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Orlandi - Terra à Vista! Discurso do confronto velho e novo mundo2

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BIBLIOTECA DA EDUCAÇAO
Série 5 - E S T U m S DE LINGUAGEM 
Vi^t4me 5
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional 
(Câmaia Brasileira do Uvro, SP. Brasil)
90-1612
Orlandí, Eni Pulcinellí.
T m a à vista!; discurso do confronto: velho e novo mundo 
/ Eni Pulcinelli Oriandí. — São Paulo: Coitez ; I Campinas. SP I: 
Editraa da Universidade Estadual de Campinas. 1990. — 
(Biblioteca da educação. Série 5. Estudos de l in g u a g ^ ; v. 5)
Bibliografia
ISBN 85-249-0275-2
1. América - Civilização - Influências européias 2. Aná­
lise do discurso 3. Europa-Civilização-Influências america­
nas 4. Linguagem e cultura I. Título. II. Série.
C D D -401.41 
- 306.4 
-940 
-970
índices para catálogo sistemático:
1. América: Civilização: Influências européias 970
2. Análise do discurso: C(»nunícação: L ín g u ag ^ 401.41
3. Cultura e linguagem: Sociologia 306.4
4. Discursos : Análise: Comunicação: Linguagem 401.41
5. Europa : Civilização : Influências americanas 940
6. Linguagem e cultura: Sociologia 306.4
EDITORA DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
UNICAMP
Reitor: Carlos Vogt
Coordenador Geral da Universidade: José Martins Filho 
Conselho Editorial: Aécio Pereira Chagas, Alfredo 
Miguel Ozorio de Almeida, Attflio José Giarola, Vara 
Frateschi Vieira {Presidente), Eduardo GuimarScs, 
Hermdgenes de Freitas Leitão Filho, Jayme Antunes 
Maciel Júnior, Luiz Ccsar Marques Filho, Ubiratan 
D’Ambrosio.
Diretor Executivo: Eduardo Guimarães
1990
Editora da Unicamp 
Rua Cecílio Feltrin, 253 
Cidade Universitária — Barão Geraldo 
CEP 13083 — Campinas — SP - Brasil 
Tel.: (0192) 39.3157
ENI PULCINELLI ORL ANDI
DISCURSO DO CONFRONTO: 
V E L H O E N O V O M U N D O
CORT€Z
6DITORP
Agradeço a todos aqueles que, com seu trabalho e seu 
apoio, me propiciaram o acesso à Biblioteca Nacional de Paris, 
à Biblioteca de Chantilly, à Biblioteca Mazzarini, ao Instituto 
Católico de Paris, à Propaganda Fide, ao Arquivo Secreto do 
Vaticano e ao Colégio Internacional dos Capuchinhos em Roma. 
Igualmente, agradeço à Fapesp e ao CNPq pelo auxílio con­
cedido.
S U M A R I O
Pré4imimr 7
IN T R O D U Ç Ã O : 0 DISCURSO DAS 
DESCOBERTAS
I. Terra à Vista! /3
II. U m Percurso de Sentidos 18
1 ̂PARTE: E M TORNO DO MÉTODO 
E D O OBJETO
I. Observações Sobre
Análise de Discurso 25
II. Não o Outro,
M as o Diferente 58
III . Civilização e Cultura 45
IV. Silêncio e Sentido 49
2^ PARTE: OS RELATOS
■ ✓
I. Pátria ou Terra: o índio e 
a Identidade Nacional
II. A Dança das Gramáticas
III . Reimpressão do Singular: 
U m Olhar Francês 
Sobre o Brasil
55
73
lOí
IV. Domesticação e Proteção: 
o Discurso dos Padres 
na Raiz do Latifúndio 123
3^ PARTE: SITUAÇÕES
Sobre a Língua: Algumas Palavras 157
I. Os Pataxós, Sua Língua,
Sua Terra /62✓
II. O SujeitoTndio 
e o Seu Texto:
U m M ito Assurini / 75
III. U m a Retórica do Oprimido: 
o Discurso dos
Representantes Indígenas 209
C O N C LU SÃ O : FALANDO A TORTO
E A DIREITO
I.
255
Ainda um Discurso 
da Descoberta 
Conteudismo: 
a Perfídia da Interpretação 243
III. N o Vão da Voz 249
Corpus e Corpo 
do Discurso 255
II.
IV.
Bibliografia geral 257
Pré-liminar
Ao começar a construção desse texto, por volta de 1982, 
a intenção era falar sobre a retórica de contato entre índios e 
ocidentais. Como, através da linguagem, eu poderia apreciar o 
que se passa numa relação entre seres tão radicalmente dife­
rentes como o índio e o ocidental?
Apenas comecei o trabalho e já me vi diante de outra forma 
desse mesmo assunto: os discursos da construção do “outro”. 
E, como o material de análise produziu um recorte específico, 
delimitei o tema: “os discursos dos missionários sobre o Brasil”. 
Que não ficou por muito tempo nesse lugar, pois a delimitação 
deu mais um passo: “o d isc u ^ francês sobre o Brasil” (já que 
os missionários eram franceses e havia também discursos de 
franceses que não eram missionários). Nessa altura fiquei sedu­
zida por outro título: “O olhar francês sobre o Brasil”, pois o 
“ver” alçou-se em seu sentido dominante. Título que imediata­
mente me lembrou o parentesco, sempre confuso, entre descobrir 
e conquistar. Esse último, marcado pela relação entre Europa e 
AmérícaT transfigurou-se em: “O discurso da colonização”. No 
entanto, não podia parar aí, pois fui me dando conta de que a 
colonização tem muitas formas, entre elas as que não são cate­
gorizadas sob a rubrica “colonização”.
Entre história, antropologia, literatura e lingüística, o tema 
começou a se mostrar como um percurso em linha reta: as 
formas colonizadoras do discurso do conhecimento. Descobrir,
conquistar, dar a conhecer. Isto, no interior da perspectiva fou- 
caultiana, não acrescentaria grande coisa ao par saber/poder, 
mas, na perspectiva do discurso em que trabalho, me dizia 
muito mais;
a) O apagamento da história pela noção de cultura;
b) A produção material do que, apagado, toma ò nome de ideo­
logia;
c) A intervenção crítica na história da ciência através de um 
modo de observação que propõe um confronto entre o dis­
curso da descoberta (de lá para cá) e o da origem (daqui 
para cá);
d) Finalmente, a viagem como descoberta, a viagem como posse, 
a viagem como administração, a viagem como missão, a 
viagem como diário íntimo, a viagem como possível, a viagem 
como turismo.
Na relação de contato entre culturas diferentes, entre conti­
nentes diferentes e com diferentes histórias, não deixou de ser 
0 centro de minhas atenções a questão crucial da linguagem. E, 
por um certo tempo, estive convencida de que o mais importante 
da minha pesquisa, aquilo que me interessava fundamentalmen­
te, era o estabelecimento e a circulação ^ fo rm a s de discurso 
(político, cien^ico, literário, religioso) na, Europa_em sua rela- 
çaõ com a América (sobretudo o Brasil). Dito de forma mais 
biêve e direta: como a descoberta do N^vo Mundo refletiu na 
retórica européia, isto é, na própria configuração das suasjprmas 
de discurso? O objetivo seria, então, compreender a formação de 
modelos discursivos e as práticas ideológicas produzidas no con­
fronto da ciência, a religião, o direito e a política (sobretudo 
social).
Mas, para não ficar no passado, puxei para mais perto a 
relação entre ser índio e ser brasileiro: os discursos das lide­
ranças indígenas refletindo a relação do contato, o imaginário 
de uma língua nossa apagando a nossa língua mais real, os 
limites confusos entre o índio e o brasileiro.
Nessa longa caminhada, outros escreveram sobre algumas 
das coisas que eu estava observando. Mas não apressei meus 
passos, mesmo correndo o risco de não ser a primeira a dizer. 
Porque não aposto no "conteúdo”, no “dado”, na “informação”.
8
mas na construção dos sentidos e esse meu texto será sempre 
esse meu texto no seu modo de significar, com sua contribuição 
específica.
Porém, sempre se corre o risco do engano. E sei menos 
hoje 0 que é que descobri do que acreditava saber no início de 
meu trabalho. Para me sustentar com algum peso nessa afirma­
ção, lembro Fellini, que, falando de um seu novo filme (A Voz 
da Lua, inspirado no título de um livro que se chama A Voz do 
Poço), disse a um repórter, como resposta, sobre “o que” era 
seu filme: “Não sei”. O repórter insistiu: “Mas o senhor não 
terminou o filme?”. Ele respondeu, não exatamente com estas 
minhas palavras:
Terminei. Mas não sei sobre ‘o que’ é. Não sei ‘o que’ significa.
Ele tem algo a ver com outros filmes que fiz e que lembram minha
infância. Filmes em que uso grandes espaços, árvores, e que vão
construindo sentidos como transparências sobre transparências.
Quer dizer, as transparências não fazem ver melhor, não 
definem com maior precisão. Elas complicam, con-fui^em. Dão 
espessara":
à cada vez que releio meu texto, vejo outros sentidos que 
já estão, ou poderiam estar, aí mais desenvolvidos ou trazidos 
à tona talvez com mais convicção. Mas deixo o texto um tanto 
transparente. Porque eu mesma não sei todas as conseqüências 
de falar, ou de compreender, isso que foi meuobjeto de atenção 
e de reflexão nessa pesquisa: algumas das falas ou algumas situa­
ções de fala da nossa história passada e presente.
Mas sei que é ao conceito de discurso e à curiosidade de 
entender o que se aloja na noção desgastada e malcompreendida 
da ideologia que devo essa minha escrita.
É assim que eu gostaria de saber lido* esse meu trabalho: 
sentidos que chegam com a mesma incerteza do viajante que 
acaba por dizer sobretudo o que não sabe sobre aquilo que, 
desconhecido, veio a conhecer. E que está sempre mais além. 
Como está sempre mais além o sentido profundo do que imagi­
namos ser 0 que chamamos Brasil
Á Autora
Campinas, fevereiro de 1990.
INTRODUÇÃO:
O Discurso 
das Descobertas
Gentes da Europa: nunca vos trouxera 
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde 
Estendeu entre nós a natureza 
Todo esse plano espaço imenso de águas. . .
Basílio da Gama, Cacambo
I. Terra à Vista!
Esse é o enunciado inaugural do Brasil. Repetido ritualis- 
ticamente a cada vez que navios encontram onde aportar, não se 
trata de uma fala original. É chapa cristalizada, estereotipada. 
