É chapa cristalizada, estereotipada. Comentário de aventureiros. Fala de piratas. De descobridores: 0 discurso Hãs descobertas. Des-cobrimento. Se nos aproximamos mais desse enunciado podemos ainda especificar que é uma exclamação. De que natureza seria: de júbilo, de surpresa,' de alívio, dé apreensão, de curiosidade? De todo modo, por significar porto, ele pode indicar, de um lado (daquele dos que ancoram), a chegada (porto seguro) e, de outro (o dos que aqui estão), entrada (invasão). Promessa ou ameaça? Visitantes ou invasores? Terra a servir de berço esplêndido? A ser pilhada? De quem, essa terra? À vista. “Ver” tem um sentido bem específico nesse contexto: o que é visto ganha estatuto de existência. Ver, tornar visível, é forma de apropriação. O que o olhar abarca é o que se torna ao alcance das mãos. O visível (o descoberto) é o preâmbulo do legível: conhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para que se assente a sua posse. A submissão às letras começa e ter-' mina no olhar. O discurso das descobertas dá notícias do que 13 vê. Considerando, dizia Thevet (1567) em seu relato, “a minha longa e penosa peregrinação, realizada com o desígnio de v e r ... Podemos assim concluir que “Terra à vista” — a primeira fal^jobre o Brasil — expressa o olhar inaugural que atesta nas letras a nossa origem. Pero Vaz de Caminha dará o próximo passo lavrando nossa certidão, com sua Carta. Ao mesmo tempo, para os europeus, essa exclamação diz o início de um processo de apropriação. Descoberta significa, então, conquista. Mas pode significar muitas outras coisas. De qualquer modo, o discurso das descobertas é um discurso que domina a nossa existência como brasileiros, quer dizer, ele se estende ao longo de toda a nossa história, produzindo e absorvendo sentidos. Há uma cumplicidade do discurso das descobertas com o científico que lhe dá um modo de existência ideológico, que vai assim resultar em um “fechamento”: descobrir é dizer o conhecido. Os discursos estabelecem uma história. A história, em nossa perspectiva discursiva, não se define pela cronologia, nem por seus acidentes. nem_é tampouco evolução mas produção de sen tido^ (Paul Henry, 1985). Ela é algo da ordem do discurso. Não há história sem discurso. É aliás pelo discurso que a histó ria não é só evolução mas sentido, ou melhor, é pelo discurso que não se está só na evolução mas na história. O discurso das descobertas institui uma modalidade para o estabelecimento e existência da nossa história, dos nossos sen tidos. Esse modo tem de específico o apresentar-se justamente sob a forma do discurso etnológico. Esse nosso trabalho representa um esforço de intervir no modo pelo qual a institucionalização dessa forma de discurso científico toma o lugar do discurso histórico, produzindo o bra sileiro como um sujeito-cultural e negando-lhe o estatuto de sujeito-histórico. A prática ideológica do discursò das descobertas é tal que a instituição se apropria desse discurso e, despossuindo dele o antropólogo, o folcloriza ao mesmo tempo em que elide — eli dindo a materialidade histórica sob o pretexto da cientificida- de — o fato de que os acontecimentos históricos não o são por si mas porque reclamam um sentido. M Nossa análise incide basicamente sobre os relatos dos capu chinhos franceses e a primeira coisa a se notar, em termos de história, é a inscrição dos discursos dos capuchinhos no registro do discurso das descobertas. Mesmo as traduções para o portu guês se fazem no registro desse discurso. Assim, ele não pertence ao discurso da história mas ao da etnologia: ( . . . ) tomei a resolução de descrever os factos ou coisas mais notáveis que cuidadosamente observei em minha viagem ( . . . ) localização e disposição dos lugares ( . . . ) temperatura do ar, costu mes e maneiras de viver dos habitantes ( . . . ) (A. Thevet, 1557) A história se faz assim com um imaginário que, nesse caso, 0 dos relatos, os inscreve no discurso das descobertas que, por sua vez, é o discurso que “dá a conhecer o Novo Mundo”. O princípio talvez mais forte de constituição do discurso colonial, que é o produto mais eficaz do discurso das desco-' hertas. é reconhecer apenas o cultural e des-conhecer (apagar) o histórico, 0 político. Os efeitos de sentido que até hoje nos sub metem ao “espírito” de colônia são os que nos negam histori- cidade e nos apontam como seres culturais (singulares), a-his- tóricos. De nossa parte, queremos pensar a singularidade e a plura lidade não no domínio da cultura, mas na história. É a partir desse fato de linguagem (apagamento de sentidos pela sobreposição de um discurso a outro) que resolvi embarcar, não no caminho das índias, mas no da desconstrução de um certo olhar que não nos dá outro direito senão o de termos particularidades, singularidades, peculiaridades culturais. Pro curo saber alguma outra forma de nossa história. Des-cobrir sentidos. Não nos embala, no entanto, a ilusão de “recuperar” a nossa história “verdadeira”. Assim como sabemos que, como diz Pêcheux (1984): ( . . . ) 1’analyse de discours ne prétend pas s’instituer en spécialisle de l’interpretation maitrisant ‘le’ sens des textes, mais seulement construire des procédures exposant le regard-lecteur à des niveaux opaques à Taction stratégique d’un sujet ( . . . ) L’enjeu crucial est de construire des interpretations sans jamais les neutraliaer ni dans le ‘n’importe quoi’ d’un discours sur le discours. ni dans un espace logique stabilisé à pretension universelle. 15 Por isso, distinguimos interpretação e compreensão. Não perseguimos “um” sentido para a nossa história. A proposta é “compreender” os processos de significação, ou seja, o que ficou atestado ao longo da produção de linguagem sobre o Brasil. Não pretendemos tampouco definir o brasileiro. O que vi samos é observar como o discurso que define o brasileiro cons titui processos de significação, produzindo o imaginário pelo qual se rege a nossa sociedade. Ou, dito de outra forma, pro curamos compreender os processos discursivos que vão provendo o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do fun cionamento imaginário da sociedade brasileira. Em suma, analisamos as falas que definem o brasileiro e que constituem o nosso imaginário social. Não se trata, pois, de falar da “identidade”, mas antes do imaginário que se constrói para a significação do brasileiro. Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como essa con cepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação de certos sentidos (e não outros) para o brasileiro? Como resultado, tem-se efeitos de sentidos que nos colocam uma marca de nas cença que funcionará ao longo de toda a nossa história: o dis curso colonial. É esse processo que faz_com(que o “ ter ̂sido colonizado” deixa de ser uma marca histórica para significar uma essência. Uma vez colono. . . A ideologia tem, pois,uma materialidade e o discurso é o lugar em que se pode ter acesso a essa materialidade. Conhecer 0 seu funcionamento é saber que o discurso colonial continua produzindo os seus sentidos, desde que se apresentem as condi ções. E um dos seus efeitos — que não é o menor — é o que chamo a “perversidade do político”. Isto é, no imaginário cons truído por essas- práticas de linguagem, as relações de coloni zação aparecem não em seu lugar próprio mas sim como reflexo indireto. Isto acontece sempre que um discurso se faz passar por outro discurso. Nesse caso, se apaga o discurso histórico e se produz um discurso sobre a cultura. Como efeito desse apaga- mento, a cultura resulta em “exotismo”. Paralelamente, se apa gam as razões políticas que se apresentam então como um dis curso moral, de apreciação: o brasileiro é julgado por suas “qua lidades”; ele aparece como superficial e, lógico, alegre, folgazão, 16 indolente e sensual. Também se diz que ele é dotado de inteli gência que, infelizmente, ele desperdiça sem objetividade (razão). Concluir que esses ditos são clichês é banal. Mais interes sante é procurar compreender como se produzem esses sentidos que se dão por evidentes e definidos. 17 II. Um Percurso de Sentidos Como impulso, a análise de discurso e o desejo de virar o Atlântico na di reção inversa das descobertas, Como objetd~de reflexão, os capuchinhos e viajantes franceses que vieram ao Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII."Como quèstãô de método a possibilidade de deslocar o estatuto dos textos que historica mente foram categorizados como “documentos” aqui tomados como discurso: lugar de significação, de confronto de sentidos, de estabelecimento de identidades, de argumentação etc."’Como uma das finalidades, sair do já nomeado, do interpretado e pro curar entender esses textos como discursps que produziram e produzem efeitos de sentidos a serem compreendidos nas con dições em que apareceram e nas de hoje. Não se trata no entanto de, a partir da história da época, ler esses textos como a sua ilustração e acrescentar detalhes ou peripécias. O que procuro atingir'"é a historicidade mesma dos textos. Lembrando que a história, para quem analisa discursos, não são os textos em si mas a discursividad^. Para atingir a historicidade dos textos assim concebida, o procedimento será 0 de seguir a trama discursiva que tem estabelecido sentidos para o encontro do europeu com o índio, do europeu com o Brasil das descobertas. 