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1 CAPÍTULO 3 SOCIOLOGIA E NOVAS TECNOLOGIAS Fala-se muito em uma dependência tecnológica que distingue o homem contemporâneo de seus ancestrais. Deslumbrados com toda a parafernália de máquinas incríveis que hoje nos envolve, tendemos a crer que a tecnologia tornou-se o grande mote de nosso tempo. De fato o homem contemporâneo se vê cercado de máquinas como nunca se viu antes, mas antes que essa constatação nos conduza a mitificar as novas tecnologias, comecemos por considerar que o homem sempre se valeu de seu poder de modificar o mundo para sobreviver e aprimorar suas atividades. Seria difícil imaginar a própria sobrevivência da espécie humana, não fosse nossa capacidade de mudar as coisas proporcionando-lhes novas e eficientes funções. Mas afinal, o que é tecnologia e o que de fato nos faz tão dependentes dela? Vistas como extensões de nosso corpo ou de nossa mente, as tecnologias são o produto de da eterna insatisfação com os limites que o mundo nos impõe. Se Deus deu aos pássaros as asas que negou aos homens, só mesmo com as máquinas voadoras poderíamos superar a imensa angústia de não voar. Com a flecha pudemos estender os braços para bem mais longe, com a roda inventamos pernas mais rápidas e, por esse caminho, fomos incorporando essas tecnologias ao cotidiano, a ponto de não mais podermos viver sem elas. E o que dizer do que significou o domínio do fogo, talvez disparadamente a maior conquista tecnológica da história da humanidade? Por isso não cremos que a dependência tecnológica seja uma exclusividade moderna, na medida em que sempre nos tornamos dependentes das tecnologias que introduzimos no cotidiano. Mas há de fato algumas diferenças no significado das tecnologias para o homem contemporâneo e cremos que possamos buscá-las num breve exercício de imaginação sociológica, imergindo nas peculiaridades de nossa condição histórica atual. Desde o nascimento da modernidade cada vez mais se afirma o poder da ciência como saber oficial. Mesmo que isso não signifique o sepultamento de outras maneiras de ver o mundo, especialmente da religião, que nunca deixou de ter um lugar importante no emaranhado de sentidos que nos orienta na vida, a consolidação de uma era científica mudou também nossa maneira de construir esperanças com relação ao futuro. Em outros tempos essa relação pautou-se quase exclusivamente pela idéia de salvação e, como sabemos, tal perspectiva não se sustenta pelos caminhos racionalistas por que trafega o saber científico. Para que se afirmasse uma “era da ciência” foi necessário que um outro tipo de promessa viesse ao menos aplacar o vazio de significados deixado pela inoperância da salvação de um ponto de vista científico. Pois bem, a era da ciência traz consigo a promessa do avanço dos poderes humanos sobre a natureza e sobre suas próprias necessidades organizacionais, estabelecendo assim com seus fiéis, um compromisso tecnológico. Dessa forma, viver em tempos modernos significa também deslocar o olhar no que tange às nossas ligações com o futuro. Se um homem tipicamente pré-moderno olhava para o horizonte esperando por uma aparição da Virgem, o homem tipicamente moderno olha para o outdoor da esquina na esperança de vislumbrar a mais nova versão de um superproduto que irá, supostamente, mudar sua vida. Digamos então que o frenesi das novas tecnologias, a maneira expressa com que aparecem novidades e com que se dá a obsolescência das coisas em nosso tempo, de fato aumentam a dependência tecnológica do homem contemporâneo. Mas entre a tela representada pelas luzes enigmáticas do céu crepuscular tal como se observa por trás 2 dos contornos de uma montanha e aquela apresentada pela arte do outdoor da esquina, há outras importantes diferenças que merecem ser examinadas em suas decorrências sociológicas. 