Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MEMÓRIAS DAS TREVAS J OÁO CARLOS TEIXEIRA GOMES MEMÓRIAS DAS TREVAS GEllACIO a; EDffOKIA/ MEMÓRIAS DAS TREVAS Copyright© 2001 by João Carlos Teixeira Gomes Todos os direitos reservados Copyright © 2001 Geração Editorial 1 ª edição - Janeiro de 2001 2• edição - Janeiro de 2001 Editor Luiz Fernando Emediato Capa }ô Fevereiro (ilustração sobre fa to de Ricardo Stuckert} Revisão Paulo César Pinheiro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Gomes, João Carlos Teixeira Memórias das trevas / João Carlos Teixeira Gomes. São Paulo : Geração Editorial, 200 !. IBSN- 85-7509-001-1 1. Brasil - Política e governo 2. Gomes, João Carlos Teixeira 3. Jornalistas - Brasil - Biografia 4. Magalhães, Antonio Carlos 5. Políticos. - Brasil - Biografia I. Título. 00-5280 CDD-920.50981 fndices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Jornalistas : Biografia 920.50981 Todos os direitos reservados GERAÇÃO DE COMUNICAÇÃO INTEGRADA COMERCIAL LTDA. Rua Cardoso de Almeida, 2188 - 01251-000 - São Paulo - SP - Brasil Te!. (11) 3872-0984 - Fax: (11) 3862-9031 GERAÇÃO NA INTERNET www.geracaobooks.com.br geracao@terra.com.br 2001 Impresso no Brasil Prinud in BraziJ Contracapa JORNALISTA DEVASSA A VIDA DE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, O DONO DA BAHIA "...com o chicote numa mão e o dinheiro na outra." Antônio Carlos Magalhães ao jornalista Ricardo Noblat, no Jornal do Brasil, em 7 de setembro de 1986, explicando como elegeu João Durval governador da Bahia em 1982. "Se eu quisesse, faria você governador da Bahia." Antônio Carlos Magalhães ao repórter Armando Rollemberg, na revista Isto é, em 13 de outubro de 1982. "O Al-5 (...) é instrumento imprescindível para romper o cerco da agressão subversiva e assegurar a ordem pública." Antônio Carlos Magalhães ao Jornal da Tarde, em 30 de março de 1972. "Está aberta a pasta cor-de-rosa (...). A estrela da lista de doações é o senhor Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), que na época disputava o governo baiano e, pela planilha, levou U$ 1,1 milhão de dólares (...)." Revista Isto é, nº 1368, dezembro de 1995, ao comentar as doações clandestinas do Banco Econômico a políticos. "Não conheço depoimento de maior envergadura no jornalismo nacional, nem confronto mais acirrado de um jornal pela sua sobrevivência." Gilberto Felisberto Vasconcellos, sobre o livro "Memórias das Trevas." "Ele não gosta da Bahia, mas sim do poder. Quando não está no poder, prejudica a Bahia de todas as maneiras." João Carlos Teixeira Gomes à revista Caros Amigos, em 30 de setembro de 1999. "Antônio Carlos Magalhães é mais sujo que pau de galinheiro" Ciro Gomes, ex-governador do Ceará e ex-ministro da Fazenda. "É a posição típica de um ditador que quer colocar a Justiça Militar a serviço de seus caprichos." Heleno Fragoso, jurista, ao defender João Carlos Teixeira Gomes perante o Conselho da Aeronáutica, em 25 de setembro de 1972. "O Antônio Carlos é tão truculento, mas tão truculento, que foi capaz até de dar um tapa na cara do próprio filho quando Luiz Eduardo já era deputado estadual." Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República, Isto é, 22 de janeiro de 1997. "Nunca confiei em bajuladores como Antônio Carlos Magalhães, um dos mais vitoriosos carreiristas deste país." João Figueiredo, ex-presidente da República, em entrevista gravada ao jornalista Hélio Contreiras, publicada após sua morte em dezembro de 1999. Orelhas Esta é a história do jornalista que encarou o suposto Leão da Bahia. Leão da Bahia? Para João Carlos Teixeira Gomes ele não é nada disso: Antônio Carlos Magalhães não passaria do feitor de um estado que vive nas trevas, sob o domínio do medo e da intimidação. João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, desarmado até os dentes, só não partiu para um duelo ao cair da tarde com o dono da Bahia. Sempre em legítima defesa, ele teve que usar todos os recursos do talento na sua profissão para que não se apagasse a chama do único jornal que ainda resistia ao cerco imposto pela fúria do então governador biônico, posto no cargo como delega- do da ditadura. Essa história começa em 1969, em pleno Al-5. Antônio Carlos, então prefeito, também biônico, de Salvador, iniciava ali a tentativa de silenciar o Jornal da Bahia. E encontrava no jovem redator-chefe - o autor deste livro - uma sólida barreira. Já se julgando o dono da Bahia, com seu estilo truculento, achava que seria uma parada fácil. Chegou a pensar que tinha o apoio total e irrestrito dos militares para esmagar o jornal. Mas nada sabia do adversário. Acostumado a dobrar vontades e sujeitar consciências no grito, jamais esperou por essa disposição de resistência. E a partir de 1971, no governo do estado, começou a atingir tíbias e perônios, numa escalada brutal contra a independência do diário. O JBa ganhava cada vez mais prestígio popular, com o aumento expressivo de sua tiragem, na medida em que Antônio Carlos o perseguia implacavelmente. Apelou inclusive para a Lei de Segurança Nacional: queria Joca Teixeira Gomes atrás das grades. Perdeu de goleada! Acredite se quiser, mas o próprio Tribunal Militar rejeitou, em sessão histórica, a pretensão do governador por 4 a 1. Isso nos duros tempos do Prá Frente, Brasil. O confronto logo ganhou contornos nacionais e tornou o jornal um símbolo de resistência à ditadura e ao seu homem na Bahia. Esta obra emocionante é o retrato de como a coragem e a dignidade prevalecem, sempre, sobre a opressão e a tirania. JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES, 64 anos, ao contrário do poderoso adversário que enfrentou, é um brilhante escritor. Biógrafo de seu amigo Glauber Rocha, num livro definitivo e celebrado pela crítica, também resgatou a obra de Gregório de Mattos, em um profundo estudo de texto. Poeta, contista e ensaísta, é membro da Academia de Letras da Bahia, e um dos intelectuais mais respeitados de sua terra. A todos aqueles que, em qualquer tempo e lugar, combateram as tiranias e fostigaram os tiranos. Para Barbosa Lima Sobrinho, pela sua dignidade de brasileiro e de jornalista. Aos meus companheiros da redação, das oficinas e da administração do Jornal da Bahia. Em memória do meu tio Milton Oliveira, idealista e íntegro. À pequenina Renata, pingo de mel flor da campina, aurora. Uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos. Victor Hugo (. .. ) Nossa atual tragédia resulta de muitas farsas. Reinaldo A. Carvalho Não é fdcil viver entre os insanos. Gregório de Matos Agradecimentos Meus agradecimentos aos amigos Itaberaba Lyra (inexcedível na de- dicação - aliada à competência - com que participou dos trabalhos de organização e revisão dos originais deste livro); Pedro Santana, que lhe deu forma com seu mágico computador; Fernando Rocha, Sérgio de Souza, Otacílio Fonseca, Carlos Augusto Fonseca, Jussara Fonseca, Ira- cy Celestino, Lúcia Marlene Castro Oliveira e José Augusto Cunha - todos eles com sugestões preciosas quando da primeira leitura dos origi- nais ou colaboradores diligentes e, sobretudo, amigos. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Clarice Lispector Em tempos como este, dificil é não escrever sdtiras. Juvenal Não hd esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que acontece. Hannah Arendt Até hoje pensava-se que a formação dos mitos cristãos durante o Império Romano só havia sido possível porque a imprensa ainda não tinha sido inventada. Hoje, a imprensa didria e o telégrafo, que difundem os seus inventos por todo o Universo num abrir e fechar de olhos, fabricam em um só dia mais mitos do que aqueles que se criavam antes em um século. Karl Marx Sumdrio Prefacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . .. . . .. . .. . . . . . . . ... .. . 19 Apresentação .. .. ................................................................................. 23 CAPfTULO I Ditadura e Antonio Carlos se unem contra o Jornal da Bahia ................ 31 CAPfTULO II O governador decreta nossa sentença de morte .......... .. ................... 105 CAPfTULO III Lei de Segurança Nacional: um jornalista no banco dos réus ... .. .... 159 CAPfTULO IV Derrotado, Antonio Carlos compra o jornal. Mas não leva ............. 243 CAPfTULO V Fracasso de Waldir no governo promove a volta do tirano ................... 323 CAPfTULO VI Quase fuzilado no Chile e seqüestrado em Israel.. ........................... 419 CAPÍTULO VII Para além das rotativas: os livros e as salas de aula ........................... 523 CONCLUSÕES Imprensa e poder: do bico dos tucanos ao nariz de Pinóquio ............... 595 Referências bibliogrdficas ..... ... ........................ .. ........................ ........ 132 Liberdade ......................... .. ................................................... .. ....... . 736 Índice onomdstico ............................................................................ 7 40 Prefacio O santo guerreiro contra o dragão da malvadeza O leitor deste livro estupendo, que é vingador à maneira de Os Ser-tões, de Euclides da Cunha, tomará consciência do que há de épi- co e verdadeiramente heróico na luta de um jornalista e intelectual contra a tirania do governador Antonio Carlos Magalhães, no empenho de destruir o jornal da Bahia, de 1969 a 1975, sobretudo durante a ditadura Médici. É preciso salientar que esse governador - também prefeito biônico de Salvador - acionou a Lei de Segurança Nacional a fim de colocar o jor- nalista na cadeia, numa época em que prisioneiros políticos eram tortu- rados, mortos ou simplesmente desapareciam. Um dos muitos méritos do livro é mostrar - transcendendo o espaço regional- que a longa e espúria sobrevivência política de Antonio Carlos Magalhães não é obra do acaso. Trata-se de um corajoso depoimento sobre a gênese e a consolidação de um doge, ágrafo e truculento, que sempre usou de todas as armas para se manter no poder. A expansão da prepotência e da influência de Antonio Carlos no plano nacional confe- riu ao relato de Teixeira Gomes um excepcional significado, como ad- vertência democrática e lição de resistência. 