18 Que história nos é contada e com a qual nos identificamos enquanto brasileiros?_Que_silêncios_nos acompanham ao longo dessa história? Quais são os modos de constituição c funcionamento dessa historicidáde que podem ser apreendidos (lidoS) q u a n ^ ^alisa mos a sua construção nos processos discursivos? Como o silêncio divide, significa^amente, o que sc conta e o que não se conta, produzindo_assim uma configuração para a Hi asilidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática da violência simbólica, no confronto das relações de força, no jogo de poder que sustenta efeitos de sentido: o silenciamento que a acompanha. Procuramos entender, nesses discursos, como o sentido tra balha as suas muitas (ou seriam afinal poucas?) direções. Mais fácil então dizer que o fio condutor dessa reflexão sobre o discurso das descobertas é o discurso sobre o índio, ou, enfim, o discurso sobre o Brasil. Isso resulta em pelo menos uma divisão sensível e signifi cativa que procuramos compreender: a) Como os europeus, em contato com o Novo Mundo, vão codificando esse conhecimento para si ao mesmo tempo em qufi padronizam uma forma de conhecimento “modelar” sObre o Brasil; b) Como nós temos aí um discurso sobre a nossa origem: a constituição da brasilidade'"ê"Tuas consequências, ou "seja, como vamos formando — significando — esse jeito de ser brasileiro. Discurso das descobertas, discurso das conquistas ou dis curso da dominação. Procuramos nos conhecer conhecendo como a Europa co- nhece o Brasil. E no discurso das descobertas não encontramos senão mõdüs' de tomar posse. Q móvel primeiro dessa nossa reflexão foi uma questão simples: “E nós, brasileiros?”. Nem índios, nem europeus, somos produzidos por uma fala que não tem um lugar, mas muitos. E “muitos” aqui é igual a “nenhum”. Desse lugar vazio fazemos falar as outras vozes que nos dão uma identidade. As vozes que nos definem. Europeu 19 falando de índio produz brasilidade. Nós, falando do que os europeus dizem de suas descobertas, falamos o discurso da nossa origem. Fazemos falar os outros. O brasileiro se cria pelo fato de fazer falarem os outros. E não é por assimilação* mas, ao con trário, pela distância, pela Instauração de um espaço de dife rença, de separação, que construímos nosso lugar mais “próprio”. Nós não temos o lugar do centro preenchido, em um movimento de assimilações. Em nosso imaginário, não nos identificamos ao índio, mas tajgbém não reivindicamos o português como igual. Somos uma mistura, já disseram muitos. Mas uma mistura indefinida. TTma mistura que se diz menos por colocar junto “coisas” difereutes e mais pelo fato de que há trânsito entre as__difeenças. Trânsito. Circulação entre os lugares. Movimento. Entre uns e outros. Diferenças que não remetem senão à dife rença. Nada de cópia, ou de modelo. Delineamentos que se movem continuamente. Perfis moventes. Aí está talvez um possível esteio dessa reflexão. No que diz Deleuze (19741 da diferença entre cópia e simulacro. A cópia seria a imagem dotada de semelhança e o simulacro a imagem sem semelhança. Isto se referirmos ao “modelo”. O que, formulado, fica assim: “os simulacros teriam de moralmente condenável o estado das diferenças livres oceânicas, das distri buições nômades, das anarquias coroadas, toda essa malignidade que contesta tanto a noção de modelo como a de cópia” (De leuze, idem). Essa pode ser a metáfora que nos diz a relação do brasi leiro e do europeu: somos a imagem rebelde sem semelhança interna. Se pensamos a análise de discurso (AD), esta também pende — enquanto forma de conceber a linguagem — para a diferença sem fundo, considerando o sentido como errância, dispersão sem origem, sobre a qual pudesse assentar-se no domínio da representação. Os sentidos, para a análise de dis curso, erram, no duplo sentido, porque não representam mode- larmente e porque se movimentam, circulam. Em uma palavra: 1. Um exemplo: a identidade dos franceses, no nacionalismo, se faz por assimilação aos gauleses, me dizia O. Ducrot na MSH, confirmando a direção de minhas reflexões. 20 desorganizam. E também a desordem é constitutiva da identi dade do sujeito e do sentido. As duas fórmulas (Deleuze, apud L. Orlandi, 1989) “só o que parece difere” e “só as diferenças se assemelham”, segundo 0 autor, devem ser referidas, a primeira como a fórmula do “mundo das cópias ou das representações” (o mundo aí vira ícone), a segunda, reverso da primeira, é precisamente a fórmula do “mundo dos simulacros sendo que o mundo nesse caso vem a ser fantasma”. Ainda segundo esse autor, elas representam distintas “leituras de mundo”: a primeira pensa a diferença a partir de uma identidade preliminar (e é assim que, a meu ver, funciona a lingüística: os sentidos derivados têm uma origem comum, uma unidade inicial); a segunda pensa a similitude e mesmo a identidade a partir de uma disparidade de fundo. Segundo L. Orlandi (idem), nesse fundo “(. ..) a unidade de medida e de comunicação ( .. .) é o díspar, o diferenciante emi nentemente apropriado a essa profundidade ocupada por uma disparidade constituinte” {Lógica e Sentido, Deleuze, p. 267, apud L. Orlandi, 1989). Aí podemos ver o discurso e sua con cepção de sentido e de sujeito, ambos sem origem. E é daí que “olhamos” a relação entre a Europa e o Brasil da descoberta: a disparidade de fundo, os fantasmas, presidindo as relações. O nosso fato — o olhar europeu sobre o Brasil — tem a disparidade comoconstitutiva e o nosso método — o da análise de discurso — pensa o sentido (e o sujeito) como não-transpa- rente, como movimento, como historicidade. Ou melhor, consi dera, tal como o dispõe a teoria do discurso, a determinação histórica dos processos de significação. Determinação essa que, considerando a relação Europa/Brasil, coloca-nos de forma parti cular frente à questão dos simulacros. E, se já podemos adiantar alguma coisa, é que haverá uma grande margem de silêncio — produzida pelo dominador e empunhada pelo dominado — nesse embate forte: de um lado, os europeus procuram absorver as diferenças, projetando-nos como cópias em seus imaginários, cópias malfeitas a serem pas sadas a limpo; enquanto do outro lado, assumindo a condição de simiilacrns — imagens rebeldes e avessas a qualquer repre sentação —, os brasileiros às vezes aderem, às vezes não, ao discurso das cópias. De todo modo, é com esse discurso que têm de lidar, às vezes incorporando-o, outras explodindo-o pela radi 21 calização dos seus efeitos: sendo mais europeu do que o europeu. Na questão da identidade, já vimos (cf. aqui mesmo, p. 224), a semelhança para mais é tão corrosiva quanto a semelhança para menos. Isto quer dizer que o excesso de semelhança tam bém é ruptura. Esse jogo complicado mostra, além disso, um direito e um avesso. Do lado de lá, o europeu, do de cá o brasi leiro: à retórica da indiferença, do desconhecimento, operada pelo europeu (que assim constrói a nossa in-significância), res ponde a retórica da antropofagia, que devora o europeu ao parecer lhe dar excessiva importância. Parafraseando L. Orlandi (1989), eu diria, agora a propósito da nossa condição histórica: o que se passa com os simulacros (os brasileiros), essas “ imagens rebeldes e sem semelhança”? Como simulacros eles vão permanecer, dóceis a uma lin guagem que os dispersou como imagens a que falta semelhança interna? Em nosso caso, consideramos que aí se abre a possibili dade de um “outro” discurso, que, em nossa reflexão, procura mos compreender, E aqui vale a observação: os sentidos vistos nesse jogo de simulacros são, como dissemos, erráticos. É esse vaguear pelo tempo e pelo espaço do sentido de ser-brasileiro que vamos pro curar apreender nos textos que tomamos como material signifi- cante. Sem deixar de lembrar que, em um discurso que não nasce no interior da colonização, a relação entre diferentes pode ser vista só como uma relação entre diferentes e não uma rela ção entre o diferente e o original. Original que faria intervir, em conseqüência, a idéia de cópia e de imitação. Entre o espontaneísmo das “ lembranças” — ilusão da não- deteri^inação histórica dos “ acontecimentos” — e o curso petri ficado da memória estabelecido por