1. Territórios e territórios virtuais Há, em primeiro lugar, a quase ausência de coisas naturais a nossa volta. As sucessivas revoluções industriais, cada uma delas mais intimamente ligada aos progressos da ciência que a outra, foram de fato instituindo ambientes artificiais nos quais tem lugar uma parafernália comunicacional. A cidade moderna é uma imensa floresta sígnica, tem tanta placa, tanta sinalização, tantos reclames publicitários e, sobretudo, tanta tela, que os antigos problemas causados pela falta de informação são em grande parte substituídos pelos problemas que vêm do excesso. Na cultura do excesso se amplia também a interdependência humana, pois se intensifica a tal ponto a divisão do trabalho, que uma simples caneta esferográfica resulta ser produto da ação de muitos homens, inseridos em linhas de montagem as mais diversas e, provavelmente, espalhadas por vários pontos do planeta. Isso significa que ninguém sozinho é capaz de fazer nenhum dos mais insignes objetos que nos cercam. Cercamo-nos assim de objetos que não sabemos fabricar e sem os quais não sabemos mais viver. E talvez descartemos esses objetos antes mesmo de explorar todas as suas possibilidades, substituindo-os por similares mais avançados. Essa profusão sígnica inaugurada pela cidade moderna, na posmodernidade transcende as territorialidades tradicionais e advém uma grande rede comunicacional ainda mais profusa em informações do que o cenário urbano. A WEB 1 , cenário parcial da vida pós-moderna, significa também expansão da condição humana por territórios exclusivamente sígnicos, de forma que o espaço se enche de ambiências puramente imagéticas, cenográficas, onde as fronteiras que separam o real do imaginário tornam-se tênues (Baudrillard, 1972). Em segundo lugar vem a inelutável sensação de que o tempo e o espaço estão encolhendo. Nossa relação com tais categorias tão arraigadas que nos acometem à percepção, tem sofrido profundas mudanças. As tecnologias da informação certamente ocupam papel central nesse processo, afinal não faz tanto tempo assim que uma mensagem precisaria viajar de navio ou a cavalo para chegar a outro ponto do planeta. Devemos considerar que tais tecnologias desterritorializam as trocas comunicativas e, por conseguinte, as comunidades humanas. Isso trouxe novas formas de sociabilidade e novos critérios para a construção de relações sociais. Em terceiro lugar, as grandes mudanças tecnológicas que assolam nosso tempo não se dão apenas como produto da ciência e como ampliação exponencial da circulação da informação, mas por trás de tudo isso há a mola propulsora dos interesses econômicos do capitalismo das grandes corporações. Aquilo que se costuma denominar “globalização” é um fenômeno histórico planetário, no qual o arranjo de forças que produzem e mantém a ordem sofre profundas modificações. Tudo o que o outdoor anuncia está convertido em mercadoria e isso inclui as pessoas, que se tornam vendáveis por sua visibilidade. Novos atores como as grandes corporações transnacionais, extrapolam os limites do poder que antes era gerido pelos Estados-nação, impondo seus 1 A WEB, em inglês, world wide web, traduzido para o português como rede de alcance mundial, representa um sistema transferência de dados e conteúdos em formato multimídia, operada pela Internet. 3 interesses pelos canais da rede informacional. A sociedade em rede reedita uma mentalidade individualista, mas não isenta de éticas coletivistas, consumista, mas não isenta de preocupações ecológicas e cultuadora do sucesso profissional, na qual o acesso às novas tecnologias se consagra como obsessão generalizada (Bauman, 1999). Por fim, vale lembrar que uma vida dividida entre territórios físicos e telemundos virtuais exige habilidades perceptivas e cognitivas diferenciadas de seus protagonistas (Virilio, 1993). Se, como já dissemos, tecnologias ampliam nossos poderes físicos e mentais, devemos situar as novas tecnologias da comunicação como umanova extensão da mente. Se a roda nos deu pernas velozes e o confinamento de gases aquecidos nos deram asas, são tecnologias físicas, na medida em que ampliam nossos poderes sobre a natureza. Denominamos tecnologias virtuais aos produtos de nossa engenhosidade que potencializam poderes mentais, como a álgebra, o ábaco e a planilha, que ampliam nosso poder de calcular, o dinheiro que possibilita o uso de abstrações numéricas para realizar trocas materiais ou a biblioteca, o incrível armazém mnemônico que guarda registros de grande parte da saga humana. E agora a WEB. Dividindo o espaço em um lado físico e um lado comunicacional e concentrando- nos nesse último, podemos inferir que as tecnologias que ampliam a mente, de uma forma ou de outra, funcionam como mídias. De um ponto de vista sociológico mídias são ferramentas, suportes ou veículos que viabilizam trocas lingüísticas e simbólicas entre os homens, tornando possível a virtualização dessas trocas, ou seja, seu deslocamento no tempo e ou no espaço. Com o uso de uma mídia posso falar com pessoas que estão em outro lugar ou em outra geração. Nesse sentido, a grande mídia que atravessa a história tendo nela um papel determinante, é esta da qual fazemos uso aqui: a escrita (Debray, 1993). 