Comentário de aventureiros. Fala de piratas. De descobridores:
0 discurso Hãs descobertas. Des-cobrimento.
Se nos aproximamos mais desse enunciado podemos ainda 
especificar que é uma exclamação. De que natureza seria: de 
júbilo, de surpresa,' de alívio, dé apreensão, de curiosidade?
De todo modo, por significar porto, ele pode indicar, de 
um lado (daquele dos que ancoram), a chegada (porto seguro) e, 
de outro (o dos que aqui estão), entrada (invasão). Promessa 
ou ameaça? Visitantes ou invasores? Terra a servir de berço 
esplêndido? A ser pilhada? De quem, essa terra?
À vista.
“Ver” tem um sentido bem específico nesse contexto: o 
que é visto ganha estatuto de existência. Ver, tornar visível, é 
forma de apropriação. O que o olhar abarca é o que se torna ao 
alcance das mãos. O visível (o descoberto) é o preâmbulo do 
legível: conhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para 
que se assente a sua posse. A submissão às letras começa e ter-' 
mina no olhar. O discurso das descobertas dá notícias do que
13
vê. Considerando, dizia Thevet (1567) em seu relato, “a minha 
longa e penosa peregrinação, realizada com o desígnio de 
v e r ...
Podemos assim concluir que “Terra à vista” — a primeira 
fal^jobre o Brasil — expressa o olhar inaugural que atesta nas 
letras a nossa origem. Pero Vaz de Caminha dará o próximo 
passo lavrando nossa certidão, com sua Carta. Ao mesmo tempo, 
para os europeus, essa exclamação diz o início de um processo 
de apropriação. Descoberta significa, então, conquista.
Mas pode significar muitas outras coisas. De qualquer 
modo, o discurso das descobertas é um discurso que domina 
a nossa existência como brasileiros, quer dizer, ele se estende 
ao longo de toda a nossa história, produzindo e absorvendo 
sentidos.
Há uma cumplicidade do discurso das descobertas com o 
científico que lhe dá um modo de existência ideológico, que 
vai assim resultar em um “fechamento”: descobrir é dizer o 
conhecido.
Os discursos estabelecem uma história. A história, em nossa 
perspectiva discursiva, não se define pela cronologia, nem por 
seus acidentes. nem_é tampouco evolução mas produção de sen­
tido^ (Paul Henry, 1985). Ela é algo da ordem do discurso. 
Não há história sem discurso. É aliás pelo discurso que a histó­
ria não é só evolução mas sentido, ou melhor, é pelo discurso que 
não se está só na evolução mas na história.
O discurso das descobertas institui uma modalidade para 
o estabelecimento e existência da nossa história, dos nossos sen­
tidos. Esse modo tem de específico o apresentar-se justamente 
sob a forma do discurso etnológico.
Esse nosso trabalho representa um esforço de intervir no 
modo pelo qual a institucionalização dessa forma de discurso 
científico toma o lugar do discurso histórico, produzindo o bra­
sileiro como um sujeito-cultural e negando-lhe o estatuto de 
sujeito-histórico.
A prática ideológica do discursò das descobertas é tal que 
a instituição se apropria desse discurso e, despossuindo dele o 
antropólogo, o folcloriza ao mesmo tempo em que elide — eli­
dindo a materialidade histórica sob o pretexto da cientificida- 
de — o fato de que os acontecimentos históricos não o são por 
si mas porque reclamam um sentido.
M
Nossa análise incide basicamente sobre os relatos dos capu­
chinhos franceses e a primeira coisa a se notar, em termos de 
história, é a inscrição dos discursos dos capuchinhos no registro 
do discurso das descobertas. Mesmo as traduções para o portu­
guês se fazem no registro desse discurso. Assim, ele não pertence 
ao discurso da história mas ao da etnologia:
( . . . ) tomei a resolução de descrever os factos ou coisas mais 
notáveis que cuidadosamente observei em minha viagem ( . . . ) 
localização e disposição dos lugares ( . . . ) temperatura do ar, costu­
mes e maneiras de viver dos habitantes ( . . . ) (A. Thevet, 1557)
A história se faz assim com um imaginário que, nesse caso,
0 dos relatos, os inscreve no discurso das descobertas que, por 
sua vez, é o discurso que “dá a conhecer o Novo Mundo”.
O princípio talvez mais forte de constituição do discurso 
colonial, que é o produto mais eficaz do discurso das desco-' 
hertas. é reconhecer apenas o cultural e des-conhecer (apagar) o 
histórico, 0 político. Os efeitos de sentido que até hoje nos sub­
metem ao “espírito” de colônia são os que nos negam histori- 
cidade e nos apontam como seres culturais (singulares), a-his- 
tóricos.
De nossa parte, queremos pensar a singularidade e a plura­
lidade não no domínio da cultura, mas na história.
É a partir desse fato de linguagem (apagamento de sentidos 
pela sobreposição de um discurso a outro) que resolvi embarcar, 
não no caminho das índias, mas no da desconstrução de um 
certo olhar que não nos dá outro direito senão o de termos 
particularidades, singularidades, peculiaridades culturais. Pro­
curo saber alguma outra forma de nossa história. Des-cobrir 
sentidos. Não nos embala, no entanto, a ilusão de “recuperar” 
a nossa história “verdadeira”. Assim como sabemos que, como 
diz Pêcheux (1984):
( . . . ) 1’analyse de discours ne prétend pas s’instituer en spécialisle 
de l’interpretation maitrisant ‘le’ sens des textes, mais seulement 
construire des procédures exposant le regard-lecteur à des niveaux 
opaques à Taction stratégique d’un sujet ( . . . ) L’enjeu crucial est 
de construire des interpretations sans jamais les neutraliaer ni dans 
le ‘n’importe quoi’ d’un discours sur le discours. ni dans un espace 
logique stabilisé à pretension universelle.
15
Por isso, distinguimos interpretação e compreensão. Não 
perseguimos “um” sentido para a nossa história. A proposta é 
“compreender” os processos de significação, ou seja, o que ficou 
atestado ao longo da produção de linguagem sobre o Brasil.
Não pretendemos tampouco definir o brasileiro. O que vi­
samos é observar como o discurso que define o brasileiro cons­
titui processos de significação, produzindo o imaginário pelo 
qual se rege a nossa sociedade. Ou, dito de outra forma, pro­
curamos compreender os processos discursivos que vão provendo 
o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do fun­
cionamento imaginário da sociedade brasileira.
Em suma, analisamos as falas que definem o brasileiro e 
que constituem o nosso imaginário social.
Não se trata, pois, de falar da “identidade”, mas antes do 
imaginário que se constrói para a significação do brasileiro. 
Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como essa con­
cepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação de 
certos sentidos (e não outros) para o brasileiro? Como resultado, 
tem-se efeitos de sentidos que nos colocam uma marca de nas­
cença que funcionará ao longo de toda a nossa história: o dis­
curso colonial. É esse processo que faz_com(que o “ ter ̂sido 
colonizado” deixa de ser uma marca histórica para significar 
uma essência. Uma vez colono. . .
A ideologia tem, pois,uma materialidade e o discurso é o 
lugar em que se pode ter acesso a essa materialidade. Conhecer 
0 seu funcionamento é saber que o discurso colonial continua 
produzindo os seus sentidos, desde que se apresentem as condi­
ções.
E um dos seus efeitos — que não é o menor — é o que 
chamo a “perversidade do político”. Isto é, no imaginário cons­
truído por essas- práticas de linguagem, as relações de coloni­
zação aparecem não em seu lugar próprio mas sim como reflexo 
indireto. Isto acontece sempre que um discurso se faz passar 
por outro discurso. Nesse caso, se apaga o discurso histórico e 
se produz um discurso sobre a cultura. Como efeito desse apaga- 
mento, a cultura resulta em “exotismo”. Paralelamente, se apa­
gam as razões políticas que se apresentam então como um dis­
curso moral, de apreciação: o brasileiro é julgado por suas “qua­
lidades”; ele aparece como superficial e, lógico, alegre, folgazão,
16
indolente e sensual. Também se diz que ele é dotado de inteli­
gência que, infelizmente, ele desperdiça sem objetividade (razão).
Concluir que esses ditos são clichês é banal. Mais interes­
sante é procurar compreender como se produzem esses sentidos 
que se dão por evidentes e definidos.
17
II. Um Percurso 
de Sentidos
Como impulso, a análise de discurso e o desejo de virar o 
Atlântico na di reção inversa das descobertas, Como objetd~de 
reflexão, os capuchinhos e viajantes franceses que vieram ao 
Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII."Como quèstãô de método 
a possibilidade de deslocar o estatuto dos textos que historica­
mente foram categorizados como “documentos” aqui tomados 
como discurso: lugar de significação, de confronto de sentidos, 
de estabelecimento de identidades, de argumentação etc."’Como 
uma das finalidades, sair do já nomeado, do interpretado e pro­
curar entender esses textos como discursps que produziram e 
produzem efeitos de sentidos a serem compreendidos nas con­
dições em que apareceram e nas de hoje.
Não se trata no entanto de, a partir da história da época, 
ler esses textos como a sua ilustração e acrescentar detalhes ou 
peripécias. O que procuro atingir'"é a historicidade mesma dos 
textos. Lembrando que a história, para quem analisa discursos, 
não são os textos em si mas a discursividad^. Para atingir a 
historicidade dos textos assim concebida, o procedimento será 
0 de seguir a trama discursiva que tem estabelecido sentidos 
para o encontro do europeu com o índio, do europeu com o 
Brasil das descobertas.
18
Que história nos é contada e com a qual nos identificamos 
enquanto brasileiros?_Que_silêncios_nos acompanham ao longo 
dessa história?
Quais são os modos de constituição c funcionamento dessa 
historicidáde que podem ser apreendidos (lidoS) q u a n ^ ^alisa­
mos a sua construção nos processos discursivos?
Como o silêncio divide, significa^amente, o que sc conta 
e o que não se conta, produzindo_assim uma configuração para 
a Hi asilidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática 
da violência simbólica, no confronto das relações de força, no 
jogo de poder que sustenta efeitos de sentido: o silenciamento 
que a acompanha.
Procuramos entender, nesses discursos, como o sentido tra­
balha as suas muitas (ou seriam afinal poucas?) direções.
Mais fácil então dizer que o fio condutor dessa reflexão 
sobre o discurso das descobertas é o discurso sobre o índio, ou, 
enfim, o discurso sobre o Brasil.