essas falas eternalizadas, a análise de discurso (AD) — que se propõe uma relação confli tuosa com os sentidos — procura desatar os sentidos contidos. É aí que incide nossa prática e é assim que entendemos a histo- ricidade do texto, sua discursividade,'' 22 1 ̂Parte Em Torno do Método e do Objeto I. Observações Sobre Anise de Discurso "A língua adâmica, fala sem memória e solitá ria, é o mito mais tenaz da Linguística. De fato, um texto, escrito ou oral, nunca tem uma inicial absoluta.” P. Sériot, “La langue de bois et son double" A análise de discurso (daqui para a frente utilizaremos também a sigla AD) visa construir um método de compreen são dos objetos de linguagem. Para isso, não trabalha com a linguagem enquanto dado, mas como jato. Ela tem sua origem ligada ao político ou, melhor dizendo, como afirma Courtine (1986), a AD procura “compreender as formas textuais de re presentação do político”. Mais do que isso, ela acaba por inaugurar uma nova per cepção do político, pela sobrevivência com a materialidade da linguagem, materialidade esta ao mesmo tempo lingüística e his tórica. Em consequência, ela desloca tanto o que se considera como “lingüístico” como aquilo que se entende como “político” e como “histórico” . E, para levar em conta essa complexidade do fato-linguagem, a AD se constrói um lugar particular entre a disciplina lingüística e as ciências das formações sociais. A AD se concebe como um “dispositivo que coloca em rela ção, sob uma forma mais complexa do que a de uma simples co-variação, o campo da língua (suscetível de ser estudado pela lingüística) e o campo da sociedade apreendida pela história (nos termos de relações de força e de dominação ideológica)” (Gadet, 1989). Esta concepção da AD encontra eco no fato de 25 que o discursivo materializa o contato entre o ideológico e o lingüístico. Na origem da AD francesa, tal como é pensada por M. Pêcheux, seu fundador, está a relação da linguagem com a ideo logia. De forma particular, esse autor trata da relação entre a “evidência subjetiva” e a “evidência do sentido”, colocando o discurso no lugar particular em que se articulam a linguagem e a ideologia. No entanto, diz Pêcheux (1969), a teoria do dis curso não pode, de forma alguma, substituir uma teoria da ideologia, não mais que uma teoria do inconsciente (embora suponha um sujeito afetado pela ideologia e pelo inconciente), mas pode intervir no campo dessas teorias. A AD contradiz com as concepções de ideologia tal como esta é tratada, pois, ao ser crítica à forma de constituição das ciências sociais, a AD produz um deslocamento quanto às teorias sociais da ideologia. Assim, se de um lado, na AD, a lingüística ocupa um lugar crítico, também as ciências sociais são colocadas em estado de questão; a AD mostra que o sujeito e a significa ção não são transparentes e aponta para uma relação proble mática das ciências sociais com o político, na medida em que estas supõem essa transparência da linguagem. Ela recorre, de um lado, à lingüística (à materialidade da língua) e, de outro, à ciência das formações sociais mas, parado xalmente, ao pressupô-las na sua constituição — afinal, a teoria do discurso partilha o campo epistemológico de sua formação com a lingüística e com a(s) teoria (s) da ideologia — ela lhes critica os fundamentos, já que não se deixa usar nem como instrumento neutro (seu uso supõe uma mudança de terreno e uma desconstrução de conceitos de base para ambas) e nem se coloca como se o que é próprio ao discurso viesse depois, como algo secundário e acrescentado (ou excrescente) ao que é lin güístico. Mostrando que a semântica é o “ponto em que a lingüística tem a ver com a filosofia e as ciências das formações sociais, freqüentemente sem o reconhecer”, Pêcheux (1975) explicita o lugar do qual a AD considera criticamente tanto a lingüística quanto as ciências sociais. A lingüística, porque não pode se formar senão produzindo, no resíduo do que não pode dar conta, os “ ismos” (psicologismo, sociologismo etc.) e as ciências 26 sociais porque se iludem com a “instrumentalidade” das ciências da linguagem. A lingüística, na vaga do estruturalismo, se colocou como ciência pilotodias ciências^umanas. Como retorno, foram-lhe colocadas questões que se originam nessa sua relação com as outras ciências. No entanto, elas ficaram sem resposta, pois, para se constituir nesse seu lugar, a lingüística teve, justamente, de se livrar disso que interessa mais de perto às outras ciências humanas e sociais, e que dizem respeito à relação da linguagem com a exterioridade. Por seu lado, essas ciências têm como instrumento de tra balho com a linguagem a análise d^ contrádo, que não é um inistfumento adequado — nem de descoberta, nem heurístico —, pois não faz senão ilustrar o que já está dito anteriormente, através das categorizações já estabelecidas pelas próprias ciên cias: opera uma simples ilustração do seu ponto de vista. A AD se constitui nesse intervalo, entre a lingüística e essas outras ciências, justamente na região das questões que dizem respeito à relação da linguagem (objeto lingüístico) com a sua exterioridade (objeto histórico). Definindo-secomo uma semântica, a AD pressupõe a lin güística e nessa medida se distancia da análise de conteúdo, pois trabalha a especificidade mesma da materialidade lingüística. No entanto, também se distancia desta na medida em que consi dera como constitutiva do seu objeto (o discurso) a determinação histórica. Isso significaria responder adequadamente às questões das ciências sociais e colocar-se, pois, a serviço (como instru mento) delas? Estranho destino esse da AD, que dá bem a dimensão do seu cisionismo e toda a sua errância: ao se constituir, ela muda de terreno e, ao mesmo tempo em que coloca questões para a lingüística, no interior mesmo da lingüística, também coloca problemas para as ciências sociais no interior mesmo, ou melhor, acerca dos fundamentos que as ciências sociais se constroem para se constituírem. A AD problematiza fundamentalmente, pa ra as ciências humanas e sociais, a natureza da concepção de sujeito e de linguagem sobre as quais essas ciências se organi zam. Nesse ponto, a crítica de Pêcheux, diz P. Henry (1990), ao modo de servir-se dos instrumentos nas ciências sociais se 27 confunde com sua crítica às ciências sociais em si mesmas, na crítica que diz respeito à sua ligação com o político (o ideológico, o histórico etc.)- Pêcheux, sob o pseudônimo de T. Hebert (1973), faz uma análise das raízes históricas da epistemologia e da filosofia do conhecimento empírico. Segundo ele, as ciências sociais se desen volveram principalmente nas sociedades em que, de modo domi nante, a prática política teve como objetivo transformar as rela ções sociais no seio da prática social, de tal modo que a estrutura global desta última se conservasse. As ciências sociais estão, assim, no prolongamento direto da ideologia que as desenvolveu no contato estreito com a prática política. Uma outra forma, mais atual, de se observar e de dizer isso em conseqüência dessas concepções formuladas no interior das ciências sociais são os discursos que propagam o fim do político, a morte das ideolo gias, 0 que renova na ciência o triunfo do positivismo. E o que 0 discurso tem a ver com isso? Tudo, justamente, pois para Pêcheux 0 imtrumento da prática política é o discurso, ou seja, “a prática política tem como função, pelo discurso, transformar as relações sociais reformulando a demanda social”. Por isso, Pêcheux, querendo ( . . . ) provocar uma ruptura no campo ideológico das ciências sociais, escolhe o discurso e a análise do discurso como lugar preciso onde é possível intervir teoricamente (teoria do discurso) e prati camente, construindo um dispositivo experimental. (P. Henry, 1990) O modo de romper, pois, com a forma como as ciências usam seus instrumentos de análise está na própria concepção discursiva de linguagem que não a coloca como instrumento de comunicação de significações que existiriam e que seriam defi nidas independenteniente da linguagem (ou seja: como "infor mações”). E é isto que Pêcheux diz quando afirma que “a linguagem serve para comunicar e para não comunicar” (1975). Assim é que a própria noção de ideologia é outra na AD. A noção de história é outra. A noção de sujeito é outra. Porque só se define pelo seu caráter iminentemente constituído pelo outro termo do sintagma de que participam, ou seja, da lingua gem. A relação sintomática é a que existe entre o sujeito da linguagem e o sujeito da ideologia. Se a linguagem aparece 28 nesse quadro teórico como a materialidade específica do dis curso, este, por sua vez, se define como materialidade específica da ideologia. Não é, pois, de uma “simples aplicação” que se trata, ou do