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A questão criminal
Eugenio Raúl Zaffaroni
Referência bibliográfica: ZAFFARONI, Eugenio Raul. A questão criminal. Tradução: Sergio Lamarão – 1. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2013.
Sobre o autor e o livro
Eugenio Raúl Zaffaroni é argentino, nascido em Bueno Aires a 7 de janeiro de 1940. Tem por profissão a docência (Universidade de Buenos Aires) e a magistratura, tendo sido ministro da Suprema Corte Argentina entre 2003 e 2014. Desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Zaffaroni é uma das maiores autoridades em Direito Penal e Criminologia da atualidade, sempre exprimindo uma visão crítica muito qualificada. Capitaneou a perspectiva agnóstica em matéria de estudos penológicos.
e, nesse livro “A Questão Criminal”, resolveu abordar, numa linguagem para todos os públicos, as ideias básicas da criminologia mais avançada, mais moderna, mais democrática.
Esse livro, pois, trata-se do conjunto de artigos publicados semanalmente no jornal argentino Página 12 que Zaffaroni se propôs a fazer a fim de levar a questão criminal para ser discutida com profundidade para além dos juristas.
1. A academia, os meios de comunicação e os mortos
Zaffaroni inicia o texto demonstrando como a questão criminal é afeta ao debate social, influenciado, por vezes, pelos meios de comunicação, mas tratando geralmente em termos de localidade/regionalidade. Sobre isto, Zaffaroni nos alerta: 
“Poucos se dão conta de que se trata de uma questão mundial [...] Se ficamos no plano da análise local, perdemos o mais profundo da questão, porque olhamos as peças sem compreender as jogadas do tabuleiro de um xadrez macabro, no qual se joga, em definitivo, o destino de todos.” (pág. 06)
É dito, pois, da necessidade de que a discussão acadêmica seja comunicada não somente dentro das Universidades, mas debatida com toda a população. Zaffaroni diz que o mundo acadêmico tem o costume de ficar falando sozinho.
MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA
Diferentes posições hierárquicas ocupadas por sujeitos na sociedade .
BASSANEZI, C. trata da dupla culpabilização das mulheres apenadas. (Em primeiro plano apenas pelo crime em si, em segundo por serem mulheres que praticaram o delito.) 
 Essas identidades são constitutivas das espécies de violência;
Identidades são dinâmicas (imbricadas e mutáveis). Elas atravessam umas às outras. 
São marcadres sociais da diferença: Gênero, Raça, Territorialidade, Classe, idade e outros
Números do regime prisional (dados do DEPEN: 2019)
Disparidade de gênero (dados do DEPEN: 2019)
INFOPEN: REGIMES DE CUMPRIMENTO DE PENA NO ENCARCERAMENTO FEMININO
DADOS DEPEN ESCOLARIDADE (DEPEN 2014)
TIPOS PENAIS dos apenados: Dados DEPEN 2014
Para confirmar que a questão criminal tem que ser tratada como uma questão mundial, Zaffaroni utiliza 03 marcos históricos: a Revolução mercantil (séc. XIV), Revolução industrial (séc. XVIII) e Revolução tecnológica (séc. XX), porquanto tenham nos trazido a este poder planetário que é a globalização. Desses três eventos, Zaffaroni assinala que a revolução tecnológica é fundamentalmente comunicacional. (pág. 7)
É posta a necessidade de que o saber acadêmico desça de seu pedestal de dialeto rebuscado e intelectualismo para poucos, e se abra à população para mostrar o que se pensa e o que se sabe até agora; e também para fazer autocrítica uma vez que o próprio saber criminológico já foi utilizado para legitimar o ilegitimável. (pág. 7)
“O cidadão comum deve saber que há um mundo acadêmico que fala disso, da questão criminal, que, embora não tenha nenhum monopólio da verdade, pensou e discutiu umas tantas coisas, que se equivocou muitíssimas vezes e muito feio, mas também aprendeu com esses erros.” (pág. 8)
Nesta senda, o texto nos alerta que o mundo acadêmico também pode se equivocar sobre a realidade. “A questão da realidade, neste como em tantos outros âmbitos, é algo muito problemático, em particular quando vivemos numa era midiática, em que tudo se constrói.” (pág. 10)
Conforme haja uma discussão filosófica sobre a realidade e a construção da realidade, ao que é mencionado superficialmente o sociólogo francês Jean Braudillard sobre esse debate, Zaffaroni nos indica que, em se tratando da questão criminal, “a única realidade são os mortos”. (pág. 11)
O autor afirma que Fernando Pessoa disse que o homem é um cadáver adiado. “Concretamente, o certo é que todos os vivos – isto é, os que vivem – somos adiados, mas há alguns aos quais não se adia o suficiente, porque são mortos. Estes ficam mudos, porque costuma se afirmar, peremptoriamente, que os mortos não falam, o que é verdade em sentido físico, mas, sem dúvida, os cadáveres dizem muitas coisas que esta sonora afirmação oculta. Vejamos: às vezes chegam a nos dizer até quem matou (pelas pistas que o autor deixa no cadáver), mas o cadáver nos diz sempre que está morto. Esta é a mais óbvia palavra dos mortos: dizer-nos que estão mortos. Por isso, quando se afirma que não há pretexto algum para a realidade na questão criminal, o que na verdade fazemos é emudecer os mortos, ignorar que nos dizem que estão mortos.” (pág. 11)
Zaffaroni então nos explica que o livro trará 3 etapas fundamentais: o que nos foi sendo dito ao longo da História e o que nos diz hoje em dia a academia (as palavras dos acadêmicos); o que nos dizem os meios de comunicação (as palavras dos meios de comunicação); e o que nos dizem os mortos (as palavras dos mortos). (págs. 11/12)
2. Quem sabe disso?
Se queremos ouvir a palavra dos acadêmicos (começaremos por eles), precisamos saber onde procurá-los. De início, Zaffaroni já nos esclarece uma questão: para buscar entender sobre a questão criminal não basta que procuremos dentro do Direito Penal; temos que olhar para a Criminologia. (pág. 13)
Assim, é necessário distinguirmos o Direito Penal da Criminologia a seguir.
Direito penal
O Direito Penal se ocupa de trabalhar a legislação penal, para projetar o que chamamos de doutrina jurídico-penal, isto é, para projetar a forma em que os tribunais devem resolver os casos de maneira ordenada. Trata-se de interpretar as leis penais de modo harmônico para facilitar a tarefa dos juízes, promotores e defensores.
O crime, para os penalistas, é visto como uma abstração (uma ficção jurídica) que se constrói com um objetivo bem determinado, que é chegar a uma sentença racional ou pelo menos razoável. Em outras palavras, o penalista se ocupa da lei, e não da realidade.