Isso resulta em pelo menos uma divisão sensível e signifi­
cativa que procuramos compreender:
a) Como os europeus, em contato com o Novo Mundo, vão 
codificando esse conhecimento para si ao mesmo tempo em 
qufi padronizam uma forma de conhecimento “modelar” 
sObre o Brasil;
b) Como nós temos aí um discurso sobre a nossa origem: a 
constituição da brasilidade'"ê"Tuas consequências, ou "seja, 
como vamos formando — significando — esse jeito de ser 
brasileiro.
Discurso das descobertas, discurso das conquistas ou dis­
curso da dominação.
Procuramos nos conhecer conhecendo como a Europa co- 
nhece o Brasil. E no discurso das descobertas não encontramos 
senão mõdüs' de tomar posse. Q móvel primeiro dessa nossa 
reflexão foi uma questão simples: “E nós, brasileiros?”.
Nem índios, nem europeus, somos produzidos por uma fala 
que não tem um lugar, mas muitos. E “muitos” aqui é igual a 
“nenhum”. Desse lugar vazio fazemos falar as outras vozes que 
nos dão uma identidade. As vozes que nos definem. Europeu
19
falando de índio produz brasilidade. Nós, falando do que os 
europeus dizem de suas descobertas, falamos o discurso da nossa 
origem.
Fazemos falar os outros. O brasileiro se cria pelo fato de 
fazer falarem os outros. E não é por assimilação* mas, ao con­
trário, pela distância, pela Instauração de um espaço de dife­
rença, de separação, que construímos nosso lugar mais “próprio”. 
Nós não temos o lugar do centro preenchido, em um movimento 
de assimilações. Em nosso imaginário, não nos identificamos 
ao índio, mas tajgbém não reivindicamos o português como igual.
Somos uma mistura, já disseram muitos. Mas uma mistura 
indefinida. TTma mistura que se diz menos por colocar junto 
“coisas” difereutes e mais pelo fato de que há trânsito entre 
as__difeenças. Trânsito. Circulação entre os lugares. Movimento. 
Entre uns e outros. Diferenças que não remetem senão à dife­
rença. Nada de cópia, ou de modelo. Delineamentos que se 
movem continuamente. Perfis moventes.
Aí está talvez um possível esteio dessa reflexão. No que 
diz Deleuze (19741 da diferença entre cópia e simulacro. A 
cópia seria a imagem dotada de semelhança e o simulacro a 
imagem sem semelhança. Isto se referirmos ao “modelo”. O que, 
formulado, fica assim: “os simulacros teriam de moralmente 
condenável o estado das diferenças livres oceânicas, das distri­
buições nômades, das anarquias coroadas, toda essa malignidade 
que contesta tanto a noção de modelo como a de cópia” (De­
leuze, idem).
Essa pode ser a metáfora que nos diz a relação do brasi­
leiro e do europeu: somos a imagem rebelde sem semelhança 
interna.
Se pensamos a análise de discurso (AD), esta também 
pende — enquanto forma de conceber a linguagem — para a 
diferença sem fundo, considerando o sentido como errância, 
dispersão sem origem, sobre a qual pudesse assentar-se no 
domínio da representação. Os sentidos, para a análise de dis­
curso, erram, no duplo sentido, porque não representam mode- 
larmente e porque se movimentam, circulam. Em uma palavra:
1. Um exemplo: a identidade dos franceses, no nacionalismo, se faz 
por assimilação aos gauleses, me dizia O. Ducrot na MSH, confirmando 
a direção de minhas reflexões.
20
desorganizam. E também a desordem é constitutiva da identi­
dade do sujeito e do sentido.
As duas fórmulas (Deleuze, apud L. Orlandi, 1989) “só o 
que parece difere” e “só as diferenças se assemelham”, segundo 
0 autor, devem ser referidas, a primeira como a fórmula do 
“mundo das cópias ou das representações” (o mundo aí vira 
ícone), a segunda, reverso da primeira, é precisamente a fórmula 
do “mundo dos simulacros sendo que o mundo nesse caso vem 
a ser fantasma”. Ainda segundo esse autor, elas representam 
distintas “leituras de mundo”: a primeira pensa a diferença a 
partir de uma identidade preliminar (e é assim que, a meu ver, 
funciona a lingüística: os sentidos derivados têm uma origem 
comum, uma unidade inicial); a segunda pensa a similitude e 
mesmo a identidade a partir de uma disparidade de fundo. 
Segundo L. Orlandi (idem), nesse fundo “(. ..) a unidade de 
medida e de comunicação ( .. .) é o díspar, o diferenciante emi­
nentemente apropriado a essa profundidade ocupada por uma 
disparidade constituinte” {Lógica e Sentido, Deleuze, p. 267, 
apud L. Orlandi, 1989). Aí podemos ver o discurso e sua con­
cepção de sentido e de sujeito, ambos sem origem. E é daí que 
“olhamos” a relação entre a Europa e o Brasil da descoberta: a 
disparidade de fundo, os fantasmas, presidindo as relações.
O nosso fato — o olhar europeu sobre o Brasil — tem a 
disparidade comoconstitutiva e o nosso método — o da análise 
de discurso — pensa o sentido (e o sujeito) como não-transpa- 
rente, como movimento, como historicidade. Ou melhor, consi­
dera, tal como o dispõe a teoria do discurso, a determinação 
histórica dos processos de significação. Determinação essa que, 
considerando a relação Europa/Brasil, coloca-nos de forma parti­
cular frente à questão dos simulacros.
E, se já podemos adiantar alguma coisa, é que haverá uma 
grande margem de silêncio — produzida pelo dominador e 
empunhada pelo dominado — nesse embate forte: de um lado, 
os europeus procuram absorver as diferenças, projetando-nos 
como cópias em seus imaginários, cópias malfeitas a serem pas­
sadas a limpo; enquanto do outro lado, assumindo a condição 
de simiilacrns — imagens rebeldes e avessas a qualquer repre­
sentação —, os brasileiros às vezes aderem, às vezes não, ao 
discurso das cópias. De todo modo, é com esse discurso que têm 
de lidar, às vezes incorporando-o, outras explodindo-o pela radi­
21
calização dos seus efeitos: sendo mais europeu do que o europeu. 
Na questão da identidade, já vimos (cf. aqui mesmo, p. 224), 
a semelhança para mais é tão corrosiva quanto a semelhança 
para menos. Isto quer dizer que o excesso de semelhança tam­
bém é ruptura. Esse jogo complicado mostra, além disso, um 
direito e um avesso. Do lado de lá, o europeu, do de cá o brasi­
leiro: à retórica da indiferença, do desconhecimento, operada 
pelo europeu (que assim constrói a nossa in-significância), res­
ponde a retórica da antropofagia, que devora o europeu ao 
parecer lhe dar excessiva importância.
Parafraseando L. Orlandi (1989), eu diria, agora a propósito 
da nossa condição histórica: o que se passa com os simulacros 
(os brasileiros), essas “ imagens rebeldes e sem semelhança”?
Como simulacros eles vão permanecer, dóceis a uma lin­
guagem que os dispersou como imagens a que falta semelhança 
interna? Em nosso caso, consideramos que aí se abre a possibili­
dade de um “outro” discurso, que, em nossa reflexão, procura­
mos compreender,
E aqui vale a observação: os sentidos vistos nesse jogo de 
simulacros são, como dissemos, erráticos. É esse vaguear pelo 
tempo e pelo espaço do sentido de ser-brasileiro que vamos pro­
curar apreender nos textos que tomamos como material signifi- 
cante. Sem deixar de lembrar que, em um discurso que não 
nasce no interior da colonização, a relação entre diferentes pode 
ser vista só como uma relação entre diferentes e não uma rela­
ção entre o diferente e o original. Original que faria intervir, 
em conseqüência, a idéia de cópia e de imitação.
Entre o espontaneísmo das “ lembranças” — ilusão da não- 
deteri^inação histórica dos “ acontecimentos” — e o curso petri­
ficado da memória estabelecido por essas falas eternalizadas, a 
análise de discurso (AD) — que se propõe uma relação confli­
tuosa com os sentidos — procura desatar os sentidos contidos. 
É aí que incide nossa prática e é assim que entendemos a histo- 
ricidade do texto, sua discursividade,''
22
1 ̂Parte
Em Torno do Método 
e do Objeto
I. Observações 
Sobre Anise de Discurso
"A língua adâmica, fala sem memória e solitá­
ria, é o mito mais tenaz da Linguística. De 
fato, um texto, escrito ou oral, nunca tem uma 
inicial absoluta.”
P. Sériot, “La langue de bois et son double"
A análise de discurso (daqui para a frente utilizaremos 
também a sigla AD) visa construir um método de compreen­
são dos objetos de linguagem. Para isso, não trabalha com a 
linguagem enquanto dado, mas como jato. Ela tem sua origem 
ligada ao político ou, melhor dizendo, como afirma Courtine 
(1986), a AD procura “compreender as formas textuais de re­
presentação do político”.
Mais do que isso, ela acaba por inaugurar uma nova per­
cepção do político, pela sobrevivência com a materialidade da 
linguagem, materialidade esta ao mesmo tempo lingüística e his­
tórica. Em consequência, ela desloca tanto o que se considera 
como “lingüístico” como aquilo que se entende como “político” 
e como “histórico” . E, para levar em conta essa complexidade 
do fato-linguagem, a AD se constrói um lugar particular entre 
a disciplina lingüística e as ciências das formações sociais.
A AD se concebe como um “dispositivo que coloca em rela­
ção, sob uma forma mais complexa do que a de uma simples 
co-variação, o campo da língua (suscetível de ser estudado pela 
lingüística) e o campo da sociedade apreendida pela história 
(nos termos de relações de força e de dominação ideológica)” 
(Gadet, 1989). Esta concepção da AD encontra eco no fato de
25
que o discursivo materializa o contato entre o ideológico e o 
lingüístico.
Na origem da AD francesa, tal como é pensada por M. 
Pêcheux, seu fundador, está a relação da linguagem com a ideo­
logia. De forma particular, esse autor trata da relação entre a 
“evidência subjetiva” e a “evidência do sentido”, colocando o 
discurso no lugar particular em que se articulam a linguagem e 
a ideologia. No entanto, diz Pêcheux (1969), a teoria do dis­
curso não pode, de forma alguma, substituir uma teoria da 
ideologia, não mais que uma teoria do inconsciente (embora 
suponha um sujeito afetado pela ideologia e pelo inconciente), 
mas pode intervir no campo dessas teorias.
