Buscar

Memórias das Trevas Antônio Carlos Magalhães

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 818 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 818 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 818 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

MEMÓRIAS DAS TREVAS 
J OÁO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
MEMÓRIAS 
DAS TREVAS 
GEllACIO a; 
EDffOKIA/ 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
Copyright© 2001 by João Carlos Teixeira Gomes 
Todos os direitos reservados 
Copyright © 2001 Geração Editorial 
1 ª edição - Janeiro de 2001 
2• edição - Janeiro de 2001 
Editor 
Luiz Fernando Emediato 
Capa 
}ô Fevereiro (ilustração sobre fa to de Ricardo Stuckert} 
Revisão 
Paulo César Pinheiro 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
Gomes, João Carlos Teixeira 
Memórias das trevas / João Carlos Teixeira Gomes. 
São Paulo : Geração Editorial, 200 !. 
IBSN- 85-7509-001-1 
1. Brasil - Política e governo 2. Gomes, João Carlos Teixeira 
3. Jornalistas - Brasil - Biografia 4. Magalhães, Antonio Carlos 
5. Políticos. - Brasil - Biografia I. Título. 
00-5280 CDD-920.50981 
fndices para catálogo sistemático: 
1. Brasil : Jornalistas : Biografia 
920.50981 
Todos os direitos reservados 
GERAÇÃO DE COMUNICAÇÃO INTEGRADA COMERCIAL LTDA. 
Rua Cardoso de Almeida, 2188 - 01251-000 - São Paulo - SP - Brasil 
Te!. (11) 3872-0984 - Fax: (11) 3862-9031 
GERAÇÃO NA INTERNET 
www.geracaobooks.com.br 
geracao@terra.com.br 
2001 
Impresso no Brasil 
Prinud in BraziJ 
Contracapa 
 
 
JORNALISTA DEVASSA A VIDA DE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, O 
DONO DA BAHIA 
 
"...com o chicote numa mão e o dinheiro na outra." 
Antônio Carlos Magalhães ao jornalista Ricardo Noblat, no Jornal do Brasil, em 7 de 
setembro de 1986, explicando como elegeu João Durval governador da Bahia em 1982. 
 
"Se eu quisesse, faria você governador da Bahia." 
Antônio Carlos Magalhães ao repórter Armando Rollemberg, na revista Isto é, em 13 
de outubro de 1982. 
 
"O Al-5 (...) é instrumento imprescindível para romper o cerco da agressão subversiva e 
assegurar a ordem pública." 
Antônio Carlos Magalhães ao Jornal da Tarde, em 30 de março de 1972. 
 
"Está aberta a pasta cor-de-rosa (...). A estrela da lista de doações é o senhor Antônio 
Carlos Magalhães (PFL-BA), que na época disputava o governo baiano e, pela planilha, 
levou U$ 1,1 milhão de dólares (...)." 
Revista Isto é, nº 1368, dezembro de 1995, ao comentar as doações clandestinas do 
Banco Econômico a políticos. 
 
"Não conheço depoimento de maior envergadura no jornalismo nacional, nem confronto 
mais acirrado de um jornal pela sua sobrevivência." 
Gilberto Felisberto Vasconcellos, sobre o livro "Memórias das Trevas." 
 
"Ele não gosta da Bahia, mas sim do poder. Quando não está no poder, prejudica a 
Bahia de todas as maneiras." 
João Carlos Teixeira Gomes à revista Caros Amigos, em 30 de setembro de 1999. 
 
"Antônio Carlos Magalhães é mais sujo que pau de galinheiro" 
Ciro Gomes, ex-governador do Ceará e ex-ministro da Fazenda. 
 
"É a posição típica de um ditador que quer colocar a Justiça Militar a serviço de seus 
caprichos." 
Heleno Fragoso, jurista, ao defender João Carlos Teixeira Gomes perante o Conselho da 
Aeronáutica, em 25 de setembro de 1972. 
 
"O Antônio Carlos é tão truculento, mas tão truculento, que foi capaz até de dar um tapa 
na cara do próprio filho quando Luiz Eduardo já era deputado estadual." 
Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República, Isto é, 22 de janeiro de 1997. 
 
"Nunca confiei em bajuladores como Antônio Carlos Magalhães, um dos mais 
vitoriosos carreiristas deste país." 
João Figueiredo, ex-presidente da República, em entrevista gravada ao jornalista Hélio 
Contreiras, publicada após sua morte em dezembro de 1999. 
 
 
Orelhas 
 
 
Esta é a história do jornalista que encarou o suposto Leão da Bahia. 
Leão da Bahia? Para João Carlos Teixeira Gomes ele não é nada disso: Antônio 
Carlos Magalhães não passaria do feitor de um estado que vive nas trevas, sob o 
domínio do medo e da intimidação. João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, desarmado até 
os dentes, só não partiu para um duelo ao cair da tarde com o dono da Bahia. Sempre 
em legítima defesa, ele teve que usar todos os recursos do talento na sua profissão para 
que não se apagasse a chama do único jornal que ainda resistia ao cerco imposto pela 
fúria do então governador biônico, posto no cargo como delega- do da ditadura. 
Essa história começa em 1969, em pleno Al-5. Antônio Carlos, então prefeito, 
também biônico, de Salvador, iniciava ali a tentativa de silenciar o Jornal da Bahia. E 
encontrava no jovem redator-chefe - o autor deste livro - uma sólida barreira. Já se 
julgando o dono da Bahia, com seu estilo truculento, achava que seria uma parada fácil. 
Chegou a pensar que tinha o apoio total e irrestrito dos militares para esmagar o jornal. 
Mas nada sabia do adversário. Acostumado a dobrar vontades e sujeitar consciências no 
grito, jamais esperou por essa disposição de resistência. E a partir de 1971, no governo 
do estado, começou a atingir tíbias e perônios, numa escalada brutal contra a 
independência do diário. O JBa ganhava cada vez mais prestígio popular, com o 
aumento expressivo de sua tiragem, na medida em que Antônio Carlos o perseguia 
implacavelmente. Apelou inclusive para a Lei de Segurança Nacional: queria Joca 
Teixeira Gomes atrás das grades. Perdeu de goleada! 
Acredite se quiser, mas o próprio Tribunal Militar rejeitou, em sessão histórica, a 
pretensão do governador por 4 a 1. Isso nos duros tempos do Prá Frente, Brasil. O 
confronto logo ganhou contornos nacionais e tornou o jornal um símbolo de resistência 
à ditadura e ao seu homem na Bahia. 
Esta obra emocionante é o retrato de como a coragem e a dignidade prevalecem, 
sempre, sobre a opressão e a tirania. 
 