19 ) OÃO CARLOS TEIXEIRA G OMES A força da narrativa transformou este livro, em vários dos seus tre- chos - mormente nos dramáticos capítulos II, III, IV e V, em que o autor relata o início das perseguições, as emoções do seu julgamento por um tribunal militar, a traiçoeira venda do jornal vitorioso e a frustração de uma experiência de poder - num romance de intriga e de ação, em- bora nada do que aqui se conta tenha dimensão ficcional. Toda uma fase do jornalismo baiano e brasileiro foi registrada com farta documenta- ção, inclusive nas notas que encerram os capítulos. Pelo conjunto desses aspectos, não conheço depoimento de maior envergadura no jornalis- mo nacional, nem confronto mais acirrado de um jornal pela sua sobre- vivência. A face mais perversa da Bahia pode ser resumida no tenaz antagonis- mo entre Antonio Carlos Magalhães e João Carlos Teixeira Gomes, por sua vez reflexo do golpe de 64, pois a sinistra sigla ACM só tomou vulto com a ditadura e at~ngiu o zênite com a democracia videofinanceira que escancarou o Brasil aos apetites de neoliberais, globalizantes e seus alia- dos internos. O pendor fisiológico de José Sarney fez de ACM seu mi- nistro das comunicações, o qual articulou de cima para baixo a comuni- cação de massa da "democracià' pós-militar, sendo o braço forte do monopólio televisivo da Rede Globo, que, segundo disse muito bem o autor, instaurou no Brasil o "cabresto eletrônico" para sujeitar a consciên- cia do povo. Alías, nas conclusões deste livro, João Carlos Teixeira Go- mes traça um vasto painel de servilismo da mídia diante do poder, dos descaminhos ideológicos do PSDB e do governo FHC, promotor do casuísmo da reeleição e da dilapidação do patrimônio nacional, numa crítica fundamentada e contundente. Diante de todo esse quadro o leitor poderá imaginar o que significou um jornalista, incorruptível e comprometido com a liberdade, empu- nhar sua palavra contra o todo-poderoso porta-voz regional da ditadura, que a Nova República de Sarney ajudou a falar grosso também em nível nacional. Para mim isso só foi possível porque - entre outras virtudes 20 MEMÓ RIAS DAS TREVAS pessoais - João Carlos Teixeira Gomes é um intelectual formado no es- pírito libertário de Gregório de Matos e Guerra e Glauber Rocha. Sobre o primeiro escreveu um estudo crítico sem par em nossa literatura - O Boca de Brasa - e do segundo é o seu melhor biógrafo, com o Glauber Rocha, esse vulcão. O santo guerreiro voltou a enfrentar o dragão da mal- dade - ou da malvadeza. Agora, com o libelo contido neste volume contra o obscurantismo político e cultural de Antonio Carlos Magalhães, o escritor João Carlos Teixeira Gomes será lembrado também como o jornalista de combate que sempre foi. Atenção, porém: este livro não é apenas um ataque de- vastador contra tiranos e tiranias. É sobretudo o relato apaixonado de toda uma trajetória de vida, enriquecida por fantásticas experiências de viagem (Capítulo VI) e por intensa atividade universitária e cultural (Capítulo VII) . O retrato de corpo inteiro, sem fragmentações, de um escritor que usou da pena para defender a liberdade e registrar (inclusive como poeta) as emoções, os encontros e os desencontros da vida. Gilberto Felisberto Vasconcellos Petrópolis, março, 2000 21 Apresentação Narrativa das perseguições Os covardes morrem muitas vezes antes da própria morte. Shakespeare E em 1811, o patrono da imprensa brasileira, jornalista Hipólito José da Costa, fundador do Correio Braziliense, publicou um livro que passou a ser oficialmente considerado como a primeira denúncia de um brasileiro contra a tirania e a opressão, embora os fatos de que foi vítima houvessem ocorrido em Portugal: Narrativa da Perseguição. Na verdade, mais correto teria sido se o bravo publicista escrevesse "das persegui- ções", porque teve de enfrentar a dupla ameaça da Inquisição e da Inten- dência de Polícia daquele país, que, juntas, o encarceraram durante cer- ca de três anos. Seu corajoso libelo - livro que todo jornalista deveria ter em sua cabeceira - só foi ao prelo em Londres, onde a liberdade de pensamento e de expressão era respeitada, para testemunhar, de acordo com as suas próprias palavras, "o triunfo da inocência sobre a opressão". 23 JOÃO C ARLOS T EIXEIRA GOMES Mais do que por suas atividades na imprensa, de si mesmas tão relevan- tes, foi sobretudo através dessa obra que Hipólito José da Costa, nascido em Sacramento, RS, passou à história como o primeiro dos grandes jor- nalistas brasileiros, merecedor de permanente reverência. Este livro será também o registro de uma dupla opressão: aqui se contará uma saga de resistência, uma luta de sacrifícios e heroísmos que levou o Jornal da Bahia, do qual eu era o redator-chefe, a defender a sua própria sobrevivência contra as perseguições que lhe foram sistematica- mente movidas pela ditadura de 1964 e seu delegado local, prefeito de Salvador e governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, enfrentado com uma bravura que provocou a solidariedade de todos os baianos. Possuindo, pois, o duplo valor de testemunho e documento, quero de logo chamar a atenção dos leitores, pesquisadores ou simples interessa- dos, para a importância das notas colocadas no final dos capítulos. O presente relato ampara a sua veracidade na farta transcrição de dados, datas e documentos. Quanto a nomes de pessoas, apenas omiti alguns poucos que não considerei essenciais aos objetivos dos fatos aqui narra- dos. Pretendo com estas páginas prestar um serviço ao meu país, facili- tando aos leitores a compreensão da conduta de personalidadespúblicas e mecanismos de poder cuja realidade conheci mais de perto. O jorna- lista penetra em fatos vedados ao comum das pessoas e tem o dever ético de abrir-lhes o seu baú de recordações, para ajudar a melhorar práticas políticas, administrativas e sociais que a todos afetam. Duros - e até mesmo temerários - são os caminhos do jornalismo independente, mas, de qualquer sorte, os únicos que dignificam a traje- tória de um profissional da imprensa. Não é fácil enfrentar as ameaças do arbítrio, mas é preciso fazê-lo sempre, sobretudo quando se trata de defender valo~es fundamentais da convivência social e da própria digni- dade humana. Quaisquer que sejam as suas formas de manifestação, a tirania é, in- variavelmente, uma enfermidade, e enfermos são os seus patrocinado- 24 MEMÓIUAS DAS TREVAS res. O pacto social, que nasceu das exigências da vida gregária, não se fez, como ensinou Rousseau, para que um homem ou um grupo de homens oprimissem os seus semelhantes, mas sim, corporificando-se através da representatividade, com o propósito de viabilizar os interesses e as aspirações da sociedade civil. O próprio Hobbes, partidário do abso- lutismo, autor da frase famosa "o homem é o lobo do homem", escreveu que "não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a si" e, no capítulo XXI do Leviatã, grifou que um homem é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é captfZ de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer. Barroco, mas correto. A luta do Jornal da Bahia não foi apenas a resistência de um veículo importante, mas de província, contra a opressão local. Nas páginas que se seguem, digo-o e comprovo-o: foi sobretudo um nobre e belo capítu- lo da imemorial luta que travam a liberdade e o despotismo. Rousseau estabeleceu algumas diferenças entre déspotas e tiranos, considerando o modo como chegam ao poder, mas todos se incluem na insidiosa cate- goria dos opressores do homem. ''A força não faz o direito" - escreveu o mestre suíço - e "só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos". Todas as formas de agressão foram manipuladas para intimidar e des- truir o jornal da Bahia, partidas principalmente de um governante cuja tenacidade demolidora e persecutória não teve paralelos ao longo da dita- dura. Nossa reação há de ficar como duradouro exemplo de firmeza, desassombro e coragem, sustentado em tão difícil fase da vida baiana e brasileira, e contém lições que certamente serão do mais alto interesse não apenas para jornalistas, mas, igualmente, para cultores do Direito, historia- dores, homens públicos e cidadãos em geral, para todos aqueles, em suma, que detenham parcela de responsabilidade na condução dos destinos da sua terra. Que tais ensinamentos ajudem a manter acesa a chama da resis- tência, por mais adversas que sejam as circunstâncias que a provoquem. Este livro materializa um projeto que concebi desde janeiro de 1977, quando me desliguei dos quadros do jornal da Bahia, órgão que ajudei a 25 JoAo CARLOS TEIXEIRA G OMES fundar em 21 de setembro de 1958 e ao qual estive ligado por quase 20 anos ininterruptos. Deixando-o por iniciativa própria, como forma de protesto contra uma obscura transação, que repudiei (e que narro no Capítulo N), interrompi uma militância que se iniciou no fim da pu- berdade e terminou na idade madura, precisamente quando eu me en- contrava no ápice dos meus recursos espirituais e intelectuais, pleno de experiência (amadurecida inclusive ao longo da luta) e de vigor profis- sional. Natural, portanto, que a evocação dos fatos surpreendentes que marcaram a etapa mais rica da minha carreira jornalística assuma relevo nestas páginas. Ao lado disso, porém, desenvolvi também uma trajetória de professor universitário e de escritor, com nove livros já publicados, que me levou à Academia de Letras da Bahia, e sobre a qual não poderia omitir-me. O conjunto desses fatos povoou a minha vida de emoções intensas e variadas, mormente no transcurso de algumas viagens