uso de um instrumento, jíára dar maior cientificidade à ciência das formações sociais. Esse é um “instrumento-’ que, ao^^se^ usado, transforma tanto o ponto de partida (os conceitosè' pressupostos teóricos) quanto o de chegada (as conseqüências analíticas). Nao é um instrumento “neutro”, e não o é pelo reconhecimento da espessura semântica da própria linguagem. A historicidade — voltaremos a isto freqüentes vezes — é a histo- ricidade /do texto, ou seja7^a,4iscursividade (sua determinação históricaV que hão é mefõ reflexo do fora ^nas se constitui já na própria tessitura dá matetlalidade liròíiística. Trata-se, por sua vez, de pensar a,^materiàlTdadi^do/í»nt:ido ''e 4§, sujeito, seus modos de constituído histórica. Não é, no entanto, tão simpl^ assim. Porque a teoria do discurâo tem como base uma teoria não-subjetiva da leitura (^cteux , 1969)'. Essa. teoria não-subje- tiva representa uma relação^specífÍcá,‘isto é, uma relação crítica da AD com a lingüística. Nesta relação crítica a AD inclui — como não o faz a lingüística — o sujeito, ao mesmo tempo em que õHes-centra, isto é, não o considera fonte e responsável do sentido que produz, embora o cOnsidere como parte desse pro cesso" de produção. Tampouco o sentido se apresenta como transparente (Orlandi, 1987). Como diz P. Henry (1985): ( . . . ) não há fato ou acontecimento histórico que não faça sentido, que não espere interpretação, que não peça que se lhe encontrem causas e conseqüências. É isto que constitui, para nós, a história; esse jazer sentido, mesmo que se possa divergir desse sentido em cada caso. Essa concepção de história inerente à AD ultrapassou em muito a de cronologia (diacronia etc.) e a de uso (pragmática). E a linguagem é sentido e a história faz sentido. O ponto nodal é a semântica (Pêcheux, 1975), que, se como diz P. Henry, é uma questão aberta, pois é uma questão filosófica, também é uma questão que coloca o analista da linguagem no domínio da ética e da política. 29 A questão do histórico se liga assim à da linguagem, à do sujeito e à da ciência, em nosso caso, as ciências humanas e sociais. Por outro lado, pensando a questão da produção de sentidos em relação ao domínio da ética e da política, podemos aí inscrever a questão da AD para a América Latina. Basta-nos lembrar que a produção^de conhecimento da América Latina sobre a América Latina pode adquirir uma forma crítica de modo a não ser mera reprodução do olhar europeu ou norte- americano e assim por diante. Na prática, isto significaria repro duzir apenas os modelos e teorias, preenchendo-os com dados “específicos’ para engordar os paradigmas já definidos lá fora. Ao contrário, essa outra forma de conhecimento de que estamos falando pode, entre outras coisas, contribuir, em seu modo, para o conjunto de reflexões que compõem a história das ciências. Assim, podemos dizer que, nesse processo discursivo que analisamos, há uma equivalência entre o “como o brasileiro é dito” e a “prática de um conhecimento”, ou, dito de maneira mais direta, o “como o brasileiro é dito” importa e determina a prática de um conhecimento. ~ Voltemos, pois, às~considerações sobre o discursivo. A AD já tem sua história marcada por uma certa unidade que conjuga, no entanto, muitas diferenças. Seu desenvolvimento é marcado por rupturas: a) políticas: entre as diferentes “esquerdas” (anos 60-70); b) na relação direta dos intelectuais com a política; c) entre a prática política e o trabalho teórico. É 0 que diz Courtine, (1986), acrescentando que, no início, a AD estava ligada ao desenvolvimento do pensamento crítico, então identificado ao marxismo e fazendo da lingüística uma referência metodológica essencial na análise de textos. Visto que aparece como tentativa de apreender as formas textuais do polí- .tico, ela certamente sofrerá conseqüências desde o momento em que se trata de viver, como é o caso, os “efeitos do desejo de que não exista mais o político” (Courtine, idem). Essa questão é ainda mais relevante numa área de reflexão em que a “objetividade” do conhecimento sempre expulsou o político de suas proximidades: a área da lingüística, que nem sequer admitiu a contradição, ou a dialética e, no seu cientifi- cismo, passa direto do racionalismo para o positivismo. 30 Os signos do refluxqjio político são muitos. Interessam-nosos da acacEmia: o_ silêncio dos intelectuais, a indiferença, o voltar-se para si mesmo, a renovação do individualismo, que se desdobra em um espaço considerado politicamente vazio. O "fim” do político marca a “emergência” de um duplo esqueci mento: “o recobrimento da relação de dominação política e o esquecimento do movimento do pensamento que se extenuou na análise da dominação política e não tratou de outras” (Courtine, Ibid.). Essa vontade de esquecimento toma, na política, a forma do "pragmatismo”, esse "reflexo de uma sociedade que não tem mais tempo de se lembrar e de meditar” (Horkheimer, apud Courtine, ibid.). Que forma toma essa vontade nas ciências humanas? • O valor operacional, prático, instrumental apaga seu valor crítico; • A observação suplanta os saberes gerais; • O fato desqualifica a interpretação; • O especialista se alça frente ao intelectual; • Os pesquisadores se afastam das alturas das idéias e reencon tram 0 solo firme das coisas e os rigores do cálculo. Em suma, o desejo de que não haja máis o político, diz Courtine (ibidem), se “encarna em uma razão disciplinar e ins trumental: a renovação do positivismo”. Isto fez com que a AD 8C tornasse uma prática dividida entre uma função crítica e uma função instrumental. Em sua função crítica, a AD intenoga a própria existência dus disciplinas, desterritorializando-as. Mas, ao mesmo tempo cni que o faz, constrói seus procedimentos, delimita seu objeto c tende, ela mesma, a se territorializar. Isso, para alguns, para aqueles que só reconhecem e exercem u™a ciência em solo firme, ou seja, quando ela fala sobre si como ciência. Para outros, a expansão de termos — como interdiscurso, formação discursiva — ou de princípios teóricos — como o de 8c afirmar que nem a linguagem nem o sujeito são transparen tes — que aparecem nas reflexões atuais, não como urii dispo sitivo teórico global mas ponto-a-ponto (Gadet, 1990), são a marca da AD na reflexão sobre a linguagem. Essa reflexão esta 31 belece que o sentido deve ser apreendido ao mesmo tempo na língua e na sociedade. Isso, se pensamos a Europa. Quanto à América Latina, a questão da AD é ainda mais viva e expressiva. Logicismo e sociologismo, diz Pêcheux (e Gadet, 1977), decorrem da filosofia espontânea que acompanha a lingüística, constituindo duas formas específicas de denegação do político. A tendência logicista nega o político falando aparentemente de outra coisa, enquanto que o sociologismo o rejeita falando, ou acreditando falar, justamente dele. A tendência lógico-forma- lista parece se desdobrar na região das “ idéias puras”, longe de quaisquer outras considerações. A sociolingüística se desenvolve depois da guerra fria, ligada a fenômenos que é interessante observar. Um deles é a evolução do que se convencionou chamar Terceiro Mundo. A transformação parcial do colonialismo clás sico em neocolonialismo trouxe a questão política da distância científico-técnica a ser absorvida. Nesse quadro se colocam as questões sociolingüísticas do multilingüísmo e da estandardiza- ção das línguas nacionais. O outro fenômeno é o desenvolvimen to das contradições nas instituições escolares dos países mais desenvolvidos com diferentes formas de escolarização de massas, acarretando problemas de fracasso escolar. Há um progressismo na sociolingüística que pretende con tribuir para resolver essas dificuldades e suprimir desigualdades. É um humanismo. Mudar de terreno, nesse caso, é antes de tudo reconhecer que as dificuldades e desigualdades não são “ imperfeições” das sociedades industriais, mas são estruturais, são inerentes à essên cia mesma da sociedade capitalista. Mudar de terreno é falar em relações de produção e não em “relações sociais”. • • O logicismo recobre a questão do Estado, considerando as determinações jurídico-políticas inscritas no funcionamento do aparelho de Estado como se se tratasse de propriedades psico lógicas e morais inerentes a uma natureza humana universal e eterna; • O sociologismo recobre também a questão do Estado, substi tuindo a análise das relações de produção por uma teoria das relações sociais que é na realidade uma psicossociologia das 32 M-liiçôed interindividuais (status, papel, prestígio, atitude, mo- ilviicfio). Por isso, essas tendências não têm nada a dizer a respeito ilu neocolonialismo que não tem a concretude psicossocial das rvliiçOes de parentesco, de idade, de sexo, de raça, de nível uillural. Mudar de terreno é tomar