A AD contradiz com as concepções de ideologia tal como 
esta é tratada, pois, ao ser crítica à forma de constituição das 
ciências sociais, a AD produz um deslocamento quanto às teorias 
sociais da ideologia. Assim, se de um lado, na AD, a lingüística 
ocupa um lugar crítico, também as ciências sociais são colocadas 
em estado de questão; a AD mostra que o sujeito e a significa­
ção não são transparentes e aponta para uma relação proble­
mática das ciências sociais com o político, na medida em que 
estas supõem essa transparência da linguagem.
Ela recorre, de um lado, à lingüística (à materialidade da 
língua) e, de outro, à ciência das formações sociais mas, parado­
xalmente, ao pressupô-las na sua constituição — afinal, a teoria 
do discurso partilha o campo epistemológico de sua formação 
com a lingüística e com a(s) teoria (s) da ideologia — ela lhes 
critica os fundamentos, já que não se deixa usar nem como 
instrumento neutro (seu uso supõe uma mudança de terreno e 
uma desconstrução de conceitos de base para ambas) e nem se 
coloca como se o que é próprio ao discurso viesse depois, como 
algo secundário e acrescentado (ou excrescente) ao que é lin­
güístico.
Mostrando que a semântica é o “ponto em que a lingüística 
tem a ver com a filosofia e as ciências das formações sociais, 
freqüentemente sem o reconhecer”, Pêcheux (1975) explicita o 
lugar do qual a AD considera criticamente tanto a lingüística 
quanto as ciências sociais. A lingüística, porque não pode se 
formar senão produzindo, no resíduo do que não pode dar 
conta, os “ ismos” (psicologismo, sociologismo etc.) e as ciências
26
sociais porque se iludem com a “instrumentalidade” das ciências 
da linguagem.
A lingüística, na vaga do estruturalismo, se colocou como 
ciência pilotodias ciências^umanas. Como retorno, foram-lhe 
colocadas questões que se originam nessa sua relação com as 
outras ciências. No entanto, elas ficaram sem resposta, pois, para 
se constituir nesse seu lugar, a lingüística teve, justamente, de 
se livrar disso que interessa mais de perto às outras ciências 
humanas e sociais, e que dizem respeito à relação da linguagem 
com a exterioridade.
Por seu lado, essas ciências têm como instrumento de tra­
balho com a linguagem a análise d^ contrádo, que não é um 
inistfumento adequado — nem de descoberta, nem heurístico —, 
pois não faz senão ilustrar o que já está dito anteriormente, 
através das categorizações já estabelecidas pelas próprias ciên­
cias: opera uma simples ilustração do seu ponto de vista.
A AD se constitui nesse intervalo, entre a lingüística e essas 
outras ciências, justamente na região das questões que dizem 
respeito à relação da linguagem (objeto lingüístico) com a sua 
exterioridade (objeto histórico).
Definindo-secomo uma semântica, a AD pressupõe a lin­
güística e nessa medida se distancia da análise de conteúdo, pois 
trabalha a especificidade mesma da materialidade lingüística. 
No entanto, também se distancia desta na medida em que consi­
dera como constitutiva do seu objeto (o discurso) a determinação 
histórica. Isso significaria responder adequadamente às questões 
das ciências sociais e colocar-se, pois, a serviço (como instru­
mento) delas?
Estranho destino esse da AD, que dá bem a dimensão do 
seu cisionismo e toda a sua errância: ao se constituir, ela muda 
de terreno e, ao mesmo tempo em que coloca questões para a 
lingüística, no interior mesmo da lingüística, também coloca 
problemas para as ciências sociais no interior mesmo, ou melhor, 
acerca dos fundamentos que as ciências sociais se constroem 
para se constituírem. A AD problematiza fundamentalmente, pa­
ra as ciências humanas e sociais, a natureza da concepção de 
sujeito e de linguagem sobre as quais essas ciências se organi­
zam. Nesse ponto, a crítica de Pêcheux, diz P. Henry (1990), 
ao modo de servir-se dos instrumentos nas ciências sociais se
27
confunde com sua crítica às ciências sociais em si mesmas, na 
crítica que diz respeito à sua ligação com o político (o ideológico, 
o histórico etc.)-
Pêcheux, sob o pseudônimo de T. Hebert (1973), faz uma 
análise das raízes históricas da epistemologia e da filosofia do 
conhecimento empírico. Segundo ele, as ciências sociais se desen­
volveram principalmente nas sociedades em que, de modo domi­
nante, a prática política teve como objetivo transformar as rela­
ções sociais no seio da prática social, de tal modo que a estrutura 
global desta última se conservasse. As ciências sociais estão, 
assim, no prolongamento direto da ideologia que as desenvolveu 
no contato estreito com a prática política. Uma outra forma, 
mais atual, de se observar e de dizer isso em conseqüência dessas 
concepções formuladas no interior das ciências sociais são os 
discursos que propagam o fim do político, a morte das ideolo­
gias, 0 que renova na ciência o triunfo do positivismo. E o que 
0 discurso tem a ver com isso? Tudo, justamente, pois para 
Pêcheux 0 imtrumento da prática política é o discurso, ou seja, 
“a prática política tem como função, pelo discurso, transformar 
as relações sociais reformulando a demanda social”.
Por isso, Pêcheux, querendo
( . . . ) provocar uma ruptura no campo ideológico das ciências 
sociais, escolhe o discurso e a análise do discurso como lugar preciso 
onde é possível intervir teoricamente (teoria do discurso) e prati­
camente, construindo um dispositivo experimental. (P. Henry, 
1990)
O modo de romper, pois, com a forma como as ciências 
usam seus instrumentos de análise está na própria concepção 
discursiva de linguagem que não a coloca como instrumento de 
comunicação de significações que existiriam e que seriam defi­
nidas independenteniente da linguagem (ou seja: como "infor­
mações”). E é isto que Pêcheux diz quando afirma que “a 
linguagem serve para comunicar e para não comunicar” (1975).
Assim é que a própria noção de ideologia é outra na AD. 
A noção de história é outra. A noção de sujeito é outra. Porque 
só se define pelo seu caráter iminentemente constituído pelo 
outro termo do sintagma de que participam, ou seja, da lingua­
gem. A relação sintomática é a que existe entre o sujeito da 
linguagem e o sujeito da ideologia. Se a linguagem aparece
28
nesse quadro teórico como a materialidade específica do dis­
curso, este, por sua vez, se define como materialidade específica 
da ideologia.
Não é, pois, de uma “simples aplicação” que se trata, ou 
do uso de um instrumento, jíára dar maior cientificidade à ciência 
das formações sociais. Esse é um “instrumento-’ que, ao^^se^ 
usado, transforma tanto o ponto de partida (os conceitosè' 
pressupostos teóricos) quanto o de chegada (as conseqüências 
analíticas). Nao é um instrumento “neutro”, e não o é pelo 
reconhecimento da espessura semântica da própria linguagem. A 
historicidade — voltaremos a isto freqüentes vezes — é a histo- 
ricidade /do texto, ou seja7^a,4iscursividade (sua determinação 
históricaV que hão é mefõ reflexo do fora ^nas se constitui já na 
própria tessitura dá matetlalidade liròíiística. Trata-se, por sua 
vez, de pensar a,^materiàlTdadi^do/í»nt:ido ''e 4§, sujeito, seus 
modos de constituído histórica.
Não é, no entanto, tão simpl^ assim.
Porque a teoria do discurâo tem como base uma teoria 
não-subjetiva da leitura (^cteux , 1969)'. Essa. teoria não-subje- 
tiva representa uma relação^specífÍcá,‘isto é, uma relação crítica 
da AD com a lingüística. Nesta relação crítica a AD inclui — 
como não o faz a lingüística — o sujeito, ao mesmo tempo em 
que õHes-centra, isto é, não o considera fonte e responsável do 
sentido que produz, embora o cOnsidere como parte desse pro­
cesso" de produção. Tampouco o sentido se apresenta como 
transparente (Orlandi, 1987).
Como diz P. Henry (1985):
( . . . ) não há fato ou acontecimento histórico que não faça sentido, 
que não espere interpretação, que não peça que se lhe encontrem 
causas e conseqüências. É isto que constitui, para nós, a história; 
esse jazer sentido, mesmo que se possa divergir desse sentido em 
cada caso.
Essa concepção de história inerente à AD ultrapassou em 
muito a de cronologia (diacronia etc.) e a de uso (pragmática). 
E a linguagem é sentido e a história faz sentido. O ponto nodal 
é a semântica (Pêcheux, 1975), que, se como diz P. Henry, é 
uma questão aberta, pois é uma questão filosófica, também é 
uma questão que coloca o analista da linguagem no domínio da 
ética e da política.
29
A questão do histórico se liga assim à da linguagem, à do 
sujeito e à da ciência, em nosso caso, as ciências humanas e 
sociais. Por outro lado, pensando a questão da produção de 
sentidos em relação ao domínio da ética e da política, podemos 
aí inscrever a questão da AD para a América Latina. Basta-nos 
lembrar que a produção^de conhecimento da América Latina 
sobre a América Latina pode adquirir uma forma crítica de 
modo a não ser mera reprodução do olhar europeu ou norte- 
americano e assim por diante. Na prática, isto significaria repro­
duzir apenas os modelos e teorias, preenchendo-os com dados 
“específicos’ para engordar os paradigmas já definidos lá fora. 
Ao contrário, essa outra forma de conhecimento de que estamos 
falando pode, entre outras coisas, contribuir, em seu modo, para 
o conjunto de reflexões que compõem a história das ciências.
Assim, podemos dizer que, nesse processo discursivo que 
analisamos, há uma equivalência entre o “como o brasileiro é 
dito” e a “prática de um conhecimento”, ou, dito de maneira 
mais direta, o “como o brasileiro é dito” importa e determina 
a prática de um conhecimento.
~ Voltemos, pois, às~considerações sobre o discursivo.
A AD já tem sua história marcada por uma certa unidade 
que conjuga, no entanto, muitas diferenças. Seu desenvolvimento 
é marcado por rupturas:
a) políticas: entre as diferentes “esquerdas” (anos 60-70);
b) na relação direta dos intelectuais com a política;
c) entre a prática política e o trabalho teórico.
É 0 que diz Courtine, (1986), acrescentando que, no início, 
a AD estava ligada ao desenvolvimento do pensamento crítico, 
então identificado ao marxismo e fazendo da lingüística uma 
referência metodológica essencial na análise de textos. Visto que 
aparece como tentativa de apreender as formas textuais do polí- 
.tico, ela certamente sofrerá conseqüências desde o momento em 
que se trata de viver, como é o caso, os “efeitos do desejo de 
que não exista mais o político” (Courtine, idem).