Direito Penal estuda o dever ser.
A Criminologia não se preocupa com a dogmática jurídica. O seu saber não produz dogmas. Ao invés de sacramentar um conhecimento (dogma), a Criminologia quer questioná-lo, colocá-lo em debate através de várias visões diferentes pois bebe das fontes da sociologia, economia, antropologia, psicologia, história etc.
O crime, para os criminólogos, é visto como a realidade social, pois na realidade social não existe “delito”, o que existe são violações, homicídios, fraudes, ou seja, ações humanas.
A Criminologia estuda o ser.
criminologia
3. O poder punitivo e a verticalização social
Zaffaroni abre o capítulo com uma analogia divertida: “O poder punitivo é como o bife à milanesa com batatas fritas, isto é, ninguém se pergunta por que existe. Parece que sempre esteve ali. Mas não é assim.” (pág 18)
Em todas as sociedades que já existiram sempre houve poder e coerção. E sempre houve duas formas de coerção que merecem destaque: (pág. 19)
Uma é a coerção direta, preventiva, direcionada para evitar danos iminentes (ex: quando uma parede está prestes a cair ou quando alguém corre atrás de outra pessoa com uma faca na mão, há um poder social que demole a parede embora o dono se oponha, ou que desarme aquele que quer enfiar a faca. Esta é própria do poder de polícia praticado pelo Estado (Direito Administrativo).
A outra coerção tem sentido reparativo, age depois que alguém já causou um dano. É própria do Direito Civil e de outros ramos do direito.
Mas o poder punitivo é diferente, não existiu em todos os grupos humanos, e surgiu muito mais tarde. Porquê? O que o diferencia dessas outras coerções? As duas formas de coerção antes referidas resolvem os conflitos: uma, porque evita o dano, outra, porque o repara. Porém, quando na coerção reparadora alguém que manda diz que o lesado sou eu e afasta quem realmente sofreu a lesão, é ali que surge o poder punitivo, ou seja, quando o cacique, rei, senhor, autoridade ou quem quer que seja substitui a vítima, a confisca. (pág. 19)
Zaffaroni então nos mostra que o poder punitivo que adotamos exclui a vítima da resolução do conflito, pois o Estado toma a questão para si e a resolve sem que a vítima tenha a lesão sofrida reparada. Se uma pessoa agride a outra e quebra-lhe um osso, o Estado leva o agressor, o penaliza, alegando que o faz para dissuadir terceiros de romper ossos ou para ensinar-lhe a não fazê-lo de nvo ou para o que quer que seja, e o que sofre com o osso quebrado deve recorrer à Justiça civil, na qual pode não obter nada, caso o agressor não possuir bens. (pág 19)
 “A característica do poder punitivo é, pois, o confisco da vítima, ou seja, é um modelo que não resolve o conflito, porque uma das partes (o lesado) está, por definição, excluído da decisão. O punitivo não resolve o conflito, mas sim o suspende, como uma peça de roupa que se retira da máquina de lavar e se estende no varal até secar.” (pág. 19) Não repomos nada à vítima, não lhe pagamos o tratamento, o tempo de trabalho perdido, nada.
Zaffaroni nos alerta que, frente a outros modelos de efetiva resolução do conflito, o modelo punitivo se comporta de modo excludente, porque não só não resolve o conflito como também impede ou dificulta sua combinação com outros modelos que o resolvem. Analisemos um exemplo que o livro traz:
Imaginemos que um menino quebre uma vidraça na escola. A direção pode chamar o pai da criança para que pague a vidraça, pode manda-lo ao psicopedagogo para ver o que está acontecendo com o filho, também pode sentar-se e conversar com o pequeno para averiguar se alguma coisa lhe faz mal e o irrita. São 3 formas de modelos não punitivos: reparador, terapêutico e conciliatório. Os 3 modelos podem ser aplicados juntos porque não se excluem. Em compensação, se o diretor decide que a quebra da vidraça afeta sua autoridade e aplica o modelo punitivo expulsando o menino, nenhum dos outros pode ser aplicado. (pág. 20)
É claro que o diretor, ao expulsar o menino, reforça sua autoridade vertical sobre a comunidade escolar. Isso quer dizer que o modelo punitivo não é um modelo de solução de conflitos, mas sim de decisão vertical de poder. É por isso, justamente, que ele aparece nas sociedades quando estas se verticalizam hierarquicamente.
O modelo reparador é de solução horizontal e o punitivo de decisão vertical. Este aparece quando as sociedade vão ganhando a forma de exércitos com classes, castas, hierarquias etc. O poder punitivo foi usado, ao longo da História, para forçar a expansão de certas sociedades em detrimento de outras. “O poder punitivo foi o instrumento de verticalização social que permitiu à Europa nos colonizar.” (pág. 21)
Zaffaroni explica que houveram dois grandes momentos do nascimento/força da poder punitivo, qual sejam durante o Império Romano e seu expansionismo agressivo bem como, posteriormente, na Idade Média, unindo ao discurso punitivista à religiosidade.
Com isso, Zaffaroni afirma que a Idade Média não terminou. Em sua opinião: “Por um lado, que somos hoje um produto daquele poder punitivo que renasceu na Idade Média e permitiu aos colonizadores europeus ocupar a América, a África e a Oceania, escravizar dizimar e até extinguir os povos nativos, transportar milhões de africanos, avançar sobre o mundo com massacres e depredação colonialista e neocolonialista. No entanto, pr outro lado, quero dizer que os discursos legitimadores do poder punitivo da Idade Média estão plenamente vigentes, até o ponto de que a criminologia nasceu como saber autônomo no final do período medieval e fixou uma estrutura que permanece quase inalterada e reaparece cada vez que o poder unitivo quer se libertar de todo e qualquer limite e desembocar em um massacre.” (pág. 26)
Conforme a Inquisição tenha ocorrido à base de toda essa fundamentação, os dominicanos, ordem fundada por São Domingos de Gusmão, na condição de estudiosos da etiologia, ou da origem do mal, eles foram os primeiros criminólogos, porém eram chamados de demonólogos. Na busca pela extinção do mal, personificado na figura de Satã atribuído principalmente às mulheres (bruxas), os inquisidores não se atinham à culpa, mas sim ao grau de perigo que as bruxas e Satã representavam. Aqui surgiu uma questão até não solucionada: a pena se fixa pela culpa ou pela periculosidade? (págs. 29/30)
4. A estrutura inquisitorial
Podemos perceber que os discursos punitivos foram sempre se adaptando às pautas culturais que foram surgindo. Desde a Inquisição até hoje os discursos foram se sucedendo com idêntica estrutura: alega-se uma emergência, como uma ameaça extradordinária que coloca em risco a humanidade, a nação, o mundo ocidental etc., e o medo da emergência é usado para eliminar qualquer obstáculo ao poder punitivo que se apresenta como a única solução para neutralizá-lo. Tudo o que se quer opor ou objetar a esse poder é também um inimigo, um cúmplice ou um idiota útil. Por conseguinte, vende-se como necessária não somente a eliminação da ameaça, mas também a de todos os que objetam ou obstaculizam o poder punitivo, em sua pretensa tarefa salvadora. (pág. 32)
É evidente que o poder punitivo não se dedica a eliminar o perigo da emergência, e sim a verticalizar mais ainda o poder social; a emergência é apenas o elemento discursivo legitimador de sua falta de contenção. (pág. 32)
Zaffaroni quer nos dizer, portanto, que o poder punitivo produz seus inimigos, seus objetos de combates, sem ter a intenção de eliminá-los, pois sua existência legitima o poder. Os perigos foram inventados!