 
JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES, 64 anos, ao contrário do poderoso 
adversário que enfrentou, é um brilhante escritor. Biógrafo de seu amigo Glauber 
Rocha, num livro definitivo e celebrado pela crítica, também resgatou a obra de 
Gregório de Mattos, em um profundo estudo de texto. Poeta, contista e ensaísta, é 
membro da Academia de Letras da Bahia, e um dos intelectuais mais respeitados de sua 
terra. 
A todos aqueles que, em qualquer tempo e lugar, 
combateram as tiranias e fostigaram os tiranos. 
Para Barbosa Lima Sobrinho, pela sua dignidade 
de brasileiro e de jornalista. 
Aos meus companheiros da redação, das oficinas e da 
administração do Jornal da Bahia. 
Em memória do meu tio Milton Oliveira, idealista e íntegro. 
À pequenina Renata, pingo de mel flor da campina, aurora. 
Uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos. 
Victor Hugo 
(. .. ) Nossa atual tragédia resulta de muitas farsas. 
Reinaldo A. Carvalho 
Não é fdcil viver entre os insanos. 
Gregório de Matos 
Agradecimentos 
Meus agradecimentos aos amigos Itaberaba Lyra (inexcedível na de-
dicação - aliada à competência - com que participou dos trabalhos de 
organização e revisão dos originais deste livro); Pedro Santana, que lhe 
deu forma com seu mágico computador; Fernando Rocha, Sérgio de 
Souza, Otacílio Fonseca, Carlos Augusto Fonseca, Jussara Fonseca, Ira-
cy Celestino, Lúcia Marlene Castro Oliveira e José Augusto Cunha -
todos eles com sugestões preciosas quando da primeira leitura dos origi-
nais ou colaboradores diligentes e, sobretudo, amigos. 
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. 
Clarice Lispector 
Em tempos como este, dificil é não escrever sdtiras. 
Juvenal 
Não hd esperança de sobrevivência humana sem homens 
dispostos a dizer o que acontece. 
Hannah Arendt 
Até hoje pensava-se que a formação dos mitos cristãos durante 
o Império Romano só havia sido possível porque a imprensa ainda 
não tinha sido inventada. Hoje, a imprensa didria e o telégrafo, 
que difundem os seus inventos por todo o Universo num abrir 
e fechar de olhos, fabricam em um só dia mais mitos 
do que aqueles que se criavam antes em um século. 
Karl Marx 
Sumdrio 
Prefacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . .. . . .. . .. . . . . . . . ... .. . 19 
Apresentação .. .. ................................................................................. 23 
CAPfTULO I 
Ditadura e Antonio Carlos se unem contra o Jornal da Bahia ................ 31 
CAPfTULO II 
O governador decreta nossa sentença de morte .......... .. ................... 105 
CAPfTULO III 
Lei de Segurança Nacional: um jornalista no banco dos réus ... .. .... 159 
CAPfTULO IV 
Derrotado, Antonio Carlos compra o jornal. Mas não leva ............. 243 
CAPfTULO V 
Fracasso de Waldir no governo promove a volta do tirano ................... 323 
CAPfTULO VI 
Quase fuzilado no Chile e seqüestrado em Israel.. ........................... 419 
CAPÍTULO VII 
Para além das rotativas: os livros e as salas de aula ........................... 523 
CONCLUSÕES 
Imprensa e poder: do bico dos tucanos ao nariz de Pinóquio ............... 595 
Referências bibliogrdficas ..... ... ........................ .. ........................ ........ 132 
Liberdade ......................... .. ................................................... .. ....... . 736 
Índice onomdstico ............................................................................ 7 40 
Prefacio 
O santo guerreiro contra 
o dragão da malvadeza 
O leitor deste livro estupendo, que é vingador à maneira de Os Ser-tões, de Euclides da Cunha, tomará consciência do que há de épi-
co e verdadeiramente heróico na luta de um jornalista e intelectual contra a 
tirania do governador Antonio Carlos Magalhães, no empenho de destruir 
o jornal da Bahia, de 1969 a 1975, sobretudo durante a ditadura Médici. 
É preciso salientar que esse governador - também prefeito biônico de 
Salvador - acionou a Lei de Segurança Nacional a fim de colocar o jor-
nalista na cadeia, numa época em que prisioneiros políticos eram tortu-
rados, mortos ou simplesmente desapareciam. 
Um dos muitos méritos do livro é mostrar - transcendendo o espaço 
regional- que a longa e espúria sobrevivência política de Antonio Carlos 
Magalhães não é obra do acaso. Trata-se de um corajoso depoimento 
sobre a gênese e a consolidação de um doge, ágrafo e truculento, que 
sempre usou de todas as armas para se manter no poder. A expansão da 
prepotência e da influência de Antonio Carlos no plano nacional confe-
riu ao relato de Teixeira Gomes um excepcional significado, como ad-
vertência democrática e lição de resistência. 
19 
) OÃO CARLOS TEIXEIRA G OMES 
A força da narrativa transformou este livro, em vários dos seus tre-
chos - mormente nos dramáticos capítulos II, III, IV e V, em que o 
autor relata o início das perseguições, as emoções do seu julgamento por 
um tribunal militar, a traiçoeira venda do jornal vitorioso e a frustração 
de uma experiência de poder - num romance de intriga e de ação, em-
bora nada do que aqui se conta tenha dimensão ficcional. Toda uma fase 
do jornalismo baiano e brasileiro foi registrada com farta documenta-
ção, inclusive nas notas que encerram os capítulos. Pelo conjunto desses 
aspectos, não conheço depoimento de maior envergadura no jornalis-
mo nacional, nem confronto mais acirrado de um jornal pela sua sobre-
vivência. 
A face mais perversa da Bahia pode ser resumida no tenaz antagonis-
mo entre Antonio Carlos Magalhães e João Carlos Teixeira Gomes, por 
sua vez reflexo do golpe de 64, pois a sinistra sigla ACM só tomou vulto 
com a ditadura e at~ngiu o zênite com a democracia videofinanceira que 
escancarou o Brasil aos apetites de neoliberais, globalizantes e seus alia-
dos internos. O pendor fisiológico de José Sarney fez de ACM seu mi-
nistro das comunicações, o qual articulou de cima para baixo a comuni-
cação de massa da "democracià' pós-militar, sendo o braço forte do 
monopólio televisivo da Rede Globo, que, segundo disse muito bem o 
autor, instaurou no Brasil o "cabresto eletrônico" para sujeitar a consciên-
cia do povo. Alías, nas conclusões deste livro, João Carlos Teixeira Go-
mes traça um vasto painel de servilismo da mídia diante do poder, dos 
descaminhos ideológicos do PSDB e do governo FHC, promotor do 
casuísmo da reeleição e da dilapidação do patrimônio nacional, numa 
crítica fundamentada e contundente. 
Diante de todo esse quadro o leitor poderá imaginar o que significou 
um jornalista, incorruptível e comprometido com a liberdade, empu-
nhar sua palavra contra o todo-poderoso porta-voz regional da ditadura, 
que a Nova República de Sarney ajudou a falar grosso também em nível 
nacional. Para mim isso só foi possível porque - entre outras virtudes 
20 
MEMÓ RIAS DAS TREVAS 
pessoais - João Carlos Teixeira Gomes é um intelectual formado no es-
pírito libertário de Gregório de Matos e Guerra e Glauber Rocha. Sobre 
o primeiro escreveu um estudo crítico sem par em nossa literatura - O 
Boca de Brasa - e do segundo é o seu melhor biógrafo, com o Glauber 
Rocha, esse vulcão. O santo guerreiro voltou a enfrentar o dragão da mal-
dade - ou da malvadeza. 
Agora, com o libelo contido neste volume contra o obscurantismo 
político e cultural de Antonio Carlos Magalhães, o escritor João Carlos 
Teixeira Gomes será lembrado também como o jornalista de combate 
que sempre foi. Atenção, porém: este livro não é apenas um ataque de-
vastador contra tiranos e tiranias. É sobretudo o relato apaixonado de 
toda uma trajetória de vida, enriquecida por fantásticas experiências de 
viagem (Capítulo VI) e por intensa atividade universitária e cultural 
(Capítulo VII) . O retrato de corpo inteiro, sem fragmentações, de um 
escritor que usou da pena para defender a liberdade e registrar (inclusive 
como poeta) as emoções, os encontros e os desencontros da vida. 
Gilberto Felisberto Vasconcellos 
Petrópolis, março, 2000 
21 
Apresentação 
Narrativa das perseguições 
Os covardes morrem muitas vezes antes da própria morte. 
Shakespeare 
E em 1811, o patrono da imprensa brasileira, jornalista Hipólito José da Costa, fundador do Correio Braziliense, publicou um livro que 
passou a ser oficialmente considerado como a primeira denúncia de um 
brasileiro contra a tirania e a opressão, embora os fatos de que foi vítima 
houvessem ocorrido em Portugal: Narrativa da Perseguição. Na verdade, 
mais correto teria sido se o bravo publicista escrevesse "das persegui-
ções", porque teve de enfrentar a dupla ameaça da Inquisição e da Inten-
dência de Polícia daquele país, que, juntas, o encarceraram durante cer-
ca de três anos. Seu corajoso libelo - livro que todo jornalista deveria ter 
em sua cabeceira - só foi ao prelo em Londres, onde a liberdade de 
pensamento e de expressão era respeitada, para testemunhar, de acordo 
com as suas próprias palavras, "o triunfo da inocência sobre a opressão". 
23 
JOÃO C ARLOS T EIXEIRA GOMES 
Mais do que por suas atividades na imprensa, de si mesmas tão relevan-
tes, foi sobretudo através dessa obra que Hipólito José da Costa, nascido 
em Sacramento, RS, passou à história como o primeiro dos grandes jor-
nalistas brasileiros, merecedor de permanente reverência. 
Este livro será também o registro de uma dupla opressão: aqui se 
contará uma saga de resistência, uma luta de sacrifícios e heroísmos que 
levou o Jornal da Bahia, do qual eu era o redator-chefe, a defender a sua 
própria sobrevivência contra as perseguições que lhe foram sistematica-
mente movidas pela ditadura de 1964 e seu delegado local, prefeito de 
Salvador e governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, enfrentado 
com uma bravura que provocou a solidariedade de todos os baianos. 
Possuindo, pois, o duplo valor de testemunho e documento, quero de 
logo chamar a atenção dos leitores, pesquisadores ou simples interessa-
dos, para a importância das notas colocadas no final dos capítulos. O 
presente relato ampara a sua veracidade na farta transcrição de dados, 
datas e documentos. Quanto a nomes de pessoas, apenas omiti alguns 
poucos que não considerei essenciais aos objetivos dos fatos aqui narra-
dos. Pretendo com estas páginas prestar um serviço ao meu país, facili-
tando aos leitores a compreensão da conduta de personalidadespúblicas 
e mecanismos de poder cuja realidade conheci mais de perto. O jorna-
lista penetra em fatos vedados ao comum das pessoas e tem o dever ético 
de abrir-lhes o seu baú de recordações, para ajudar a melhorar práticas 
políticas, administrativas e sociais que a todos afetam. 