Essa questão é ainda mais relevante numa área de reflexão 
em que a “objetividade” do conhecimento sempre expulsou o 
político de suas proximidades: a área da lingüística, que nem 
sequer admitiu a contradição, ou a dialética e, no seu cientifi- 
cismo, passa direto do racionalismo para o positivismo.
30
Os signos do refluxqjio político são muitos. Interessam-nosos da acacEmia: o_ silêncio dos intelectuais, a indiferença, o 
voltar-se para si mesmo, a renovação do individualismo, que se 
desdobra em um espaço considerado politicamente vazio. O 
"fim” do político marca a “emergência” de um duplo esqueci­
mento: “o recobrimento da relação de dominação política e o 
esquecimento do movimento do pensamento que se extenuou na 
análise da dominação política e não tratou de outras” (Courtine, 
Ibid.).
Essa vontade de esquecimento toma, na política, a forma 
do "pragmatismo”, esse "reflexo de uma sociedade que não tem 
mais tempo de se lembrar e de meditar” (Horkheimer, apud 
Courtine, ibid.).
Que forma toma essa vontade nas ciências humanas?
• O valor operacional, prático, instrumental apaga seu valor 
crítico;
• A observação suplanta os saberes gerais;
• O fato desqualifica a interpretação;
• O especialista se alça frente ao intelectual;
• Os pesquisadores se afastam das alturas das idéias e reencon­
tram 0 solo firme das coisas e os rigores do cálculo.
Em suma, o desejo de que não haja máis o político, diz 
Courtine (ibidem), se “encarna em uma razão disciplinar e ins­
trumental: a renovação do positivismo”. Isto fez com que a AD 
8C tornasse uma prática dividida entre uma função crítica e 
uma função instrumental.
Em sua função crítica, a AD intenoga a própria existência 
dus disciplinas, desterritorializando-as. Mas, ao mesmo tempo 
cni que o faz, constrói seus procedimentos, delimita seu objeto 
c tende, ela mesma, a se territorializar. Isso, para alguns, para 
aqueles que só reconhecem e exercem u™a ciência em solo firme, 
ou seja, quando ela fala sobre si como ciência.
Para outros, a expansão de termos — como interdiscurso, 
formação discursiva — ou de princípios teóricos — como o de 
8c afirmar que nem a linguagem nem o sujeito são transparen­
tes — que aparecem nas reflexões atuais, não como urii dispo­
sitivo teórico global mas ponto-a-ponto (Gadet, 1990), são a 
marca da AD na reflexão sobre a linguagem. Essa reflexão esta­
31
belece que o sentido deve ser apreendido ao mesmo tempo na 
língua e na sociedade. Isso, se pensamos a Europa.
Quanto à América Latina, a questão da AD é ainda mais 
viva e expressiva. Logicismo e sociologismo, diz Pêcheux (e 
Gadet, 1977), decorrem da filosofia espontânea que acompanha 
a lingüística, constituindo duas formas específicas de denegação 
do político.
A tendência logicista nega o político falando aparentemente 
de outra coisa, enquanto que o sociologismo o rejeita falando, 
ou acreditando falar, justamente dele. A tendência lógico-forma- 
lista parece se desdobrar na região das “ idéias puras”, longe de 
quaisquer outras considerações. A sociolingüística se desenvolve 
depois da guerra fria, ligada a fenômenos que é interessante 
observar. Um deles é a evolução do que se convencionou chamar 
Terceiro Mundo. A transformação parcial do colonialismo clás­
sico em neocolonialismo trouxe a questão política da distância 
científico-técnica a ser absorvida. Nesse quadro se colocam as 
questões sociolingüísticas do multilingüísmo e da estandardiza- 
ção das línguas nacionais. O outro fenômeno é o desenvolvimen­
to das contradições nas instituições escolares dos países mais 
desenvolvidos com diferentes formas de escolarização de massas, 
acarretando problemas de fracasso escolar.
Há um progressismo na sociolingüística que pretende con­
tribuir para resolver essas dificuldades e suprimir desigualdades. 
É um humanismo.
Mudar de terreno, nesse caso, é antes de tudo reconhecer 
que as dificuldades e desigualdades não são “ imperfeições” das 
sociedades industriais, mas são estruturais, são inerentes à essên­
cia mesma da sociedade capitalista. Mudar de terreno é falar em 
relações de produção e não em “relações sociais”. •
• O logicismo recobre a questão do Estado, considerando as 
determinações jurídico-políticas inscritas no funcionamento do 
aparelho de Estado como se se tratasse de propriedades psico­
lógicas e morais inerentes a uma natureza humana universal 
e eterna;
• O sociologismo recobre também a questão do Estado, substi­
tuindo a análise das relações de produção por uma teoria das 
relações sociais que é na realidade uma psicossociologia das
32
M-liiçôed interindividuais (status, papel, prestígio, atitude, mo- 
ilviicfio).
Por isso, essas tendências não têm nada a dizer a respeito 
ilu neocolonialismo que não tem a concretude psicossocial das 
rvliiçOes de parentesco, de idade, de sexo, de raça, de nível 
uillural.
Mudar de terreno é tomar uma posição teórica face à ques- 
iflo du forma-sujeito de direito e da subjetividade moral-psicoló- 
kIcii que a envolve. A noção de discurso e de FD desempenha 
i HNC papel de desubjetivação da teoria da linguagem.
Essas nossas considerações nos permitem situar a natureza 
ilii AD na América Latina.
Pela sua história cisionista e pelos pressupostos de sua 
leoiia que tem uma relação fundamental com o político, a AD 
permite à reflexão sobre a linguagem levar em conta as especi- 
ricldndes histórico-políticas dos diferentes contextos em que se 
iloscnvolve.
Assim, o modo como a AD se desenvolve na América Latina 
IKiclc, e deve, ser diverso daquele com o qual esta se desen­
volveu na França. Ê isso que eu expressaria dizendo que a AD, 
«n somos conseqüentes com seus pressupostos, ao mesmo tempo 
i in que produz uma certa forma de conhecimento, nos obriga 
II uma tomada de posição frente à história das ciências.
Se, de um lado, tudo é político e, de outro, se tem pro- 
iiiriido minimizar ou desprezar a importância do político, não é 
menos verdade que hoje é mais ou menos claro para todo inte­
lectual que o que ele produz como conhecimento é submetido 
|tt dc saída a tensões que nascem de embates que nada têm a 
ver com a pretensa neutralidade da ciência, mas com as relações 
ilc lorça que presidem um imaginário social como o nosso.
A luta pela aceitação ou não, pela legitimidade ou não, de 
mii trabalho, quando se ultrapassa o mero lance do tráfico de 
prestígios acadêmicos, representa justamente o_higar em que se 
flioctim o poder de dizer e o seu parceiro, o silenciamento.
E, se pensamos a América Latina em relaçãp aos outros 
nmtincntès, podemos observar um grande vigor no confronto 
ilessHfl posições.
Reagimos muito bem aos processos de exclusão a que esta­
mos submetidos há séculos e que nos deram como herança o pa-
33
ternalismo e o exotismo (o “dever” de termos certas "singulari­
dades”), como seres "culturais” que apresentamos particulari­
dades às vezes atraentes, às vezes marcadas pela barbárie.
Não se trata de não estabelecermos relação alguma com 
outros centros de produção de conhecimento, voltar as costas e 
des-conhecer. Trata-se de estabelecer uma relação em que pro­
curamos nos situar criticamente em certas regiões de sentidos, 
não impô-los, mas sustentá-los em nossas relações intelectuais 
com 0 que não é a América Latina.
A AD, nessa forma crítica de relação com o modo de pro­
dução do conhecimento, nos permite uma primeira contribuição: 
0 da crítica a propósito da utilização de certos modelos de aná­
lise de língua. Por exemplo, os modelos de análise de línguas 
indígenas são aqueles que, embora se inscrevam na antropologia 
lingüística, perpetuam a indiferenciação ou, mais que isso, pro­
movem o apagamento e a remissão do diferente ao mesmo, isto 
é, 0 apagamento da especificidade das línguas indígenas em 
relação às línguas ocidentais (o inglês, o latim etc.).
Desse modo, a descrição (com a chancela da ciência) se 
sobrepõe a questões cruciais que se inscrevem numa política da 
língua. Um exemplo flagrante é o do Summer Institute of Lin- 
guistics (Summer ou SIL). Essa entidade, que se apresenta sob 
a dupla forma (Orlandi, 1987) lingüístico-religiosa, promove a 
exclusão dos brasileiros do campo de pesquisadores pela impo­
sição de um modelo equívoco, o do Summer, que traz o pres­
tígio dos padrões da ciência norte-americana de produção “uni­
versal” do saber, enquanto pratica atividades missionárias.
E, a maislongo prazo, na história, temos os relatos que são 
tomados como documentos, enquanto se impõem como modelos 
de ciência: como história, como etnografia, como lingüística. 
Procuramos deslocar isso propondo uma desconstrução, através 
do método da AD, considerando os documentos não como do- 
cumentosjnas c ^ o discurso. Expor “o olhar-leitor à opacidade” 
significa ler nesses relatos tanto a construção de ojitros sentidos 
para a história, como compreender o que~slgnífica a cndificaçãn 
do conhecimento^etnografico, jssim como a forma histórica em 
que se dá a relação do tupi com o português.
Se, para o europeu, os relatos dos missionários são tomados 
como artefatos que integram seus objetivos científicos em sua
34
tradição, para nós são uma forma de nos passar a limpo em uma 
história contada por europeus para europeus.
O modo de produção de conhecimento latino-americano, 
quando se faz de forma crítica, implica, insistimos, em uma to­
mada de posição frente à história das ciências. Isso implica não 
apenas em se deslocar o texto, mas em reconhecer que as rela­
ções de força que presidem a produção de sentidos se dá em 
“outro” lugar. O deslocamento, pois, se faz desse outro lugar, 
de “ lá”, do científico.
Como dissemos, o brasileiro se cria pelo fato de fazer fala- 
lem os outros. Há um espaço de diferença. O português se fala 
do lugar próprio; o brasileiro é deslocamento de falas.
Nesse deslocamento — e são vários os modos de apreen­
dê-lo, de explicitá-lo e de interpretá-lo — joga fortemente o fato 
de que a fala de nossas origens é a fala do conhecimento: é o 
discurso que dá conta, que classifica (taxonomia) e explica (etno­
logia) o Novo Mundo.
Os discursos dos missionários que, pelas suas condições, são 
da ordem do religioso, deslizam assim politicamente do religioso 
para o etnológico e, ao se deslocarem, produzem um resíduo. 