Trata-se do instrumento discursivo que proporciona a base para criar um estado de paranoia coletiva que serve para aquele que opera o poder punitivo o exerça sem nenhum limite e contra quem lhe incomoda. (pág. 33)
“Por desgraça, porém, quando aparece um discurso com estrutura inquisitorial e ninguém detém sua instalação, a consequência última é um massacre. Assim aconteceu com as mulheres queimadas, com as vítimas das máfias e da corrupção produzidas pela proibição do álcool e das drogas; com os inimigos do Ocidente cristão massacrados pela segurança nacional ou pelo franquismo; com os doentes e incapacitados esterilizados ou assassinados pela eugenia; com a eliminação nos campos de concentração nazistas, e com muitos milhões de pessoas.” (pág. 33)
Para nos debruçarmos sobre a origem da criminologia, devemos lançar um olhar atento ao que os demonólogos disseram, enquanto estrutura discursiva, apesar da própria Criminologia negar essa sua raiz por não querer se associar com esse passado inquisitorial.
Para essa análise, portanto, há uma obra que consagra a autonomia da criminologia em relação ao direito penal, expondo, de forma orgânica, uma completa teoria sobre a origem do crime, ou seja, uma exposição da chamada etiologia criminal. Trata-se do Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas/Feiticeiras, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jacob Sprenger em1484 (imagem ao lado).
Recordemos que a inquisição romana teve seu esplendor nos tempos feudais, mas, quando os Estados nacionais se organizaram como monarquias fortes, estes reclamaram para si seus poderes punitivos e os retiraram do Papa. Assim, o Estado assumiu as fogueiras contra as mulheres (bruxas). Com o mesmo entusiasmo dos inquisidores, os juízes estatais da Europa central continuaram usando como manual o Martelo das bruxas (pág. 34).
O delírio punitivo está muito bem sistematizado e é a primeira vez na História que se construiu uma obra que integrou, em um único Sistema harmônico, a criminologia (origem do mal) com o direito penal (manifestações do mal), a com o processo penal (como se investiga o mal), ao queZaffaroni passa as páginas seguintes elencando os elementos principais abordados nesse livro. Vale a pena conferir às fls. 35-39 do livro A Questão Criminal.
O poder dos inquisidores era cobiçado por outros seguimentos da sociedade. Os médicos sempre tiveram vontade de deter o poder punitivo e chegaram a dominar seu discurso legitimador com horríveis consequências massacradoras.
O primeiro avanço do poder médico sobre o campo punitivo foi tentado em 1563 por um médico protestante dos Países Baixos, Johann Weyer, que publicou, em Basileia, um livro denominado As artimanhas do demônio, armando considerável reboliço na Europa. (pág. 40)
Weyer não negava a inferioridade da mulher nem a existência das bruxas e muito menos sua periculosidade, pois continuava atuando dentro da mesma visão agostiniana do mundo, configurada pelas cidades espelhadas de Deus e de Satã. O que ele introduziu foi a novidade de que as bruxas eram melancólicas e que, por isso, Satã se aproveitava delas, explorando sua doença. Não é demais recordar desde já que a melancolia era o que, com Charcot, logo seria chamado de histeria. (pág. 40)
A novidade introduzida por Weyer é muito interessante, porque dá lugar àquilo que subsiste ainda hoje, as chamadas medidas de segurança. O poder punitivo pode libertar-se de limites argumentando de várias maneiras, e não há exagero nessa afirmação, pois o engenho perverso que caracteriza seus discursos legitimadores é inusitadamente fértil. Um deles consiste em ocultar ou dissimular seu próprio caráter punitivo, o que continua fazendo mediante o expeditivo recurso de deixar de chamar penas às penas. (pág. 41)
É interessante observar que até hoje no direito penal se discute se a pena é determinada pela culpabilidade ou pela periculosidade, conquanto se dissimule a terminologia tratando de combinar remendos contraditórios. Nessas combinações do não acumulável, o mais frequente na legislação comparada é que se prevê fixar a pena segundo a culpabilidade, mas os perigosos ou inimigos são deixados à mercê das medidas administrativas de segurança. Desse modo, verificamos que não estamos falando de história no sentido mais usual do termo, e sim do presente, ou seja, confirmamos, uma vez mais, que a Idade Média não terminou. (pág. 42)
5. Sempre houve rebeldes e transgressores
Zaffaroni nos conta de um importante rebelde dentro da Igreja Católica: Friedrich Spee. Spee era jesuíta, e se encarregava de tomar as confissões das bruxas antes que a matassem queimadas. O jovem Spee ficou tão traumatizado com essa experiência que publicou anonimamente, em 1631, o livro Cautio Criminalis (ou Cautela/Prudência Criminal) para afrontar o Constitutio Criminalis, um livro de absoluta crueldade de Carlos V, e destruir o Malleus Maleficarum.
Em seu livro, Spee diz que não discutirá a existência de bruxas, mas que, durante seu ofício, nunca conheceu nenhuma bruxa dentre as mulheres das quais colheu a confissão antes de serem queimadas. Ele chega a afirmar que com o procedimento inquisitorial qualquer uma podia ser condenado por bruxaria.
