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ARTESANATO E CULTURA BRASILEIRA Paula Bem Olivo Cultura brasileira Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Explicar a formação cultural brasileira. Relacionar a cultura brasileira com a arte, o artesanato e a arquitetura. Reconhecer aspectos da diversidade cultural brasileira na arquitetura. Introdução O Brasil é um país que tem fama de ser uma grande mistura de raças. Isso acaba se confirmando quando olhamos para nossa cultura e identificamos influências de diversos povos, como indígenas, africanos e europeus. O fato de termos sido uma colônia de exploração acabou, muitas vezes, apagando aspectos que estavam intrinsecamente relacionados ao ter- ritório. No entanto, o desenvolvimento da arte e da arquitetura gerou movimentos capazes de reconhecer essa identidade e resgatar aspectos culturais relacionados à nossa origem. Neste capítulo, você aprenderá como se formou o que entendemos hoje como cultura brasileira, como seus aspectos aparecem na arte, no artesanato e na arquitetura e como a consequência dessa miscigenação gerou manifestações arquitetônicas extremamente diversas. O princípio da cultura brasileira O Brasil é um país conhecido pela sua miscigenação. É comum que se refi ra ao Brasil como um país bastante heterogêneo, que recebeu diversas infl uências e acabou com uma cultura montada a partir de um mosaico étnico. Sua história é a prova de que a formação cultural brasileira tem bases que permeiam vários continentes e povos. Os registros dos povos brasileiros iniciaram-se a partir do início da coloniza- ção portuguesa, no século XVI. Nesse momento, os europeus — principalmente portugueses — pisaram em terras brasileiras, trazendo seus costumes, religião e valores. O processo de colonização acarretou a fusão entre as características culturais dos povos indígenas brasileiros, dos colonizadores europeus e dos escravos africanos. Portanto, é possível resumir a formação da cultura brasileira a partir de três eixos principais: o indígena, o ibérico e o africano. Em 1808. a família real portuguesa, fugindo das invasões de Napoleão Bonaparte, mudou- -se para o Rio de Janeiro, tornando o Brasil sede da monarquia e vice-reino. Em 1822, houve a declaração de independência do Brasil, seguida da abertura dos portos ao comércio exterior. Essa resolução modificou muito a política e a economia do país, e a passagem dos novos comerciantes gerou muitos relatos a respeito da vida e dos costumes do Brasil. A maioria dos relatos concentra-se no Rio de Janeiro, onde a família real morava, e onde a cultura já era bastante variada, de cunho mais burguês, urbano e onde circulada a classe alta. O interior do País ainda tinha características culturais diferentes, onde predominavam nuances mais relacionadas à população nativa (OLIVEN, 2001). A cultura indígena brasileira tem forte influência na formação da identidade cultural do brasileiro. Antes da colonização, o índio tinha uma cultura bastante adaptada às características climáticas e ao cenário do País, desenvolvendo objetos e edificações com qualidades que suprissem as necessidades impostas por essas condições. A língua falada era o Tupi-Guarani; entretanto, esta não possuía escrita, o que dificultou o registro e a difusão da cultura indígena anterior à chegada dos portugueses. O documento escrito mais antigo é a carta de Pero Vaz de Caminha, em que este demonstra preocupação com a maneira de morar dos índios, classificando as edificações como “choupaninhas” sem repartimento e com apenas duas portas, onde moravam 30 a 40 pessoas (BRANCO, 1993). Entretanto, sabe-se que a cultura brasileira atual possui muitas referências indígenas. Ainda se usam muitos objetos de origem indígena, como a rede de descanso. A língua portuguesa tem muitos termos derivados do Tupi-Guarani. Durante o século XIX, foi desenvolvido o nheengatu, língua derivada do Guarani que foi usada por um tempo como língua geral e foi veículo de catequese, ações sociais e políticas, sendo mais falada que o português no Amazonas e no Pará até 1877. Atualmente, a língua portuguesa tem muitos termos Guaranis incorporados, normalmente