repletas de acontecimentos inesperados. Nem tudo, pois, são sombras ou obscu- ridades nestas memórias das trevas - ou seja, na rememoração do difícil enfrentamento de um jornal e seu redator-chefe contra as sujas garras da prepotência. Mais do que nunca, aqui se tentará mostrar que homem nenhum pode arrogar-se o direito (?) de constranger a consciência e a liberdade dos seus semelhantes. Memórias, naturalmente, são registros, como os diários, de fatos ocor- ridos no passado. O próprio ontem, ainda tão próximo, já é passado. Por isso, dediquei o último capítulo deste livro à análise de fatos mais recentes da vida nacional, pelo menos até fins de 99, considerando admissível recorrer a uma bibliografia - o que não é comum em memó- rias - para melhor fundamentar o meu arrazoado. Durante toda a mi- nha vida jornalística testemunhei a existência de um Brasil acuado e sofrido, malgovernado por suas elites políticas e econômicas, garroteado, em suma, em todas as suas potencialidades -- sem falsa retórica - imen- sas e generosas. Sempre rico e sempre pobre - rico para poucos, pobre para a imensa maioria de marginalizados sociais, invariavelmente sub- 26 MEMÓ RIAS DAS TREVAS metidos a catastróficas experiências econômicas que, em regra, tradu- zem sobretudo a arrogância e a insensibilidade social dos governantes. Creio que o maior risco deste final de milênio, às vésperas de uma nova era que irá encontrar-nos ainda mais dependentes e submissos (ou ~ndividados), é o de nos transformarmos, irremissivelmente, na grande senzala da globalização. Os neocolonizadores chegaram, com mais força do que nunca, sustentados pela espúria parceria dos globalizantes inter- nos. O mundo mudou, é verdade, mas, para o Brasil, no plano das rela- ções econômicas, continua impondo processos do passado colonial. Nin- guém ainda nos explicou por que a globalização não sinaliza com mão dupla: constituímos um país jovem e pujante em riquezas naturais, ra- zoavelmente industrializado, conformado com a condição de mercado passivo, secularmente controlado pela ordem imposta de fora. Jamais a economia brasileira esteve fechada ao capital externo (analiso a questão no último capítulo), sem recebermos, entretanto, efetivo benefício de reci- procidade. Cinco séculos depois do descobrimento, exauridos por todas as concessões, permanecemos recipiendários: de bens, capitais, idéias, tecnologia, etc. E só. Globalizados sempre, nunca globalizantes. As par- cerias internacionais não se fazem em proveito dos dependentes. Assim, não abrimos nossa economia a legítimos interesses mútuos. Apenas a escancaramos ao capital externo, motivado, este, pelo objetivo do lu- cro imediato (no caso das aplicações voláteis) ou da transformação do Brasil em entreposto industrial, como simples mercado estratégico no esquema da competitividade global. Mais do que cooperação, o que houve, de fato, foi uma rendição, secularmente típica das relações colonialistas. Tampouco seria correto questionar o problema pelo aspecto das intenções, pois as ações públicas não podem ser avaliadas pelo ângulo da subjetividade: o que de concreto se impõe é que o governo não quis e não soube (ou não lhe foi permitido) criar limites propiciatórios da ins- tauração de mecanismos nacionais de defesa, contra os apetites da nova ordem econômica capitalista. Isso ficou bem claro na questão das priva- 27 JoAo CARLOS TEIXEIRA G OMES tizações. Já este livro se encaminhava para o prelo quando o jornalista Aloysio Biondi publicou O Brasil Privatizado - Um balanço do desmonte do Estado (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999), com- pacto e bem-fundamentado estudo de 48 páginas sobre a maneira alta- mente lesiva aos interesses do Brasil pela qual o governo FHC vem privatizando o nosso patrimônio público, dele tudo subtraindo, sem nada acrescentar, numa operação predatória. Em síntese:generosos finan- ciamentos oficiais a juros irrisórios, fora da realidade do mercado, com o sacrifício do dinheiro dos contribuintes, que financiou a implantação do nosso parque industrial de base ao longo de décadas e não é canalizado para aplicações socialmente mais justas e urgentes; facilitação e parce- lamentos abusivos da forma de pagamento, inclusive com danosa acei- tação das chamadas "moedas podres", criadas pelos papéis desvalorizados; absorção governamental de dívidas bilionárias, "engolidas" pelo governo para sanear as estatais e poder vendê-las; aumento antecipado das tarifas públicas, acenando aos eventuais compradores com vantagens anteriores às transações, também para atraí-los; negligência diante do descumprimento dos compromissos assumidos pelos investidores, bem como a aplicação de multas e sanções insignificantes; preços em geral aviltados, etc. Tudo, enfim, constituindo aquilo que, em muitos casos, Biondi qualificou de "verdadeiras doações". Além, obviamente, das de- missões que as vendas ocasionaram, aumentando no Brasil os altos índices de desemprego, e dos enormes recursos injetados para melho- rar e reequipar as estatais (e que antes se declaravam inexistentes) a fim de encontrar interessados. Breve mas consistente, o livro de Aloysio Biondi, pela sua firmeza e pelas espantosas revelações que contém, pondo em relevo a importância do jornalismo investigativo e indepen- dente, deveria constar da biblioteca de todos os brasileiros. É um hiato de dignidade num coro de submissões jornalísticas constrangedoras. E, sobretudo, anti patrióticas - pois o conceito de pátria subsistirá en- quanto existirem fronteiras físicas, o sentimento universal de homeland e as diferenciações culturais enriquecedoras que marcam a vida dos po- 28 MEMÓRIAS DAS TREVAS vos, ao lado dos ideais de fraternidade, harmônica convivência e consci- ência internacionalista que devem unir todos os homens. A economista Roberta Traspadini, no livro A Teoria da (Inter )dependência de Fernando Henrique Cardoso, sustenta, ao contrário do que em geral se supõe, que o sociólogo sempre defendeu a subordinação do Brasil ao capital internacional, desde os seus escritos dos anos 60 (v. nota 21 das Conclusões). Neste livro, porém, não nos interessarão os descaminhos teóricos do sr. Fernando Henrique, e sim a sua "praxis" político-econô- mica, socialmente lesiva aos interesses do País. O exercício do governo não pode amparar-se numa afetação acadêmica e doutrinária montada em teorias (ou meras hipóteses) condenadas pela realidade. Os tempos atuais nada trouxeram para o Brasil de alentador e me parecem hoje ainda mais intranqüilizadores do que quando me iniciei no jornalismo, pela extrema dependência que nos foi imposta, em época tão imprevisível. Como os homens, as nações também precisam de vida autônoma e se nutrem da mesma vocação altiva e libertária. Nenhuma experiência social e econômica que mexa com a vida e as aspirações de milhões de pessoas deve ser levada adiante sem a possibilidade de alterna- tivas corretoras. Não é entregando o Brasil que vamos torná-lo próspero ou feliz, nem é decente desconhecer a acaciana verdade de que a sujeição não constrói a grandeza e a dignidade dos povos. Os sucessivos abalos do real empobreceram substancialmente o povo brasileiro e acentuaram-lhe as adversas condições de vida. Vivemos à espera da nova crise. Há tempos, o governo deflagrou uma custosa cam- panha publicitária para dizer que "com crise se cresce" e que a economia caminhava para a normalização. A propaganda não disse, porém, que, para estabelecer um equilíbrio duvidoso e precário, o governo endividou ainda mais o País, tomando cerca de 41 bilhões de dólares ao FMI (com todas as conseqüências negativas que tal fato acarreta para o nosso futu- ro, inclusive quanto ao pagamento de juros, e sob sufocantes exigências), cortou verbas essenciais à saúde e à educação, voltou a garro tear as univer- 29 ]oÃo CARLOS TEIXEIRA GoMES sidades e os serviços públicos em geral, aumentou o imposto de renda das pessoas físicas e a carga previdenciária, impondo o absurdo de pretender de novo cobrá-la dos aposentados, que a pagaram a vida inteira para ter um seguro na velhice. Um Congresso servil, que havia rejeitado a iniciati- va quatro vezes consecutivas anteriormente, capitulou, intimidado, às pres- sões oficiais, e acabou ajudando os economistas do governo a se transfor- marem em cafetões da senilidade. Quando um país não mais respeita os seus velhos é porque já chegou a uma etapa degradante de decadência moral. O acordo com o FMI majorou ainda as tarifas de setores funda- mentais, incrementou demissões e acelerou as privatizações. Tudo isso à custa de um povo sufocado pelo congelamento salarial e pela perda gradu- al do poder aquisitivo, com a miséria e os guetos sociais se alastrando por todo o País. Eis o quadro brasileiro nos umbrais do terceiro milênio. Esta nação, porém, é grande demais para deixar-se abater pelo desânimo ou pelo derrotismo - eis a melhor lição que aprendi nos duros anos vividos numa redação de jornal. Até porque, como disse o poeta Nicolas Guillén, um dos bardos da latino-americanidade, da mesma forma que o foi Castro Alves, "arde em nossas mãos a esperança. A aurora é lenta, mas avança''. Sempre. Neste final, ainda uma explicação se impõe: o retardamento havido na publicação deste livro, por mim anunciado há mais de um ano em en- trevista concedida à revista Caros Amigos, tendo refletido o clima de medo que continua a existir no País, legado residual, talvez, dos descaminhos do golpe de 64 (ou expressão apenas da pusilanimidade que tomou conta do Brasil), foi-me de certa forma benéfico, pois me permitiu atualizar ao menos o encarte fotográfico que vai inserido nas Conclusões, com suas legendas extraídas do nosso melancólico dia-a-dia político. Heróico não foi apenas enfrentar a ditadura e as perseguições de Antonio Carlos Magalhães. Heróico foi também - todos devem sabê- lo - publicar este livro. Mas isto é história para outro volume. ]OÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES 30 Capítulo 1 Ditadura e Antonio Carlos se unem contra o jornal da Bahia Tirano e usurpador são duas palavras perfeitamente sinônimas. Rousseau A oposição sempre faz a glória de um país. Os maiores homens de uma nação são freqüentemente os que ela leva à morte. Renan JBa. e o golpe de 64: tropas invadem redação e ofici- nas. Censura. Origens do Jornal da Bahia: meu ingres- so. O idealismo de Nestor Duarte. Primeiros quadros: uma equipe brilhante. Sob a mira (permanente) da dita- dura. Antonio Carlos Magalhães assume a Prefeitura. História de um confronto pessoal. Cartas e respostas. A rotativa proibida. Início das perseguições do prefei- to ao jornal. A luta em seus documentos. Uma voca- ção tirânica. 