Spee foi muito inteligente em criticar o poder punitivo evitando cair na armadilha usual que desvia a questão para a gravidade do mal que este pretende combater. Zaffaroni diz: “Se o poder punitivo não serve para o que se pretende, não é questão de entrar na discussão acerca da maldade do que diz combater, e sim, simplesmente, mostrar que não o faz. (pág. 45)
Para responder sobre como era possível que acontecessem essas aberrações e tamanha barbárie, Spee atribuiu: (1) à ignorância da população, isto é, à desinformação, ou seja, à criminologia midiática de seu tempo, carregada de preconceitos; (2) à responsabilidade da Igreja, entendendo por tal os teóricos, quais sejam os dominicanos e seus seguidores que repetiam as palavras de ordem discursivas da criminologia acadêmica de seu tempo, legitimadora desses assassinatos; (3) aos príncipes, pois imputavam todo o mal a Satã e a seus seguidores, mas não controlavam seus subordinados, a quem deixavam livres. Isso, hoje, é o que chamamos de autonomização policial, ou seja, permitir que a corporação policial atue fora de todo controle político, para o qual se lhe atribuem âmbitos de arrecadação autônoma, também destacados por Spee. (pág. 47)
O que cabe destacar como mais significativo desse texto é que, assim como o Malleus fixou a estrutura do discurso inquisitorial, a Cautio o fez com o discurso crítico. Com efeito, qualquer discurso crítico do poder inquisitorial e do poder punitivo em geral, desde 1631 até hoje destaca o seguinte: a) o descumprimento de seus fins manifestos pelo poder punitivo; b) a função dos meios de comunicação; c) a função dos teóricos convencionais legitimadores; d) sua conveniência para com o poder político ou econômico; e) a autonomização policial; e f) a corrupção ou a arrecadação autônoma. (págs. 47/48)
Em que pese esse livro tenha causado algum burburinho na época, os juízes levaram adiante sua festiva queima de corpos femininos, conforme as instruções do Malleus. Setenta anos depois do aparecimento da Cautio Criminalis, o filósofo Christian Thomasius releus sua obra e escreveu uma tese em cima disso, engavetando por vez o Malleus e reduzindo-o a curiosidade histórica.
6. As corporações e suas lutas 
Zaffaroni inicia o capítulo explicando, por meio da teoria foucaultiana, que no Estado absoluto, o soberano exercia o poder de vida e morte, pois podia matar seus súditos ou deixa-los viver. (pág. 49)
O problema se complicou quando o poder estatal começou a se preocupar em regular a vida pública, quer dizer, não de cada indivíduo em particular, mas sim do sujeito público. A função do Estado complicou-se e o príncipe precisou se cercar de secretários ou ministros especializados que passaram a encarregar-se da economia, das finanças, da educação, da salubridade públicas, isto é, desse sujeito público. (pág. 50)
Assim, ao redor de cada ministro se foi formando uma burocracia especializada, que construiu um saber ou ciência que se alimentava a partir das universidades, formando as corporações de sábios especialistas, cada uma com um saber próprio e um dialeto próprio para os iniciados, excluindo todo o restante da população do debate, conhecidos por “leigos”.
Desde os séculos XVII e XVIII e até o presente, as corporações monopolizam seu discurso e disputam entre elas para ampliar sua competência, sem contar que há, também, uma luta interna de escolas na busca de conseguir impor a hegemonia do próprio subdiscurso. Não é de se estranhar, portanto, que o discurso penal e criminológico tenha sido matéria de disputas entre as corporações, como não podia deixar de ser, dado que é sempre um discurso acerca do próprio poder (pág. 50). Sempre há discursos sobre o poder que vão se digladiar para se tornar o pensamento hegemônico, o que segue a linha de interesses políticos e pautas sociais do momento.
Essa classe em ascensão necessitava controlar e impor limites ao poder da nobreza e do clero, que até então eram as classe dominantes. É claro, o poder mais temível das camadas hegemônicas era o punitivo, que ameaçava os novos empresários que assediavam seu Estado absoluto e que eram considerados dissidentes perigosos. Como não existe poder sem discurso, resultava funcional às novas classes em ascensão outro discurso acerca do poder punitivo e, por conseguinte, deviam procura-lo em outras corporações, diferentes daquelas que o haviam monopolizado até aquele momento.
Por essa razão, na segunda parte do século XVIII foi tomando corpo o saber das corporações dos filósofos e pensadores no campo político geral e, portanto, o dos juristas que seguiam seus alinhamentos limitadores do poder punitivo. Assim nasceu o Iluminismo, o século das luzes ou da razão e, em seu amparo, o chamado direito penal liberal. (pág. 51) Alguns monarcas perceberam essa mudança de discurso e tentaram se adequar onde lhes convinha, e outros não, de modo que se ergueram os revolucionários, radicalizando o discurso crítico do sistema penal em maiorou menor medida, de liberais a socialistas. (pág.s 51/52)
7. O utilitarismo disciplinador
Em geral, o iluminismo penal se nutriu de duas variantes opostas, embora muitas vezes coincidentes em seus resultados práticos: o empirismo e o idealismo. Àqueles buscavam a verdade mediante a verificação na realidade material, e estes através da dedução de uma ideia dominante. (pág. 52)
No campo criminológico, essa dupla corrente deu lugar a duas ordens teóricas: o utilitarismo disciplinador e o contratualismo (ou contratualismos, diante de suas variantes).
Os utilitaristas tinham como base que era necessário governar proporcionando a maior felicidade ao maior número de pessoas, tendo como maior expoente o inglês Jeremy Bentham. Bentham concebia a sociedade como uma grande escola em que tinha que ser imposta a ordem através da disciplina, seguindo o sistema compensatório de prêmios e castigos. Assim, os prêmios proporcionavam felicidade e os castigos proporcionavam a dor. Dessa forma, compreendia-se que um indivíduo são iria “andar na linha” pois, por óbvio, não escolheria o caminho da dor. Mas para se resguardar dos casos de insubmissão à ordem, Bentham desenvolveu um invento arquitetônico que chamou de panóptico.
Para Bentham, o delito coloca em evidência um desequilíbrio, produto da desordem pessoal do infrator, que deve ser corrigido. Para isso, projetou a referida prisão chamada panóptico, com estrutura radial, para que o preso saiba que será observado a partir do centro e por olhos mágicos a qualquer momento. Desse modo, ele seria introduzido na ordem e, ao final, acabaria se tornando seu próprio vigilante. (pág. 53)
Essa ideia era tomada de alguns médicos que asseguravam ser a doença mental também produto da desordem e por isso os manicômios deviam ocupar-se do disciplinamento dos doentes, colocando-os para trabalhar, na convicção de que a ordem física redundaria na ordem mental. Dessa perspectiva, não importa que o trabalho dos presos ou dos loucos seja ou não rentável ou útil, porque é um valor disciplinador em si mesmo.
Segundo Bentham, o disciplinamento deve corresponder à dor provocada pelo delito. Bentham acreditava na retribuição exata para cada caso concreto. Seguindo a lógica de Bentham, muitos códigos penais adotam penas fixas e longas listas de agravantes e atenuantes, prevendo percentuais para cada um. (pág. 54)
Cabe esclarecer que os panópticos nunca funcionaram como Bentham havia imaginado, pois logo os presos descobriram sua lógica e a superlotação fez com que a visão fosse interrompida com os múltiplos obstáculos.