uma posição teórica face à ques- iflo du forma-sujeito de direito e da subjetividade moral-psicoló- kIcii que a envolve. A noção de discurso e de FD desempenha i HNC papel de desubjetivação da teoria da linguagem. Essas nossas considerações nos permitem situar a natureza ilii AD na América Latina. Pela sua história cisionista e pelos pressupostos de sua leoiia que tem uma relação fundamental com o político, a AD permite à reflexão sobre a linguagem levar em conta as especi- ricldndes histórico-políticas dos diferentes contextos em que se iloscnvolve. Assim, o modo como a AD se desenvolve na América Latina IKiclc, e deve, ser diverso daquele com o qual esta se desen volveu na França. Ê isso que eu expressaria dizendo que a AD, «n somos conseqüentes com seus pressupostos, ao mesmo tempo i in que produz uma certa forma de conhecimento, nos obriga II uma tomada de posição frente à história das ciências. Se, de um lado, tudo é político e, de outro, se tem pro- iiiriido minimizar ou desprezar a importância do político, não é menos verdade que hoje é mais ou menos claro para todo inte lectual que o que ele produz como conhecimento é submetido |tt dc saída a tensões que nascem de embates que nada têm a ver com a pretensa neutralidade da ciência, mas com as relações ilc lorça que presidem um imaginário social como o nosso. A luta pela aceitação ou não, pela legitimidade ou não, de mii trabalho, quando se ultrapassa o mero lance do tráfico de prestígios acadêmicos, representa justamente o_higar em que se flioctim o poder de dizer e o seu parceiro, o silenciamento. E, se pensamos a América Latina em relaçãp aos outros nmtincntès, podemos observar um grande vigor no confronto ilessHfl posições. Reagimos muito bem aos processos de exclusão a que esta mos submetidos há séculos e que nos deram como herança o pa- 33 ternalismo e o exotismo (o “dever” de termos certas "singulari dades”), como seres "culturais” que apresentamos particulari dades às vezes atraentes, às vezes marcadas pela barbárie. Não se trata de não estabelecermos relação alguma com outros centros de produção de conhecimento, voltar as costas e des-conhecer. Trata-se de estabelecer uma relação em que pro curamos nos situar criticamente em certas regiões de sentidos, não impô-los, mas sustentá-los em nossas relações intelectuais com 0 que não é a América Latina. A AD, nessa forma crítica de relação com o modo de pro dução do conhecimento, nos permite uma primeira contribuição: 0 da crítica a propósito da utilização de certos modelos de aná lise de língua. Por exemplo, os modelos de análise de línguas indígenas são aqueles que, embora se inscrevam na antropologia lingüística, perpetuam a indiferenciação ou, mais que isso, pro movem o apagamento e a remissão do diferente ao mesmo, isto é, 0 apagamento da especificidade das línguas indígenas em relação às línguas ocidentais (o inglês, o latim etc.). Desse modo, a descrição (com a chancela da ciência) se sobrepõe a questões cruciais que se inscrevem numa política da língua. Um exemplo flagrante é o do Summer Institute of Lin- guistics (Summer ou SIL). Essa entidade, que se apresenta sob a dupla forma (Orlandi, 1987) lingüístico-religiosa, promove a exclusão dos brasileiros do campo de pesquisadores pela impo sição de um modelo equívoco, o do Summer, que traz o pres tígio dos padrões da ciência norte-americana de produção “uni versal” do saber, enquanto pratica atividades missionárias. E, a maislongo prazo, na história, temos os relatos que são tomados como documentos, enquanto se impõem como modelos de ciência: como história, como etnografia, como lingüística. Procuramos deslocar isso propondo uma desconstrução, através do método da AD, considerando os documentos não como do- cumentosjnas c ^ o discurso. Expor “o olhar-leitor à opacidade” significa ler nesses relatos tanto a construção de ojitros sentidos para a história, como compreender o que~slgnífica a cndificaçãn do conhecimento^etnografico, jssim como a forma histórica em que se dá a relação do tupi com o português. Se, para o europeu, os relatos dos missionários são tomados como artefatos que integram seus objetivos científicos em sua 34 tradição, para nós são uma forma de nos passar a limpo em uma história contada por europeus para europeus. O modo de produção de conhecimento latino-americano, quando se faz de forma crítica, implica, insistimos, em uma to mada de posição frente à história das ciências. Isso implica não apenas em se deslocar o texto, mas em reconhecer que as rela ções de força que presidem a produção de sentidos se dá em “outro” lugar. O deslocamento, pois, se faz desse outro lugar, de “ lá”, do científico. Como dissemos, o brasileiro se cria pelo fato de fazer fala- lem os outros. Há um espaço de diferença. O português se fala do lugar próprio; o brasileiro é deslocamento de falas. Nesse deslocamento — e são vários os modos de apreen dê-lo, de explicitá-lo e de interpretá-lo — joga fortemente o fato de que a fala de nossas origens é a fala do conhecimento: é o discurso que dá conta, que classifica (taxonomia) e explica (etno logia) o Novo Mundo. Os discursos dos missionários que, pelas suas condições, são da ordem do religioso, deslizam assim politicamente do religioso para o etnológico e, ao se deslocarem, produzem um resíduo. Este resíduo é o que dá os efeitos de sentido desse jogo de dis cursos: silenciam aspectos cruciais da nossa história. E insistimos no sentido particular do que é a história para 0 analista de discurso. Ah istória estájgada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza tendo como parâmetro as rela ções de poder e de sentidos, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder (a política). Assim, a relação da AD com o texto não é extrair O sentido, mas apreender a sua historicidade, o que significa se colocar no interior de uma relação de confronto de sentidos. A relação com a história é dupla: o discurso é histórico porque se produz em condições determinadas e projeta-se no “futuro”, mas também é histórico porque cria tradição, passado, c influencia novos acontecimentos. Atua sobre a linguagem e opera no plano da ideologia, que não é assim mera percepção do mundo ou representação do real. O que a AD faz com respeito a isso é explicitar o funcio- iininento do discurso em suas determinações históricas, pela Ideologia. Quanto à ideologia, é ainda em relação ao poder que «'In é considerada na perspectiva discursiva. 35 Mesmo sendo necessária à concepção de discurso — não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia —, não é tal como ela se define no campo das ciências sociais que a con cebemos. Não partimos da ideologia (como dissimulação, ou não, do real) para o sentido, mas procuramos compreender os efeitos de sentido a partir do fato de que é no discurso que se configura a relação da língua com a ideologia. Sujeito e linguagem encontram a sua unicidade na sua rela ção mútua: o sujeito não tem unicidade, produz unicidade na sua relação com a linguagem; do mesmo modo a linguagem também não a tem, e é só relativamente ao sujeito que ela se apresenta assim. E o que há nessa relação é uma organização para um fim. Que só se produz nessa articulação (linguagem- sujeito). Esse é um dos efeitos ideológicos elementares constitu tivos do discurso: o efeito de unicidade do sujeito e da lingua gem. Nessa perspectiva, a ideologia pode ser compreendida como a direção nos processos de significação, direção esta que se sustenta no fato de que o imaginário que institui as relações discursivas (em uma palavra, o discursivo) é político. As evidências são assim cristalizações, produto naturaliza do, e só podem sê-lo pela relação da história com o poder. Finalmente, podemos dizer que a ideologia não é dissimu lação mas interprjtaçãq_ào sentido (em uma direção). Não se reláciõha à falta mas, ao contrário, ao excesso: é o preenchimen to, a saturação, a completude que produz o efeito ^ evidência, pnr^ie se assenta sobre o mesmo, o já-lá. Então é isto a ideologia, na perspectiva do discurso: há uma injunção à interpretação, já que o homem na sua relação com a realidade natural e social não pode não significar; condenado a significar, essa interpretação não é qualquer uma, pois é sempre regida por condições de produção de sentidos específicos e deter minados na história da sociedade. O processo ideológico, no discursivo, está justamente nessa injunção a uma interpretação que se apresenta sempre como a interpretação. Esse é um dos princípios básicos do funcionamento da ideologia, apreendido pelo discurso. A AD, entretanto, procura ver o sentido como o possível (não-preenchido), sendo assim uma abordagem crítica da ideo logia. 