designando animais ou plantas, como capivara, ipê, jacarandá, entre outros. O folclore indígena é bastante rico e ainda muito presente na cultura brasileira, principalmente na Região Norte, contando com a presença de personagens fantásticos, como o curupira, o saci- -pererê, o boitatá, a iara, entre outros. A colonização representou a destruição de grande parte das tradições indígenas por meio de guerras e escravidão. A catequese também acabou eliminando algumas tradições e impondo rituais relacionados à Igreja Católica. Cultura brasileira2 A língua nheengatu é falada ainda hoje por alguns povos no vale do Rio Negro, na Amazônia. Existem algumas iniciativas de recuperar a língua Tupi-Guarani por alguns povos, como os potiguaras da Paraíba e do Rio Grande do Norte e os tupiniquins da cidade de Aracruz, no Espírito Santo. A cultura africana foi inserida no contexto brasileiro por meio dos povos escravizados trazidos da África pelos colonizadores europeus. Estes falavam línguas diferentes e tinhas tradições distintas. Assim como os indígenas, os africanos tiveram sua cultura diluída pelos europeus colonizadores. Eles eram obrigados a aprender português, eram batizados com nomes portugueses e deveriam se converter ao catolicismo. Mesmo assim, a cultura africana conseguiu se inserir no contexto brasileiro e é parte importante da trama que compõe a cultura desse país. As religiões de origem africana firmaram raiz principalmente na Região Nordeste do Brasil, baseadas em cultos de orixás e praticadas ainda hoje. A mais conhecida e difundida é a umbanda. A cultura africana também teve muita influência no desenvolvimento da dança e da música de identidade brasileira. A música popular, como maxixe, samba, choro e bossa nova, tem como base ritmos de origem africana. A capoeira tem origem africana, mistura dança e artes marciais, bem como foi responsável pela introdução de instrumentos musicais, como o berimbau. A cultura ibérica foi a pauta de todas as adaptações culturais decorren- tes da colonização do Brasil. A catequização de índios e escravos africanos acabou por apagar alguns traços dessas culturas e começar a criar uma iden- tidade brasileira, que foi o resultado de uma combinação de várias vertentes. A herança mais evidente é a língua portuguesa. Da mesma forma, a mudança da família real para o Brasil acabou desenvolvendo uma cultura urbana e elitista em algumas áreas, especialmente o Rio de Janeiro. A partir dessa relação, acabaram sendo introduzidos no Brasil os grandes movimentos ar- tísticos, como renascimento, maneirismo, barroco, rococó e neoclassicismo. O Brasil desenvolveu algumas linhas desses movimentos com características próprias, mas a influência das características europeias ainda era muito grande. O desenvolvimento da cultura brasileira ainda era muito relacionado a pessoas formadas na Europa, que voltavam para o Brasil trazendo as tendências de comportamento e arte. Além disso, durante os séculos XIX e XX, o Brasil recebeu muita imigração europeia de outros locais, principalmente italianos 3Cultura brasileira e alemães. A maioria destes se fixou no sudeste e no sul do País, tentando aproximar-se dos climas de seus países e manter suas técnicas de cultivo. Dessa forma, o Brasil acaba desenvolvendo culturas bastante distintas nas suas diversas regiões, fator facilitado pela larga extensão de seu território. O Brasil começa a reconhecer sua identidade cultural específica no iní- cio do século XX. Acompanhando as tendências das vanguardas artísticas europeias, os artistas brasileiros organizam a Semana de Arte Moderna, em 1922 (Figura 1). O evento aconteceu no Teatro Municipal, em São Paulo, e contou com artistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, AnitaMalfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tácito de Almeida e Di Cavalcanti. A pauta era baseada principalmente na intenção de renovação da poesia pro- duzida no Brasil, que esse grupo considerava arcaica e excessivamente formal. A apresentação do poema Os sapos, de Manuel Bandeira, foi um marco na contestação da estrutura literária vigente. Da mesma maneira, outras formas de arte foram constatadas durante o evento. Anita Malfati foi uma importante personagem para a atualização da pintura, exibindo quadros com influências expressionistas e cubistas. Figura 1. Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922. Fonte: São Paulo (1922, documento on-line). Cultura brasileira4 A partir de então, formou-se um grupo de artistas de vanguarda que se preocupavam com a produção cultural brasileira. Apesar das influências europeias, começou a se identificar uma estética e temática tipicamente bra- sileiras. Tarsila do Amaral, apesar de não ter participado da Semana de Arte Moderna de 1922, foi uma pintora que representou os cenários e a estética brasileira neste novo período. É importante ressaltar que a cultura brasileira, tanto erudita quanto popular, já era produzida de forma extensa por todo o território, cada um com suas nuances. Os grupos de vanguarda tiveram papel importante em reconhecer essa cultura como identidade brasileira e incentivar a propagação e a exaltação daquilo que é tipicamente deste país. Durante o século XX, essa cultura foi se desenvolvendo e o Brasil foi se reconhecendo como um país com uma identidade cultural. Nos anos de 1960, surge o tropicalismo, movimento que enaltece a brasilidade e exalta as características culturais brasileiras. O tropicalismo se desenvolveu em diversas áreas, sendo a música uma das principais áreas. Em 1968, é lançado o álbum Tropicália ou Panis et circencis, por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. Esse álbum foi um marco para a música popular brasileira e teve como objetivo demonstrar uma produção com identi- dade cultural. As artes plásticas contaram com Helio Oiticica, que apresenta, em 1969, a obra Tropicália, montando uma instalação com materiais, texturas e objetos tipicamente brasileiros, como o tecido de chita, a areia e as palmeiras. Da mesma forma, o cinema, o teatro e outras artes se desenvolvem buscando esta carga de nacionalismo. Assim, o reconhecimento da identidade brasileira, nessa época, é de extrema importância para a formação de uma consciência cultural nacional, em que o brasileiro consegue identificar suas características e estabelecer uma identidade relacionada com sua história e seu território. Arte, artesanato e arquitetura brasileira A formação da cultura brasileira ocorreu, portanto, por meio da infl uência dos diversos povos que passaram por nosso território. Cada grupo trouxe suas referências, e estas foram unifi cadas e adaptadas ao novo contexto. Dessa forma, o Brasil teve suas manifestações culturais permeadas de nuances de muitas outras culturas, até que reconheceu, nessa mistura, sua própria identidade. 5Cultura brasileira A produção do artesanato, por exemplo, é uma manifestação cultural que retrata mais comumente as características da cultura popular de um local, e está historicamente ligada à produção de utensílios e adornos, trabalhos feitos de forma manual, sem a utilização da indústria. No século XIX, os mestres criaram as Corporações de Ofício, a fim de transmitir seus conhecimentos a respeito de trabalhos manuais. A Revolução Industrial acabou desvalorizando muito o trabalho de artesãos, já que a indústria conseguia produzir de forma mais rápida e barata. O movimento de Artes e Ofícios, surgido em meados do século XIX e liderado pelo inglês William Morris, tinha como objetivo a valorização dos trabalhos manuais. Atualmente, ainda existe a dicotomia entre artesanato e indústria, porém já parece ser bastante claro a diferença entre os dois. Enquanto a indústria produz produtos em larga escala de forma utilitária, o artesanato produz em pequena escala, considerando cada objeto como único e sendo a tradução dos costumes e das tradições de uma região. O artesanato brasileiro é uma grande expressão da cultura local. Ele garante o sustendo de muitas famílias e representa bem a história da cultura nacional. O artesanato indígena foi um dos primeiros a exprimir a identidade brasileira. Existem relatos dos portugueses quando desembarcaram no País e se depara- ram com uma grande gama de pigmentos naturais, cestaria e cerâmica. Além disso, a arte plumária (i.e., a confecção de cocares