A concepção criminológica de Bentham era, portanto, marcada pela etiologia do delito na desordem da pessoa, ao que combatia a isso com o disciplinamento.
8. Os contratualismos
Como já dito, a Criminologia nega sua história inicial. Essa negação da dimensão criminológica dos filósofos e juristas do Iluminismo do penalismo liberal obedece a uma fábula inventada em fins do séc. XIX por Enrico Ferri, que foi o mentor do positivismo italiano, de grande fama em seu tempo e de quem falaremos com mais detalhe.
Ferri considerou que tudo o quanto houve antes do positivismo foi escuridão e charlatanismo. Chegou a afirmar que tudo o que antes se havia dito acerca da questão criminal era espiritismo, mas, com muitíssima habilidade e pretendendo tributar-lhe uma homenagem, chamou a todo o saber precedente de escola clássica, fábula esta tão bem inventada que até hoje se ensina nos manuais das graduações de Direito.
O certo é que resulta inadmissível que os utilitaristas e todas as variantes do contratualismo, os kantianos, os hegelianos, os krausistas, os déspotas ilustrados de calças brancas e peruca e os descamisados revolucionários, todos juntos, formassem uma escola. O que encontramos é um conjunto de discursos mais ou menos funcionais à classe em ascensão dos industriais, comerciantes e banqueiros, para seu enfrentamento com o poder hegemônico das nobrezas nos países da Europa central e do norte. (pág. 58)
Quem defende a corrente do contratualismo social, por óbvio não quis dizer que um grupinho de seres humanos, tendo por vestes apenas folhas cobrindo suas partes íntimas, reunidos num escritório, decidiram firmar um contrato e fundar a sociedade. O contrato social nada mais é do que uma metáfora para representar a essência da sociedade e do Estado. (pág. 59)
Essa corrente foi a que predominou na Europa continental para enfrentar os ideólogos do Antigo Regime, que se valiam, por sua vez, de outra metáfora, pois para estes a sociedade era um organismo natural, com repartição de funções, e quem não compreendesse sua função no todo era tido como gerador do caos contra a lei natural.
Os contratualistas eram da linha racional (racionalismo). Assim, nada na sociedade era natural, mas sim um produto de um artifício, de uma criação humana, ou seja, um contrato que pode ter suas cláusulas modificadas ou ser rescindido de acordo com a vontade soberana das partes.
Conforme estivessem, nessa época, sob a influência das ideias iluministas, começaram a ser sancionados códigos que reuniam as leis sobre determinado assunto (uma derivação do fenômeno do enciclopedismo), procuraram dar clareza, com base em lei prévia, ao que era ou não proibido, subtraindo-o da arbitrariedade dos juízes, tornaram os julgamentos públicos, pois no Antigo Regime os julgamentos eram secretos e as execuções públicas, ao que depois do séc. XVIII os julgamentos passaram a ser públicos e as execuções secretas. Com o julgamento público a tortura foi abolida, muito embora os julgamentos agora fossem o espetáculo no lugar das execuções. (pág. 61)
Como Zaffaroni chama a atenção: Não deixa de ser importante a redução da pena de morte e a supressão das penas corporais. Até esse momento, falava-se das penas naturais, ou seja, que, além dos açoites, havia uma sobrevivência da pena no órgão que se havia sido usado no fato (a língua no perjuro e do blasfemo, a mão do ladrão, na sodomia o órgão sexual etc). A partir do século da razão, a coluna vertebral das penas passou a ser a privação da liberdade.
Indo contra o que usualmente se crê, a prisão é um invento europeu bastante recente e difundido pelo neocolonialismo, pois antes do século XVIII era usada pelos devedores morosos e como prisão preventiva, isto é, à espera do julgamento. A privação de liberdade como pena central é um produto do Iluminismo, seja pela via do utilitarismo (para impor a ordem interna mediante a introjeção do vigilante) ou do contratualismo (como indenização ou reparação pela violação do contrato social).
Com isso, a unificação das penas facilitava sua medida, superava o caos prévio das penas naturais e permitia medi-las todas em tempo. Como se entende que um homicídio valha de oito a 25 anos e um furto de um mês a três anos? O que é isso? Dois juízes procedendo como comerciantes que vendem pena por metro (ou por anos) no mostrador da justiça? Por estranho que pareça, não é mais do que um efeito do contratualismo que perdura até o presente. (pág. 61)
Quem viola um contrato, deve indenizar. Pois bem, se não cumpro com o contrato social e cometo um delito, devo indenizar. Como? Com o que? Ora, com o que posso oferecer no mercado, ou seja, com minha capacidade de trabalho. Daí que a pena me prive de oferecer meu trabalho no mercado durante mais ou menos tempo, segundo a magnitude de minha infração ao contrato (delito) e o consequente dano. Até mesmo a pena de morte entra nessa lógica tão particular, pois opera como uma confiscação geral de bens. (pág. 62)
Pode parecer insólito, mas essa é a origem da ideia da unificação das penas em tempo de privação de liberdade, que em seguida se cobrirá com outras racionalizações até nos parecer, a pouco mais de dois ´séculos de distância, como normal e quase óbvia. Rapidamente nos acostumamos às coisas mais rebuscadas e quando nos perguntam por que, a resposta é sempre foi assim, embora não tenha sido sempre nem muito menos assim. (pág. 62)
9. Os contratualismos tornam-se problemáticos
Como era de se esperar,houve vários contratualismos, porque a metáfora do contrato permitiu construir diferentes imagens do Estado, fundadas também em ideias díspares do ser humano. No final do séc. XVII, prenunciando o processo de industrialização e a acumulação primitiva de capital, se enfrentaram o contratualismo de Hobbes e o de Locke.
Para Hobbes, em seu famoso Leviatã, a origem da sociedade se encontrava em um contrato, mas celebrado por sujeitos estavam sempre preocupados em lutar entre si e se matar. Daí, em certo momento, eles teriam se dado conta de que não era bom negócio o que estavam fazendo, baixaram os machetes e se puseram de acordo em dar todos o poder a um deles, para que terminassem a guerra de todos contra todos.