2. Mídia e sociedade A não ser na relação presencial face-a-face, mesmo esta mediada pelos códigos da língua e dos gestos, toda a comunicação humana circula através mensagens impressas em mídias. Mídias são mediadores técnicos para a comunicação e a interação humana, que oferecem possibilidades e limitações com relação ao seu uso, de forma que, se por um lado, usamos nossa liberdade para explorar seus recursos e nossa criatividade para inovar conteúdos, por outro somos aprisionados às suas limitações técnicas, obrigando- nos a adaptarmo-nos a elas. Por isso ao mesmo tempo em que um meio serve a uma mensagem, na medida em que a veicula e dá corpo, também a condiciona, interferindo mesmo no seu significado (McLuhan, 1972). Dessa dialética complexa resulta que mídia se torna uma palavra polissêmica, pois pode se referir aos suportes, aos conteúdos que esses suportes veiculam ou ainda, aos códigos e linguagens que por eles são articulados. Pensando sobre suportes, ilustremos com o exemplo do livro, cuja história começa com tábuas e blocos de pedra, passa por papirus e pergaminhos até chegar no códice. Em cada momento se acoplam novos usos e novos sentidos. Em blocos de pedra os livros veiculavam regras elementares e mitos fundadores, tendo como público principal os descendentes dos emissores. Nos papirus, conquistando a portabilidade, abundam, além do que nas pedras e tábuas já se fazia, documentos contábeis e contratos privados. Com o códice e sua funcionalíssima estrutura de páginas, os livros ganharam uma forma definitiva, suficientemente potencializada para o registro inumerável das mais variadas formas de experiência humana. Agora vem o ebook, reivindicando uma nova forma 4 tendencial ao velho livro. Pensando ainda sobre suportes podemos falar do caminho que vai do cinema mudo ao cineplex, da tela catódica ao LED, da fita magnética ao pen drive, do analógico ao digital. Pensando sobre conteúdos que os suportes veiculam, lembremos primeiro de como as mídias são apropriadas por elites governantes e poderes instituídos ao longo da história, servindo assim, à manutenção da ordem. Não há exemplo melhor do que aquele representado pela televisão na manutenção do discurso de sustentação da Ditadura Militar no Brasil dos anos 60 e 70. Lembremos, em seguida, do que fez a arte, muitas vezes a serviço dos referidos poderes, outras até de seu contrário, inundando o mundo de bens culturais, de imaginação, registros e encantamento. Depois lembremos das profissões e dos ramos de negócios que se dedicam às mídias, as empresas de comunicação, a publicidade, com todas as suas variações, o jornalismo, com todas as suas variações, as relações públicas, as assessorias, as produções, etc. Cada um desses profissionais desenvolve suas técnicas, cria modalidades de discurso e assim vão surgindo novas mídias. Com os propósitos que norteiam seus objetivos, esses profissionais criam também novos suportes. Pensando sobre códigos basta lembrar que cada mídia, em função dos recursos que manipula, nasce carente de desenvolver sua própria linguagem, ficando muitas vezes dependente de códigos alheios enquanto não encontra aqueles que lhe proporcionarão identidade própria. As primeiras produções cinematográficas mais parecem um teatro filmado. É sabido o quão importante foram cineastas como Eisenstein e Hitchcock para que o cinema ganhasse uma linguagem própria 2 . Conteúdos, códigos e suportes vão assim se combinando de forma que , aos olhos da sociologia, uma mídia não é compreensível senão como a combinação de tudo isso, a ser estudada por suas decorrências cognitivas e pelos usos a que servem no âmbito das interações humanas, considerando suas implicações ideológicas e os contextos em que se manifestam. Para lembrar um velho mestre, uma mídia é um suporte tecnológico mais o uso que se faz dele (Veron, 2004). A Modernidade nasceu com uma revolução midiática, viveu uma segunda em seu apogeu e há indícios de que está vivendo uma terceira nas primeiras décadas do século XXI. A primeira tem seu ponto de partida na máquina de Gutemberg, segunda metade do século XV, que transforma