Este resíduo é o que dá os efeitos de sentido desse jogo de dis­
cursos: silenciam aspectos cruciais da nossa história.
E insistimos no sentido particular do que é a história para 
0 analista de discurso. Ah istória estájgada a práticas e não 
ao tempo em si. Ela se organiza tendo como parâmetro as rela­
ções de poder e de sentidos, e não a cronologia: não é o tempo 
cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder 
(a política). Assim, a relação da AD com o texto não é extrair 
O sentido, mas apreender a sua historicidade, o que significa se 
colocar no interior de uma relação de confronto de sentidos.
A relação com a história é dupla: o discurso é histórico 
porque se produz em condições determinadas e projeta-se no 
“futuro”, mas também é histórico porque cria tradição, passado, 
c influencia novos acontecimentos. Atua sobre a linguagem e 
opera no plano da ideologia, que não é assim mera percepção 
do mundo ou representação do real.
O que a AD faz com respeito a isso é explicitar o funcio- 
iininento do discurso em suas determinações históricas, pela 
Ideologia. Quanto à ideologia, é ainda em relação ao poder que 
«'In é considerada na perspectiva discursiva.
35
Mesmo sendo necessária à concepção de discurso — não 
há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia —, não é 
tal como ela se define no campo das ciências sociais que a con­
cebemos. Não partimos da ideologia (como dissimulação, ou não, 
do real) para o sentido, mas procuramos compreender os efeitos 
de sentido a partir do fato de que é no discurso que se configura 
a relação da língua com a ideologia.
Sujeito e linguagem encontram a sua unicidade na sua rela­
ção mútua: o sujeito não tem unicidade, produz unicidade na 
sua relação com a linguagem; do mesmo modo a linguagem 
também não a tem, e é só relativamente ao sujeito que ela se 
apresenta assim. E o que há nessa relação é uma organização 
para um fim. Que só se produz nessa articulação (linguagem- 
sujeito). Esse é um dos efeitos ideológicos elementares constitu­
tivos do discurso: o efeito de unicidade do sujeito e da lingua­
gem.
Nessa perspectiva, a ideologia pode ser compreendida como 
a direção nos processos de significação, direção esta que se 
sustenta no fato de que o imaginário que institui as relações 
discursivas (em uma palavra, o discursivo) é político.
As evidências são assim cristalizações, produto naturaliza­
do, e só podem sê-lo pela relação da história com o poder.
Finalmente, podemos dizer que a ideologia não é dissimu­
lação mas interprjtaçãq_ào sentido (em uma direção). Não se 
reláciõha à falta mas, ao contrário, ao excesso: é o preenchimen­
to, a saturação, a completude que produz o efeito ^ evidência, 
pnr^ie se assenta sobre o mesmo, o já-lá.
Então é isto a ideologia, na perspectiva do discurso: há uma 
injunção à interpretação, já que o homem na sua relação com a 
realidade natural e social não pode não significar; condenado a 
significar, essa interpretação não é qualquer uma, pois é sempre 
regida por condições de produção de sentidos específicos e deter­
minados na história da sociedade. O processo ideológico, no 
discursivo, está justamente nessa injunção a uma interpretação 
que se apresenta sempre como a interpretação. Esse é um dos 
princípios básicos do funcionamento da ideologia, apreendido 
pelo discurso.
A AD, entretanto, procura ver o sentido como o possível 
(não-preenchido), sendo assim uma abordagem crítica da ideo­
logia.
36
Com efeito, a relação entre imaginário e simbólico se apre­
senta, dessa perspectiva, com a seguinte forma: o simbólico 
funciona sob o modo do como-se-fosse e o imaginário sob o 
modo do faz-de-conta, mas, suspendendo, ao mesmo tempo, a 
relação da produção de sentido com o “seu lugar” para levá-lo 
para “outro” como se fosse o próprio. Apaga assim a materiali­
dade das condições de produção. É, pois, a interpretação que 
atribui sentido de um lugar só, “universalizado”.
O que nos leva a finalizar essa parte afirmando que fala-se 
religiosamente sobre o Brasil do lugar da etnografia como se este 
fosse o seu lugar próprio. E é esse o processo ideológico que 
constitui os discursos da des-coberta em seu jogo de sentidos.
O discurso histórico estabiliza a memória. Ao se negar, na 
ordem dos discursos, um discurso histórico sobre o Brasil,* ou 
seja. o estatuto do “memorável”, se desqualifica o Brasil como 
lugar específico de instituição de sentidos. Produz-se um dis­
curso etnográfico, parte da história européia, esta sim como uma 
história, ou melhor a História, a verdadeira, a única.
1. Consideramos que os “discursos sobre” são uma das formas 
cruciais da institucionalização dos senüdos. É no “discurso sobre” que se 
Irubalha o conceito da polifonia. Ou seja, o “discurso sobre" é-um lugar 
Importante para organizar as diferentes vozes (dos discursos de). Assim, 
U discurso sobre o samba, o discurso sobre o cinema é parte integrante 
(lu arregimentação (interpretação) dos sentidos do discurso do samba, do 
cinema etc. O mesmo se passa com o discurso sobre o Brasil (no domínio 
du história). Ele organiza, disciplina a memória e a reduz.
37
II. Não 0 Outro. Mas o Diferente
A reflexão sobre o "outro”, como constitutivo, parte da teo­
ria da enunciação e, com alguma extensão, se relaciona, sob a 
influência da psicanálise (o inconsciente), à questão do sujeito, 
materialmente ligada à questão da ideologia (o des-conhecimen- 
to). Um princípio geral da linguagem, agora menos marcado por 
esta ou aquela disciplina, vem coroar a presença do "outro” 
como constitutiva da fala de qualquer sujeito: a dialogia.
Entendida amplamente, apenas como conversa, passando a 
ser referida com mais profundidade teórica como interação e 
chegando mesmo a ser entendida como confronto, a dialogia 
acabou por encerrar a reflexão da linguagem em malhas estreitas.
Não há mais solidão possível, não há descontrole na lin­
guagem: a relação com o “outro” regula tudo, preenche tudo, 
explica tudo, tanto o sujeito como o sentido.
Gostaríamos de colocar nossas reservas a essa “onipotên­
cia” do conceito de dialogia e, através dele, à concepção mesmade enunciação, ou à expansão, eu diria, desmedida desse con­
ceito.
No interior da teoria do discurso há um conceito que trouxe 
uma maior especificidade a essas noções: é o conceito de “hete- 
rogeneidade” (J. Authier, 1984).
38
A heterogeneidade constitutiva ü . Authier, idem) diz que 
"constituriyamente, sujeito„ em seu,discurso», há o Qutro”. 
É a idéia de que o sujeito da linguagem é determinado pela sua 
Itilação com a exterior idade: é um sujeito des-centrado, dividido, 
essa divisão tendo um caráter estrutural ou estruturante. A hete- 
«jgeneidade mostrada é coisa já diferente: as suas formas são 
aquelas pelas quais se altera a unicidade aparente do fio do 
discurso, pois elas aí inscrevem o “outro”. Essas formas repre­
sentam “uma negociação com as forças centrífugas, de desagre­
gação, da heterogeneidade constitutiva: elas constroem, no des­
conhecimento desta, uma representação da enunciação que, por 
ser ilusória, é uma proteção necessária para que um discurso 
seja mantido” (J. Authier, idem). Por elas, o sujeito se apresenta 
como tendo domínio do que é seu e do que é do outro, no “seu” 
dizer.
Como diz essa autora: “face ao ‘isso-fala’ da heterogenei- 
(Inde constitutiva responde através dos ‘como-diz-outro’ e o ‘se- 
me-é-permitido-dizer’ da heterogeneidade mostrada” (ibid.).
Formulada desse modo, a heterogeneidade coloca em pauta 
0 visível (mostrado), que, na perspectiva do discurso, correspon­
de ao “dizível”.
Na análise de discurso, o dizível é definido, para o sujeito, 
pda relação entre formações discursivas (FDs) distintas.
Cada FD define o que pode e deve ser dito a partir de 
\ima posição do sujeito, em uma certa conjuntura. O complexo 
(liiH formações discursivas, em seu conjunto, define o universo 
ilo "dizível” e especifica, em suas diferenças, o limite do dizer 
pura os sujeitos em suas distintas posições (remissíveis à dife­
rentes FDs).
Esse jogo de FDs remete o texto à sua exterioridade, isto é, 
/I relação com o interdiscurso,^ com o Outro. O que chamamos 
liiíerdiscurso é definido justamente como o complexo de FDs à 
dominante. Ele representa o domínio do “saber”, da memória 
(In FD. É no míerdiscurso que se constitui o dizer, sendo a noção 
de f')7/rflflisr:Tirsn reservada não à constituição^mas à fortmlação, 
itii seja, à produção efetiva, circunstianciad a e relativa a um 
eunlcxto específico de uma séqüência discursiva concreta.
I. o interdiscurso corresponde ao “isso-fala", o sentido já-lá.
19
A relação do intradiscurso com o interdiscurso é que remete 
o dizer do sujeito ao Outro constitutivo (o interdiscurso: a me­
mória do sentido, o repetível): falamos com palavras que já têm 
sentido.
É aí que se insere, para nós, a questão da heterogeneidade, 
ou melhor, da diferença.
Embora a noção de heterogeneidade, tal como é formulada 
por J. Authier, problematize a noção de enunciação e seus efeitos 
ilusórios, é uma noção que trabalha muito com a “formulação” 
(cf. Courtine, 1982) e pouco com a “constituição” do sentido, 
ou seja, com a historicidade do discurso no sentido lato (inter­
discurso). E é essa dimensão que nos interessa. Daí uma das 
razões de preferirmos a noção de diferença à de heterogeneidade.
Na concepção de J. Authier, a heterogeneidade aparece mais 
como uma mistura (a+b), sendo a e b distintos e recuperáveis 
(de certo modo dados, homogeneizáveis). A ilusão do sujeito de 
estar na origem do sentido tem marcas lingüísticas que permitem 
recuperar o seu processo. A possibilidade de “explicação” re­
sulta, em grande medida, da recuperação da homogeneidade. 
Apesar do salto teórico, a noção de heterogeneidade convive 
com 0 paradigma do lingüístico como nuclear: o visível, a uni­
dade.