36 Com efeito, a relação entre imaginário e simbólico se apre senta, dessa perspectiva, com a seguinte forma: o simbólico funciona sob o modo do como-se-fosse e o imaginário sob o modo do faz-de-conta, mas, suspendendo, ao mesmo tempo, a relação da produção de sentido com o “seu lugar” para levá-lo para “outro” como se fosse o próprio. Apaga assim a materiali dade das condições de produção. É, pois, a interpretação que atribui sentido de um lugar só, “universalizado”. O que nos leva a finalizar essa parte afirmando que fala-se religiosamente sobre o Brasil do lugar da etnografia como se este fosse o seu lugar próprio. E é esse o processo ideológico que constitui os discursos da des-coberta em seu jogo de sentidos. O discurso histórico estabiliza a memória. Ao se negar, na ordem dos discursos, um discurso histórico sobre o Brasil,* ou seja. o estatuto do “memorável”, se desqualifica o Brasil como lugar específico de instituição de sentidos. Produz-se um dis curso etnográfico, parte da história européia, esta sim como uma história, ou melhor a História, a verdadeira, a única. 1. Consideramos que os “discursos sobre” são uma das formas cruciais da institucionalização dos senüdos. É no “discurso sobre” que se Irubalha o conceito da polifonia. Ou seja, o “discurso sobre" é-um lugar Importante para organizar as diferentes vozes (dos discursos de). Assim, U discurso sobre o samba, o discurso sobre o cinema é parte integrante (lu arregimentação (interpretação) dos sentidos do discurso do samba, do cinema etc. O mesmo se passa com o discurso sobre o Brasil (no domínio du história). Ele organiza, disciplina a memória e a reduz. 37 II. Não 0 Outro. Mas o Diferente A reflexão sobre o "outro”, como constitutivo, parte da teo ria da enunciação e, com alguma extensão, se relaciona, sob a influência da psicanálise (o inconsciente), à questão do sujeito, materialmente ligada à questão da ideologia (o des-conhecimen- to). Um princípio geral da linguagem, agora menos marcado por esta ou aquela disciplina, vem coroar a presença do "outro” como constitutiva da fala de qualquer sujeito: a dialogia. Entendida amplamente, apenas como conversa, passando a ser referida com mais profundidade teórica como interação e chegando mesmo a ser entendida como confronto, a dialogia acabou por encerrar a reflexão da linguagem em malhas estreitas. Não há mais solidão possível, não há descontrole na lin guagem: a relação com o “outro” regula tudo, preenche tudo, explica tudo, tanto o sujeito como o sentido. Gostaríamos de colocar nossas reservas a essa “onipotên cia” do conceito de dialogia e, através dele, à concepção mesmade enunciação, ou à expansão, eu diria, desmedida desse con ceito. No interior da teoria do discurso há um conceito que trouxe uma maior especificidade a essas noções: é o conceito de “hete- rogeneidade” (J. Authier, 1984). 38 A heterogeneidade constitutiva ü . Authier, idem) diz que "constituriyamente, sujeito„ em seu,discurso», há o Qutro”. É a idéia de que o sujeito da linguagem é determinado pela sua Itilação com a exterior idade: é um sujeito des-centrado, dividido, essa divisão tendo um caráter estrutural ou estruturante. A hete- «jgeneidade mostrada é coisa já diferente: as suas formas são aquelas pelas quais se altera a unicidade aparente do fio do discurso, pois elas aí inscrevem o “outro”. Essas formas repre sentam “uma negociação com as forças centrífugas, de desagre gação, da heterogeneidade constitutiva: elas constroem, no des conhecimento desta, uma representação da enunciação que, por ser ilusória, é uma proteção necessária para que um discurso seja mantido” (J. Authier, idem). Por elas, o sujeito se apresenta como tendo domínio do que é seu e do que é do outro, no “seu” dizer. Como diz essa autora: “face ao ‘isso-fala’ da heterogenei- (Inde constitutiva responde através dos ‘como-diz-outro’ e o ‘se- me-é-permitido-dizer’ da heterogeneidade mostrada” (ibid.). Formulada desse modo, a heterogeneidade coloca em pauta 0 visível (mostrado), que, na perspectiva do discurso, correspon de ao “dizível”. Na análise de discurso, o dizível é definido, para o sujeito, pda relação entre formações discursivas (FDs) distintas. Cada FD define o que pode e deve ser dito a partir de \ima posição do sujeito, em uma certa conjuntura. O complexo (liiH formações discursivas, em seu conjunto, define o universo ilo "dizível” e especifica, em suas diferenças, o limite do dizer pura os sujeitos em suas distintas posições (remissíveis à dife rentes FDs). Esse jogo de FDs remete o texto à sua exterioridade, isto é, /I relação com o interdiscurso,^ com o Outro. O que chamamos liiíerdiscurso é definido justamente como o complexo de FDs à dominante. Ele representa o domínio do “saber”, da memória (In FD. É no míerdiscurso que se constitui o dizer, sendo a noção de f')7/rflflisr:Tirsn reservada não à constituição^mas à fortmlação, itii seja, à produção efetiva, circunstianciad a e relativa a um eunlcxto específico de uma séqüência discursiva concreta. I. o interdiscurso corresponde ao “isso-fala", o sentido já-lá. 19 A relação do intradiscurso com o interdiscurso é que remete o dizer do sujeito ao Outro constitutivo (o interdiscurso: a me mória do sentido, o repetível): falamos com palavras que já têm sentido. É aí que se insere, para nós, a questão da heterogeneidade, ou melhor, da diferença. Embora a noção de heterogeneidade, tal como é formulada por J. Authier, problematize a noção de enunciação e seus efeitos ilusórios, é uma noção que trabalha muito com a “formulação” (cf. Courtine, 1982) e pouco com a “constituição” do sentido, ou seja, com a historicidade do discurso no sentido lato (inter discurso). E é essa dimensão que nos interessa. Daí uma das razões de preferirmos a noção de diferença à de heterogeneidade. Na concepção de J. Authier, a heterogeneidade aparece mais como uma mistura (a+b), sendo a e b distintos e recuperáveis (de certo modo dados, homogeneizáveis). A ilusão do sujeito de estar na origem do sentido tem marcas lingüísticas que permitem recuperar o seu processo. A possibilidade de “explicação” re sulta, em grande medida, da recuperação da homogeneidade. Apesar do salto teórico, a noção de heterogeneidade convive com 0 paradigma do lingüístico como nuclear: o visível, a uni dade. Para nós, o que existe é uma combinação ab; não se re cupera a origem. São só efeitos que estão lá. Não se detectam os elementos como componentes {a e b); se os reconstrói pelo jogo das diferentes formações discursivas. Logo, a ilusão só é dizível pela teoria e não pelas marcas, pois a heterogeneidade constitutiva não é representável, já que ela é do escopo do in^r- discurso. ' Além disso, a noção de heterogeneidade não considera a natureza da relação entre diferentes. Acreditamos que isso se dá pelo compromisso dessa noção com a enunciação. Ao fazer entrar a noção de enunciação, pelo mesmo movimento, se expulsa a de contradição e se reduz a importância do histórico e, de certo modo, reproduz-se a divisão: de um lado, as sistematicidades, de outro a obscuridade e a desordem. No entanto, o trabalho de J. Authier traz um deslocamento importante ao modo como se considera a enunciação, pois a heterogeneidade refere o “enunciável” e não apenas o “grama tical”. Além disso, refere a produção do sujeito à ilusão necessá 40 ria e constitutiva do seu modo de enunciação. Produz, no dizível, um recorte importante: não o que não se diz (o não-dito de O- Ducrot), mas o dizer do outro no um. Esses deslocamentos são fundamentais, embora não sufi cientes para tratar, na questão da diferença, o que consideramos purticularmente sob a rubrica do silêncio. Para nós, falar é o C|ue, em francês, ̂se pode dizer-“ inter-dire’’: a) dizeç entre outras iralavras (o que seria a heterogeneidade), mas também b) proibir, tipagar outras palavras (0 que é mais propriamente o que cha mamos silêncio). Esta última é esquecida na noção de hetero geneidade. Em nossa perspectiva, há um jogo de “transparências” (evi- clfincias, efeitos de discurso) que permeiam a produção dos sen- lidos e aos sujeitos na relação com o outro, resultando parado- xulmente na obscuridade dos limites dos sentidos e dos sujeitos. Daí a importância metodológica da noção de paráfrase: por cia se pode observar a relação entre diferentes, tanto no interior clus mesmas formações discursivas, como entre distintas forma- ÇficB discursivas, pois são todas elas relações de paráfrase. Na diferença, um é diferente do outro. Estão na mesma distância e é no movimento entre um e outro que podemos iil)i-eender as suas relações. Não é um o modelo e o outro a t'ópia. Não se trata de considerar um primeiro e um segundo (hicrarquizada e reguladamente), nem tampouco dois iguais e «c|)arados claramente entre si, em si. O jogo de paráfrases é que dá as distâncias (relativas) dos síiitidos na relação de diferentes formações discursivas. Pelas iniráfrases, os sentidos (e os sujeitos) se aproximam e se afastam. Cuiifuiidem-se e se distinguem. íí isso 0 que se percebe se, ao invés de se tomar como | |•íerôllcia (na produção do sentido) o sujeito centrado em si iiiciimo, pensa-se o jogo de relações entre formações discursivas dircrcntes. 