Duros - e até mesmo temerários - são os caminhos do jornalismo 
independente, mas, de qualquer sorte, os únicos que dignificam a traje-
tória de um profissional da imprensa. Não é fácil enfrentar as ameaças 
do arbítrio, mas é preciso fazê-lo sempre, sobretudo quando se trata de 
defender valo~es fundamentais da convivência social e da própria digni-
dade humana. 
Quaisquer que sejam as suas formas de manifestação, a tirania é, in-
variavelmente, uma enfermidade, e enfermos são os seus patrocinado-
24 
MEMÓIUAS DAS TREVAS 
res. O pacto social, que nasceu das exigências da vida gregária, não se 
fez, como ensinou Rousseau, para que um homem ou um grupo de 
homens oprimissem os seus semelhantes, mas sim, corporificando-se 
através da representatividade, com o propósito de viabilizar os interesses 
e as aspirações da sociedade civil. O próprio Hobbes, partidário do abso-
lutismo, autor da frase famosa "o homem é o lobo do homem", escreveu 
que "não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a si" e, no 
capítulo XXI do Leviatã, grifou que um homem é aquele que, naquelas 
coisas que graças a sua força e engenho é captfZ de fazer, não é impedido de 
fazer o que tem vontade de fazer. Barroco, mas correto. 
A luta do Jornal da Bahia não foi apenas a resistência de um veículo 
importante, mas de província, contra a opressão local. Nas páginas que 
se seguem, digo-o e comprovo-o: foi sobretudo um nobre e belo capítu-
lo da imemorial luta que travam a liberdade e o despotismo. Rousseau 
estabeleceu algumas diferenças entre déspotas e tiranos, considerando o 
modo como chegam ao poder, mas todos se incluem na insidiosa cate-
goria dos opressores do homem. ''A força não faz o direito" - escreveu o 
mestre suíço - e "só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos". 
Todas as formas de agressão foram manipuladas para intimidar e des-
truir o jornal da Bahia, partidas principalmente de um governante cuja 
tenacidade demolidora e persecutória não teve paralelos ao longo da dita-
dura. Nossa reação há de ficar como duradouro exemplo de firmeza, 
desassombro e coragem, sustentado em tão difícil fase da vida baiana e 
brasileira, e contém lições que certamente serão do mais alto interesse não 
apenas para jornalistas, mas, igualmente, para cultores do Direito, historia-
dores, homens públicos e cidadãos em geral, para todos aqueles, em suma, 
que detenham parcela de responsabilidade na condução dos destinos da 
sua terra. Que tais ensinamentos ajudem a manter acesa a chama da resis-
tência, por mais adversas que sejam as circunstâncias que a provoquem. 
Este livro materializa um projeto que concebi desde janeiro de 1977, 
quando me desliguei dos quadros do jornal da Bahia, órgão que ajudei a 
25 
JoAo CARLOS TEIXEIRA G OMES 
fundar em 21 de setembro de 1958 e ao qual estive ligado por quase 
20 anos ininterruptos. Deixando-o por iniciativa própria, como forma 
de protesto contra uma obscura transação, que repudiei (e que narro no 
Capítulo N), interrompi uma militância que se iniciou no fim da pu-
berdade e terminou na idade madura, precisamente quando eu me en-
contrava no ápice dos meus recursos espirituais e intelectuais, pleno de 
experiência (amadurecida inclusive ao longo da luta) e de vigor profis-
sional. Natural, portanto, que a evocação dos fatos surpreendentes que 
marcaram a etapa mais rica da minha carreira jornalística assuma relevo 
nestas páginas. Ao lado disso, porém, desenvolvi também uma trajetória 
de professor universitário e de escritor, com nove livros já publicados, 
que me levou à Academia de Letras da Bahia, e sobre a qual não poderia 
omitir-me. O conjunto desses fatos povoou a minha vida de emoções 
intensas e variadas, mormente no transcurso de algumas viagens repletas 
de acontecimentos inesperados. Nem tudo, pois, são sombras ou obscu-
ridades nestas memórias das trevas - ou seja, na rememoração do difícil 
enfrentamento de um jornal e seu redator-chefe contra as sujas garras da 
prepotência. Mais do que nunca, aqui se tentará mostrar que homem 
nenhum pode arrogar-se o direito (?) de constranger a consciência e a 
liberdade dos seus semelhantes. 
Memórias, naturalmente, são registros, como os diários, de fatos ocor-
ridos no passado. O próprio ontem, ainda tão próximo, já é passado. 
Por isso, dediquei o último capítulo deste livro à análise de fatos mais 
recentes da vida nacional, pelo menos até fins de 99, considerando 
admissível recorrer a uma bibliografia - o que não é comum em memó-
rias - para melhor fundamentar o meu arrazoado. Durante toda a mi-
nha vida jornalística testemunhei a existência de um Brasil acuado e 
sofrido, malgovernado por suas elites políticas e econômicas, garroteado, 
em suma, em todas as suas potencialidades -- sem falsa retórica - imen-
sas e generosas. Sempre rico e sempre pobre - rico para poucos, pobre 
para a imensa maioria de marginalizados sociais, invariavelmente sub-
26 
MEMÓ RIAS DAS TREVAS 
metidos a catastróficas experiências econômicas que, em regra, tradu-
zem sobretudo a arrogância e a insensibilidade social dos governantes. 
Creio que o maior risco deste final de milênio, às vésperas de uma nova 
era que irá encontrar-nos ainda mais dependentes e submissos (ou 
~ndividados), é o de nos transformarmos, irremissivelmente, na grande 
senzala da globalização. Os neocolonizadores chegaram, com mais força 
do que nunca, sustentados pela espúria parceria dos globalizantes inter-
nos. O mundo mudou, é verdade, mas, para o Brasil, no plano das rela-
ções econômicas, continua impondo processos do passado colonial. Nin-
guém ainda nos explicou por que a globalização não sinaliza com mão 
dupla: constituímos um país jovem e pujante em riquezas naturais, ra-
zoavelmente industrializado, conformado com a condição de mercado 
passivo, secularmente controlado pela ordem imposta de fora. Jamais a 
economia brasileira esteve fechada ao capital externo (analiso a questão 
no último capítulo), sem recebermos, entretanto, efetivo benefício de reci-
procidade. Cinco séculos depois do descobrimento, exauridos por todas 
as concessões, permanecemos recipiendários: de bens, capitais, idéias, 
tecnologia, etc. E só. Globalizados sempre, nunca globalizantes. As par-
cerias internacionais não se fazem em proveito dos dependentes. Assim, 
não abrimos nossa economia a legítimos interesses mútuos. Apenas a 
escancaramos ao capital externo, motivado, este, pelo objetivo do lu-
cro imediato (no caso das aplicações voláteis) ou da transformação do 
Brasil em entreposto industrial, como simples mercado estratégico no 
esquema da competitividade global. Mais do que cooperação, o que 
houve, de fato, foi uma rendição, secularmente típica das relações 
colonialistas. Tampouco seria correto questionar o problema pelo aspecto 
das intenções, pois as ações públicas não podem ser avaliadas pelo ângulo 
da subjetividade: o que de concreto se impõe é que o governo não quis e 
não soube (ou não lhe foi permitido) criar limites propiciatórios da ins-
tauração de mecanismos nacionais de defesa, contra os apetites da nova 
ordem econômica capitalista. Isso ficou bem claro na questão das priva-
27 
JoAo CARLOS TEIXEIRA G OMES 
tizações. Já este livro se encaminhava para o prelo quando o jornalista 
Aloysio Biondi publicou O Brasil Privatizado - Um balanço do desmonte 
do Estado (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999), com-
pacto e bem-fundamentado estudo de 48 páginas sobre a maneira alta-
mente lesiva aos interesses do Brasil pela qual o governo FHC vem 
privatizando o nosso patrimônio público, dele tudo subtraindo, sem 
nada acrescentar, numa operação predatória. Em síntese:generosos finan-
ciamentos oficiais a juros irrisórios, fora da realidade do mercado, com o 
sacrifício do dinheiro dos contribuintes, que financiou a implantação 
do nosso parque industrial de base ao longo de décadas e não é canalizado 
para aplicações socialmente mais justas e urgentes; facilitação e parce-
lamentos abusivos da forma de pagamento, inclusive com danosa acei-
tação das chamadas "moedas podres", criadas pelos papéis desvalorizados; 
absorção governamental de dívidas bilionárias, "engolidas" pelo governo 
para sanear as estatais e poder vendê-las; aumento antecipado das tarifas 
públicas, acenando aos eventuais compradores com vantagens anteriores 
às transações, também para atraí-los; negligência diante do 
descumprimento dos compromissos assumidos pelos investidores, bem 
como a aplicação de multas e sanções insignificantes; preços em geral 
aviltados, etc. Tudo, enfim, constituindo aquilo que, em muitos casos, 
Biondi qualificou de "verdadeiras doações". Além, obviamente, das de-
missões que as vendas ocasionaram, aumentando no Brasil os altos 
índices de desemprego, e dos enormes recursos injetados para melho-
rar e reequipar as estatais (e que antes se declaravam inexistentes) a fim 
de encontrar interessados. Breve mas consistente, o livro de Aloysio 
Biondi, pela sua firmeza e pelas espantosas revelações que contém, 
pondo em relevo a importância do jornalismo investigativo e indepen-
dente, deveria constar da biblioteca de todos os brasileiros. É um hiato 
de dignidade num coro de submissões jornalísticas constrangedoras. 
E, sobretudo, anti patrióticas - pois o conceito de pátria subsistirá en-
quanto existirem fronteiras físicas, o sentimento universal de homeland 
e as diferenciações culturais enriquecedoras que marcam a vida dos po-
28 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
vos, ao lado dos ideais de fraternidade, harmônica convivência e consci-
ência internacionalista que devem unir todos os homens. 
A economista Roberta Traspadini, no livro A Teoria da (Inter )dependência 
de Fernando Henrique Cardoso, sustenta, ao contrário do que em geral se 
supõe, que o sociólogo sempre defendeu a subordinação do Brasil ao 
capital internacional, desde os seus escritos dos anos 60 (v. nota 21 das 
Conclusões). Neste livro, porém, não nos interessarão os descaminhos 
teóricos do sr. Fernando Henrique, e sim a sua "praxis" político-econô-
mica, socialmente lesiva aos interesses do País. O exercício do governo 
não pode amparar-se numa afetação acadêmica e doutrinária montada 
em teorias (ou meras hipóteses) condenadas pela realidade. 
Os tempos atuais nada trouxeram para o Brasil de alentador e me 
parecem hoje ainda mais intranqüilizadores do que quando me iniciei 
no jornalismo, pela extrema dependência que nos foi imposta, em época 
tão imprevisível. Como os homens, as nações também precisam de vida 
autônoma e se nutrem da mesma vocação altiva e libertária. Nenhuma 