É óbvio que o conceito do ser humano de Hobbes não era muito edificante, pois o concebia como um ente movido pela ambição de poder e prazer. O depositário do poder em seu contrato não tomava parte deste, razão pela qual os que lhe haviam dado o poder não poderiam reclamar-lhe nada, porque, do contrário, reintroduziram o caos, ou seja, a guerra de todos contra todos. Por outra parte, como antes do contrato o que existia era o caos, não havia direitos anteriores ao contrato e todos derivavam deste, de modo que, caso se negasse a autoridade do depositário, todos os direitos desapareceriam. (pág. 63)
Desse modo, Hobbes não aceitava direito algum de resistência à opressão, embora não explicasse o que aconteceria quando o depositário do poder, que continuava sendo humano, se movesse, exercendo-o conforme a tendência natural à ambição de poder e glória e desconhecesse qualquer limite legal imposto pelo contrato. Sua resposta era que qualquer opressão é preferível ao caos, o que escutamos toda vez que se quer converter a política em filme de terror. Para manter essa curiosa paz, Hobbes exigia que as penas fossem estritamente legais e se aplicassem mecanicamente, salvo aos inimigos, que eram os dissidentes que se queixavam e os colonizados que estavam em estado selvagem. (págs. 63/64)
Para Locke, o contrato era diferente, pois antes de sua celebração houve um estado de natureza em que os humanos tinham direitos, mas estes não estavam assegurados, e por isso decidiram celebrar o contrato como garantia. Para isso entregaram o poder a alguém, mas o deixaram submetido ao contrato. Devem obedecer a este, embora não gostem de fazê-lo, mas quando ele viola o contrato e nega esses direitos anteriores, reintroduzindo o estado de incerteza prévio, aí surge o direito de resistência ao opressor. (pág. 64)
Locke é uma das mais destacadas expressões do liberalismo político e, no fundo, o inspirador das declarações de direitos das últimas décadas do século XVIII.
Era natural que um século que fora caracterizado como “da razão” se perguntasse finalmente quais eram sua natureza e seus limites. As tentativas mais elaboradas de responder a isso foram levadas a cabo por Inmanuel Kant, com suas duas investigações ou críticas, sobre a razão pura e a razão prática. Pode-se dizer que Kant estava mais próximo de Hobbes do que de Locke. Para conservar o contrato e não voltar ao estado de guerra de todos contra todos (estado de natureza), Kant defendia a necessidade da pena talional, com a qual vinha, por uma via curiosa, coincidir com a medida da pena dos utilitaristas. (pág. 64)
Houve ainda Anselm von Feuerbach, pai do muito mais conhecido Ludwig Feuerbach, que, partindo da filosofia kantiana, afastou-se desse e com seus próprios fundamentos aproximou-se mais de Locke. Segundo Zaffaroni, Feuerbach foi um penalista genial que defendeu o direito de resistência à opressão e a ideia de direitos anteriores ao contrato, aprofundando a separação da moral e o direito iniciada por Thomasius e seguida por Kant.
10. Contratualismo socialista?
Se é verdade que a linha que deriva de Hobbes foi mais funcional para a atitude política do despotismo ilustrado e a de Locke para o liberalismo político das nascentes classes industriais urbanas, as coisas não terminaram ali. O contratualismo servia para tudo, de modo que não faltou uma versão socialista.
Na França, houve o revolucionário Jean-Paul Marat que era médico e veterinário, mas não jurista, que escreveu o Plano de legislação criminal antes da Revolução. Seu plano parte do pressuposto de que o talião é a pena mais justa, mas afirma que foi estabelecida no contrato social quando o poder foi repartido equitativamente entre todos, mas que logo uns foram se apropriando das partes de outros e, no final, uns poucos ficaram com as da maioria. Nessas condições, o talião deixava de ser uma pena justa para Marat, pois só o era em uma sociedade justa, que havia desaparecido.
O contratualismo tornava-se um pouco disfuncional à categoria que o havia impulsionado como discurso hegemônico (a classe dos industriais) e a própria possibilidade de que fosse usado para legitimar programas socialistas mostrava seus riscos. O disciplinamento dos utilitaristas não parecia suficiente e o contratualismo mostrava seus assomos arriscados. (pág. 67)
Vamos nos aproximando de uma mudança mais profunda do discurso criminológico, no qual o contratualismo – depois de um máximo esforço de legitimação hegemônica da classe industrial, ou de deslegitimação da participação do subproletariado urbano – terá de dar lugar a uma brusca queda do conteúdo pensante da criminologia e do direito penal, que coincidirá, justamente, com a consagração da primeira como saber academicamente autônomo. (pág. 67)
11. Nem todos são “gente como a gente”
Houve ainda dois momentos emblemáticos para a legitimação do poder punitivo: o hegelianismo penal e criminológico e o positivismo racista. O primeiro foi um esforço máximo, altamente sofisticado, do pensamento idealista, enquanto o segundo rompeu com tudo e se desprendeu de toda racionalidade.
Os ideólogos da questão criminal que invocaram Hegel partiam da afirmação hegeliana de que o “espírito” avança dialeticamente. Embora seja óbvio, cabe esclarecer que o “espírito” (“Geist”), não era nenhum fantasma, e sim o espírito da humanidade como potência intelectual. Em quase todas as histórias da filosofia, Hegel é qualificado como um “racionalista”, mas devemos advertir que, para ele, a razão era algo dinâmico, uma espécie de motor, e não um simples modo ou via de conhecimento. O avanço se dava na história dialeticamente, ou seja, “triadicamente”, por tese, antítese e síntese. (pág. 70)
Havia, pois, um momento de “espírito subjetivo” (tese) em que o ser humano alcançava a autoconsciência e, com ela, a liberdade, contraposto a outro, do “espírito objetivo” (antítese), em que duas liberdades se relacionavam e, finalmente, ambos se sintetizavam no “espírito absoluto”.
Em outras palavras, para Hegel o certo é que sua consequência prática é que não tem autoconsciência quem não é livre e não pode passar ao momento objetivo, ou seja, sua conduta não é “jurídica”. Mais ainda: os hegelianos afirmavam que a conduta “não livre” não era conduta para o direito. Por conseguinte, os criminólogos e penalistas concluíam facilmente que os seres humanos se dividem em “não livres” e “livres” e o direito era patrimônio destes últimos. Pois bem: quando um “não livre” lesava outro não cometia um delito, mas sim operava sem nenhuma relevância jurídica, porque não realizava propriamente uma conduta. Pelo contrário, apenas os “livres” podiam cometer delitos, pois eram eles que realizavam condutas.
O efeito prático era que os “livres” eram retribuídos com penas proporcionais à liberdade com que haviam decidido o fato, ou seja, com limites; quanto aos “não livres” que causavam danos, eles só podiam ser submetidos a “medidas” de segurança, que não eram penas e, portanto, não admitiam a medida máxima de sua culpabilidade ou liberdade, mas sim unicamente a do perigo que implicavam para os livres. (pág. 70)
Nesse sentido, os “não livres” eram os loucos, os reincidentes, multireincidentes, delinquentes profissionais e habituais, isto é, os que não eram considerados “gente como a gente”. Além dos indígenas, negrosárabes, judeus, latinos, asiáticos etc., posto que Hegel era extremamente etnocêntrico, preconceituoso e xenofóbico.