o livro num bem cultural amplamente circulável. Com ela se consolidam o conhecimento científico, a economia de mercado e o Estado de Direito. Também se consolida o nascimento de uma massa letrada que consome bens culturais anonimamente nas cidades, o jornal e a notícia como fonte de informação cotidiana, desenvolvendo-se assim como uma cultura narrativa, a que Debray denominou “grafosfera”, caracterizada por uma racionalidade linear cartesiana e um culto ao progresso (Debray, 1993). O gentil homem burguês em seus trajes, gestos e retórica, bem como a forma dos códigos e estatutos do direito, assim como a novela romântica e o romance, são exemplos claros da eloqüência que essa revolução engendrou. A segunda revolução midiática, que caracteriza o auge da modernidade, remonta o poderoso advento da industrialização da cultura através dos meios de comunicação de massas a partir da década de 1920. O cinema, a radiodifusão, as revistas, o out door e a TV são suas principais mídias. Com elas, imagens e sons vêm combinar com as letras 2 É sabido que as primeiras gerações de cineastas estabeleceram codificações que iriam marcar toda a história posterior do cinema. Como estruturar um set de filmagem, como estabelecer planos para iluminação e captação das formas, como montar e sonorizar cenas, tudo isso caracteriza um grande código que norteia a narrativa cinematográfica. 5 para inundar o cotidiano de mensagens. Sem um comprometimento maior do racionalismo próprio da revolução anterior, tais mídias passaram a fomentar uma estetização da vida que nos conduziria à espetacularidade do cenário contemporâneo. Consolida-se a sociedade e a cultura do consumo com seu star system fabricando celebridades, anunciando novos costumes, introduzindo modismos e intervindo na educação. É a era do simulacro, da moda, do consumo, do hiperreal e das cenografias com que, como já mencionamos aqui, tornam-se turvas as fronteiras que separam o real do fictício. Operou-se também nesse período, o questionamento mais intenso das ideologias e doutrinas construídas no calor dos tempos gráficos e os valores se relativizaram. A intensificação do contato entre culturas veio laurear a complexidade do universo pop, na qual a razão convive com toda sorte de sensações, seduções e experiências sensoriais. A terceira revolução midiática é tão recente que não há como avaliar suas proporções,está acontecendo agora bem diante de nossos olhos, e interessa à sociologia por pelo menos dois caminhos bem distintos: suas implicações cotidianas, resultantes do advento de redes sociais, gerando novos arranjos de comunidades, subjetividades e sociabilidade, bem como implicações políticas organizacionais, resultantes de uma nova ordem operacional planetária que Castells denominou “Sociedade em Rede” (Castells, 2000). 3. Sociabilidade e Redes Sociais. Novas mídias são aquelas que quebram a distância que separa o emissor do receptor, mediante o aprimoramento das possibilidades da interatividade por via da rede 3 . Nas mídias tradicionais centros emissores equipados com aparelhagem, discurso e produção próprios, constroem a mensagem e a enviam para receptores que a transmitem, configurando assim uma “via de mão única”. Nas novas mídias denominadas “redes sociais”, ao contrário, pessoas plugadas emitem e recebem mensagens imediatamente e pela mesma máquina, configurada com alguns programas e componentes básicos, podendo se cercar de vários recursos para produzir e modificar mensagens e fazê-las circular em escala global. Um efeito imediato da difusão desta tecnologia foi o nascimento de comunidades virtuais, compostas por associados espontâneos, onde a cada dia mais se aglutinam interesses e afetos, sugerindo que as formas mais elementares da sociabilidade como o “estar junto com” e o “estar junto por estar” venham se desprendendo de sua obrigatoriedade presencial e comecem a se estabelecer à distância. Por esse caminho as novas mídias estão preenchendo um vazio de sentidos acentuado pela segunda revolução midiática. A modernidade minou fortemente as formas comunitárias tradicionais, como as comunidades locais, o bairro, a vizinhança, as comunidades religiosas e a grande família consangüínea, introduzindo ambientes sociais de mote funcional, como os grêmios, as associações profissionais, os partidos, os sindicatos, a família nuclear, tornando-se assim uma sociedade de indivíduos autorreferentes, prenhes de vínculos institucionais, mas pobres de vínculos comunitários. 