experiência social e econômica que mexa com a vida e as aspirações de 
milhões de pessoas deve ser levada adiante sem a possibilidade de alterna-
tivas corretoras. Não é entregando o Brasil que vamos torná-lo próspero 
ou feliz, nem é decente desconhecer a acaciana verdade de que a sujeição 
não constrói a grandeza e a dignidade dos povos. 
Os sucessivos abalos do real empobreceram substancialmente o povo 
brasileiro e acentuaram-lhe as adversas condições de vida. Vivemos à 
espera da nova crise. Há tempos, o governo deflagrou uma custosa cam-
panha publicitária para dizer que "com crise se cresce" e que a economia 
caminhava para a normalização. A propaganda não disse, porém, que, 
para estabelecer um equilíbrio duvidoso e precário, o governo endividou 
ainda mais o País, tomando cerca de 41 bilhões de dólares ao FMI (com 
todas as conseqüências negativas que tal fato acarreta para o nosso futu-
ro, inclusive quanto ao pagamento de juros, e sob sufocantes exigências), 
cortou verbas essenciais à saúde e à educação, voltou a garro tear as univer-
29 
]oÃo CARLOS TEIXEIRA GoMES 
sidades e os serviços públicos em geral, aumentou o imposto de renda das 
pessoas físicas e a carga previdenciária, impondo o absurdo de pretender 
de novo cobrá-la dos aposentados, que a pagaram a vida inteira para ter 
um seguro na velhice. Um Congresso servil, que havia rejeitado a iniciati-
va quatro vezes consecutivas anteriormente, capitulou, intimidado, às pres-
sões oficiais, e acabou ajudando os economistas do governo a se transfor-
marem em cafetões da senilidade. Quando um país não mais respeita os 
seus velhos é porque já chegou a uma etapa degradante de decadência 
moral. O acordo com o FMI majorou ainda as tarifas de setores funda-
mentais, incrementou demissões e acelerou as privatizações. Tudo isso à 
custa de um povo sufocado pelo congelamento salarial e pela perda gradu-
al do poder aquisitivo, com a miséria e os guetos sociais se alastrando por 
todo o País. Eis o quadro brasileiro nos umbrais do terceiro milênio. 
Esta nação, porém, é grande demais para deixar-se abater pelo desânimo 
ou pelo derrotismo - eis a melhor lição que aprendi nos duros anos vividos 
numa redação de jornal. Até porque, como disse o poeta Nicolas Guillén, um 
dos bardos da latino-americanidade, da mesma forma que o foi Castro Alves, 
"arde em nossas mãos a esperança. A aurora é lenta, mas avança''. Sempre. 
Neste final, ainda uma explicação se impõe: o retardamento havido na 
publicação deste livro, por mim anunciado há mais de um ano em en-
trevista concedida à revista Caros Amigos, tendo refletido o clima de 
medo que continua a existir no País, legado residual, talvez, dos 
descaminhos do golpe de 64 (ou expressão apenas da pusilanimidade 
que tomou conta do Brasil), foi-me de certa forma benéfico, pois me 
permitiu atualizar ao menos o encarte fotográfico que vai inserido nas 
Conclusões, com suas legendas extraídas do nosso melancólico dia-a-dia 
político. Heróico não foi apenas enfrentar a ditadura e as perseguições 
de Antonio Carlos Magalhães. Heróico foi também - todos devem sabê-
lo - publicar este livro. Mas isto é história para outro volume. 
]OÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
30 
Capítulo 1 
Ditadura e Antonio Carlos se 
unem contra o jornal da Bahia 
Tirano e usurpador são duas palavras perfeitamente sinônimas. 
Rousseau 
A oposição sempre faz a glória de um país. Os maiores homens de uma 
nação são freqüentemente os que ela leva à morte. 
Renan 
JBa. e o golpe de 64: tropas invadem redação e ofici-
nas. Censura. Origens do Jornal da Bahia: meu ingres-
so. O idealismo de Nestor Duarte. Primeiros quadros: 
uma equipe brilhante. Sob a mira (permanente) da dita-
dura. Antonio Carlos Magalhães assume a Prefeitura. 
História de um confronto pessoal. Cartas e respostas. 
A rotativa proibida. Início das perseguições do prefei-
to ao jornal. A luta em seus documentos. Uma voca-
ção tirânica. 
31 
- Volte depressa, as tropas já estão invadindo o jornal! 
Madrugada de 1 Q de abril de 1964, perto do alvorecer. Ainda hoje me 
lembro dos gritos nervosos do repórter Moacir Ribeiro, secundados por 
batidas vigorosas na porta do meu apartamento, em completo des-
controle e estado de alarme. De plantão no jornal da Bahia da noite de 
31 de março para a madrugada de 1 Q de abril, ele testemunhara a inva-
são da redação e das oficinas por um grupo de 12 militares armados de 
fuzis e metralhadoras, sob o comando de um capitão do Exército conhe-
cido por seu fanatismo anticomunista. Na frente do prédio, levantado 
quatro anos antes na zona comercial decadente da Barroquinha, três 
viaturas da Polícia Especial do Exército e dezenas de soldados armados 
bloqueavam a entrada. 
Os gritos de Moacir Ribeiro me sobressaltaram no exato momento 
em que eu me preparava para dormir, depois de ter passado grande parte 
da sinistra madrugada em vigília no jornal, de cuja redação era secretá-
rio, aos 28 anos de idade. O nosso sistema de comunicação com o Brasil 
e com oresto do mundo se limitava a um precário processo de rádio-
escuta e de telegrafia. Na Bahia, naquela época, somente o vespertino A 
Tarde possuía máquinas de teletipo, que recebiam notícias daAssociated 
Press (AP) e da United Press Internacional (UPI) em inglês, traduzidas 
por um funcionário. 
33 
JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
Os primeiros momentos do golpe foram de indefinição. As notícias 
que nos chegavam já traduziam um clima de extrema gravidade política, 
mas não eram indicativas de vitória do movimento militar. Tanto assim 
que eu fora dormir, perto da alvorada, com a convicção de que, em face 
do apoio do general Amauri Kruel, de São Paulo, o governo controlaria 
a situação. O noticiário do jornal da Bahia na edição prestes a rodar era 
abertamente favorável a Jango. 
Como secretário do JBa., era normal que eu saísse depois dos demais 
colegas, pois deveria acompanhar os trabalhos de fechamento do jornal 
nas oficinas até o início da madrugada, fato que a minha vocação boêmia 
tornava prazeroso. Naquela noite tudo se alterava: notícias contraditórias 
espalhavam-se em todas as direções, criando um clima de expectativa e de 
angústia, sobretudo para jornalistas mal-informados. As t.ropas da dupla 
Guedes e Mourão já tinham deixado Minas, Jango fora deposto, o gover-
no estava em debandada - e muita gente da imprensa, pelo Brasil afora, 
ainda não sabia de nada. Por isso, cerca de 4h30 da manhã do dia 12 , certo 
de que não haveria alterações no noticiário, fui para casa dormir e deixei 
Moacir Ribeiro de plantão, em companhia do telegrafista. 
Perplexo com a súbita guinada dos acontecimentos e com o estado de 
excitação emocional do meu companheiro, que mal conseguia explicar 
o que estava ocorrendo - ele dissera vagamente que o jornal havia sido 
"fechado" - rumei para a nossa sede na convicção de que seria preso. 
Para minha surpresa, parte dos militares já se havia retirado. Um dos 
remanescentes, coronel que passara a liderar o grupo, afirmando em 
tom áspero que o Jornal da Bahia era um órgão a serviço da subversão 
comunista, logo me advertiu que o matutino somente circularia se mu-
dasse o noticiário. Objetei que tal providência seria inviável, pois todos 
os gráficos tinham ido embora. Diante da sua inflexibilidade, a solução 
foi raspar as notícias vetadas nas próprias "telhas" (semicírculos de chumbo 
com as matérias já compostas, agregados às rotativas) e deixar o jornal 
circular com imensos claros, que denunciavam a ação da censura. 
34 
MEMO RIAS DAS T REVAS 
O Jornal da Bahia tinha sido o primeiro órgão da imprensa baiana a 
receber o batismo de fogo do golpe militar. Nossos algozes não sairiam 
sem advertir que, diante de qualquer deslize, seríamos presos e silencia-
dos. Imediatamente designaram um oficial para fiscalizar, em tempo 
integral, o preparo das nossas edições. Fomos obrigados a conviver com a 
censura dentro do nosso próprio terreiro, colocados sob vigilância não só 
naquilo que escrevíamos, mas também no que pensávamos ou dizíamos. 
Era o início de um tormento que iria ampliar-se por anos sucessivos em 
raios crescentes, agravando-se a partir de 1969 com as perseguições ini-
ciadas por Antonio Carlos Magalhães em represália a críticas eventuais e 
repelidas com violência. Na época, ele era só prefeito. 
* * * 
Eu ingressara no Jornal da Bahia sem prévia experiência jornalística, 
levado pelas mãos de Glauber Rocha, cerca de quatro meses antes de o 
matutino começar a circular. Integrava um grupo de jovens que estavam 
sendo preparados para iniciar um novo jornalismo na Bahia. Glauber re-
cebera - com o entusiasmo inerente a tudo aquilo que fazia- a incumbên-
cia de arrebanhá-los entre os intelectuais emergentes, com vocação para as 
letras. O convite inicial partira do jornalista Ariovaldo Matos, editor e 
proprietário de um pequeno semanário - Sete Dias - em que Glauber 
escrevia a crítica de cinema. Seria uma "escolinhà', freqüentada ainda por 
companheiros de geração como Florisvaldo Manos, Fernando Rocha, Paulo 
Gil Soares e Calasans Neto, todos integrantes da chamada Geração Mapa, 
congregada em torno de Glauber a partir de meados da década de 50, no 
velho e famoso Colégio da Bahia, seção Central - e sobre a qual escrevi 
longamente no meu livro anterior, Glauber Rocha, esse vulcão. 
O Jornal da Bahia nascera de uma idéia de Nestor Duarte, prestigioso 
mestre do Direito, político e escritor, autor de importantes romances da 
literatura baiana, como Gado Humano e Tempos Temerários. Líder da sua 
geração, de vocação democrática (com pitadas de socialismo) testada nos 
35 
]oAo CARLos TEIXEIRA G OMES 
embates contra o Estado Novo varguista, Nestor já havia arregimentado 
Otávio Mangabeira e Luís Viana Filho para que, juntos, fundassem um 
novo órgão de imprensa em Salvador, concorrendo com o outro matutino 
existente, o Didrio de Notícias, um dos associados de Chateaubriand, mas 
numa linha mais progressista. Deveria ser um matutino porque o outro 
espaço estava ocupado pelo prestígio conservador de A Tarde, inabalável 
pela presença de Ernesto Simões Filho no comando - o mesmo Simões 
inimigo sistemático de interventoria de Juraci Magalhães e que já havia 
experimentado no lombo a dureza dos cassetetes da ditadura. 
Nestor integrava uma importante (e até hoje mal estudada) corrente 
da política baiana denominada de "concentração autonomistà', ao lado 
de nomes como J .J. Seabra, Otávio Mangabeira, em luta permanente 
contra o getulismo, Simões Filho, João Mangabeira, Luís Viana Filho, 