0 conceito de heterogeneidade, dP-certo níodo, domestica n iioçSo de diferença, pois "ela rege a con-fusão entre os diferen- icR. Para a noção de diferença como a pensamos, por exemplo, fin relação ao discurso da colonização, com suas diferentes luriiiuções discursivas, não é possível fazê-lo. Os sentidos circulam. Os processos de produção sao encon- II mios através dos jogos de paráfrases e das formações discursi- 41 vas. Inscrever um sentido na relação das diferentes formações discursivas, encontrar o seu lugar, o seu modo de significar, é o trabalho do analista do discurso. Considerando-se que a relação com a alteridade, longe de ser direta, unívoca e clara, é con-fusa e des-organizadora do sujeito, podemos prever o esforço teórico e analítico que esse trabalho exige. O analista tem, pois, antes de tudo, que consi derar a des-organização das relações entre eu e tu. À nlo-comunicação — que, como afirma Pêcheux, é igual mente constitutiva da linguagem — corresponde um movimento de identidades, função da ijiçompletude do sujeito e do sentido. Movimento que desemboca na des-organização dessa relação, já que ela é da ordem do inconsciente e do ideológico. Há um des-controle nessas relações. E ao des-controle, à des-organização, à di-fusão, à con-fusão corresponde, a meu ver, não o heterogêneo mas a diferença: o silêncio(e não o implícito) como constitutivo, onde a metáfora tem o estatuto não do desvio mas do lugar da necessidade do sentido (que circula) e enfim a paráfrase como matriz em que o um remete ao outro mas sem porto originário (ou seguro). O sentido não_tem origem, Não há origem do sentido nem no sujeito (onto) nem na história (filo).„ Ó que há são efeitos de sentido. Comó“"dissemos, 4iara. dar conta da exterioridade que cons titui 0 discurso, é preciso apreender as relações entre formações discursivBis. Essas„ relações, representantes da relação cõm_ a / éxterioridade, se remetem ao interdiscurso, sendo este definido \comó o lugar de constituição dos sentidos, a verticalidade (do mínio da..memória) do dizer_ que retoma sob a forma do pré- cónstruído, o já-dito. ^Podemos dizer que a relação entre as formações discursivas é “soldada” pela existência do interdiscurso. E a exterioridade que consideramos como constitutiva só se define em função do interdiscurso, ou melhor, essa exterioridade tem o seu modo de existência definido pelo interdiscurso. FDi / FD, INTERDISCURSO EXTERIORIDADE 42 Assim, há uma relação entre limites de diferentes formações discursivas que atesta a relação do discurso com a sua exterio ridade. Isso é marcado pelo interdiscurso e seu modo de fun cionamento (o pré-construído) que atesta, por seu lado, a presen ça no inter (o já-dito) no intradiscurso, sendo este a seqüência que se está efetivamente realizando (formulando). £ nessa linha de reflexão, pois, que pensamos a questão da heterogeneidade e da diferença: todo discurso atesta sua relação com outros (que ele exclui, ou inclui, ou pressupõe etc.) e com o interdiscurso (que o determina). Vejamos, agora, o que se passa quando pensamos o sentido quanto: a ) à natureza do processo de sua produção; b) ao espaço; c) ao tempo. a) Essa natureza está — esse é um nosso princípio desde 0 início de nossa reflexão em AD —, essa natureza está na relação entre “paráfrase” e “polissemia”, o que, em outra lin guagem, se diz o “mesmo” e, o “diferente” (o “outro”). Agora niio vendo mais, como víamos, em primeiro plano, apenas a tensão entre esses dois processos mas também a con-fusão entre cies. Confusos, pois obscuros e transparentes, misturados ou combinados, difusos ou dispersos. O “mesmo” e o “diferente” hl vezes não são passíveis de distinção no discurso. b) O espaço em que se espraiam os sentidos é o da. multi plicidade, da largueza mas também da truncação: um sentido se (Icndubra em outro, em outros: ou se emaranha no seu mesmo e ilcle não se solta. Fica à deriva. Se perde em seu mesmo ou se imiiliplica. c) O tempo é 0 da fugacidade. O sentido não se deixa pcgiir. Instável, errático. O sentido não dura, O que dura é seu "iiiviibouço”, a instituição que o fixa e o eterniza. Ele, no en- uiiilo, SC move em outros lugares. Aí retornamos à distinção cópia/simulacro. A cópia: o mes- iiiu II partir de uma origem. O simulacro: a diferença sèm fundo. MliiiiçAo particular de significação em que jogam o sentido e o 43 seu duplo: in diferença, in-significância, in-disciplina, in-cons- tância. Nesse nosso modo de ver, o sentido seria, em grande medida, des-controlado. Discursos como o discurso das descobertas se riam uma forma de controlá-lo. Aí o jogo da paráfrase e da metáfora atua fundamente no estabelecimento do um, do mesmo e da permanência do sentido. É nesse plano que é útil a noção de Instituição tal como é trabalhada por Foucaidt: lugar da regularidade, da normativi- ' dade que preside o discurso. O funcionamento dessa regularidade podé ser apreciado, no discursivo, pelo movimento que articula metáfora e paráfrase. A metáfora, que é condição de uso da linguagem, diz do uso de uma palavra por outra. A paráfrase é 0 uso do diferente no mesmo, do outro no um. Repetiçm A relação entre metáfora e paráfrase pode nos dar a larga dimensão do “sem fundo” do sentido. A verticalidade (o inter- discurso, 0 repetível), ao mesmo tempo, fixa e desmancha qual quer origem. O assuieitamento supõe a repetição. Há o repetível dos fenuncíãdõs, ínas também há enunciados ^ u e são feitos para serem repetidos (“O Brasil foi descoberto por Pedro Alvares 'Cabral”, “Nessa terra, em se plantando, tudo dá”); ou melhor, há enunciados que pertencem a essa zona de repetibilidade e que aí se representam na produção dos discursos. Há modos de se produzir esse efeito do repetível. Por exem plo, falar sobre o “outro” para instituir a imagem de “ si”, cria sua tradição (sou-sempre-já), além de sua imagem (como deve ser). O pré-construído (o já-dito) em seu retorno produz a inter- incompreensão (desconstrução do “outro”) num movimento de concentração de sentidos. Esse é o sentido radical da instituição na linguagem. É assim que o sentido ganha “corpo” como história, nessa relação tensa entre o fixar-se e o transmudar-se. 44 III. Civilizado e Cultura A noção de “civilização”, diz N. Elias (1973), se liga “a liados variados: ao grau de evolução técnica, às regras do saber- viver, ao desenvolvimento do conhecimento científico, às idéias c usos religiosos”. Mas, se a gente pensa a função geral dessa iioção, descobre algo muito simples, ou seja, “a expressão da consciência ocidental, se poderia dizer, o sentimento nacional ocidental”. Podemos perguntar, desse outro lado do Atlântico, como cHSa função geral “molda”, modela”, mesmo aqueles que não i‘Mão no centro de irradiação da “civilização”? Aí é interessante observar qué junto à noção de civilização lií outra, a de “cultura” e que distingue nações do Ocidente. Segundo esse mesmo autor (N. Elias, idem), se nota a diferença ciilre 0 uso que fazem da noção da civilização, de um lado, os I rlinceses e ingleses e, de outro, os alemães. Nos primeiros, essa iitíçSo resume “orgulho da nação, progresso do Ocidente e da liiinianidade em geral”, mas, para os alemães, civilização designa iilgu útil porém de importância secundária. Para exprimir o i'<‘Hiilho de suas civilizações e de sua própria natureza,' eles em- picgam a palavra “cultura”. 