3 Redes são malhas comunicacionais advindas de uma combinação tecnológica de: eletrônica, telefonia e informática. Sua principal característica é que são desprovidas de centro, na medida em que as associações entre os pontos de onde se originam as mensagens podem ocorrer por vários caminhos diferentes. Qualquer ponto pode funcionar como seu centro a qualquer momento. 6 As redes sociais parecem estar se configurando como ambientes para a exposição da subjetividade e da intimidade. Muitas pessoas, especialmente jovens, encontram ali canais para tecer grandes teias relacionais em que o principal objetivo parece ser simplesmente o de se relacionar mesmo que ali esteja fortemente presente a mentalidade individualista e contabilista. Isso proporciona, por exemplo, uma certa competição em torno dos índices de popularidade que a tecnologia em questão também informa de imediato, através do número de visitantes que cada perfil alcança. Com isso, a todo o momento, emergem novas lideranças, novas tendências estéticas e comportamentais, elegem-se novos ídolos, ao mesmo tempo em que pessoas são desprezadas, expostas cruelmente em suas intimidades ou difamadas. São relações comunitárias que se desenvolvem no seio de uma sociedade fundamentalmente individualista 4 . Fica evidente, pelo que acabamos de expor, que o uso feito até agora dessas novas mídias traz consigo vícios de formas de comunicação difundidos na mentalidade do contexto das mídias tradicionais. Os padrões de beleza e comportamento, os critérios para se definir ações de sucesso e eleger celebridades, o modo de tratar os potenciais “fracassados”, o bullying, o consumismo, tudo isso parece encardir de tradições modernas os canais da interação pós-moderna. Grande parte do que acontece em sites de relacionamento como Orkut e Facebook faz lembrar os ambientes das highschools norteamericanas. Mas enfim, não é de estranhar que novidades carreguem o peso de tradições de onde se originam. Além da sociabilidade, as redes sociais também são apropriadas pelos interesses comerciais, constituindo-se num grande potencial de oportunidades de negócios. As marcas que lançam bens de consumo procuram fidelizar públicos através do acordo com internautas populares, tentando emplacar tendências. Empresas de comunicação se exasperam na busca de novas possibilidades de exploração comercial que as novas redes possam proporcionar. Publicitários se especializam em marketing viral 5 para infiltrar mensagens explícitas ou subliminares na rede, fundadores de sites bem sucedidos tornam-se os mais jovens bilionários do planeta, de forma que a velha roda da fortuna continua a rodar ou, mais que isso, lubrifica suas engrenagens nas novas oportunidades desencadeadas. Em contrapartida, percebemos a consolidação de uma ética do compartilhamento representada pelos softwares livres e pela consolidação de confrarias hackers 6 , explicitamente contrárias aos critérios tradicionais acerca da propriedade autoral e dos direitos do uso de informações. Lembremos que a rede se permite várias formas, antigas ou novas, de apropriação de conteúdos. Lembremos ainda que por ela circula uma imensa quantidade de dados e informações. Decorre disso, uma mix de referências que pode vem se tornando uma das principais características da cultura global instaurada pela terceira revolução midiática. Talvez aí esteja o prenúncio de um caminho próprio para as novas mídias interativas, a possibilidade de pensar e usar a rede pelo seu potencial de compartilhamento. Afinal é da natureza de uma estrutura em rede a total 4 Discutimos, com mais pormenores, a questão do envolvimento da juventude com comunidades virtuais no capítulo seguinte. 5 O marketing viral é o nome utilizado por publicitários para falar de campanhas que nascem de pequenos estímulos com vistas a se propagar intersubjetivamente. A Web é considerada o melhor espaço para este tipo de ação. 6 Conhecidos como os piratas da rede, hackers são programadores habilidosos em criação e manipulação de softwares e hardwares e usam tais habilidades para interferir em conteúdos e códigos que circulam pela Web. Seus propósitos variam desde a simples sabotagem da privacidade alheia até gestos de engajamento e militância associados à ética do compartilhamento. 