Pedro Lago, Miguel Calmon, Aloísio de Carvalho Filho, Eutychio Bahia, 
Bião de Cerqueira, Regis Pacheco, Antonio Balbino, Jaime Baleeiro, 
Nelson Carneiro, Paulo Almeida, RafaelJambeiro,JaimeJunqueiraAyres, 
João Borges, João Mendes da Costa Filho, Augusto Públio e Luís Rogé-
rio de Souza, entre tantos outros. Os mais jovens formavam a Ação Aca-
dêmica Autonomista, integrada por Josafá Marinho, Adernar Nunes 
Vieira, Jorge Calmon, Francisco Vieira Filho, Antonio Viana, Renato 
Bião, Demétrio Moura, Cora Pedreira, Augusto Alberto da Costa e ou-
tros. O autonomismo surgiu em 1932 com o nome de Liga de Ação 
Social e Política. Denominou-se de "Ligà' porque os partidos políticos 
haviam sido banidos pelo Estado Novo. Os autonomistas, de convicções 
democráticas, se contrapunham aos "invasores" ou "holandeses" (irôni-
ca alusão à invasão holandesa de 1624), ou seja, eram contrários aJuraci 
Magalhães (nascido no Ceará) e seu grupo político, vindos de fora e 
levados ao governo do Estado pela interventoria. 
Tudo era pretexto para que burlassem as proibições políticas da dita-
dura. Em agosto de 1934, regressava a Salvador, viajando de navio, o 
líder Otávio Mangabeira, retornando do primeiro exílio imposto por 
36 
MEMÓIUAS DAS TREVAS 
Vargas. Os autonomistas organizaram-lhe concorrida recepção, descendo 
a pé a ladeira da Montanha em companhia de uma multidão de adeptos, 
para ir ao cais. Mangabeira foi saudado por Seabra, que evocou o seu 
banimento (viajara para a França, como depois se refugiaria nos Estados 
Unidos) e disse-lhe, apontando para o mar e para o povo: "Entre essas 
duas imensidades - o oceano e a massa popular - eu o saúdo em nome 
da Bahia!". Era uma época em que ainda se fazia política com rasgos 
retóricos de bom gosto. Seabra, orador irônico com os desafetos, tinha 
um gênio difícil e autoritário, mas feria com elegância, usando o florete. 
As luvas de boxe somente seriam introduzidas na política baiana depois 
de 64. Do mesmo modo, a perseguição e a cotovelada. 
* * * 
Nestor Duarte havia tido, quando jovem, experiência jornalística, 
pois trabalhara num órgão de prestígio, o Diário da Bahia. Como pro-
fessor de Direito, era muito admirado e querido pelos seus alunos, entre 
os quais João da Costa Falcão, que, depois, teria papel importante na 
fundação do Jornal da, Bahia, do qual se fez proprietário e diretor. A 
atuação política de NestorDuarte o tornara conhecido no Brasil inteiro, 
com participação destacada na redemocratização do Brasil, após a dita-
dura de Getúlio Vargas, quando integrou a Constituinte de 1946. A 
idéia de criar um jornal era para ele obsessiva, tanto assim que, com a 
ajuda de Otávio Mangabeira e Luís Viana Filho, chegara a adquirir na 
França uma velha rotativa "Marinoni", cercada de lendas: dizia-se, in-
clusive, que ficara certo tempo enterrada para fugir à fúria do nazismo, 
pois iria rodar um jornal da resistência. Lendas à parte, era uma geringonça 
obsoleta e em péssimo estado, como o iria testar o jornal da Bahia quando 
começou a usá-la pouco antes de 21 de setembro de 1958, data da sua 
inauguração. 
Impossibilitado de levar adiante seus planos por falta de recursos, 
Nestor conseguiu apoio ao atrair João Falcão para o empreendimento, no 
37 
)üÁO CARLOS T EIXEIRA GoMES 
que foi facilita.do pela admiração que lhe votava o jovem condiscípulo 
quando cursara a Faculdade de Direito, filho de abastada família de Fei-
ra de Santana e, então, militante do Partido Comunista, em função do 
qual se tornaria diretor do órgão oficial da agremiação na Bahia, O Mo-
mento, duas vezes empastelado pelas forças da repressão, e também de 
uma revista chamada Seiva. 
Constituído o jornal da Bahia, cujos estatutos e competentes registros 
foram providenciados pelo jovem advogado Marcelo Duarte, filho de 
Nestor, este ficaria como o segundo maior acionista do JBa., depois de 
João Falcão, dono do controle acionário, e que logo convidou para ajudá-lo 
na direção antigos companheiros como Milton Caires de Brito e Zitelmann 
de Oliva, respectivamente gerente e superintendente do JBa.1• 
Apesar das graves deficiências da sua impressão, que decepcionaram 
a opinião pública ao circular o primeiro número (as fotos, por exemplo, 
eram inidentificáveis, semelhantes a meros borrões de tinta negra), o 
Jornal da Bahia não tardou a firmar-se. Na verdade, não disputou prefe-
rências com o seu concorrente direto, o Diário de Notícias, também 
matutino, numa época em que o horário de circulação definia o próprio 
conteúdo dos jornais, mas sim com o vespertino A Tarde, já então o mais 
lido da Bahia. O prestígio que em pouco tempo conquistou deveu-se, 
sobretudo, à qualidade da sua redação, integrada por nomes que bri-
lhariam em qualquer grande veículo da imprensa brasileira. Na década 
de 50, o jornalismo ainda consagrava o talento dos notáveis, sobretudo 
através das reportagens que sacudiam a opinião pública, nas quais se 
destacava a revista O Cruzeiro e, nela, o repórter David Nasser. Critica-
do pelos jornalistas sóbrios e pelas esquerdas, que o encaravam como 
um representante da reação e áulico consumado de Assis Chateaubriand, 
além de fazerem restrições ao seu caráter, o fato é que David Nasser 
muito contribuiu para a popularidade de O Cruzeiro, sobretudo através 
de matérias que esmiuçaram a morte de Aída Curi e o caso de Sacopã, 
este envolvendo o tenente Bandeira num assassínio que abalou a sacie-
38 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
dade carioca. Também famosa ficou a sua reportagem "Falta alguém em 
Nuremberg", que, na esteira do interesse mundial provocado pelo julga-
mento dos criminosos de guerra nazistas naquela cidade, acusava de atro-
cidades semelhantes o chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, morto 
muitos anos mais tarde na queda de um avião da Varig, nas proximida-
des do aeroporto francês de Orly. A linha jornalística de O Cruzeiro, 
porém, começava a entrar em declínio no final da década de 50, não 
interessando ao JBa., que se integrava na corrente de renovação iniciada 
por órgãos como o Diário Carioca, o Diário de Notícias, o Jornal do 
Brasil e o Correio da Manhã, entre outros, sob influência do jornalismo 
norte-americano, acolhida por nomes como os de Pompeu de Souza, 
Carlos Castelo Branco, Reinaldo Jardim, Alberto Dines, Odilo Costa 
Filho e mais alguns. 
Tecnicamente, o jornal da Bahia instituiu a diagramação prévia (an-
tes feita nas oficinas, com as matérias já compostas em chumbo distribuí-
das por um retângulo de ferro chamado de "ramà'), a valorização das 
fotos, que começaram a ser usadas na primeira página em maior núme-
ro, a compactação dos títulos, com a supressão sistemática dos artigos 
para que ganhassem maior poder de impacto, as chamadas de primeira 
página, o uso diferenciado das manchetes, a utilização do rodapé e, mais 
importante entre as medidas, a introdução do lead, que reunia no início 
das matérias os seus dados essenciais, progressivamente diminuídos em 
importância até o final, numa técnica muito comentada na época e que 
se chamava de "pirâmide invertidà' . Fascinados, aprendíamos todas es-
sas coisas, para nós inteiramente desconhecidas. Ao lado dos novos ru-
mos formais, o jornal da Bahia também implantou a reportagem de rua, 
com a cobertura de locais antes negligenciados como o porto e o aero-
porto Dois de Julho, atribuiu grande destaque ao colunismo (valorizan-
do o político e a coluna social, em plena ascensão, pelo crescente prestí-
gio de Jacinto de Tormes e Ibrahim Sued), estabeleceu a divisão interna 
da redação por chefias de setar, depois denominadas de editarias, siste-
39 
]OÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
matizou a reportagem policial e o colunismo noturno, registrando fatos 
da vida boêmia, atribuiu grande importância ao repórter-fotográfico e 
instituiu o departamento de publicidade. Salvador, em fins da década de 
50 uma pacata cidade com pouco menos de 500 mil habitantes, ainda 
com bondes pelas ruas, começava lentamente a ser impulsionada pela 
mentalidade desenvolvimentista gerada pelo governo Juscelino ("cinqüen-
ta anos em cinco") e por empreendimentos como a Sudene, o planeja-
mento dos pólos industriais, a exploração do petróleo, a expansão da 
energia elétrica, a construção da refinaria Landulfo Alves e o incremento 
do turismo. A economia do Estado, beneficiada por Paulo Afonso, tra-
dicionalmente dependente da monocultura do cacau, buscava diversifi-
car-se. No plano cultural, Salvador dinamizava-se por meio do mecenato 
de Edgar Rego dos Santos à frente da Universidade da Bahia, então no 
esplendor das suas atividades, com a criação dos institutos e do Centro 
de Estudos Afro-Orientais, que chegou a assessorar a política externa do 
País no governo Jânio (denominada de PEI - política externa indepen-
dente, que o levou a condecorar Guevara, para grande escândalo dos 
conservadores), as escolas de Dança e de Teatro, os Seminários Livres de 
Música, etc. Edgar Santos era então o reitor de maior prestígio nas uni-
versidades. Sem possuir militância partidária, a sua atuação revestia-se 
de inegável repercussão política, sendo um homem muito ligado aJuraci 
Magalhães e, ideologicamente, inserido na linha da UDN. Tratava-se, 
sobretudo, de um articulador e diplomata, qualidades que se juntaram 
para transformá-lo no grande criador da Universidade da Bahia, conse-
guindo congregar o que antes eram apenas unidades isoladas, duas das 
quais se destacavam como celeiros de mestres renomados em suas profis-
sões e humanistas da antiga tradição baiana: a Faculdade de Medicina e 
a Faculdade de Direito. 
A Universidade da Bahia representava um núcleo irradiador de in-
tensa atividade cultural, enriquecida pela vinda de mestres nacionais ou 
estrangeiros de grande reputação, entre os quais Martim Gonçalves, 
40 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
Koellreutter e Yanka Rudzka, além da presença da arquiteta italiana Lina 
Bo Bardi, trazida pelo governo Juraci Magalhães para dirigir o Museu de 
Arte Moderna da Bahia. A ação da Universidade desenrolava-se na con-
fluência de duas gerações que assumiriam papel importante na vida cul-
tural baiana, a de Cadernos da Bahia e a Mapa, já citada. Entre os inte-
grantes da primeira emergia com brilho o então jovem professor Antonio 
Luís Machado Neto, um inovador dos estudos de Sociologia no Brasil, 
lastreado em sólidos conhecimentosde Filosofia, que logo se tornou pró-
ximo dos integrantes da Mapa, a muitos dos quais ensinou no colégio 
Central. 
Quando o jornal da Bahia surgiu, as preferências dos leitores se divi-