e outros adereços com plumas de aves) era bastante expressiva. A cerâmica se desenvolveu bastante em regiões em que havia barro disponível. No nordeste, é possível encontrar representações de barro de figuras locais, como cangaceiros e rendeiras. A confecção de rendas ainda é uma das produções de artesanato mais típicas e se desenvolveu também no norte, nordeste e sul. O tipo de renda e a forma de confecção varia conforme a região. O artesanato em madeira é proveniente da confecção de armas, embarcações, instrumentos musicais, etc. Por meio do entalhamento, pode-se produzir máscaras e reproduzir cenas. Além disso, pode-se usar a técnica na fabricação de móveis e outros utensílios domésticos. Os índios também deixaram como herança a técnica de trançar fibras, produ- zindo cestas e esteiras. Essa técnica era utilizada na confecção de redes, balaios, chapéus, etc. Também foi muito utilizada na decoração, sendo explorado um trançado com figuras geométricas ou outros desenhos. A arte brasileira começa a criar identidade própria a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Antes disso, encontram-se vestígios de pinturas rupestres em alguns locais na Região Norte. Existem registros arqueológicos de vasos relacionados a figuras mitológicas, mas a falta de um registro escrito Cultura brasileira6 impede que se tenham maiores detalhes do cenário artístico indígena anterior à chegada dos portugueses. Com a chegada dos europeus, a arte desenvolveu-se muito pautada pelas tendências da Europa. Brasileiros iam para a Europa para aprender pintura e voltavam para o País trazendo as novas tendências. Nomes como Pedro Américo e Victor Meirelles receberam incentivo do governo brasileiro para se formarem na Academia imperial de Belas Artes de Paris, na França. Eles voltaram ao Brasil munidos das técnicas de pintura neoclássicas e românticas e foram os responsáveis pelo desenvolvimento do academicismo no Brasil. Os dois receberam muito reconhecimento de Dom Pedro II, então imperador residente no Brasil. Dessa forma, pintaram cenas históricas muito importantes na história do País. O quadro A primeira missa no Brasil (Figura 2), de Victor Meirelles, pintado em 1861, e o quadro Independência ou Morte (Figura 3), de Pedro Américo, pintado em 1888, são importantes registros de acontecimentos relevantes. Existem algumas manifestações de artistas que não tiveram formação na Europa, como é o caso de Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho. Não há muito certeza a respeito de sua biografia, mas este teve formação em um seminário em Ouro Preto. Durante sua vida, produziu esculturas atreladas a igrejas de caráter barroco e rococó. Sua obra é vastamente conhecida e apreciada. Figura 2. A Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles. Fonte: Meirelles (1860, documento on-line). 7Cultura brasileira Figura 3. Independência ou Morte, de Pedro Américo. Fonte: Meirelles (1860, documento on-line). A Semana de Arte Moderna de 1922 deu visibilidade à identidade ar- tística brasileira. As vanguardas artísticas do início do século XX tinham como pauta o abandono do academicismo e do historicismo. No Brasil, isso representou o afastamento da pintura e da literatura mais relacionadas ao meio acadêmico europeu e a busca por um nacionalismo e uma identi- dade própria. Neste contexto, surgirampintores como Tarsila do Amaral. Ela estudou em academias europeias e teve contato com mestres, como Pablo Picasso e Fernand Léger. De volta ao Brasil, em 1924, Tarsila come- çou a pintar elementos que considerava tipicamente brasileiros e iniciou uma fase que se chama “Pau-Brasil”. Pintava com cores vivas e tropicais, enfatizando elementos da fauna e da flora brasileiras. Também retratou má- quinas e símbolos da nossa modernidade latente. Seu quadro mais famoso, o Abaporu, originou o Movimento Antropofágico no Brasil (Figura 4). Esse movimento tinha como objetivo a digestão das características es- trangeiras, como um ritual canibal, e a liberação de uma arte com uma atmosfera mais brasileira. A partir de então, a arte brasileira começou a criar sua feição, e suas manifestações iniciaram um movimento de exaltação