Conforme o idealismo de Hegel, o poder punitivo se explicava por uma via dedutiva, que não admitia nenhuma verificação no plano da realidade. Para Hegel, o delito era a negação do direito; a pena era a negação do delito; como a negação da negação é a afirmação, a pena era a afirmação do direito.
12. O salto do contrato à biologia
Na segunda metade do século XIX, os indisciplinados tornavam-se mais incômodos. O que a classe burguesa, agora em ascensão e ocupante do poder, necessitava não era de construções idealistas (os palácios dos ex-nobres), mas de algo muito mais concreto e de menor nível de elaboração, e também mais de acordo com a cultura do momento.
Na ordem planetária, as relações do centro com a periferia exigiam a eliminação do sistema escravocrata, porque a integração demandava maior nível tecnológico na periferia. (pág. 74)
Com os diversos avanços tecnológicos da época (ferrovia, navio a vapor, telégrafo etc.), a “ciência” era a nova “ideologia” dominante. Utilizando-se da teoria darwinista, podia-se crer que o ser humano podia continuar evoluindo e que, quando as leis da evolução fossem dominadas, o progresso não teria fim. A intenção era que, com a biologia, se constatasse que os mais poderosos eram os mais “bonitos” e que os colonizados eram inferiores, “feios”, todos iguais e parecidos aos macacos: era óbvia sua evolução inferior.
A classe outrora em ascensão havia passado a deter, na Europa, a posição dominante e a considerava “natural”, de modo que o artifício do contrato não só lhe resultava inútil, como também perigoso. Sua hegemonia “natural” só fora negada antes pelos obscurantistas e metafísicos. Tanto os discursos legitimadores do poder nobiliário quanto o famoso contrato passaram a ser superstições, pois necessitavam de um novo discurso que lhe permitisse exercer o poder punitivo sem travas para manter sob controle os “de baixo”, que não podiam ser incorporados ao sistema produtivo por escassez relativa de capital e que, ademais, tinham a ousadia de exigir direitos. (pág. 75)
Como era de supor, o novo paradigma que convinha a essas classes era o do organismo – ainda que não o antiquado baseado na “mão de Deus” – mas um novo, fundado na “natureza” e revelado pela “ciência”. Porém, por mais científica que fosse a roupagem, como não é demonstrável que a sociedade seja uma organismo, o novo organicismo não passava de um dogma arrebatado ao idealismo.
Recordemos que, conforme já dito, os médicos há muito já desejavam protagonizar a questão criminal, e foram elevados socialmente por conta dos julgamentos agora serem públicos e os médicos serem convidados como peritos. Nesse cenário, como a polícia tinha poder sem discurso e os médicos o discurso sem poder, era inevitável uma aliança, que é o que se conhece como “positivismo criminológico”, ou seja, o poder policial urbano legitimado pelo discurso médico. Porém, o discurso médico não se esgotava nos indivíduos ameaçadores e incômodos, e sim era um mero capítulo dentro do grande paradigma que começava a se instalar: o do reducionismo biologicista racista. (pág. 76)
Não demorou para que o poder punitivo fosse justificado pela mesma razão que legitimava o neocolonialismo: considerar os outros como seres inferiores. Fora utilizado para isso a teoria de Hebert Spencer do darwinismo social, teoria esta que fomentou e legitimou os mais perversos comportamentos da classe dominante.
A conclusão prática do darwinismo social era que os colonizados podiam ser dominados, mas não escravizados. Cabe precisar que os europeus não foram muito sutis em relação a essa diferença e que, em 1885, se reuniram no Congresso de Berlim, convocado por Bismarck, e repartiram a África como uma grande pizza. As consequências desse congresso são sentidas até o presente, pois a arbitrária divisão política de África é, até hoje, fonte de sangrentas guerras, alimentadas por negociatas armamentistas que mantêm a região subsaariana imersa em catástrofes.
O spencerianismo foi o reducionismo biologicista levado ao social que sevriu de marco ideológico comum ao neocolonialismo e ao saber médico que legitimou o poder policial com o nome de positivismo criminológico, que bem poderia se chamar de “apartheid criminológico”. Como os médicos vincularam a inferioridade dos neocolonizados à dos agressivos e incômodos? Essa é a história do “apartheid criminológico” em sentido estrito, com todas suas deploráveis consequências. (pág. 80)
13. Começa o “apartheid criminológico”
De início, importante ressaltar que os positivistas chamaram de “criminalidade” ao conjunto de presos, que era o único a que tinham acesso, porque os muitos mais que cometiam delitos e ficavam impunes lhes eram desconhecidos, ou seja, que seu “laboratório”, por assim dizer, se limitava ao estudo daqueles que se encontravam enjaulados. Como se sabe, em todos os tempos, os mais lerdos e com menos poder são colocados na jaula. (pág. 81)
Um dos expoentes do positivismo criminológico foi Cesare Lombroso que, intentando dialogar com o paradigma de seu tempo, qual seja o reducionismo biologista no marco spenceriano, desenvolveu suas teses.
O chamado “positivismo criminológico” (que, como já dissemos, não é mais do que o resultado da aliança do discurso biologista médico com o poder policial urbano europeu) foi sendo armado em todos o hemisfério norte e estendeu-se ao sul do planeta, como parte de uma ideologia racista generalizada na segunda metade do século XIX e que terminou, catastroficamente, na II Guerra Mundial. Não tem um autor: tem muitos e de todas as nacionalidades e, por certo, os criminólogos positivistas não foram mais do que uma das múltiplas manifestações de todos os pensamentos enquadrados nesse paradigma. (pág. 82)
Bénedict Augustin Morel expôs, em 1857, sua “teoria da degeneração”, segundo a qual, em razão da mescla de raças humanas combinar fios genéticos muito distantes, tinha por resultado seres inteligentes, mas moralmente degenerados, desequilibrados, incômodos.
Contemporâneo de Hegel, o alemão Franz Joseph Gall considerava que seu crânio era o “normal” e todos os outros, anormais. Por conseguinte, acreditava diagnosticar a criminalidade e a genialidade apalpando a cabeça, com sua famosa “frenologia”.
Houve ainda José Ingenieros e Raimundo Nina Rodrigues, para citar mais exemplo, fundadores da criminologia argentina e brasileira, respectivamente. Lombroso não inventou nem esgotou o reducionismo nem o positivismo racista, apesar de ter recebido fama mundial a partir de sua síntese mais meticulosa.