diam entre A Tarde e o Diário de Notícias, o matutino da cadeia associada 
dirigido por Odorico Tavares. Indiscutivelmente, A Tarde era o veículo 
formador de opinião, com inegável prestígio nas camadas cultas, líder 
incontestável de circulação. Ao aparecer, o JBa. provocaria ciumadas no 
"vespertino da Praça Castro Alves" - como então o chamavam. E tanto 
isso é verdade que, algum tempo depois, A Tarde acolheria com destaque 
em suas páginas as diatribes raivosas de um padre fanático -Saltes Brasil 
- que já havia denunciado como comunista a obra infantil de Monteiro 
Lobato e despejava as mesmas acusações sobre o novo matutino. Ao 
constituir-se, o JBa. arregimentou um grupo de jornalistas já tarimba-
dos, egressos dos quadros do órgão comunista O Momento, dirigido por 
João Falcão, que funcionou de 1945 a 1957, rodando em Salvador: 
Ariovaldo Matos, José Gorender, Inácio Alencar, Misael Peixoto, Maurí-
cio Naiberg, Alberto Vita (que morreria prematuramente, em conseqüên-
cia de uma infecção pós-cirúrgica), Luís Henrique Dias Tavares e 
Arquimedes Gonzaga, o "Dezinho". A estes agregaram-se, igualmente 
com militância no PC, Flávio Costa, escritor, e João Batista de Lima e 
Silva, por muitos anos redator, no Rio, da Voz Operária, de circulação 
nacional, convidado para ser o primeiro redator-chefe do JBa., em que 
se destacaria como editorialista de texto sóbrio e direto, além do escritor 
41 
JoAo CARWs TEIXEIRA GOMES 
Nelson Araújo e do poeta Jair Gramacho. Nossa geração juntou-se a 
esse grupo, que se ampliou com o passar dos anos, incorporando novos e 
destacados valores, que relacionarei no final deste capítulo2• 
Tendo integrado a primeira leva de repórteres-gerais do JBa., logo fui 
escolhido para fazer a cobertura das eleições estaduais de 1958, ganhas 
por Juraci Magalhães, que entrevistei algumas vezes3• Não era fácil para 
o jovem inexperiente enfrentar os figurões da política, fato que me dei-
xava sempre ansioso. Não tenho, porém, do que me queixar: difícil era 
acompanhar o moroso resultado das apurações no Fórum Rui Barbosa, 
com suas pendências eleitorais e números controversos. Não tive proble-
mas, porém, com Juraci ou qualquer outro político, até porque a corre-
ção das minhas matérias contribuiu para credenciar-me progressivamen-
te. Tanto assim que logo fui convidado para ocupar a chefia de reportagem 
do jornal, ainda no primeiro ano do seu funcionamento, cargo que re-
cusei, temendo a minha inexperiência, mas que acabei aceitando, por 
insistência de Ariovaldo Matos. Daí, sucessivamente, passei a ser secretá-
rio de redação, redator-chefe e editorialista, estas duas funções tendo assu-
mido de junho de 1964 até janeiro de 1977, quando deixei o jornal, rea-
gindo contra uma transação insultuosa, que narrarei adiante. No JBa., os 
cargos de chefe da redação e redator-chefe se identificavam na prática. 
Entre os fatos significativos que marcaram minhas atividades de re-
pórter político, não posso esquecer um episódio ocorrido entre mim e 
Otávio Mangabeira. O grande líder democrático ia assumir o cargo de 
senador, em cerimônia de diplomação geral, a ser realizada com pompa 
no Forum Rui Barbosa, e eu fui designado para cobri-la. Na noite ante-
rior, tendo participado de uma daquelas farras homéricas da juventude, 
cheguei atrasado à diplomação, justamente pouco depois do discurso 
(improvisado) do tribuno. Que fazer? Voltar à redação com as mãos aba-
nando seria o risco de demissão sumária - fato grave sobretudo para um 
jovem que queria casar (ainda se fazia isso em finais da década de 50). 
Tive, porém, uma luminosa idéia: procurar diretamente o senador no 
42 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
Hotel da Bahia, que ele criara em 49 e no qual costumava hospedar-se, 
e pedir-lhe que sintetizasse para mim a sua fala, da qual não havia cópias. 
Pois bem: o orador reproduziu integralmente todo o seu brilhante 
"improviso", deixando-me embasbacado. Passei a acreditar que era as-
sim que Mangabeira agia sempre: decoraria previamente os seus mais 
importantes pronunciamentos, dotado de espantosa memória. Não é 
preciso acrescentar que levei para a redação uma reportagem perfeita, 
muito elogiada, que certamente somou pontos para o convite que logo 
me foi feito, a fim de ocupar a chefia-de-reportagem. 
Se busco afastar com o poder da memória as névoas do passado, sou 
forçado a admitir que a minha única vocação visível foi a de escrever. 
Lembro-me de que, quando criança, eu sonhava em ser um grande re-
pórter esportivo, com a alma acesa pelo amor que votava ao Esporte 
Clube Bahia, fundado por meu pai Teixeira Gomes, que foi o seu pri-
meiro goleiro, campeão baiano de 1931 a 33. De certa forma, devo a 
minha vida ao Esporte Clube Bahia. É uma história curiosa e rara, que 
julgo dever contar. Meu avô João Oliveira, empresário, homem abastado 
e possuidor de um belo carrão Ford da década de 30, costumava levar o 
automóvel para o velho campo da Graça com suas filhas Estela, Célia, 
Yvone e Wanda. Na época, havia uma parte dentro do estádio especial-
mente para carros, dos quais era permitido ver os jogos. Lá, um dia, o 
goleiro Teixeira Gomes tomou um "frango" e entrou em conflito com a 
torcida, por reagir com gestos exageradamente eloqüentes às vaias ... Teve 
de sair às carreiras do campo, ante a fúria dos torcedores provocados. 
João Oliveira protegeu-o em seu carro e colocou-o fora do estádio, longe 
da ira da torcida. Assim ele conheceu minha mãe Célia, por ela se apai-
xonou e logo depois se casaram. E eis-me aqui, filho único, a escrever 
estas memórias. Na adolescência, freqüentei regularmente a Biblioteca 
Pública do Estado, em busca das coleções de jornais antigos, nas quais 
lia, emocionado, as reportagens sobre as atuações de meu pai no gol do 
Bahia4• Fiquei de respiração presa certo dia, ao ler um cronista escrever 
43 
)oÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
(e já revelador da curiosa criatividade que marca o jargão da reportagem 
esportiva) que, num jogo contra um time sul-americano, realizado no 
mesmo campo da Graça, "Teixeira Gomes foi uma verdadeira antena -
pegava tudo!". ''Antenà', obviamente, em conseqüência do ascendente 
prestígio do rádio nos anos 30, quando começava a ser o instrumento de 
comunicação social popular por excelência. Enchi-me de orgulho pelo 
alto conceito de meu pai, e menino, sempre contemplei com reverência 
o material esportivo do velho goalkeeper ("golquíper"), como então se 
escrevia em inglês (num tempo em que futebol era ainda football e time, 
team), por ele carinhosamente guardado como registro da sua época de 
glórias esportivas - a doce época do amadorismo, em que os jogadores 
ajudavam com seu dinheiro as finanças do clube e a compra do equipa-
mento esportivo, da camisa (ou do gorro, que então ainda se usava) às 
chuteiras, passando pela própria bola. Teixeira Gomes era amicíssimo 
(quase um irmão), de Raimundo Peixoto de Magalhães, ex-presidente e 
conselheiro do Esporte Clube Bahia, o homem que desenhou o escudo do 
time. Compadres, meu pai batizou-lhe o segundo filho, Carlos Eduardo, 
prematuramente morto. Raimundo era irmão de Magalhães Neto, mé-
dico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia e, portanto, tio de 
Antonio Carlos Magalhães. A tia deste, Mabel, casada com .Raimundo, 
morreu de parto - e minha família, que estava viajando, traumatizada, 
logo voltou a Salvador, em solidariedade ao viúvo e ao primeiro filho do 
casal, José Carlos Magalhães, um querido amigo de toda a vida. Lembro-
me de que a contemplação do corpo da ainda jovem parturiente proporcio-
nou-me pela primeira vez, menino, a visão concreta da morte, constituindo 
um trauma que marcou dolorosamente a minha infância. Esses fatos ja-
mais permitiriam supor que, vários anos depois,eu e Antonio Carlos 
começaríamos a trilhar caminhos tão duramente antagônicos. 
Pensei, pois, em iniciar-me no jornalismo como cronista esportivo, 
mas o superintendente do jornal da Bahia, Zitelman de Oliva, conhe-
cendo alguns trabalhos literários meus da adolescência, muito insistiu 
44 
M EMÓRIAS DAS TREVAS 
para que me incorporasse à reportagem geral, o que acabou ocorrendo, 
logo me cabendo a cobertura das eleições. Não me afastei, porém, do 
esporte, tanto assim que acabaria como conselheiro do Esporte Clube 
Bahia. Ainda de referência a futebol, eu viveria uma das maiores decep-
ções da minha vida com a derrota sofrida em 1950 pela seleção brasileira 
para a uruguaia, no Maracanã. Adolescente, eu estava no Rio, empolgado 
com as manchetes que, já no sábado, apontavam o Brasil como campeão 
do mundo. O procedimento ufanista da imprensa era absolutamente 
irresponsável. Com a derrota, a sensação que tive, tal o abatimento do 
povo, chorando pelas ruas, foi a de que o Brasil havia sido invadido por 
tropas estrangeiras, comandadas pelo general Obdúlio Varela. Nasceu 
desse imenso constrangimento um certo grau de pessimismo que eu iria 
carregar pela vida afora. Minha única compensação foi a de ter visto o 
Brasil golear a Espanha por 6 a l, com o mestre Zizinho na maior exibi-
ção individual que testemunhei num jogador, em todos os tempos -
regendo uma seleção de sonho, incomparável. 
O desastre do Maracanã me encheu de rancores contra o Uruguai e 
passei a compreender que o futebol antes separa que une os povos. Tem-
pos depois, visitando Montevidéu, com sua vida plácida e seu povo gen-
tilíssimo, desfiz, envergonhado, os preconceitos. Há um livro magistral 
que condensa para os brasileiros a relevância daquela experiência fatídica: 
Anatomia de uma derrota, de Paulo Perdigão. É um brilhante ensaio de 
sociologia e de psicologia coletiva, expondo como uma derrota esportiva 
pode momentaneamente liberar o que há de pior ou de mais traumático 
no inconsciente de um povo sofrido, acuado por seus fantasmas históri-
cos, políticos e sociais, sem líderes e céptico quanto ao futuro. Tal como 
os brasileiros de hoje. Surgiu na época inclusive a versão de que o Brasil 
perdera a Copa do Mundo em virtude da sua composição racial. Um 
povo "misturado" não poderia gerar uma pátria de campeões. Obvia-
mente, essa era a visão das chamadas "elites". Elas se esqueciam de que o 
verdugo do Brasil, Obdúlio Varela, era mulato. 
45 
JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES 
* * * 
Os detalhes salgam e enriquecem-nos a vida, mas voltemos ao 
essencial. 
Ingressei, pois, no jornalismo, levado pela vocação de escrever5, talvez 
herdada de minha mãe, Célia Oliveira, que, jovem, produzia contos, reu-
nidos num livro que não chegou a ser publicado e se perdeu. Li-os e achei-