7 descentralização. Há sempre muitos caminhos pelos quais a informação pode fluir, de forma que qualquer tipo de monopólio, estação padrão ou regra centralizadora tende a se esfacelar quando tenta se afirmar como plataforma. Tendo de um lado essa natureza democrática da própria tecnologia e de outro o desejo de superar uma mentalidade centralizadora que pautou os outros momentos da história da comunicação, vemos emergir na rede uma cultura colaborativa. A cultura hacker, para além de um mero vandalismo que também se vê por ela disseminado, tem muito a dizer sobre o drama humano de nosso tempo. Um incômodo invisível questionador das comodidades que emergem num mundo pautado pela supremacia da visibilidade. Evidência de quanta inteligência paira no ar. Outra grande conquista das novas tecnologias: o ganho de inteligência que envolve a fina combinação da racionalidade embutida nos algoritmos da linguagem digital que se traduz nas potencialidades técnicas dos softwares e hardwares com o constante fluxo das aplicações. Máquinas que, em suas variações de uso, abrangem quase todos os campos da ação humana. Sendo assim, a rede parece servir muito bem também a novas militâncias, funcionando como meio de divulgação de campanhas humanitárias ou ecológicas, convocando a gestos de solidariedade. Há, de fato, uma potencializaçãoda solidariedade na rede, à medida que seu alcance planetário associado às facilidades comunicacionais de sua natureza interativa, criam ótimas condições para a exponenciação de gestos mínimos. Em outras palavras, nunca um pequeno gesto esteve em condições de ganhar tanta visibilidade. 4. Novas tecnologias e Poder Quando se fala em poder de imediato nos vêm imagens de presidentes e juízes, fóruns e delegacias. O poder pode se fazer notar por grandes instituições ou por grandes empreendimentos, mas o ponto elementar de seu acontecimento são as motivações e significados que levam as pessoas a obedecer. Como aprendemos com Weber (2004), ordens sociais são fundamentalmente uma questão de legitimidade. O que leva as pessoas a legitimarem as ordens que se lhes impõem? Ou, simplificando, por que as pessoas obedecem? Eis uma pergunta eminentemente sociológica. Atualmente, há um sistema internacional de trocas materiais e simbólicas que espanta pelo quanto é funcional, complexo e abrangente, mas que, para tal, manifesta-se através de rígidas orientações de conduta, embora não pareça, dada a forma sedutora com que se impõem. Foucault (2000) nos ensina que a produção de ordem na complexidade da sociedade moderna, traduzida pelos efeitos psíquicos do panoticismo 7 , opera no nível da internalização da ordem pelo indivíduo. É na socialização, ou seja, na maneira como um indivíduo é educado para viver em seu tempo e cultura, que se encontra a chave da legitimidade de uma ordem. A escola assume a tarefa de internalizar a norma na psique do indivíduo, tornando-o autodisciplinado e assim apto a funcionar nos tempos modernos. A forma rotineira de produzir característica das primeiras fases da revolução 7 O panótico é uma torre de vigilância que ocupa a parte central de um pátio de onde se tem uma vista panorâmica de sua circunferência, permitindo a um vigilante observar a quem queira sem que este possa saber se está ou não sendo observado. Foucault encontra uma referência no panótico para explicar o efeito psíquico da legitimação da ordem na modernidade. As pessoas aprendem a se vigiar (autodisciplina) a partir do momento em que integralizam e internalizam a relação da vigilância. 8 industrial e todo o enquadramento que isso demanda dos indivíduos numa sociedade da produção, faz da disciplina a principal qualidade a ser cultivada em cada um por si próprio. Por isso Foucault (2000) chamou a modernidade de “sociedade disciplinar”. Ao longo da Guerra Fria, período que aqui definimos como o auge da segunda revolução midiática, mediante os já mencionados processos de estetização da vida e relativização dos valores, instaura-se uma dinâmica da volatilidade e da descartabilidade, na qual rotinas já não são um fator tão decisivo. Para a pós-modernidade, que Deleuze (1992) chamou de “sociedade do controle”, a ordem se imbui de novas necessidades e assim emerge uma ordem. Seu mote principal é a educação para se viver numa sociedade de consumidores. Nessa versão as mídias passam a ocupar um lugar central na socialização do indivíduo, que assim aprende a medir a qualidade