31 - Volte depressa, as tropas já estão invadindo o jornal! Madrugada de 1 Q de abril de 1964, perto do alvorecer. Ainda hoje me lembro dos gritos nervosos do repórter Moacir Ribeiro, secundados por batidas vigorosas na porta do meu apartamento, em completo des- controle e estado de alarme. De plantão no jornal da Bahia da noite de 31 de março para a madrugada de 1 Q de abril, ele testemunhara a inva- são da redação e das oficinas por um grupo de 12 militares armados de fuzis e metralhadoras, sob o comando de um capitão do Exército conhe- cido por seu fanatismo anticomunista. Na frente do prédio, levantado quatro anos antes na zona comercial decadente da Barroquinha, três viaturas da Polícia Especial do Exército e dezenas de soldados armados bloqueavam a entrada. Os gritos de Moacir Ribeiro me sobressaltaram no exato momento em que eu me preparava para dormir, depois de ter passado grande parte da sinistra madrugada em vigília no jornal, de cuja redação era secretá- rio, aos 28 anos de idade. O nosso sistema de comunicação com o Brasil e com oresto do mundo se limitava a um precário processo de rádio- escuta e de telegrafia. Na Bahia, naquela época, somente o vespertino A Tarde possuía máquinas de teletipo, que recebiam notícias daAssociated Press (AP) e da United Press Internacional (UPI) em inglês, traduzidas por um funcionário. 33 JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES Os primeiros momentos do golpe foram de indefinição. As notícias que nos chegavam já traduziam um clima de extrema gravidade política, mas não eram indicativas de vitória do movimento militar. Tanto assim que eu fora dormir, perto da alvorada, com a convicção de que, em face do apoio do general Amauri Kruel, de São Paulo, o governo controlaria a situação. O noticiário do jornal da Bahia na edição prestes a rodar era abertamente favorável a Jango. Como secretário do JBa., era normal que eu saísse depois dos demais colegas, pois deveria acompanhar os trabalhos de fechamento do jornal nas oficinas até o início da madrugada, fato que a minha vocação boêmia tornava prazeroso. Naquela noite tudo se alterava: notícias contraditórias espalhavam-se em todas as direções, criando um clima de expectativa e de angústia, sobretudo para jornalistas mal-informados. As t.ropas da dupla Guedes e Mourão já tinham deixado Minas, Jango fora deposto, o gover- no estava em debandada - e muita gente da imprensa, pelo Brasil afora, ainda não sabia de nada. Por isso, cerca de 4h30 da manhã do dia 12 , certo de que não haveria alterações no noticiário, fui para casa dormir e deixei Moacir Ribeiro de plantão, em companhia do telegrafista. Perplexo com a súbita guinada dos acontecimentos e com o estado de excitação emocional do meu companheiro, que mal conseguia explicar o que estava ocorrendo - ele dissera vagamente que o jornal havia sido "fechado" - rumei para a nossa sede na convicção de que seria preso. Para minha surpresa, parte dos militares já se havia retirado. Um dos remanescentes, coronel que passara a liderar o grupo, afirmando em tom áspero que o Jornal da Bahia era um órgão a serviço da subversão comunista, logo me advertiu que o matutino somente circularia se mu- dasse o noticiário. Objetei que tal providência seria inviável, pois todos os gráficos tinham ido embora. Diante da sua inflexibilidade, a solução foi raspar as notícias vetadas nas próprias "telhas" (semicírculos de chumbo com as matérias já compostas, agregados às rotativas) e deixar o jornal circular com imensos claros, que denunciavam a ação da censura. 34 MEMO RIAS DAS T REVAS O Jornal da Bahia tinha sido o primeiro órgão da imprensa baiana a receber o batismo de fogo do golpe militar. Nossos algozes não sairiam sem advertir que, diante de qualquer deslize, seríamos presos e silencia- dos. Imediatamente designaram um oficial para fiscalizar, em tempo integral, o preparo das nossas edições. Fomos obrigados a conviver com a censura dentro do nosso próprio terreiro, colocados sob vigilância não só naquilo que escrevíamos, mas também no que pensávamos ou dizíamos. Era o início de um tormento que iria ampliar-se por anos sucessivos em raios crescentes, agravando-se a partir de 1969 com as perseguições ini- ciadas por Antonio Carlos Magalhães em represália a críticas eventuais e repelidas com violência. Na época, ele era só prefeito. * * * Eu ingressara no Jornal da Bahia sem prévia experiência jornalística, levado pelas mãos de Glauber Rocha, cerca de quatro meses antes de o matutino começar a circular. Integrava um grupo de jovens que estavam sendo preparados para iniciar um novo jornalismo na Bahia. Glauber re- cebera - com o entusiasmo inerente a tudo aquilo que fazia- a incumbên- cia de arrebanhá-los entre os intelectuais emergentes, com vocação para as letras. O convite inicial partira do jornalista Ariovaldo Matos, editor e proprietário de um pequeno semanário - Sete Dias - em que Glauber escrevia a crítica de cinema. Seria uma "escolinhà', freqüentada ainda por companheiros de geração como Florisvaldo Manos, Fernando Rocha, Paulo Gil Soares e Calasans Neto, todos integrantes da chamada Geração Mapa, congregada em torno de Glauber a partir de meados da década de 50, no velho e famoso Colégio da Bahia, seção Central - e sobre a qual escrevi longamente no meu livro anterior, Glauber Rocha, esse vulcão. O Jornal da Bahia nascera de uma idéia de Nestor Duarte, prestigioso mestre do Direito, político e escritor, autor de importantes romances da literatura baiana, como Gado Humano e Tempos Temerários. Líder da sua geração, de vocação democrática (com pitadas de socialismo) testada nos 35 ]oAo CARLos TEIXEIRA G OMES embates contra o Estado Novo varguista, Nestor já havia arregimentado Otávio Mangabeira e Luís Viana Filho para que, juntos, fundassem um novo órgão de imprensa em Salvador, concorrendo com o outro matutino existente, o Didrio de Notícias, um dos associados de Chateaubriand, mas numa linha mais progressista. Deveria ser um matutino porque o outro espaço estava ocupado pelo prestígio conservador de A Tarde, inabalável pela presença de Ernesto Simões Filho no comando - o mesmo Simões inimigo sistemático de interventoria de Juraci Magalhães e que já havia experimentado no lombo a dureza dos cassetetes da ditadura. Nestor integrava uma importante (e até hoje mal estudada) corrente da política baiana denominada de "concentração autonomistà', ao lado de nomes como J .J. Seabra, Otávio Mangabeira, em luta permanente contra o getulismo, Simões Filho, João Mangabeira, Luís Viana Filho, Pedro Lago, Miguel Calmon, Aloísio de Carvalho Filho, Eutychio Bahia, Bião de Cerqueira, Regis Pacheco, Antonio Balbino, Jaime Baleeiro, Nelson Carneiro, Paulo Almeida, RafaelJambeiro,JaimeJunqueiraAyres, João Borges, João Mendes da Costa Filho, Augusto Públio e Luís Rogé- rio de Souza, entre tantos outros. Os mais jovens formavam a Ação Aca- dêmica Autonomista, integrada por Josafá Marinho, Adernar Nunes Vieira, Jorge Calmon, Francisco Vieira Filho, Antonio Viana, Renato Bião, Demétrio Moura, Cora Pedreira, Augusto Alberto da Costa e ou- tros. O autonomismo surgiu em 1932 com o nome de Liga de Ação Social e Política. Denominou-se de "Ligà' porque os partidos políticos haviam sido banidos pelo Estado Novo. Os autonomistas, de convicções democráticas, se contrapunham aos "invasores" ou "holandeses" (irôni- ca alusão à invasão holandesa de 1624), ou seja, eram contrários aJuraci Magalhães (nascido no Ceará) e seu grupo político, vindos de fora e levados ao governo do Estado pela interventoria. Tudo era pretexto para que burlassem as proibições políticas da dita- dura. Em agosto de 1934, regressava a Salvador, viajando de navio, o líder Otávio Mangabeira, retornando do primeiro exílio imposto por 36 MEMÓIUAS DAS TREVAS Vargas. Os autonomistas organizaram-lhe concorrida recepção, descendo a pé a ladeira da Montanha em companhia de uma multidão de adeptos, para ir ao cais. Mangabeira foi saudado por Seabra, que evocou o seu banimento (viajara para a França, como depois se refugiaria nos Estados Unidos) e disse-lhe, apontando para o mar e para o povo: "Entre essas duas imensidades - o oceano e a massa popular - eu o saúdo em nome da Bahia!". Era uma época em que ainda se fazia política com rasgos retóricos de bom gosto. Seabra, orador irônico com os desafetos, tinha um gênio difícil e autoritário, mas feria com elegância, usando o florete. As luvas de boxe somente seriam introduzidas na política baiana depois de 64. Do mesmo modo, a perseguição e a cotovelada. * * * Nestor Duarte havia tido, quando jovem, experiência jornalística, pois trabalhara num órgão de prestígio, o Diário da Bahia. Como pro- fessor de Direito, era muito admirado e querido pelos seus alunos, entre os quais João da Costa Falcão, que, depois, teria papel importante na fundação do Jornal da, Bahia, do qual se fez proprietário e diretor. A atuação política de NestorDuarte o tornara conhecido no Brasil inteiro, com participação destacada na redemocratização do Brasil, após