os comoventes e belos. Fazer jornalismo era para mim uma experiência 
fascinante e, pouco tempo depois de iniciar-me na profissão, amadureci o 
aprendizado realizando um estágio em importantes jornais cariocas como 
O Globo, Última Hora, Correio da Manhã e jornal do Brasil, cujo dinamis-
mo me impressionou em inícios da década de 60, em contraste com a 
pobreza de meios e recursos do jornal da Bahia. Foi assim, em síntese, que 
me tornei um profissional da imprensa: dos tempos da infância, em que 
redigia e ilustrava pequenos jornais para os amigos, ao meu ingresso no 
JBa., havia-se cumprido não um destino, mas sim uma vocação, adubada 
com os sonhos infantis, que, em seus desdobramentos, iria colocar-me no 
centro de situações conflituosas, que jamais imaginara enfrentar. 
* * * 
A partir de 1963, não era preciso estar dentro de um jornal, acompa-
nhando de perto os acontecimentos políticos, para ter a certeza de que 
algo de muito grave estava para ocorrer na vida do País. A fermentação 
política começava a entrar na linha do paroxismo, estabelecendo nítida 
divisória entre, de um lado, uma burguesia capitalista urbana, latifundiários, 
políticos conservadores e militares, e, de outro, esquerdas assanhadas e 
imaturas, num país sem a menor tradição de "práxis" revolucionária con-
seqüente. A principal arma das esquerdas era uma retórica ilusória, que, 
com o passar do tempo, foi criando na imprensa a falsa idéia da existên-
cia de um esquema militar/operário/estudantil que, em qualquer cir-
cunstância, sustentaria Jango no poder, mas que, na verdade, nunca exis-
tiu. A farsa traria efeitos desastrosos para o Brasil. 
46 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
A trama para a derrubada de João Belchior Marques Goulart foi cos-
turada antes da sua posse, após o retorno apressado da China para ocu-
par a vaga presidencial aberta pelos delírios autoritários de Jânio Qua-
dros, regados a uísque. Se não fosse a "cadeia da legalidade" instituída 
por Brizola e pelo general Machado Lopes no Rio Grande do Sul, o 
herdeiro político de Vargas não teria chegado ao poder, ao qual somente 
ascendeu depois que o enredaram no cipoal parlamentarista (Tancredo 
Neves, Brochado da Rocha, Hermes Lima) imposto pelos militares 
golpistas. Conforme as apropriadas palavras de Maria Helena Simões 
Paes no livro A década de 60, o que houve foi uma "desestabilização 
planejadà', que começou em 1961, com a criação de órgãos reacionários 
como o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), coordenando 
"uma sofisticada e multifacética campanha política, ideológica e militar" 
(lembra a autora, citando o René Dreifuss de 1964: a conquista do Esta-
do), que se consumou em 12 de abril. Disse ela: 
Nesse processo, o IPES associou-se ao IBAD (Instituto Brasileiro de Ação 
Democrática), fundado por empresários e militares no final dos anos 50. 
Anticomunista e ligado à CIA (Agência Central de Informações dos EUA), 
o IBAD recebia contribuições de industriais e banqueiros nacionais, de 
proprietários rurais, de grupos internacionais e da própria CIA. O IPES-
IBAD ligou-se ainda a oficiais da ESG, associação que gerou o "estado-
maior" do movimento civil militar que derrubaria João Goulart6• 
A análise é perfeita. Abro aqui um parêntese para revelar que, por 
uma estranha (e incorreta) associação psíquica, todas as vezes, desde o 
início dos anos 60, em que eu ouvia falar do IBAD, me assustava e 
evocava a Gestapo hitleriana. Para mim, era também um órgão sinistro 
- mas, de qualquer sorte, não era um polícia política, e sim um valhacouto 
de reacionários. 
Não vou aqui resumir a história do golpe, já bastante conhecida de 
todos os brasileiros, mas apenas destacar que, dentro de uma redação de 
47 
JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES 
jornal, vivendo na pele aqueles acontecimentos extraordinários, fui sen-
tindo gradualmente que a deposição de Jangoulart - como então escre-
víamos no JBa. - era uma simples questão de tempo. Isto porque não 
sentia firmeza nas posições das esquerdas, que, como sempre, vocifera-
vam muito, mas não se preparavam para o confronto inevitável. Essa 
tendência para a exacerbação ideológica me havia afastado de uma 
militância esquerdista ou, mesmo, de qualquer comprometimento par-
tidário. Embora me impressionasse profundamente a visão marxista das 
relações econômicas na sociedade capitalista, cada vez mais atual, hoje, 
em decorrência da globalização (aprofundarei esse assunto no capítulo 
final), e um impulso de solidariedade humana me impelisse para o socialis-
mo, eu não suportava a tendência das esquerdas de tutelar, impor dogmas, 
agir através de "slogans" ou constranger o pensamento, "sovietizando" o 
marxismo. A teoria marxista me fascinava pelo seu conteúdo humanístico 
(negado acerbamente pelos seus críticos, mas já apontado pelos estudio-
sos), claramente exposto a partir das suas origens, como urna reação do 
pensamento organizado contra a brutal exploração capitalista imposta pela 
revolução industrial do século XIX, Inglaterra à frente. Sobre o assunto, 
escrevi em meu livro Glauber Rocha, esse vulcão um trecho definidor do 
meu pensamento e que, portanto,considero fundamental transcrever: 
48 
... O marxismo( ... ), sendo a negação da ideologia cristã, com ela 
se identifica plenamente, nos objetivos de transformação social e rege-
neração humana. De que forma não se entender como um notável es-
forço de reeducação do homem o propósito de esvaziar-lhe o egoísmo 
congênito, de fundo biológico, através de um sistema que privilegie o 
coletivo em detrimento do individual? A teoria da luta de classes confere 
correta interpretação aos antagonismos e choques de interesses econô-
micos, um fenômeno real que, de outra forma, permaneceria vagamen-
te situado na esfera de uma suposta "maldade congênita" do homem, 
tão irrealista como a sua presumível "bondade natural", de fundo 
MEMO RIAS DAS TREVAS 
rousseauniano. O móvel da ação humana de natureza econômica não é 
a "maldade" ou a "bondade", mas sim o interesse, que tem no lucro 
capitalista a sua expressão mais radical. O marxismo, em tese, foi uma 
grande corrente ética que pretendia, pela reformulação das leis econô-
micas, suprimir as condições materiais da sociedade que transformam o 
homem em algoz do seu semelhante, reprimindo-lhe a inclinação natu-
ral para a acumulação desmedida da riqueza, a obsessão do dinheiro e 
dos bens materiais. Para evitar a identificação desse objetivo humanístico 
com uma vaga e etérea idealização das relações sociais, assumiu a forma 
do materialismo histórico e do socialismo científico7• 
Não é preciso lembrar que, para redigir o conjunto das suas teorias, 
Marx estudou detidamente a situação do operariado europeu, ao qual 
chegou a distribuir formulários com numerosas indagações sobre o seu 
modo real de vida, inclusive familiar. Um pouco de experimentalismo à 
Zola, indo aos fatos de caderninho em punho, para enriquecer a teoria 
com a vivência prática das situações. Testemunhou a generalização da 
miséria e o desprezo capitalista ao trabalhador. A longa e acidentada 
história da valorização do trabalho humano foi sempre um percurso de 
resistências, superações, sofridos e intermináveis combates, uma escalada 
de heroísmos explícitos ou sufocados, invariavelmente regada a sangue, 
desespero e martírio. Uma luta contínua e dolorosa como as guerras -
ou ela própria uma guerra permanente contra a avareza, a cupidez e o 
egoísmo, não raro enfrentada pelo "status quo" com os cassetetes poli-
ciais e a prisão. Desde o trabalho escravo até as conquistas tornadas pos-
síveis pela coesão operária do sindicalismo, milhões soçobraram nessa 
luta sem direito aos monumentos levantados em honor do sacrifício, da 
dignidade e da bravura. Não é difícil entender assim o que representa-
ram as idéias de Marx nesse processo e qual tem sido o papel dos seus 
críticos e opositores ao longo da história, até chegarmos à globalização, 
aparentemente consagradora da vitória do neoliberalismo, mas na verda-
de apenas uma nova fase no desdobramento dialético desse "continuum" 
49 
}üÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
histórico que move o mundo. Os momentos de desespero social são 
momentos de transição, mesmo porque o sofrimento de milhões de se-
res humanos não pode ser institucionalizado. Mas é preciso lutar sempre 
contra a opressão sem esperar benevolências ou concessões. 
Embora nutrido do idealismo socialista, não cheguei a ser um devo-
tado cultor de Marx ou enfronhado leitor dos seus livros, preocupado 
com a questão da liberdade individual e intimidado pela complexidade 
das suas teses econômicas, cheias de cálculos esotéricos, números e esta-
tísticas, além de fórmulas matemáticas, que detesto. Por outro lado, minha 
difícil convivência com as esquerdas dogmáticas impediria que eu me 
vinculasse a qualquer experiência partidária. Não há ideais que justifi-
quem a abdicação da faculdade de pensar, o dom mais nobre do ho-
mem. Era com constrangimento que eu via pessoas inteligentes subme-
tidas a esquemas mentais transferidos. O radicalismo emburrece. As aulas 
de sociologia e filosofia de Machado Neto estimularam em mim a pro-
pensão natural para o exercício do livre pensamento e o seu livro Marx e 
A1annheim me chamou a atenção para o conteúdo humanístico do mar-
xismo, violentamente negado pelos seus hermeneutas capitalistas ou a 
serviço deles, mas um fato passível de comprovação. Minha indepen-
dência foi fundamental no jornalismo e na vida. 
* * * 
Voltemos, porém, aos fatos de 64. O golpe pegou de surpresa o pró-
prio governo de Lomanto Junior, que na transição de 31 de março para 
1 º de abril viveu no palácio da Aclamação uma madrugada de incerteza 
e angústia. Ele, que chegara ao poder em 62 derrotando Waldir Pires, 
com bandeiras municipalistas, estava à vontade com João Goulart e não 
era bem visto pelos conspiradores. Tudo indicava que seria um dos pri-
meiros a cair. Por isso, sofria em companhia de auxiliares e do seu secre-
tariado, completamente desnorteado pela falta de informações precisas. 
Por mais incrível que pareça, o mesmo ocorria com a alta oficialidade da 
50 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
VI Região e demais comandos militares radicados em Salvador, igual-
mente reunidos com o chefe do Executivo, indecisos quanto à posição a 
ser assumida, diante de fatos ainda tão obscuros. Para prevenir-se, após 
esses contatos, Lomanto Junior resolveu pedir ao seu secretário da Justi-
ça, jornalista Jorge Calmon, que redigisse um manifesto ao povo baiano. 