de sua vida pelo seu poder aquisitivo. Ser um incluído é ser um consumidor e ser consumidor é ser um ponto flutuante na sociedade em rede. Sucesso se liga a popularidade e popularidade se liga a visibilidade. Fracasso se liga a desprezo e exclusão ao consumo, o perigo de não poder participar de todas as delícias que se ofertam no grande hipermercado em que a contemporaneidade se converteu. Falar de sociedade em rede é obrigatoriamente pensar numa ordem fina que transcende fronteiras nacionais e subverte fronteiras físicas nivelando-nos a todos como produtores/consumidores. No auge da modernidade aprendemos a identificar as pessoas basicamente por sua profissão, ou seja, pela maneira como se inserem no mercado enquanto produtores. Na pós-modernidade a pessoa se faz pelos signos que consome, tela de seus processos de identificação. Nesses processos, marcas e grifes, referências tribais ou celebridades idolatradas começam a ocupar domínios de significados antes reservados a cultos regionais, patriotismo, heróis, mártires, etnias ou religiões. Alicerçando tudo isso figura-se a arquitetura do espaço de fluxos (Castells, 2000). Territórios virtuais não se sustentam por si sós, não se autonomizam e não são lugares que possamos habitar. Sua essência puramente comunicacional exige que se acoplem aos territórios físicos, de forma que a sociedade em rede é um híbrido de mapas e redes, uma rede de redes que por um lado se localiza e, por outro, se desterritorializa. A produção industrial e a própria tecnologia definem-se como inteligência aplicada. Seu lado inteligência, que envolve criação, planejamento e gestão desterritorializa-se, na medida em que se concretiza em fluxos informacionais. Neles, a informação circula em grande escala, gerando efeitos localizados em suas aplicações. Do ponto de vista da inteligência, a globalização tende a suprimir boa parte do peso que os territórios físicos representam aos relacionamentos humanos e obviamente isso traz profundas implicações na questão da produção e manutenção da ordem que, em essência, é a questão do poder. O grau de compromisso que liga as cúpulas às bases cai consideravelmente à medida que aumentam as distâncias que as separam. Uma empresa tipicamente contemporânea pode ter um escritório de criação em Milão, um escritório de gestão em Nova York e uma linha de montagem terceirizada em Singapura. No escritório de gestão traçam-se os planos para que os produtos saídos de Singapura povoem lojas e shoppings de todo o mundo de acordo com o equacionamento das demandas. De lá são feitos negócios que acionarão grandes empreendimentos por vários pontos do planeta. Milão, Nova York e Singapura tornam-se assim pontos nodais de uma complexa rede produtiva que superpõe territórios virtuais em forma de redes comunicacionais e territórios físicos em forma de mapas. Os Estados, com suas máquinas administrativas e 9 suas obras, passam a funcionar também dentro dessa lógica, fazendo das capitais nacionais outros pontos nodais do encontro de territórios e territórios. Isso inaugura um novo arranjo da ordem no modo de produção capitalista, onde elites administradoras, não mais apresentáveis nas antigas condições de dono, proprietário ou patrão, mas sim na de gestores profissionais, se deslocalizam, tornando- se quase onipresentes, porque podem se informar sobre qualquer lugar de onde estiverem e não precisam estar em nenhum lugar específico para agir sobre qualquer lugar. Enquanto isso, bases produtivas se localizam pesadamente em pontos da rede que, por conveniência das elites, relacionadas a custos e logística, podem ser trocados a qualquer momento (Bauman,1999). Em lugar do alto grau de compromisso, caracterizado pelo vínculo empregatício que, em outros tempos amarravam as elites a suas bases, vêm o alto grau de conectividade. Em vez de patrões e empregados, passamos a ter gestores e colaboradores, em vez de avaliar performances pelas rotinas, avaliam-se pelos resultados. Em vez de companheiros funcionários de uma mesma categoria, profissionais que concorrem entre si na busca do melhor índice. Em meio e esse emaranhado de fluxos da nova ordem mundial a informação se afirma como o principal capital. Seja para o uso imediato em forma de know-how, seja para o controle do uso futuro em forma de banco de dados, a informação just in time passa a ocupar o lugar por excelência da disputa do poder no século XXI (Lyotard, 2000). 