Para nós, o que existe é uma combinação ab; não se re­
cupera a origem. São só efeitos que estão lá. Não se detectam 
os elementos como componentes {a e b); se os reconstrói pelo 
jogo das diferentes formações discursivas. Logo, a ilusão só é 
dizível pela teoria e não pelas marcas, pois a heterogeneidade 
constitutiva não é representável, já que ela é do escopo do in^r- 
discurso. '
Além disso, a noção de heterogeneidade não considera a 
natureza da relação entre diferentes. Acreditamos que isso se dá 
pelo compromisso dessa noção com a enunciação. Ao fazer entrar 
a noção de enunciação, pelo mesmo movimento, se expulsa a 
de contradição e se reduz a importância do histórico e, de certo 
modo, reproduz-se a divisão: de um lado, as sistematicidades, de 
outro a obscuridade e a desordem.
No entanto, o trabalho de J. Authier traz um deslocamento 
importante ao modo como se considera a enunciação, pois a 
heterogeneidade refere o “enunciável” e não apenas o “grama­
tical”. Além disso, refere a produção do sujeito à ilusão necessá­
40
ria e constitutiva do seu modo de enunciação. Produz, no dizível, 
um recorte importante: não o que não se diz (o não-dito de 
O- Ducrot), mas o dizer do outro no um.
Esses deslocamentos são fundamentais, embora não sufi­
cientes para tratar, na questão da diferença, o que consideramos 
purticularmente sob a rubrica do silêncio. Para nós, falar é o 
C|ue, em francês, ̂se pode dizer-“ inter-dire’’: a) dizeç entre outras 
iralavras (o que seria a heterogeneidade), mas também b) proibir, 
tipagar outras palavras (0 que é mais propriamente o que cha­
mamos silêncio). Esta última é esquecida na noção de hetero­
geneidade.
Em nossa perspectiva, há um jogo de “transparências” (evi- 
clfincias, efeitos de discurso) que permeiam a produção dos sen- 
lidos e aos sujeitos na relação com o outro, resultando parado- 
xulmente na obscuridade dos limites dos sentidos e dos sujeitos.
Daí a importância metodológica da noção de paráfrase: por 
cia se pode observar a relação entre diferentes, tanto no interior 
clus mesmas formações discursivas, como entre distintas forma- 
ÇficB discursivas, pois são todas elas relações de paráfrase.
Na diferença, um é diferente do outro. Estão na mesma 
distância e é no movimento entre um e outro que podemos 
iil)i-eender as suas relações. Não é um o modelo e o outro a 
t'ópia. Não se trata de considerar um primeiro e um segundo 
(hicrarquizada e reguladamente), nem tampouco dois iguais e 
«c|)arados claramente entre si, em si.
O jogo de paráfrases é que dá as distâncias (relativas) dos 
síiitidos na relação de diferentes formações discursivas. Pelas 
iniráfrases, os sentidos (e os sujeitos) se aproximam e se afastam. 
Cuiifuiidem-se e se distinguem.
íí isso 0 que se percebe se, ao invés de se tomar como 
| |•íerôllcia (na produção do sentido) o sujeito centrado em si 
iiiciimo, pensa-se o jogo de relações entre formações discursivas 
dircrcntes.
0 conceito de heterogeneidade, dP-certo níodo, domestica 
n iioçSo de diferença, pois "ela rege a con-fusão entre os diferen- 
icR. Para a noção de diferença como a pensamos, por exemplo, 
fin relação ao discurso da colonização, com suas diferentes 
luriiiuções discursivas, não é possível fazê-lo.
Os sentidos circulam. Os processos de produção sao encon- 
II mios através dos jogos de paráfrases e das formações discursi-
41
vas. Inscrever um sentido na relação das diferentes formações 
discursivas, encontrar o seu lugar, o seu modo de significar, é 
o trabalho do analista do discurso.
Considerando-se que a relação com a alteridade, longe de 
ser direta, unívoca e clara, é con-fusa e des-organizadora do 
sujeito, podemos prever o esforço teórico e analítico que esse 
trabalho exige. O analista tem, pois, antes de tudo, que consi­
derar a des-organização das relações entre eu e tu.
À nlo-comunicação — que, como afirma Pêcheux, é igual­
mente constitutiva da linguagem — corresponde um movimento 
de identidades, função da ijiçompletude do sujeito e do sentido. 
Movimento que desemboca na des-organização dessa relação, já 
que ela é da ordem do inconsciente e do ideológico.
Há um des-controle nessas relações. E ao des-controle, à 
des-organização, à di-fusão, à con-fusão corresponde, a meu ver, 
não o heterogêneo mas a diferença: o silêncio(e não o implícito) 
como constitutivo, onde a metáfora tem o estatuto não do desvio 
mas do lugar da necessidade do sentido (que circula) e enfim a 
paráfrase como matriz em que o um remete ao outro mas sem 
porto originário (ou seguro). O sentido não_tem origem, Não há 
origem do sentido nem no sujeito (onto) nem na história (filo).„ 
Ó que há são efeitos de sentido.
Comó“"dissemos, 4iara. dar conta da exterioridade que cons­
titui 0 discurso, é preciso apreender as relações entre formações 
discursivBis. Essas„ relações, representantes da relação cõm_ a 
/ éxterioridade, se remetem ao interdiscurso, sendo este definido 
\comó o lugar de constituição dos sentidos, a verticalidade (do­
mínio da..memória) do dizer_ que retoma sob a forma do pré- 
cónstruído, o já-dito.
^Podemos dizer que a relação entre as formações discursivas 
é “soldada” pela existência do interdiscurso. E a exterioridade 
que consideramos como constitutiva só se define em função do 
interdiscurso, ou melhor, essa exterioridade tem o seu modo de 
existência definido pelo interdiscurso.
FDi / FD, 
INTERDISCURSO
EXTERIORIDADE
42
Assim, há uma relação entre limites de diferentes formações 
discursivas que atesta a relação do discurso com a sua exterio­
ridade. Isso é marcado pelo interdiscurso e seu modo de fun­
cionamento (o pré-construído) que atesta, por seu lado, a presen­
ça no inter (o já-dito) no intradiscurso, sendo este a seqüência 
que se está efetivamente realizando (formulando).
£ nessa linha de reflexão, pois, que pensamos a questão da 
heterogeneidade e da diferença: todo discurso atesta sua relação 
com outros (que ele exclui, ou inclui, ou pressupõe etc.) e com 
o interdiscurso (que o determina).
Vejamos, agora, o que se passa quando pensamos o sentido 
quanto:
a ) à natureza do processo de sua produção;
b) ao espaço;
c) ao tempo.
a) Essa natureza está — esse é um nosso princípio desde 
0 início de nossa reflexão em AD —, essa natureza está na 
relação entre “paráfrase” e “polissemia”, o que, em outra lin­
guagem, se diz o “mesmo” e, o “diferente” (o “outro”). Agora 
niio vendo mais, como víamos, em primeiro plano, apenas a 
tensão entre esses dois processos mas também a con-fusão entre 
cies. Confusos, pois obscuros e transparentes, misturados ou 
combinados, difusos ou dispersos. O “mesmo” e o “diferente” 
hl vezes não são passíveis de distinção no discurso.
b) O espaço em que se espraiam os sentidos é o da. multi­
plicidade, da largueza mas também da truncação: um sentido se 
(Icndubra em outro, em outros: ou se emaranha no seu mesmo e 
ilcle não se solta. Fica à deriva. Se perde em seu mesmo ou se 
imiiliplica.
c) O tempo é 0 da fugacidade. O sentido não se deixa 
pcgiir. Instável, errático. O sentido não dura, O que dura é seu 
"iiiviibouço”, a instituição que o fixa e o eterniza. Ele, no en- 
uiiilo, SC move em outros lugares.
Aí retornamos à distinção cópia/simulacro. A cópia: o mes- 
iiiu II partir de uma origem. O simulacro: a diferença sèm fundo. 
MliiiiçAo particular de significação em que jogam o sentido e o
43
seu duplo: in diferença, in-significância, in-disciplina, in-cons- 
tância.
Nesse nosso modo de ver, o sentido seria, em grande medida, 
des-controlado. Discursos como o discurso das descobertas se­
riam uma forma de controlá-lo. Aí o jogo da paráfrase e da 
metáfora atua fundamente no estabelecimento do um, do mesmo 
e da permanência do sentido.
É nesse plano que é útil a noção de Instituição tal como é 
trabalhada por Foucaidt: lugar da regularidade, da normativi- 
' dade que preside o discurso. O funcionamento dessa regularidade 
podé ser apreciado, no discursivo, pelo movimento que articula 
metáfora e paráfrase. A metáfora, que é condição de uso da 
linguagem, diz do uso de uma palavra por outra. A paráfrase 
é 0 uso do diferente no mesmo, do outro no um. Repetiçm 
A relação entre metáfora e paráfrase pode nos dar a larga 
dimensão do “sem fundo” do sentido. A verticalidade (o inter- 
discurso, 0 repetível), ao mesmo tempo, fixa e desmancha qual­
quer origem.
O assuieitamento supõe a repetição. Há o repetível dos 
fenuncíãdõs, ínas também há enunciados ^ u e são feitos para 
serem repetidos (“O Brasil foi descoberto por Pedro Alvares 
'Cabral”, “Nessa terra, em se plantando, tudo dá”); ou melhor, 
há enunciados que pertencem a essa zona de repetibilidade e 
que aí se representam na produção dos discursos.
Há modos de se produzir esse efeito do repetível. Por exem­
plo, falar sobre o “outro” para instituir a imagem de “ si”, cria 
sua tradição (sou-sempre-já), além de sua imagem (como deve 
ser). O pré-construído (o já-dito) em seu retorno produz a inter- 
incompreensão (desconstrução do “outro”) num movimento de 
concentração de sentidos.
Esse é o sentido radical da instituição na linguagem. É 
assim que o sentido ganha “corpo” como história, nessa relação 
tensa entre o fixar-se e o transmudar-se.
44
III. Civilizado e Cultura
A noção de “civilização”, diz N. Elias (1973), se liga “a 
liados variados: ao grau de evolução técnica, às regras do saber- 
viver, ao desenvolvimento do conhecimento científico, às idéias 
c usos religiosos”. Mas, se a gente pensa a função geral dessa 
iioção, descobre algo muito simples, ou seja, “a expressão da 
consciência ocidental, se poderia dizer, o sentimento nacional 
ocidental”.
Podemos perguntar, desse outro lado do Atlântico, como 
cHSa função geral “molda”, modela”, mesmo aqueles que não 
i‘Mão no centro de irradiação da “civilização”?
Aí é interessante observar qué junto à noção de civilização 
lií outra, a de “cultura” e que distingue nações do Ocidente. 