a dita- dura de Getúlio Vargas, quando integrou a Constituinte de 1946. A idéia de criar um jornal era para ele obsessiva, tanto assim que, com a ajuda de Otávio Mangabeira e Luís Viana Filho, chegara a adquirir na França uma velha rotativa "Marinoni", cercada de lendas: dizia-se, in- clusive, que ficara certo tempo enterrada para fugir à fúria do nazismo, pois iria rodar um jornal da resistência. Lendas à parte, era uma geringonça obsoleta e em péssimo estado, como o iria testar o jornal da Bahia quando começou a usá-la pouco antes de 21 de setembro de 1958, data da sua inauguração. Impossibilitado de levar adiante seus planos por falta de recursos, Nestor conseguiu apoio ao atrair João Falcão para o empreendimento, no 37 )üÁO CARLOS T EIXEIRA GoMES que foi facilita.do pela admiração que lhe votava o jovem condiscípulo quando cursara a Faculdade de Direito, filho de abastada família de Fei- ra de Santana e, então, militante do Partido Comunista, em função do qual se tornaria diretor do órgão oficial da agremiação na Bahia, O Mo- mento, duas vezes empastelado pelas forças da repressão, e também de uma revista chamada Seiva. Constituído o jornal da Bahia, cujos estatutos e competentes registros foram providenciados pelo jovem advogado Marcelo Duarte, filho de Nestor, este ficaria como o segundo maior acionista do JBa., depois de João Falcão, dono do controle acionário, e que logo convidou para ajudá-lo na direção antigos companheiros como Milton Caires de Brito e Zitelmann de Oliva, respectivamente gerente e superintendente do JBa.1• Apesar das graves deficiências da sua impressão, que decepcionaram a opinião pública ao circular o primeiro número (as fotos, por exemplo, eram inidentificáveis, semelhantes a meros borrões de tinta negra), o Jornal da Bahia não tardou a firmar-se. Na verdade, não disputou prefe- rências com o seu concorrente direto, o Diário de Notícias, também matutino, numa época em que o horário de circulação definia o próprio conteúdo dos jornais, mas sim com o vespertino A Tarde, já então o mais lido da Bahia. O prestígio que em pouco tempo conquistou deveu-se, sobretudo, à qualidade da sua redação, integrada por nomes que bri- lhariam em qualquer grande veículo da imprensa brasileira. Na década de 50, o jornalismo ainda consagrava o talento dos notáveis, sobretudo através das reportagens que sacudiam a opinião pública, nas quais se destacava a revista O Cruzeiro e, nela, o repórter David Nasser. Critica- do pelos jornalistas sóbrios e pelas esquerdas, que o encaravam como um representante da reação e áulico consumado de Assis Chateaubriand, além de fazerem restrições ao seu caráter, o fato é que David Nasser muito contribuiu para a popularidade de O Cruzeiro, sobretudo através de matérias que esmiuçaram a morte de Aída Curi e o caso de Sacopã, este envolvendo o tenente Bandeira num assassínio que abalou a sacie- 38 MEMÓRIAS DAS TREVAS dade carioca. Também famosa ficou a sua reportagem "Falta alguém em Nuremberg", que, na esteira do interesse mundial provocado pelo julga- mento dos criminosos de guerra nazistas naquela cidade, acusava de atro- cidades semelhantes o chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, morto muitos anos mais tarde na queda de um avião da Varig, nas proximida- des do aeroporto francês de Orly. A linha jornalística de O Cruzeiro, porém, começava a entrar em declínio no final da década de 50, não interessando ao JBa., que se integrava na corrente de renovação iniciada por órgãos como o Diário Carioca, o Diário de Notícias, o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, entre outros, sob influência do jornalismo norte-americano, acolhida por nomes como os de Pompeu de Souza, Carlos Castelo Branco, Reinaldo Jardim, Alberto Dines, Odilo Costa Filho e mais alguns. Tecnicamente, o jornal da Bahia instituiu a diagramação prévia (an- tes feita nas oficinas, com as matérias já compostas em chumbo distribuí- das por um retângulo de ferro chamado de "ramà'), a valorização das fotos, que começaram a ser usadas na primeira página em maior núme- ro, a compactação dos títulos, com a supressão sistemática dos artigos para que ganhassem maior poder de impacto, as chamadas de primeira página, o uso diferenciado das manchetes, a utilização do rodapé e, mais importante entre as medidas, a introdução do lead, que reunia no início das matérias os seus dados essenciais, progressivamente diminuídos em importância até o final, numa técnica muito comentada na época e que se chamava de "pirâmide invertidà' . Fascinados, aprendíamos todas es- sas coisas, para nós inteiramente desconhecidas. Ao lado dos novos ru- mos formais, o jornal da Bahia também implantou a reportagem de rua, com a cobertura de locais antes negligenciados como o porto e o aero- porto Dois de Julho, atribuiu grande destaque ao colunismo (valorizan- do o político e a coluna social, em plena ascensão, pelo crescente prestí- gio de Jacinto de Tormes e Ibrahim Sued), estabeleceu a divisão interna da redação por chefias de setar, depois denominadas de editarias, siste- 39 ]OÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES matizou a reportagem policial e o colunismo noturno, registrando fatos da vida boêmia, atribuiu grande importância ao repórter-fotográfico e instituiu o departamento de publicidade. Salvador, em fins da década de 50 uma pacata cidade com pouco menos de 500 mil habitantes, ainda com bondes pelas ruas, começava lentamente a ser impulsionada pela mentalidade desenvolvimentista gerada pelo governo Juscelino ("cinqüen- ta anos em cinco") e por empreendimentos como a Sudene, o planeja- mento dos pólos industriais, a exploração do petróleo, a expansão da energia elétrica, a construção da refinaria Landulfo Alves e o incremento do turismo. A economia do Estado, beneficiada por Paulo Afonso, tra- dicionalmente dependente da monocultura do cacau, buscava diversifi- car-se. No plano cultural, Salvador dinamizava-se por meio do mecenato de Edgar Rego dos Santos à frente da Universidade da Bahia, então no esplendor das suas atividades, com a criação dos institutos e do Centro de Estudos Afro-Orientais, que chegou a assessorar a política externa do País no governo Jânio (denominada de PEI - política externa indepen- dente, que o levou a condecorar Guevara, para grande escândalo dos conservadores), as escolas de Dança e de Teatro, os Seminários Livres de Música, etc. Edgar Santos era então o reitor de maior prestígio nas uni- versidades. Sem possuir militância partidária, a sua atuação revestia-se de inegável repercussão política, sendo um homem muito ligado aJuraci Magalhães e, ideologicamente, inserido na linha da UDN. Tratava-se, sobretudo, de um articulador e diplomata, qualidades que se juntaram para transformá-lo no grande criador da Universidade da Bahia, conse- guindo congregar o que antes eram apenas unidades isoladas, duas das quais se destacavam como celeiros de mestres renomados em suas profis- sões e humanistas da antiga tradição baiana: a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito. A Universidade da Bahia representava um núcleo irradiador de in- tensa atividade cultural, enriquecida pela vinda de mestres nacionais ou estrangeiros de grande reputação, entre os quais Martim Gonçalves, 40 MEMÓRIAS DAS TREVAS Koellreutter e Yanka Rudzka, além da presença da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, trazida pelo governo Juraci Magalhães para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia. A ação da Universidade desenrolava-se na con- fluência de duas gerações que assumiriam papel importante na vida cul- tural baiana, a de Cadernos da Bahia e a Mapa, já citada. Entre os inte- grantes da primeira emergia com brilho o então jovem professor Antonio Luís Machado Neto, um inovador dos estudos de Sociologia no Brasil, lastreado em sólidos conhecimentosde Filosofia, que logo se tornou pró- ximo dos integrantes da Mapa, a muitos dos quais ensinou no colégio Central. Quando o jornal da Bahia surgiu, as preferências dos leitores se divi- diam entre A Tarde e o Diário de Notícias, o matutino da cadeia associada dirigido por Odorico Tavares. Indiscutivelmente, A Tarde era o veículo formador de opinião, com inegável prestígio nas camadas cultas, líder incontestável de circulação. Ao aparecer, o JBa. provocaria ciumadas no "vespertino da Praça Castro Alves" - como então o chamavam. E tanto isso é verdade que, algum tempo depois, A Tarde acolheria com destaque em suas páginas as diatribes raivosas de um padre fanático -Saltes Brasil - que já havia denunciado como comunista a obra infantil de Monteiro Lobato e despejava as mesmas acusações sobre o novo matutino. Ao constituir-se, o JBa. arregimentou um grupo de jornalistas já tarimba- dos, egressos dos quadros do órgão comunista O Momento, dirigido por João Falcão, que funcionou de 1945 a 1957, rodando em Salvador: Ariovaldo Matos, José Gorender, Inácio Alencar, Misael Peixoto, Maurí- cio Naiberg, Alberto Vita (que morreria prematuramente, em conseqüên- cia de uma infecção pós-cirúrgica), Luís Henrique Dias Tavares e Arquimedes Gonzaga, o "Dezinho". A estes agregaram-se, igualmente com militância no PC, Flávio Costa, escritor, e João Batista de Lima e Silva, por muitos anos redator, no Rio, da Voz Operária, de circulação nacional, convidado para ser o primeiro redator-chefe do JBa., em que se destacaria como editorialista de texto sóbrio e direto, além do escritor 41 JoAo CARWs TEIXEIRA GOMES Nelson Araújo e do poeta Jair Gramacho. Nossa geração juntou-se a esse grupo, que se ampliou com o passar dos anos, incorporando novos e destacados valores, que relacionarei no final deste capítulo2• Tendo integrado a primeira leva de repórteres-gerais do JBa., logo fui escolhido para fazer a cobertura das eleições estaduais de 1958, ganhas por Juraci Magalhães, que entrevistei algumas