5. Novas tecnologias e educação Para concluir esse capítulo, onde procuramos exercitar a imaginação sociológica no intuito de refletir sobre a presença da tecnologia na sociedade contemporânea, devemos pensar um pouco sobre suas decorrênciase potencialidades no exercício educacional. Vimos que uma nova ordem separa a humanidade entre incluídos e excluídos e o acesso às tecnologias da comunicação funciona como um termômetro dessa hierarquia. Vimos também que os novos ambientes interativos trilham caminhos díspares, ou talvez múltiplos, ora reforçando formas de poder já dotados de uma certa tradição, ora possibilitando a desobstrução de canais participativos, ora exaltando o indivíduo, ora construindo comunidades, ora cultuando a personalidade, ora ocultando autorias, ora pautando interesses, ora propondo solidariedades. Contudo, independente de sermos críticos ou entusiastas, realistas ou utópicos, certo é que não podemos fechar os olhos a tudo o que a rede já significa e tudo o que pode vir a significar. Num país como o Brasil, marcado por profunda desigualdade social e pela convivência do ultramoderno com arraigadas tradições, devemos considerar a possibilidade dos mais variados ambientes escolares. Pensando apenas sobre os pólos extremos da questão, dividamo-los entre incluídos e excluídos. O educador que lida com um ou outro desses pólos deve saber que, em qualquer deles, é inevitável contemplar cuidadosamente a questão da tecnologia. Ao excluído é preciso trabalhar a possibilidade da inclusão, ao incluído é preciso se atentar para o quanto as tecnologias digitais já são parte de seu campo perceptivo e cognitivo. Reflitamos um pouco sobre cada um. No primeiro caso, estamos considerando um ambiente que se encontra ainda alheio aos avanços tecnológicos, em situação de semi-isolamento como só no Brasil se vê. Falar da inclusão digital ou buscá-la não parece algo conveniente em tal situação, mas não podemos nos furtar ao esforço de preparar nossos jovens para viver num 10 mundo que a cada dia acirra seus processos de difusão cultural. Lembremos então que, mesmo na ausência das máquinas que viabilizam a participação na sociedade em rede, nela emergem mentalidades e práticas que cobram agilidade de raciocínio e combinações de fatores que, de alguma forma, é importante exercitar. Um professor de sociologia que lida com um público semi-isolado deve funcionar também como um elo entre seus alunos e o mundo. Notícias do mundo devem assim despertar o interesse e preparar para o convívio com o que nele está acontecendo. Se a precariedade econômica de um ambiente não permite vislumbrar os investimentos necessários para a inclusão digital, em vez de lamúrias, devemos buscar meios para informar sobre o que se passa e para exercitar raciocínios condizentes com aqueles que ganham corpo na dinâmica da nova ordem mundial. Uma boa prática pedagógica deve ser sempre antropofágica. Se por um lado deve estar atenta aos potenciais da cultura local, por outro deve trazer as referências do que o ambiente presente não consegue explicitar. Em escolas urbanas periféricas, onde a inclusão digital se vê obstruída por questões exclusivamente econômicas, é importante que os temas associados à sociedade em rede sejam discutidos, pois os estudantes lidarão, inevitavelmente, com uma cultura da qual estarão experimentando os reveses da exclusão. Em outras palavras, é fundamental tematizar a cultura digital para que os alunos se preparem da melhor maneira possível para buscar seus caminhos inclusivos. No outro extremo da polarização vemo-nos diante de jovens screenagers. Nesse caso o que devemos ter em mente são as peculiaridades históricas que acometem as mais novas gerações. É exatamente o que tratamos no próximo capítulo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 3. ed. São Paulo: Papirus, 2003. BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo. Rio de Janeiro: Elfos, 1972. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999 BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Livros, 2001. . BRUNO, Fernanda. “Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade e subjetividade nas novas tecnologias de informação e de comunicação”. In: Revista FAMECOS : Mídia, Cultura e Tecnologia, Porto Alegre , n.24 , p.110-124, jul.2004. CASTELLS, Manuel. 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