Como não se sabia para que lado ir, optou-se pela forma diplomática de 
um generalizado apelo à manutenção da "legalidade" e de respeito aos 
poderes constituídos, prudentemente omitindo-se o nome de Jango. Eis 
a íntegra do documento, divulgado em todos os jornais em suas edições 
de 12 de abril de 1964 e pela primeira vez reproduzido em livro: 
O governador de Estado, ao tomar conhecimento das graves ocorrên-
cias no Sul do País, reuniu-se, para o estudo da situação, com os coman-
dantes militares. Acha-se o Governo em condições de garantir, com a 
cooperação das Forças Armadas, a paz e a ordem no território da Bahia. 
Na disposição de contribuir para a manutenção, a todo custo, do 
regime democrático, o governo baiano está certo de contar, para este 
objetivo, com o decidido apoio da população do Estado. Concitando o 
povo a conservar-se tranqüilo e confiante, seguro está de que os baianos 
mais uma vez darão ao Brasil, neste momento crucial, o testemunho da 
moderação e do patriotismo que têm caracterizado sua participação na 
vida nacional. 
A Bahia lança neste instante um veemente apelo à Nação para que, 
sensível aos seus sentimentos cristãos, não permita a destruição da sua 
paz interna, repelindo a ameaça da guerra civil, que ora se esboça. 
O governo da Bahia, coerente com os seus pronunciamentos anteri-
ores, manifesta-se, firmemente, pela defesa da legalidade democrática, 
com a preservação dos poderes constituídos, repudiando, por isso mes-
mo, qualquer tipo de ditadura. 
O documento torna explícita a desorientação das autoridades civis e 
militares da Bahia, pois o golpe já estava vitorioso, representava o esface-
51 
JoAO CARLOS TEIXEIRA GOMES 
lamento dos poderes legalmente constituídos e trazia em seu bojo a dita-
dura. O manifesto expunha um governador e seus convivas atarantados 
em palácio e o deixou em situação difícil nos primeiros dias da implan-
tação do movimento militar. Lomanto acabaria sendo salvo - depois de 
ter sido obrigado a alterar o seu secretariado, integrando-o com nomes 
"confiáveis" - pela proteção do comandante do IV Exército, com sede 
em Recife, general Justino Alves Bastos, que, tempos depois, cairia em 
desgraça por ter feito um pronunciamento político durante um almoço, 
estimulado, ao que se disse, por algumas doses de uísque. Lomanto, por 
sua vez, me negou, vários anos transcorridos da deflagração do golpe, ter 
preparado, na sombria madrugada de 12 de abril, dois manifestos, um a 
favor e outro contra Jango, conforme seus adversários espalharam por toda 
a Bahia.Até hoje não ficou claro o motivo pelo qual o general Justino 
Bastos o salvou da degola, que chegou a ser admitida como inevitável. 
Sorte semelhante não teve o prefeito de Salvador, um engenheiro do 
qual muito se esperava, Virgildásio Sena, deposto pelos militares depois 
de uma ação ostensiva e espetacular, que incluiu o cerco prévio da sede 
da prefeitura, no centro histórico da cidade, por tropas motorizadas e 
armadas. Ele não se encontrava no local, num fim de tarde do dia cinco 
de abril, mas, ao saber do cerco - uma verdadeira operação de guerra-, 
apresentou-se espontaneamente ao comando da VI Região Militar e foi 
preso. Sem querer, fui testemunha ocular da invasão da prefeitura: eu 
tinha ido ao centro da cidade comprar jornais do Rio para inteirar-me 
dos rumos do golpe, quando vi os veículos do Exército passarem em 
direção ao Paço Municipal e acompanhei, perplexo, as manobras do cerco, 
efetuado de surpresa num domingo. Pensei que o prefeito estava ali e 
temi por sua integridade física. 
Eu sabia, desde dias antes, que Virgildásio Sena seria sacrificado. 
Numa das minhas primeiras visitas compulsórias ao quartel da VI Re-
gião Militar, no bairro da Mouraria, onde várias vezes fui hostilizado e 
ameaçado de prisão, um coronel, de nome Mendonça, dedo em riste 
52 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
em minha cara, queria saber o motivo pelo qual o Jornal da Bahia 
divulgara a notícia de que o prefeito seria poupado. Eu próprio trans-
crevera uma breve informação do jornal O Globo e a publiquei em uma 
das nossas edições, convicto de que nascera de fonte autorizada. 
Pela áspera reação do coronel, vi logo que tudo estava perdido: Vir-
gildásio, apesar de sua reputação de técnico competente e de gozar da 
simpatia popular, não escaparia. Aos gritos, sempre com o dedo apontado 
para mim, à beira de um descontrole emocional, o coronel Mendonça 
advertiu que reincidência "em noticiário falso e ideológico" levaria o 
quartel a decretar a invasão e o fechamento do jornal da Bahia, "com 
fuzis e metralhadoras", conforme enfatizou. Nunca esqueci essa frase. 
Treze dias após a sua queda, Virgildásio Sena perdeu oficialmente o cargo 
de prefeito através da votação de seu "impeachment" por uma Câmara 
Municipal pressionada e acovardada, no dia 18 de abril. Quinze vereado-
res aprovaram a medida e apenas dois resistiram: Luís Leal e Luís Sampaio. 
Assim passavam a ser tomadas as decisões políticas nos legislativos de 
todo o País, apavorados com o aluvião das cassações e suas famigeradas 
listas. O mundo político submetia-se para sobreviver à fúria dos falcões, 
que já intimidavam os chefes militares mais contidos, forçados a conces-
sões. A linha-dura logo começou a arreganhar os dentes e os propalados 
"compromissos democráticos" do golpe foram incontinenti mandados 
às favas: 64 aos poucos preparava 68. 
A violência da VI Região especificamente contra o JBa., na imprensa 
baiana, se amparava em duas considerações: a existência de grande nú-
mero de ex-militantes comunistas em nossos quadros, entre os quais o 
próprio diretor (todavia já empresário e banqueiro), e o apoio sistemático 
que dávamos às reformas de base pregadas durante o governo Jango, 
para tornar o Brasil um país menos dependente economicamente e social-
mente mais justo. 
Eu assumira a chefia da redação do Jornal da Bahia interinamente logo 
após o golpe, em virtude de um colapso nervoso sofrido pelo titular ante-
53 
JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES 
rior, que, diante de sucessivas invasões da nossa sede por tropas militares, 
em busca de documentos incriminadores, fora vítima de uma disbulia e 
refugiara-se em casa, incapacitado de sair. Mal conseguia balbuciar. So-
mente isso dá a idéia das enormes responsabilidades que caíram sobre as 
minhas costas. O fato de que nunca pertencera ao Partido Comunista, 
nem desenvolvera militância ideológica, fora providencial para a minha 
permanência no cargo, no qual fui oficializado em 13 de junho de 64, de 
acordo com nota elogiosa divulgada pela direção na 1 ª página8 • 
A minha independência conferia-me autoridade moral para lidar com 
generais e coronéis ameaçadores. A VI Região vivera na madrugada do 
golpe momentos de ansiedade. Era comandada por um homem cauteloso, 
o general Manuel Mendes Pereira, conhecido como o "Mandão" ou 
"Pereirão", incapaz de violência. Possuía, porém, assessores radicais, en-
tre eles o cel. Humberto de Mello, chefe do Estado Maior, o mesmo que 
acompanhara em palácio as angústias de Lomanto (que já tivera auxiliares 
presos, entre os quais o professor Milton Santos e o jovem Procurador-
Geral do Estado, Marcelo Duarte) e que, tempos depois, lançava na 
Bahia um manifesto agressivo, condenando a subversão, a corrupção e o 
declínio moral da sociedade, motivo pelo qual pregava o fechamento 
das boates de Salvador ... 
Depois da rebelião dos marinheiros e do grande comício janguista da 
Central do Brasil, firmou-se-me a premonição da inevitabilidade do golpe 
- idéia, aliás, que, nos últimos dias, já se generalizava. Tanto assim que, 
pouco antes, como secretário, eu recebera a visita do líder sindical Dante 
Pelacani, que viera advertir o JBa., conhecido pelas suas posições pro-
gressistas, sobre a iminência da ação armada, longamente prestigiada 
pelo embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon. Pelacani fazia 
uma peregrinação pelo Brasil tentando aglutinar forças contra o golpe 
iminente, mas este aconteceu de acordo com as previsões de todas as 
pessoas sensatas, capazes de perceber que o governo não se sustentaria 
num clima de indisciplina militar. O esquema de proteção montado, ao 
54 
MEMÓRIAS DAS TREVAS 
que se dizia, pelo general Assis Brasil não resistiu à pressão das "marchas 
com Deus pela liberdade" e acabou por revelar-se, no final das contas, 
um surpreendente logro. 
Na Bahia, com exceção de Lomanto Junior, as principais lideranças 
já estavam envolvidas na conspiração e muito lucraram com o golpe, 
mas não há dúvida de que o seu principal beneficiário foi Antonio Carlos 
Magalhães. Por um motivo muito simples: na época, ele era apenas um 
deputado federal sem qualquer ressonância popular, que havia construído 
carreira sob a proteção de líderes expressivos como Juraci Magalhães, 
Antonio Balbino e Edgar Rego dos Santos, o reitor, que, embora tendo 
desenvolvido suas atividades na área da Universidade da Bahia, possuía 
prestígio suficiente para amparar o então jovem político inexperiente e 
ambicioso, que sabia tirar proveito das suas relações com os poderosos. 
No livro Política é Paixão9, fruto de uma longa entrevista concedida por 
Antonio Carlos a um grupo de jornalistas do Sul (não tiveram a idéia de 
incluir um único baiano sequer - um baiano sem rabo preso), respon-
dendo a uma pergunta de Miriam Leitão, do jornal O Globo, ele não 
vacilou em confessar que "a pessoa mais importante na sua vida políticà' 
foi Juraci Magalhães - o mesmo Juraci, no entanto, que Antonio Carlos 
acusou, com estardalhaço, já no governo da Bahia, de ter-se colocado 
contra a instalação do pólo petroquímica do Estado (publicamente asse-
gurado por Médici a Luís Viana), a serviço, segundo disse, dos interesses 
da Petroquímica União. Agrediu seu ex-protetor com tal contundência 
que este se viu obrigado a romper uma relação de longos anos, decisiva 
para a carreira de Antonio Carlos, num episódio considerado pela crônica 
como indicativo de uma ingratidão sem limites. Para muitos, tudo não 
passou de atitude premeditada, sob o ilusório pretexto de defender um 
interesse da Bahia, mas assumida para afastar da sua nascente liderança a 
sombra das benesses recebidas e isolar a força remanescente do 
juracisismo. Se Juraci Magalhães houvesse lido Maquiavel, talvez não 
tivesse ajudado Antonio Carlos, pois está no mestre toscano que "aquele 
55 
JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES 
que torna outrem poderoso arruina-se a si próprio". O atrito, que obteve, 
na época, enorme

Outros materiais