vezes3• Não era fácil para o jovem inexperiente enfrentar os figurões da política, fato que me dei- xava sempre ansioso. Não tenho, porém, do que me queixar: difícil era acompanhar o moroso resultado das apurações no Fórum Rui Barbosa, com suas pendências eleitorais e números controversos. Não tive proble- mas, porém, com Juraci ou qualquer outro político, até porque a corre- ção das minhas matérias contribuiu para credenciar-me progressivamen- te. Tanto assim que logo fui convidado para ocupar a chefia de reportagem do jornal, ainda no primeiro ano do seu funcionamento, cargo que re- cusei, temendo a minha inexperiência, mas que acabei aceitando, por insistência de Ariovaldo Matos. Daí, sucessivamente, passei a ser secretá- rio de redação, redator-chefe e editorialista, estas duas funções tendo assu- mido de junho de 1964 até janeiro de 1977, quando deixei o jornal, rea- gindo contra uma transação insultuosa, que narrarei adiante. No JBa., os cargos de chefe da redação e redator-chefe se identificavam na prática. Entre os fatos significativos que marcaram minhas atividades de re- pórter político, não posso esquecer um episódio ocorrido entre mim e Otávio Mangabeira. O grande líder democrático ia assumir o cargo de senador, em cerimônia de diplomação geral, a ser realizada com pompa no Forum Rui Barbosa, e eu fui designado para cobri-la. Na noite ante- rior, tendo participado de uma daquelas farras homéricas da juventude, cheguei atrasado à diplomação, justamente pouco depois do discurso (improvisado) do tribuno. Que fazer? Voltar à redação com as mãos aba- nando seria o risco de demissão sumária - fato grave sobretudo para um jovem que queria casar (ainda se fazia isso em finais da década de 50). Tive, porém, uma luminosa idéia: procurar diretamente o senador no 42 MEMÓRIAS DAS TREVAS Hotel da Bahia, que ele criara em 49 e no qual costumava hospedar-se, e pedir-lhe que sintetizasse para mim a sua fala, da qual não havia cópias. Pois bem: o orador reproduziu integralmente todo o seu brilhante "improviso", deixando-me embasbacado. Passei a acreditar que era as- sim que Mangabeira agia sempre: decoraria previamente os seus mais importantes pronunciamentos, dotado de espantosa memória. Não é preciso acrescentar que levei para a redação uma reportagem perfeita, muito elogiada, que certamente somou pontos para o convite que logo me foi feito, a fim de ocupar a chefia-de-reportagem. Se busco afastar com o poder da memória as névoas do passado, sou forçado a admitir que a minha única vocação visível foi a de escrever. Lembro-me de que, quando criança, eu sonhava em ser um grande re- pórter esportivo, com a alma acesa pelo amor que votava ao Esporte Clube Bahia, fundado por meu pai Teixeira Gomes, que foi o seu pri- meiro goleiro, campeão baiano de 1931 a 33. De certa forma, devo a minha vida ao Esporte Clube Bahia. É uma história curiosa e rara, que julgo dever contar. Meu avô João Oliveira, empresário, homem abastado e possuidor de um belo carrão Ford da década de 30, costumava levar o automóvel para o velho campo da Graça com suas filhas Estela, Célia, Yvone e Wanda. Na época, havia uma parte dentro do estádio especial- mente para carros, dos quais era permitido ver os jogos. Lá, um dia, o goleiro Teixeira Gomes tomou um "frango" e entrou em conflito com a torcida, por reagir com gestos exageradamente eloqüentes às vaias ... Teve de sair às carreiras do campo, ante a fúria dos torcedores provocados. João Oliveira protegeu-o em seu carro e colocou-o fora do estádio, longe da ira da torcida. Assim ele conheceu minha mãe Célia, por ela se apai- xonou e logo depois se casaram. E eis-me aqui, filho único, a escrever estas memórias. Na adolescência, freqüentei regularmente a Biblioteca Pública do Estado, em busca das coleções de jornais antigos, nas quais lia, emocionado, as reportagens sobre as atuações de meu pai no gol do Bahia4• Fiquei de respiração presa certo dia, ao ler um cronista escrever 43 )oÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES (e já revelador da curiosa criatividade que marca o jargão da reportagem esportiva) que, num jogo contra um time sul-americano, realizado no mesmo campo da Graça, "Teixeira Gomes foi uma verdadeira antena - pegava tudo!". ''Antenà', obviamente, em conseqüência do ascendente prestígio do rádio nos anos 30, quando começava a ser o instrumento de comunicação social popular por excelência. Enchi-me de orgulho pelo alto conceito de meu pai, e menino, sempre contemplei com reverência o material esportivo do velho goalkeeper ("golquíper"), como então se escrevia em inglês (num tempo em que futebol era ainda football e time, team), por ele carinhosamente guardado como registro da sua época de glórias esportivas - a doce época do amadorismo, em que os jogadores ajudavam com seu dinheiro as finanças do clube e a compra do equipa- mento esportivo, da camisa (ou do gorro, que então ainda se usava) às chuteiras, passando pela própria bola. Teixeira Gomes era amicíssimo (quase um irmão), de Raimundo Peixoto de Magalhães, ex-presidente e conselheiro do Esporte Clube Bahia, o homem que desenhou o escudo do time. Compadres, meu pai batizou-lhe o segundo filho, Carlos Eduardo, prematuramente morto. Raimundo era irmão de Magalhães Neto, mé- dico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia e, portanto, tio de Antonio Carlos Magalhães. A tia deste, Mabel, casada com .Raimundo, morreu de parto - e minha família, que estava viajando, traumatizada, logo voltou a Salvador, em solidariedade ao viúvo e ao primeiro filho do casal, José Carlos Magalhães, um querido amigo de toda a vida. Lembro- me de que a contemplação do corpo da ainda jovem parturiente proporcio- nou-me pela primeira vez, menino, a visão concreta da morte, constituindo um trauma que marcou dolorosamente a minha infância. Esses fatos ja- mais permitiriam supor que, vários anos depois,eu e Antonio Carlos começaríamos a trilhar caminhos tão duramente antagônicos. Pensei, pois, em iniciar-me no jornalismo como cronista esportivo, mas o superintendente do jornal da Bahia, Zitelman de Oliva, conhe- cendo alguns trabalhos literários meus da adolescência, muito insistiu 44 M EMÓRIAS DAS TREVAS para que me incorporasse à reportagem geral, o que acabou ocorrendo, logo me cabendo a cobertura das eleições. Não me afastei, porém, do esporte, tanto assim que acabaria como conselheiro do Esporte Clube Bahia. Ainda de referência a futebol, eu viveria uma das maiores decep- ções da minha vida com a derrota sofrida em 1950 pela seleção brasileira para a uruguaia, no Maracanã. Adolescente, eu estava no Rio, empolgado com as manchetes que, já no sábado, apontavam o Brasil como campeão do mundo. O procedimento ufanista da imprensa era absolutamente irresponsável. Com a derrota, a sensação que tive, tal o abatimento do povo, chorando pelas ruas, foi a de que o Brasil havia sido invadido por tropas estrangeiras, comandadas pelo general Obdúlio Varela. Nasceu desse imenso constrangimento um certo grau de pessimismo que eu iria carregar pela vida afora. Minha única compensação foi a de ter visto o Brasil golear a Espanha por 6 a l, com o mestre Zizinho na maior exibi- ção individual que testemunhei num jogador, em todos os tempos - regendo uma seleção de sonho, incomparável. O desastre do Maracanã me encheu de rancores contra o Uruguai e passei a compreender que o futebol antes separa que une os povos. Tem- pos depois, visitando Montevidéu, com sua vida plácida e seu povo gen- tilíssimo, desfiz, envergonhado, os preconceitos. Há um livro magistral que condensa para os brasileiros a relevância daquela experiência fatídica: Anatomia de uma derrota, de Paulo Perdigão. É um brilhante ensaio de sociologia e de psicologia coletiva, expondo como uma derrota esportiva pode momentaneamente liberar o que há de pior ou de mais traumático no inconsciente de um povo sofrido, acuado por seus fantasmas históri- cos, políticos e sociais, sem líderes e céptico quanto ao futuro. Tal como os brasileiros de hoje. Surgiu na época inclusive a versão de que o Brasil perdera a Copa do Mundo em virtude da sua composição racial. Um povo "misturado" não poderia gerar uma pátria de campeões. Obvia- mente, essa era a visão das chamadas "elites". Elas se esqueciam de que o verdugo do Brasil, Obdúlio Varela, era mulato. 45 JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES * * * Os detalhes salgam e enriquecem-nos a vida, mas voltemos ao essencial. Ingressei, pois, no jornalismo, levado pela vocação de escrever5, talvez herdada de minha mãe, Célia Oliveira, que, jovem, produzia contos, reu- nidos num livro que não chegou a ser publicado e se perdeu. Li-os e achei- os comoventes e belos. Fazer jornalismo era para mim uma experiência fascinante e, pouco tempo depois de iniciar-me na profissão, amadureci o aprendizado realizando um estágio em importantes jornais cariocas como O Globo, Última Hora, Correio da Manhã e jornal do Brasil, cujo dinamis- mo me impressionou em inícios da década de 60, em contraste com a pobreza de meios e recursos do jornal da Bahia. Foi assim, em síntese, que me tornei um profissional da imprensa: dos tempos da infância, em que redigia e ilustrava pequenos jornais para os amigos, ao meu ingresso no JBa., havia-se cumprido não um destino, mas sim uma vocação, adubada com os sonhos infantis, que, em seus desdobramentos, iria colocar-me no centro de situações conflituosas, que jamais imaginara enfrentar. * * * A partir de 1963, não era preciso estar dentro de um jornal, acompa- nhando de perto os acontecimentos políticos, para ter a certeza de que algo de muito grave estava para ocorrer na vida do País. A fermentação política começava a entrar na linha do paroxismo, estabelecendo nítida divisória entre, de um lado, uma burguesia capitalista urbana, latifundiários, políticos conservadores e militares, e, de outro, esquerdas assanhadas e imaturas, num país sem a menor tradição de "práxis" revolucionária con- seqüente. A principal arma das esquerdas era uma retórica ilusória, que, com o passar do tempo, foi criando na imprensa a falsa idéia da existên- cia de um esquema militar/operário/estudantil que, em qualquer cir- cunstância, sustentaria Jango no poder, mas que, na verdade, nunca exis- tiu. A farsa traria efeitos desastrosos para o Brasil. 