Segundo esse mesmo autor (N. Elias, idem), se nota a diferença 
ciilre 0 uso que fazem da noção da civilização, de um lado, os 
I rlinceses e ingleses e, de outro, os alemães. Nos primeiros, essa 
iitíçSo resume “orgulho da nação, progresso do Ocidente e da 
liiinianidade em geral”, mas, para os alemães, civilização designa 
iilgu útil porém de importância secundária. Para exprimir o 
i'<‘Hiilho de suas civilizações e de sua própria natureza,' eles em- 
picgam a palavra “cultura”.
45
Daí 0 autor conclui que a noção de “civilização” apaga até 
certo ponto as diferenças dos povos, coloca a ênfase naquilo que, 
na sensibilidade daqueles que se servem dela, é comum a todos 
os homens ou ao menos deveria sê-lo (grifo nosso).
Exprime a auto-satisfação dos povos cujas fronteiras nacio­
nais e as características específicas não são mais, há séculos, 
colocadas em questão, pois já estão definitivamente fixadas, 
povos que há muito já foram além de suas fronteiras e realiza­
ram atividades colonizadoras.
A noção de “cultura” não se tinge desse expansionismo e 
remete a um sentido de limites, de “interno”: “reflete a cons­
ciência de uma nação (no caso, a Alemanha) obrigada a se 
perguntar continuamente em que consiste seu caráter específico, 
em procurar e consolidar sem cessar suas fronteiras pohticas e 
espirituais”.
Na divisão das perspectivas européias, civilização se liga a 
idéia de processo e cultura à de produto.
Daí decorre o militantismo embutido na noção de civiliza­
ção. Daí a catequese, o universalismo religioso (“todos” os 
homens etc.).
Essa divisão — civilização/cultura — transplantada para o 
colonizado se instala, no mínimo, em uma contradição. Nós, 
submetidos aos desígnios (dever ser) da civilização ocidental, 
somos seres culturais, sobretudo quando resistimos em nossas 
diferenças, mas para isso perdemos a possibilidade de termos 
uma história. Já que é pela parcela que nos cabe na civilização 
ocidental que somos contados em uma história (a da coloni­
zação).
Voltamos pois à questão da identidade.
Nossa concepção (como poderá ser observada nos diferentes 
escritos sobre identidade no contato) é a de que a identidade é 
um movimento, tanto no seu modo de funcionamento (entre o 
eu e o outro) como em sua historicidade (devir, mas também 
multiplicidade na contemporaneidade etc.).
Quem é o brasileiro? Onde termina o índio (no contato), o 
português(na colonização), o italiano (nos movimentos migra­
tórios) e começa o brasileiro? Há situações interessantes que 
merecem nossa atenção no estudo desses câsos-limites, como se 
poderá observar no corpo deste livro.
46
o europeu nos çx>nstrói como seu “outro” mas, ao mesmo 
tempo, nos apaga. Somos o “outro”, mas o outro “excluído”, 
sem semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se colocam na 
posição de serem nosso “outro^E les são sempre p “centro”, 
dado 0 diicurso das des-cobertas que é um discurso sem rever- 
sibilidade. Nós é que os temos como nossos “outros” absolutos,
E nossa postura, aqui, não é estacionar no discurso que 
“define” o brasileiro e parar assim na sua definição (é “x”, ou 
6 “y”), mas pensar esse discurso que define o brasileiro como 
um “sintoma”, como um discurso que é constitutivo dos pro­
cessos de significação que constituem o imaginário pelo qual se 
rege a nossa sociedade, ou seja, como ela nos significa. Pro­
curamos, assim, atingir o modo de produção disso que funciona 
como “evidências” em nosso sentimento de brasilidade, isso que 
se dá como “ideologia”.
Nosso objetivo não é falar da “constituição da identidade”, 
mas antes do imaginário que se constrói para a significação do 
l)i'asileiro. Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como 
essa concepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação 
(Ic certos sentidos, efeitos de sentidos que produzem um imagi­
nário que coloca no brasileiro uma marca de nascença que fun­
cionará ao longo de toda a sua história: o discurso colonialista. 
O que significa “ter sido” colonizado em um discurso que 
íunciona para que seja essa uma marca a-histórica e de essência.
Por aí vemos que a ideologia não “aparece” em um passe 
de mágica. Ela tem uma materialidade e o discurso é o lugar 
cm que tm os acesso a essa materialidade.
Processos de discurso vão provendo o brasileiro de uma 
definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginá­
rio da sociedade brasileira.
O efeito ideológico — colonialista — não nasce do nada. 
Sun materialidade específica é o discurso.
Em nosso caso veremos como, pela determinação histórica 
(lo8 processos de produção de sentidos sobre o _brasilêíro, se 
çonstitui (sé^fixa) a relação colonizador-colonizado. De tal forma 
que, mesmo, depois dp período colonial, a marca de nascença 
do brasileiro se reproduz toda vez que se instalam, nas relações, 
im condições para que esse mesmo discurso Colonialista se realize 
(reforne)
47
Veremos como esses efeitos se produzem através de um 
jogo entre formas de discurso: a) o discurso de nossa história 
(nossa origem) é o discurso missionário que, por sua vez, regido 
pelo religioso, produz entretanto uma etnografia, elidindo a his­
tória; b) por outro lado, ainda mostrando a dominância do 
discurso do conhecimento, o discurso sobre as línguas e sobre 
nomes de lugares, objetos e fatos é um discurso científico: o 
discurso lingüístico.
Com a característica importante de que, ao falar de “nossas” 
coisas, se ressaltam sempre as suas “particularidades” (singula­
ridades).
Resulta que nós brasileiros spinos singulares. Somos singu­
lares em relação a quê, a quem?, à um padrãn-lá. O outro- 
europeu. ^ discurso da singularidade é o discurso da cultura 
(dominado pelo da “civlização”), que a-historici^
Fica sempre" como se só nós tivéssemos um “ outro” . O 
nosso outro é o português, o italiano, o francês etc. Como nos 
constroem uma história em que somos apagados como alteridade, 
somos apenas “singulares”, temos “particularidades”. Não somos 
0 outro constitutivo porque não “somos” (seres históricos etc.).
Em suma, vemos o discurso que define o brasileiro como 
constitutivo dos processos de significação — indefinidamente 
em circulação — do imaginário constituído por uma sociedade 
como a nossa. Nessas condições, não é o discurso do Brasil que 
define o brasileiro, é o discurso sobre o Brasil.
^*u ' ------
E como é que o brasileiro, nas malha^ do discurso colo­
nialista, produz os seus sentidos?
48
IV. Silêncio e Sentido
Também o que não é falado significa. Seria banal esta afir­
mação se ela apenas indicasse na direção do não-dito entendido 
como implícito: aquilo que não se diz mas que faz necessaria­
mente parte do que é dito (cf. Ducrot, 1972).
Em minhas reflexões tenho-me dedicado a compreender 
uma outra vertente do não-dito, a do silêncio. Esta se origina 
II0 fato de que a linguagem é política* e que todo poder se 
iicompanha de um silêncio, em seu trabalho simbólico. É o que 
lenho chamado “política do silêncio”, que, aliás, se subdivide 
em duas formas de exercício da significação:
ii) O silêncio constitutivo, ou seja, a parte do sentido que ne- 
cessariajnente se sacrifica, se apaga, ao se dizer. Toda fala 
silencia necessariamente. A atividade de nomear é bem ilus­
trativa: toda denominação circunscreve o sentidò do nomea­
do, rejeitando para o não-sentido tudo o que nele- Oão está 
dito;
1. A linguagem é política porque o sentido sempre tem uma,direção, 
lempre dividido.
49
b) O silêncio local: do tipo da censura e similares; esse silêncio 
é que é produzido ao se~proibir ãlgUns sentidos drcircularem, 
por exemplo, numa forma dé regime político, num grupo 
social determinado de uma forma de sociedade específica etc.
Nós nos temos dedicado ao estudo das diferentes formas de 
silêncio e de silenciamento, já que partimos do pressuposto de 
que, assim como a linguagem, o silêncio não é transparente e 
significa multiplamente (Orlandi, 1985, 1988 e 1989).
Nessa perspectiva histórica de nossa análise discursiva dos 
discursos sobre o Brasil — ou, o que dá no mesmo, análise da 
produção dos diferentes sentidos da brasilidade — o silêncio nos 
tem aparecido como nuclear na determinação histórica desses 
processos de significação que estamos procurando detectar.
O discurso sobre o Brasil ou determina o lugar de que 
devem falar os brasileiros ou não lhes dá voz, sejam os nativos 
habitantes (os índios), sejam os que vão-se formando ao longo 
da nossa história. O brasileiro não fala, é falado. E tanto há 
um silêncio sobre ele, como ele mesmo significa silenciosamente, 
sem que os sentidos produzidos por essas formas de silêncio 
sejam menos determinantes do que as falas “positivas” que se 
fazem ouvir categoricamente.
Mas, como o silêncio não fala, não é possível traduzi-lo em 
palavras. Desse modo, em nosso trabalho, são os mecanismos 
mesmo de funcionamento dos diferentes processos de significa­
ção que mostram o silêncio (que os constitui) que procuramos 
explicitar. Vale dizer que o silêncio a que nos referimos não é 
visto apenas na sua “negatividade”. O silêncio é. No silêncio, 
0 sentido é. Há história no silêncio porque há sentido no si­
lêncio.
Brasileiros, não falamos no discurso das descobertas mas 
fazemos outros falarem por nós e, mesmo quando não o fazemos, 
0 que existe não é o vazio, mas o silêncio que significa no 
contexto em que se produz. Podemos, assim, distinguir três 
formas de silêncio (Orlandi, 1989):
a) 0 silêncio fundador;
b) o silêncio constitutivo;
c) o silêncio local;
sendo, esses dois últimos, parte do que chamamos política do
50
silêncio, já que imprimem um recorte (entre o dito e o não-dito) 
no seu modo de significar, inscrevendo-se portanto no domínio 
do poder-dizer. O silêncio fundador não recorta: ele significa 
cm si. E é ele, afinal, que determina ^política do silêncio: é 
IJorque’ signific_a em si que o ‘[não-dizer” fa^ sentido e faz um 
sentido determinado, É ,o silêncio, fundador, portanto, que sus­
tenta 0 princípio de que^a linguagem é política.
Ná perspectiva do nosso trabalho, importa menos saber o 
(jue ficou silenciado e mais a própria política da palavra: que 
“x” se disse para não se dizer “y”? Como esse “y” silenciado 
acaba por significar ao longo das diferentes falas e dos seus 
«pagamentos?
O silêncio do nomear faz intervir o “ interdiscurso” do 
outro (o europeu), fazendo-nos significar (quer queiramos quer 
não) na história dos “seus” sentidos.

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