45 Daí 0 autor conclui que a noção de “civilização” apaga até certo ponto as diferenças dos povos, coloca a ênfase naquilo que, na sensibilidade daqueles que se servem dela, é comum a todos os homens ou ao menos deveria sê-lo (grifo nosso). Exprime a auto-satisfação dos povos cujas fronteiras nacio nais e as características específicas não são mais, há séculos, colocadas em questão, pois já estão definitivamente fixadas, povos que há muito já foram além de suas fronteiras e realiza ram atividades colonizadoras. A noção de “cultura” não se tinge desse expansionismo e remete a um sentido de limites, de “interno”: “reflete a cons ciência de uma nação (no caso, a Alemanha) obrigada a se perguntar continuamente em que consiste seu caráter específico, em procurar e consolidar sem cessar suas fronteiras pohticas e espirituais”. Na divisão das perspectivas européias, civilização se liga a idéia de processo e cultura à de produto. Daí decorre o militantismo embutido na noção de civiliza ção. Daí a catequese, o universalismo religioso (“todos” os homens etc.). Essa divisão — civilização/cultura — transplantada para o colonizado se instala, no mínimo, em uma contradição. Nós, submetidos aos desígnios (dever ser) da civilização ocidental, somos seres culturais, sobretudo quando resistimos em nossas diferenças, mas para isso perdemos a possibilidade de termos uma história. Já que é pela parcela que nos cabe na civilização ocidental que somos contados em uma história (a da coloni zação). Voltamos pois à questão da identidade. Nossa concepção (como poderá ser observada nos diferentes escritos sobre identidade no contato) é a de que a identidade é um movimento, tanto no seu modo de funcionamento (entre o eu e o outro) como em sua historicidade (devir, mas também multiplicidade na contemporaneidade etc.). Quem é o brasileiro? Onde termina o índio (no contato), o português(na colonização), o italiano (nos movimentos migra tórios) e começa o brasileiro? Há situações interessantes que merecem nossa atenção no estudo desses câsos-limites, como se poderá observar no corpo deste livro. 46 o europeu nos çx>nstrói como seu “outro” mas, ao mesmo tempo, nos apaga. Somos o “outro”, mas o outro “excluído”, sem semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se colocam na posição de serem nosso “outro^E les são sempre p “centro”, dado 0 diicurso das des-cobertas que é um discurso sem rever- sibilidade. Nós é que os temos como nossos “outros” absolutos, E nossa postura, aqui, não é estacionar no discurso que “define” o brasileiro e parar assim na sua definição (é “x”, ou 6 “y”), mas pensar esse discurso que define o brasileiro como um “sintoma”, como um discurso que é constitutivo dos pro cessos de significação que constituem o imaginário pelo qual se rege a nossa sociedade, ou seja, como ela nos significa. Pro curamos, assim, atingir o modo de produção disso que funciona como “evidências” em nosso sentimento de brasilidade, isso que se dá como “ideologia”. Nosso objetivo não é falar da “constituição da identidade”, mas antes do imaginário que se constrói para a significação do l)i'asileiro. Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como essa concepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação (Ic certos sentidos, efeitos de sentidos que produzem um imagi nário que coloca no brasileiro uma marca de nascença que fun cionará ao longo de toda a sua história: o discurso colonialista. O que significa “ter sido” colonizado em um discurso que íunciona para que seja essa uma marca a-histórica e de essência. Por aí vemos que a ideologia não “aparece” em um passe de mágica. Ela tem uma materialidade e o discurso é o lugar cm que tm os acesso a essa materialidade. Processos de discurso vão provendo o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginá rio da sociedade brasileira. O efeito ideológico — colonialista — não nasce do nada. Sun materialidade específica é o discurso. Em nosso caso veremos como, pela determinação histórica (lo8 processos de produção de sentidos sobre o _brasilêíro, se çonstitui (sé^fixa) a relação colonizador-colonizado. De tal forma que, mesmo, depois dp período colonial, a marca de nascença do brasileiro se reproduz toda vez que se instalam, nas relações, im condições para que esse mesmo discurso Colonialista se realize (reforne) 47 Veremos como esses efeitos se produzem através de um jogo entre formas de discurso: a) o discurso de nossa história (nossa origem) é o discurso missionário que, por sua vez, regido pelo religioso, produz entretanto uma etnografia, elidindo a his tória; b) por outro lado, ainda mostrando a dominância do discurso do conhecimento, o discurso sobre as línguas e sobre nomes de lugares, objetos e fatos é um discurso científico: o discurso lingüístico. Com a característica importante de que, ao falar de “nossas” coisas, se ressaltam sempre as suas “particularidades” (singula ridades). Resulta que nós brasileiros spinos singulares. Somos singu lares em relação a quê, a quem?, à um padrãn-lá. O outro- europeu. ^ discurso da singularidade é o discurso da cultura (dominado pelo da “civlização”), que a-historici^ Fica sempre" como se só nós tivéssemos um “ outro” . O nosso outro é o português, o italiano, o francês etc. Como nos constroem uma história em que somos apagados como alteridade, somos apenas “singulares”, temos “particularidades”. Não somos 0 outro constitutivo porque não “somos” (seres históricos etc.). Em suma, vemos o discurso que define o brasileiro como constitutivo dos processos de significação — indefinidamente em circulação — do imaginário constituído por uma sociedade como a nossa. Nessas condições, não é o discurso do Brasil que define o brasileiro, é o discurso sobre o Brasil. ^*u ' ------ E como é que o brasileiro, nas malha^ do discurso colo nialista, produz os seus sentidos? 48 IV. Silêncio e Sentido Também o que não é falado significa. Seria banal esta afir mação se ela apenas indicasse na direção do não-dito entendido como implícito: aquilo que não se diz mas que faz necessaria mente parte do que é dito (cf. Ducrot, 1972). Em minhas reflexões tenho-me dedicado a compreender uma outra vertente do não-dito, a do silêncio. Esta se origina II0 fato de que a linguagem é política* e que todo poder se iicompanha de um silêncio, em seu trabalho simbólico. É o que lenho chamado “política do silêncio”, que, aliás, se subdivide em duas formas de exercício da significação: ii) O silêncio constitutivo, ou seja, a parte do sentido que ne- cessariajnente se sacrifica, se apaga, ao se dizer. Toda fala silencia necessariamente. A atividade de nomear é bem ilus trativa: toda denominação circunscreve o sentidò do nomea do, rejeitando para o não-sentido tudo o que nele- Oão está dito; 1. A linguagem é política porque o sentido sempre tem uma,direção, lempre dividido. 49 b) O silêncio local: do tipo da censura e similares; esse silêncio é que é produzido ao se~proibir ãlgUns sentidos drcircularem, por exemplo, numa forma dé regime político, num grupo social determinado de uma forma de sociedade específica etc. Nós nos temos dedicado ao estudo das diferentes formas de silêncio e de silenciamento, já que partimos do pressuposto de que, assim como a linguagem, o silêncio não é transparente e significa multiplamente (Orlandi, 1985, 1988 e 1989). Nessa perspectiva histórica de nossa análise discursiva dos discursos sobre o Brasil — ou, o que dá no mesmo, análise da produção dos diferentes sentidos da brasilidade — o silêncio nos tem aparecido como nuclear na determinação histórica desses processos de significação que estamos procurando detectar. O discurso sobre o Brasil ou determina o lugar de que devem falar os brasileiros ou não lhes dá voz, sejam os nativos habitantes (os índios), sejam os que vão-se formando ao longo da nossa história. O brasileiro não fala, é falado. E tanto há um silêncio sobre ele, como ele mesmo significa silenciosamente, sem que os sentidos produzidos por essas formas de silêncio sejam menos determinantes do que as falas “positivas” que se fazem ouvir categoricamente. Mas, como o silêncio não fala, não é possível traduzi-lo em palavras. Desse modo, em nosso trabalho, são os mecanismos mesmo de funcionamento dos diferentes processos de significa ção que mostram o silêncio (que os constitui) que procuramos explicitar. Vale dizer que o silêncio a que nos referimos não é visto apenas na sua “negatividade”. O silêncio é. No silêncio, 0 sentido é. Há história no silêncio porque há sentido no si lêncio. Brasileiros, não falamos no discurso das descobertas mas fazemos outros falarem por nós e, mesmo quando não o fazemos, 0 que existe não é o vazio, mas o silêncio que significa no contexto em que se produz. Podemos, assim, distinguir três formas de silêncio (Orlandi, 1989): a) 0 silêncio fundador; b) o silêncio constitutivo; c) o silêncio local; sendo, esses dois últimos, parte do que chamamos política do 50 silêncio, já que imprimem um recorte (entre o dito e o não-dito) no seu modo de significar, inscrevendo-se portanto no domínio do poder-dizer. O silêncio fundador não recorta: ele significa cm si. E é ele, afinal, que determina ^política do silêncio: é IJorque’ signific_a em si que o ‘[não-dizer” fa^ sentido e faz um sentido determinado, É ,o silêncio, fundador, portanto, que sus tenta 0 princípio de que^a linguagem é política. Ná perspectiva do nosso trabalho, importa menos saber o (jue ficou silenciado e mais a própria política da palavra: que “x” se disse para não se dizer “y”? Como esse “y” silenciado acaba por significar ao longo das diferentes falas e dos seus «pagamentos? O silêncio do nomear faz intervir o “ interdiscurso” do outro (o europeu), fazendo-nos significar (quer queiramos quer não) na história dos “seus” sentidos.
Compartilhar