46 MEMÓRIAS DAS TREVAS A trama para a derrubada de João Belchior Marques Goulart foi cos- turada antes da sua posse, após o retorno apressado da China para ocu- par a vaga presidencial aberta pelos delírios autoritários de Jânio Qua- dros, regados a uísque. Se não fosse a "cadeia da legalidade" instituída por Brizola e pelo general Machado Lopes no Rio Grande do Sul, o herdeiro político de Vargas não teria chegado ao poder, ao qual somente ascendeu depois que o enredaram no cipoal parlamentarista (Tancredo Neves, Brochado da Rocha, Hermes Lima) imposto pelos militares golpistas. Conforme as apropriadas palavras de Maria Helena Simões Paes no livro A década de 60, o que houve foi uma "desestabilização planejadà', que começou em 1961, com a criação de órgãos reacionários como o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), coordenando "uma sofisticada e multifacética campanha política, ideológica e militar" (lembra a autora, citando o René Dreifuss de 1964: a conquista do Esta- do), que se consumou em 12 de abril. Disse ela: Nesse processo, o IPES associou-se ao IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), fundado por empresários e militares no final dos anos 50. Anticomunista e ligado à CIA (Agência Central de Informações dos EUA), o IBAD recebia contribuições de industriais e banqueiros nacionais, de proprietários rurais, de grupos internacionais e da própria CIA. O IPES- IBAD ligou-se ainda a oficiais da ESG, associação que gerou o "estado- maior" do movimento civil militar que derrubaria João Goulart6• A análise é perfeita. Abro aqui um parêntese para revelar que, por uma estranha (e incorreta) associação psíquica, todas as vezes, desde o início dos anos 60, em que eu ouvia falar do IBAD, me assustava e evocava a Gestapo hitleriana. Para mim, era também um órgão sinistro - mas, de qualquer sorte, não era um polícia política, e sim um valhacouto de reacionários. Não vou aqui resumir a história do golpe, já bastante conhecida de todos os brasileiros, mas apenas destacar que, dentro de uma redação de 47 JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES jornal, vivendo na pele aqueles acontecimentos extraordinários, fui sen- tindo gradualmente que a deposição de Jangoulart - como então escre- víamos no JBa. - era uma simples questão de tempo. Isto porque não sentia firmeza nas posições das esquerdas, que, como sempre, vocifera- vam muito, mas não se preparavam para o confronto inevitável. Essa tendência para a exacerbação ideológica me havia afastado de uma militância esquerdista ou, mesmo, de qualquer comprometimento par- tidário. Embora me impressionasse profundamente a visão marxista das relações econômicas na sociedade capitalista, cada vez mais atual, hoje, em decorrência da globalização (aprofundarei esse assunto no capítulo final), e um impulso de solidariedade humana me impelisse para o socialis- mo, eu não suportava a tendência das esquerdas de tutelar, impor dogmas, agir através de "slogans" ou constranger o pensamento, "sovietizando" o marxismo. A teoria marxista me fascinava pelo seu conteúdo humanístico (negado acerbamente pelos seus críticos, mas já apontado pelos estudio- sos), claramente exposto a partir das suas origens, como urna reação do pensamento organizado contra a brutal exploração capitalista imposta pela revolução industrial do século XIX, Inglaterra à frente. Sobre o assunto, escrevi em meu livro Glauber Rocha, esse vulcão um trecho definidor do meu pensamento e que, portanto,considero fundamental transcrever: 48 ... O marxismo( ... ), sendo a negação da ideologia cristã, com ela se identifica plenamente, nos objetivos de transformação social e rege- neração humana. De que forma não se entender como um notável es- forço de reeducação do homem o propósito de esvaziar-lhe o egoísmo congênito, de fundo biológico, através de um sistema que privilegie o coletivo em detrimento do individual? A teoria da luta de classes confere correta interpretação aos antagonismos e choques de interesses econô- micos, um fenômeno real que, de outra forma, permaneceria vagamen- te situado na esfera de uma suposta "maldade congênita" do homem, tão irrealista como a sua presumível "bondade natural", de fundo MEMO RIAS DAS TREVAS rousseauniano. O móvel da ação humana de natureza econômica não é a "maldade" ou a "bondade", mas sim o interesse, que tem no lucro capitalista a sua expressão mais radical. O marxismo, em tese, foi uma grande corrente ética que pretendia, pela reformulação das leis econô- micas, suprimir as condições materiais da sociedade que transformam o homem em algoz do seu semelhante, reprimindo-lhe a inclinação natu- ral para a acumulação desmedida da riqueza, a obsessão do dinheiro e dos bens materiais. Para evitar a identificação desse objetivo humanístico com uma vaga e etérea idealização das relações sociais, assumiu a forma do materialismo histórico e do socialismo científico7• Não é preciso lembrar que, para redigir o conjunto das suas teorias, Marx estudou detidamente a situação do operariado europeu, ao qual chegou a distribuir formulários com numerosas indagações sobre o seu modo real de vida, inclusive familiar. Um pouco de experimentalismo à Zola, indo aos fatos de caderninho em punho, para enriquecer a teoria com a vivência prática das situações. Testemunhou a generalização da miséria e o desprezo capitalista ao trabalhador. A longa e acidentada história da valorização do trabalho humano foi sempre um percurso de resistências, superações, sofridos e intermináveis combates, uma escalada de heroísmos explícitos ou sufocados, invariavelmente regada a sangue, desespero e martírio. Uma luta contínua e dolorosa como as guerras - ou ela própria uma guerra permanente contra a avareza, a cupidez e o egoísmo, não raro enfrentada pelo "status quo" com os cassetetes poli- ciais e a prisão. Desde o trabalho escravo até as conquistas tornadas pos- síveis pela coesão operária do sindicalismo, milhões soçobraram nessa luta sem direito aos monumentos levantados em honor do sacrifício, da dignidade e da bravura. Não é difícil entender assim o que representa- ram as idéias de Marx nesse processo e qual tem sido o papel dos seus críticos e opositores ao longo da história, até chegarmos à globalização, aparentemente consagradora da vitória do neoliberalismo, mas na verda- de apenas uma nova fase no desdobramento dialético desse "continuum" 49 }üÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES histórico que move o mundo. Os momentos de desespero social são momentos de transição, mesmo porque o sofrimento de milhões de se- res humanos não pode ser institucionalizado. Mas é preciso lutar sempre contra a opressão sem esperar benevolências ou concessões. Embora nutrido do idealismo socialista, não cheguei a ser um devo- tado cultor de Marx ou enfronhado leitor dos seus livros, preocupado com a questão da liberdade individual e intimidado pela complexidade das suas teses econômicas, cheias de cálculos esotéricos, números e esta- tísticas, além de fórmulas matemáticas, que detesto. Por outro lado, minha difícil convivência com as esquerdas dogmáticas impediria que eu me vinculasse a qualquer experiência partidária. Não há ideais que justifi- quem a abdicação da faculdade de pensar, o dom mais nobre do ho- mem. Era com constrangimento que eu via pessoas inteligentes subme- tidas a esquemas mentais transferidos. O radicalismo emburrece. As aulas de sociologia e filosofia de Machado Neto estimularam em mim a pro- pensão natural para o exercício do livre pensamento e o seu livro Marx e A1annheim me chamou a atenção para o conteúdo humanístico do mar- xismo, violentamente negado pelos seus hermeneutas capitalistas ou a serviço deles, mas um fato passível de comprovação. Minha indepen- dência foi fundamental no jornalismo e na vida. * * * Voltemos, porém, aos fatos de 64. O golpe pegou de surpresa o pró- prio governo de Lomanto Junior, que na transição de 31 de março para 1 º de abril viveu no palácio da Aclamação uma madrugada de incerteza e angústia. Ele, que chegara ao poder em 62 derrotando Waldir Pires, com bandeiras municipalistas, estava à vontade com João Goulart e não era bem visto pelos conspiradores. Tudo indicava que seria um dos pri- meiros a cair. Por isso, sofria em companhia de auxiliares e do seu secre- tariado, completamente desnorteado pela falta de informações precisas. Por mais incrível que pareça, o mesmo ocorria com a alta oficialidade da 50 MEMÓRIAS DAS TREVAS VI Região e demais comandos militares radicados em Salvador, igual- mente reunidos com o chefe do Executivo, indecisos quanto à posição a ser assumida, diante de fatos ainda tão obscuros. Para prevenir-se, após esses contatos, Lomanto Junior resolveu pedir ao seu secretário da Justi- ça, jornalista Jorge Calmon, que redigisse um manifesto ao povo baiano. Como não se sabia para que lado ir, optou-se pela forma diplomática de um generalizado apelo à manutenção da "legalidade" e de respeito aos poderes constituídos, prudentemente omitindo-se o nome de Jango. Eis a íntegra do documento, divulgado em todos os jornais em suas edições de 12 de abril de 1964 e pela primeira vez reproduzido em livro: O governador de Estado, ao tomar conhecimento das graves ocorrên- cias no Sul do País, reuniu-se, para o estudo da situação, com os coman- dantes militares. Acha-se o Governo em condições de garantir, com a cooperação