das características nacionais. Cultura brasileira8 Figura 4. Abaporu, de Tarsila do Amaral. Fonte: Amaral (1929, documento on-line). Dentro da arquitetura, o movimento ocorreu basicamente da mesma forma. A produção arquitetônica estava muito atrelada a influências europeias. As manifestações barrocas, neoclássicas e ecléticas são quase cópias do que estava sendo produzido na Europa. Pode-se destacar o barroco mineiro, que teve um desenvolvimento bastante peculiar e com características nacionais. A partir do início do movimento artístico moderno brasileiro, a arquitetura também se desenvolveu, no sentido de encontrar uma identidade própria. A primeira manifestação modernista é a Casa Modernista, de Gregori Warcha- vchik, construída em 1928, em São Paulo. Esta ainda tinha um caráter genérico, característico do que o movimento moderno pregava. O projeto do Ministério da Educação e Saúde, ou Palácio Capanema, feito por Lucio Costa e equipe (entre eles Oscar Niemeyer) marca o início do modernismo brasileiro. Le Corbusier visitou o Brasil, em 1929, e fez um esboço para esse edifício, porém em um terreno que não foi o final. Lucio Costa e equipe, entretanto, desenvolveram o projeto de forma bem autoral, criando uma implantação diversificada e uma estética própria. Burle Marx teve seu papel em tornar o edifício ainda mais brasileiro com os projetos de paisagismo. A partir desse ponto, Lucio 9Cultura brasileira Costa e Oscar Niemeyer foram personagens cruciais para a formação de uma arquitetura brasileira. Os dois desenvolveram projetos com características nacionais e que se destacavam no cenário arquitetônico mundial. Em 1943, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque faz uma exposição chamada “Brazil Builds”, que mostra construções brasileiras de 1652 a 1942, uma demonstração da consolidação da arquitetura brasileira. A construção de Brasília, em 1960, foi o ápice deste nacionalismo. A cidade é a materialização do que significa a arquitetura moderna brasileira. A partir de então, esta ganhou características próprias muito claras e reconhecidas em todo o mundo. Arquitetura brasileira e a diversidade cultural A Semana de Arte Moderna de 1922 foi um importante marco nas expressões culturais do Brasil. Por um lado, as vanguardas rejeitavam o historicismo e as referências a tempos passados. Por outro, o movimento brasileiro buscava uma retomada do nacionalismo. Segundo Oliven (2001, p. 5): Nesse sentido, a partir da segunda parte do modernismo (1924 em diante), o ataque ao passadismo é substituído pela ênfase na elaboração de uma cultura nacional, ocorrendo uma redescoberta do Brasil pelos brasileiros. Apesar de um certo bairrismo paulista, os modernistas recusavam o regionalismo, pois acreditavam que era através do nacionalismo que se chegaria ao universal. Assim, para os modernistas, a operação que possibilita o acesso ao universal passa pela afirmação da brasilidade. Existe, portanto, um viés que tenta negar as diversas manifestações ao longo do território e tenta unificar a cultura brasileira como apenas uma. Em 1926, é lançado, no Recife, a capital mais desenvolvida da Região Nordeste na época, o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. O manifesto tem como objetivo con- testar o modernismo que estava sendo desenvolvido na Região Sudeste. Gilberto Freyre enfatiza a importância das regiões como unidades de organização nacional e ressalta a importância da valorização das tradições regionais. Ainda, ressalta a vastidão do território e demonstra a diversidade de manifestações culturais. Freyre traz como exemplo de contribuição à cultura brasileira os mocamos, aldeias de escravos (Figura 5). O autor diz que esta é a representação de uma edificação econômica, de natureza regional, representada pela materialidade (madeira, palha, cipó e capim). Também defende a preservação da culinária como tradição. Seu texto é todo voltado para o nordeste, porém pode ser compreendido como uma consideração às diferenças regionais que existem Cultura brasileira10 em nosso país. Entretanto, o manifesto acaba tendo uma conotação contrária ao modernismo que surgia, apesar de não fazer essa