das Forças Armadas, a paz e a ordem no território da Bahia. Na disposição de contribuir para a manutenção, a todo custo, do regime democrático, o governo baiano está certo de contar, para este objetivo, com o decidido apoio da população do Estado. Concitando o povo a conservar-se tranqüilo e confiante, seguro está de que os baianos mais uma vez darão ao Brasil, neste momento crucial, o testemunho da moderação e do patriotismo que têm caracterizado sua participação na vida nacional. A Bahia lança neste instante um veemente apelo à Nação para que, sensível aos seus sentimentos cristãos, não permita a destruição da sua paz interna, repelindo a ameaça da guerra civil, que ora se esboça. O governo da Bahia, coerente com os seus pronunciamentos anteri- ores, manifesta-se, firmemente, pela defesa da legalidade democrática, com a preservação dos poderes constituídos, repudiando, por isso mes- mo, qualquer tipo de ditadura. O documento torna explícita a desorientação das autoridades civis e militares da Bahia, pois o golpe já estava vitorioso, representava o esface- 51 JoAO CARLOS TEIXEIRA GOMES lamento dos poderes legalmente constituídos e trazia em seu bojo a dita- dura. O manifesto expunha um governador e seus convivas atarantados em palácio e o deixou em situação difícil nos primeiros dias da implan- tação do movimento militar. Lomanto acabaria sendo salvo - depois de ter sido obrigado a alterar o seu secretariado, integrando-o com nomes "confiáveis" - pela proteção do comandante do IV Exército, com sede em Recife, general Justino Alves Bastos, que, tempos depois, cairia em desgraça por ter feito um pronunciamento político durante um almoço, estimulado, ao que se disse, por algumas doses de uísque. Lomanto, por sua vez, me negou, vários anos transcorridos da deflagração do golpe, ter preparado, na sombria madrugada de 12 de abril, dois manifestos, um a favor e outro contra Jango, conforme seus adversários espalharam por toda a Bahia.Até hoje não ficou claro o motivo pelo qual o general Justino Bastos o salvou da degola, que chegou a ser admitida como inevitável. Sorte semelhante não teve o prefeito de Salvador, um engenheiro do qual muito se esperava, Virgildásio Sena, deposto pelos militares depois de uma ação ostensiva e espetacular, que incluiu o cerco prévio da sede da prefeitura, no centro histórico da cidade, por tropas motorizadas e armadas. Ele não se encontrava no local, num fim de tarde do dia cinco de abril, mas, ao saber do cerco - uma verdadeira operação de guerra-, apresentou-se espontaneamente ao comando da VI Região Militar e foi preso. Sem querer, fui testemunha ocular da invasão da prefeitura: eu tinha ido ao centro da cidade comprar jornais do Rio para inteirar-me dos rumos do golpe, quando vi os veículos do Exército passarem em direção ao Paço Municipal e acompanhei, perplexo, as manobras do cerco, efetuado de surpresa num domingo. Pensei que o prefeito estava ali e temi por sua integridade física. Eu sabia, desde dias antes, que Virgildásio Sena seria sacrificado. Numa das minhas primeiras visitas compulsórias ao quartel da VI Re- gião Militar, no bairro da Mouraria, onde várias vezes fui hostilizado e ameaçado de prisão, um coronel, de nome Mendonça, dedo em riste 52 MEMÓRIAS DAS TREVAS em minha cara, queria saber o motivo pelo qual o Jornal da Bahia divulgara a notícia de que o prefeito seria poupado. Eu próprio trans- crevera uma breve informação do jornal O Globo e a publiquei em uma das nossas edições, convicto de que nascera de fonte autorizada. Pela áspera reação do coronel, vi logo que tudo estava perdido: Vir- gildásio, apesar de sua reputação de técnico competente e de gozar da simpatia popular, não escaparia. Aos gritos, sempre com o dedo apontado para mim, à beira de um descontrole emocional, o coronel Mendonça advertiu que reincidência "em noticiário falso e ideológico" levaria o quartel a decretar a invasão e o fechamento do jornal da Bahia, "com fuzis e metralhadoras", conforme enfatizou. Nunca esqueci essa frase. Treze dias após a sua queda, Virgildásio Sena perdeu oficialmente o cargo de prefeito através da votação de seu "impeachment" por uma Câmara Municipal pressionada e acovardada, no dia 18 de abril. Quinze vereado- res aprovaram a medida e apenas dois resistiram: Luís Leal e Luís Sampaio. Assim passavam a ser tomadas as decisões políticas nos legislativos de todo o País, apavorados com o aluvião das cassações e suas famigeradas listas. O mundo político submetia-se para sobreviver à fúria dos falcões, que já intimidavam os chefes militares mais contidos, forçados a conces- sões. A linha-dura logo começou a arreganhar os dentes e os propalados "compromissos democráticos" do golpe foram incontinenti mandados às favas: 64 aos poucos preparava 68. A violência da VI Região especificamente contra o JBa., na imprensa baiana, se amparava em duas considerações: a existência de grande nú- mero de ex-militantes comunistas em nossos quadros, entre os quais o próprio diretor (todavia já empresário e banqueiro), e o apoio sistemático que dávamos às reformas de base pregadas durante o governo Jango, para tornar o Brasil um país menos dependente economicamente e social- mente mais justo. Eu assumira a chefia da redação do Jornal da Bahia interinamente logo após o golpe, em virtude de um colapso nervoso sofrido pelo titular ante- 53 JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES rior, que, diante de sucessivas invasões da nossa sede por tropas militares, em busca de documentos incriminadores, fora vítima de uma disbulia e refugiara-se em casa, incapacitado de sair. Mal conseguia balbuciar. So- mente isso dá a idéia das enormes responsabilidades que caíram sobre as minhas costas. O fato de que nunca pertencera ao Partido Comunista, nem desenvolvera militância ideológica, fora providencial para a minha permanência no cargo, no qual fui oficializado em 13 de junho de 64, de acordo com nota elogiosa divulgada pela direção na 1 ª página8 • A minha independência conferia-me autoridade moral para lidar com generais e coronéis ameaçadores. A VI Região vivera na madrugada do golpe momentos de ansiedade. Era comandada por um homem cauteloso, o general Manuel Mendes Pereira, conhecido como o "Mandão" ou "Pereirão", incapaz de violência. Possuía, porém, assessores radicais, en- tre eles o cel. Humberto de Mello, chefe do Estado Maior, o mesmo que acompanhara em palácio as angústias de Lomanto (que já tivera auxiliares presos, entre os quais o professor Milton Santos e o jovem Procurador- Geral do Estado, Marcelo Duarte) e que, tempos depois, lançava na Bahia um manifesto agressivo, condenando a subversão, a corrupção e o declínio moral da sociedade, motivo pelo qual pregava o fechamento das boates de Salvador ... Depois da rebelião dos marinheiros e do grande comício janguista da Central do Brasil, firmou-se-me a premonição da inevitabilidade do golpe - idéia, aliás, que, nos últimos dias, já se generalizava. Tanto assim que, pouco antes, como secretário, eu recebera a visita do líder sindical Dante Pelacani, que viera advertir o JBa., conhecido pelas suas posições pro- gressistas, sobre a iminência da ação armada, longamente prestigiada pelo embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon. Pelacani fazia uma peregrinação pelo Brasil tentando aglutinar forças contra o golpe iminente, mas este aconteceu de acordo com as previsões de todas as pessoas sensatas, capazes de perceber que o governo não se sustentaria num clima de indisciplina militar. O esquema de proteção montado, ao 54 MEMÓRIAS DAS TREVAS que se dizia, pelo general Assis Brasil não resistiu à pressão das "marchas com Deus pela liberdade" e acabou por revelar-se, no final das contas, um surpreendente logro. Na Bahia, com exceção de Lomanto Junior, as principais lideranças já estavam envolvidas na conspiração e muito lucraram com o golpe, mas não há dúvida de que o seu principal beneficiário foi Antonio Carlos Magalhães. Por um motivo muito simples: na época, ele era apenas um deputado federal sem qualquer ressonância popular, que havia construído carreira sob a proteção de líderes expressivos como Juraci Magalhães, Antonio Balbino e Edgar Rego dos Santos, o reitor, que, embora tendo desenvolvido suas atividades na área da Universidade da Bahia, possuía prestígio suficiente para amparar o então jovem político inexperiente e ambicioso, que sabia tirar proveito das suas relações com os poderosos. No livro Política é Paixão9, fruto de uma longa entrevista concedida por Antonio Carlos a um grupo de jornalistas do Sul (não tiveram a idéia de incluir um único baiano sequer - um baiano sem rabo preso), respon- dendo a uma pergunta de Miriam Leitão, do jornal O Globo, ele não vacilou em confessar que "a pessoa mais importante na sua vida políticà' foi Juraci Magalhães - o mesmo Juraci, no entanto, que Antonio Carlos acusou, com estardalhaço, já no governo da Bahia, de ter-se colocado contra a instalação do pólo petroquímica do Estado (publicamente asse- gurado por Médici a Luís Viana), a serviço, segundo disse, dos interesses da Petroquímica União. Agrediu seu ex-protetor com tal contundência que este se viu obrigado a romper uma relação de longos anos, decisiva para a carreira de Antonio Carlos, num episódio considerado pela crônica como indicativo de uma ingratidão sem limites. Para muitos, tudo não passou de atitude premeditada, sob o ilusório pretexto de defender um interesse da Bahia, mas assumida para afastar da sua nascente liderança a sombra das benesses recebidas e isolar a força remanescente do juracisismo. Se Juraci Magalhães houvesse lido Maquiavel, talvez não tivesse ajudado Antonio Carlos, pois está no mestre toscano que "aquele 55 JoAo CARLOS TEIXEIRA GOMES que torna outrem poderoso arruina-se a si próprio". O atrito, que obteve, na época, enorme
Compartilhar