referência específica. O território brasileiro, por ser muito vasto, ainda tem esta questão divergente a respeito de uma unidade cultural e da valorização do regionalismo. Apesar das duas coisas parecerem excludentes, ainda se consegue pensar que o regio- nalismo possa ser um caminho para o nacionalismo. Freyre diz que o único modo de ser nacional é ser, primeiro, regional. É o que os modernistas a partir da segunda fase do movimento (depois de 1924) pensaram quando entenderam que a única maneira de ser universal é ser nacional antes (OLIVEN, 2001). Figura 5. Mocamos, aldeias de escravos. Fonte: Santos (2014, documento on-line). Portanto, dentro do Brasil, existem diversas variáveis a serem consideradas quando se fala em identidade cultural. Existe a ideia de que nossa cultura é uma fusão entre a indígena, a africana e a europeia. Existe a questão de que cada região do País tem um clima e, portanto, características diferentes. A mudança de clima gerou uma diferença no recebimento de imigrantes — os europeus tendiam a ir para o sul, em busca de um clima mais parecido com o de seu país. A proximidade com outros países latinos ou com o mar também causou diferenças culturais. Além disso, os cenários de fauna e flora são extremamente diferentes em todo o País. Outra variável importante é a diferença entre os centros urbanos e o interior. Mesmo dentro de uma região, essa diferença pode ser bastante considerável em termos de estilo de vida e costumes. 11Cultura brasileira Considerando-se a presença de tantas variações, fica difícil aceitar que seria possível produzir apenas uma arquitetura. As mudanças de clima, por exemplo, já geram, por si só, situações arquitetônicas completamente dife- rentes. A relação com o contexto também pode influenciar muito no processo de criação. Além disso, as referências históricas e culturais de proveniências diferentes acabam produzindo edificações diferentes. É natural, portanto, que tenhamos manifestações arquitetônicas bastante distintas. No nordeste, existe uma vertente que valoriza bastante a cultura local, enaltecendo o artesanato e técnicas mais manuais. O clima mais quente permite edificações com influências de locais onde faz mais calor, como países de origem árabe. O sudeste tem uma arquitetura com um caráter bastante urbano, diferindo muito, inclusive entre o eixo Rio-São Paulo. A escola Carioca produz edificações mais abertas e leves, talvez relacionadas à presença do mar na cidade. A Escola Paulista desenvolveu o brutalismo, com edificações pesadas de concreto. O norte tem ainda a característica da herança indígena, reproduzindo técnicas e estética. O centro-oeste tem um caráter mais rural, com exceção da inserção de Brasília, uma manifestação bastante urbana. O sul muitas vezes copiou o que estava sendo produzido no eixo Rio-São Paulo. Entretanto, existe uma unidade entre as adaptações feitas, muitas vezes considerando o clima e a paisagem diferentes. Além disso, os imigrantes alemãese italianos tiveram grande influência na produção dos estados do sul, principalmente fora dos centros urbanos. Apesar de existirem diferenças tão grandes entre as regiões do Brasil, é possível entender a arquitetura brasileira como uma constante, com adaptações regionais. O que Gilberto Freyre quis dizer em seu manifesto pode ainda ser aplicado atualmente, ou seja, a valorização das identidades regionais é o caminho para se entender a identidade nacional. AMARAL, T. Abaporu. 1929. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Abaporu. jpg. Acesso em: 09 jul. 2019. AMÉRICO, P. Independência ou morte. 1888. Disponível em: https://commons.wikimedia. org/wiki/File:Pedro_Am%C3%A9rico_-_Independ%C3%AAncia_ou_Morte_-_Goo- gle_Art_Project.jpg. Acesso em: 09 jul. 2019. BRANCO, B. C. Arquitetura indígena brasileira: da descoberta aos dias aluais. Revista de Arqueologia, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 69–85, 1993. Cultura brasileira12 MEIRELLES, V. The first mass in Brazil. 1860. Disponível em: https://commons.wikimedia. org/wiki/File:Meirelles-primeiramissa2.jpg. Acesso em: 09 jul. 2019. OLIVEN, R. 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