14. A síntese lombrosiana: um bicho diferente
Em 1876, Lombroso deu a luz à primeira edição de L’uomo delinquente, na qual afirmava que se podia reconhecer o “criminoso nato” como uma espécie particular do gênero humano (“specie generis humani”) pelos caracteres físicos. A criminologia – que, nessa época, se chamava “antropologia criminal” – ocupava-se, por conseguinte, de um objeto biológico diferenciado, o que levou um extremista a sustentar que era um ramo da zoologia. (pág. 86)
O “criminoso nato” seria uma figura assemelhada com o selvagem colonizado, produto acidental da raça superior europeia que nasceu mal acabado. Os caracteres “atávicos” que o assemelhavam ao colonizado lhe atribuíam traços “africanoides” ou “mogoloides” (parecidos aos africanos ou aos índios). Da mesma maneira que os selvagens, não tinham moral, pudor e, ademais, eram hipossensíveis à dor (para que sentissem era necessário bater neles com mais força), o que era verificável porque se tatuavam. (pág. 87)
Seguindo padrões estetizantes, a “feiúra” era associada ao “mau”. Hoje sabemos que a polícia seleciona por estereótipos e que estes configuram através da comunicação com base em preconceitos, nos quais os valores estéticos desempenham um papel fundamental, seguindo a regra de associar o feio ao mau. Reproduz-se, em definitivo, o mecanismo da “fisiognomia”: define-se o “feio”, associa-se ao “mau”e acaba se selecionando o “mau” mediante o “feio”.
O erro de Lombroso consistiu em acreditar que essa feiúra era a causa do delito, quando, na realidade, era a causa da prisionização.
Entretanto, ele não se ocupou apenas dos “mal acabados”, se ocupou também dos gênios e dos dissidentes e dos anarquistas. A verdade é que a criminologia lombrosiana parecia um grande elogio à mediocridade: não havia que se parecer com os colonizados, mas tampouco se sobressair muito em inteligência e criatividade nem discordar demasiadamente. Para completer o quadro, tampouco deixou a mulher em paz. A exemplo dos inquisidores, considerava-a menos inteligente do que o homem, apesar de afirmar que isso era compensado pela sua maior sensibilidade. Atribuía sua menor representação no delito à existência de um “equivalente” do delito na mulher, que era a prostituição. Tudo isso foi desenvolvido em um livro escrito junto com seu genro – o historiador de Roma, Guglielmo Ferrero –, intitulado A mulher delinquente, prostituta e normal. (pág. 88)
15. O rastro do positivismo biologista
Quanto a nós, latino-americanos, podemos assim deduzir as consequências da criminologia positivista sintetizada por Lombroso: se a prisão estava destinada aos brancos “atávicos” nos países colonialistas, porque eles se pareciam com os selvagens, cabe pensar que os territórios colonizados eram grandes prisões, ou seja, imensos campos de concentração. Esse pensamento tem sua lógica: o “Arbeit macht frei” (“o trabalho liberta”) escrito sobre o portão de Auschwitz. (pág. 88)
Enrico Ferri foi um italiano positivista, seguidor de Lombroso. Como penalista, Ferri afirmava que a pena devia ter a medida da periculosidade que, logicamente, na falta de um “perigosímetro”, mediam na base do “olhômetro”. O determinismo monista de Ferri era radical: tudo estava mecanicamente determinado, não havia liberdade alguma. (pág. 89)
O filósofo Martin Buber ridiculiza isso, imaginando um diálogo em que o processado alega perante o juiz que não tem a culpa porque está predeterminado ao delito, ao que o juiz lhe responde que ele está predeterminado a condená-lo.
Em dado momento, os criminólogos positivistas argentinos dedicaram-se a percorrer prostíbulos e outros antros da época e conceberam o conceito de “má vida”, pois ali desfilavam prostitutas, espertalhões, ladrões, religiosos, curandeiros, gays etc.
Como resultado dessas andanças nada santas, os positivistas propunham leis de “estado perigoso predelitual”, ou seja, que caso se soubesse que quem andava na “má vida” teria de desembocar no delito, o mais natural era detectá-lo antes e metê-lo na cadeia. Para que esperar que cometessem algo? Para obviar algumas formalidades, lhe mudavam o nome da pena e a chamavam de “medida”, de modo que ninguém poderia objetar que lhe fossem impostas penas sem delito. Famosos professores estrangeiros vieram em apoio a essa luminosa ideia que, por sorte, entrou em choque com a decidida recusa de Hipólito Yrigoyen, ex-presidente da Argentina. (pág. 91)
De qualquer maneira, o positivismo criminológico se defrontava com um gravíssimo problema, que era a própria “naturalidade” do delito. Não podia negar que se criminalizava por decisão política e que o proibido mudava de tempos em tempos e de sociedade em sociedade. Um outro jurista italiano, seguidor de Lombroso e Ferri, o barão Rafaelle Garofalo, inventr do “delito natural”, dedicou-se a superar esse obstáculo. A esse respeito, ele publicou, em 1885, uma Criminologia, que merece ser lida com atenção, porque é um manual que expõe, com incrível ingenuidade, racionalizações às piores violações de direitos humanos imagináveis. (pág. 91)
Entre outras coisas, Garofalo afirma que o delinquente é o inimigo interno na paz, como o soldado inimigo o é na guerra; prefere a pena de morte à prisão perpétua, porque é mais piedosa e elimina o risco de fuga; afirma que há povos degenerados que cumprem no plano internacional o mesmo papel que os criminosos natos desempenham no nacional, e muitos outros absurdos eu são bem úteis. Para isso, misturou Spencer com Platão e fundamentou sua teoria bizarra.
É bastante óbvio que o positivismo criminológico desembocava em um autoritarismo policial que correspondia a um elitismo biologicista. Não apenas legitimava o neocolonialismo, mas também a repressão das classes subordinadas no interior das metrópoles colinialistas. (pág. 92)
Como se pode ver, o positivismo restaurou claramente a estrutura do discurso inquisitorial: a criminologia substituiu a demonologia e explicava a “etiologia” do crime; o direito penal mostrava seus “sintomas” ou “manifestações” da mesma forma que as antigas “bruxarias”; o direito processual explicava a forma de persegui-lo sem muitas travas à atuação policial (inclusive sem delito); a pena neutralizava a periculosidade (sem menção da culpabilidade) e a criminalística permitia reconhecer as marcas do mal (os caracteres do “criminoso nato”). Tudo isso voltava a ser um discurso com estrutura compacta, alimentando com os disparates do novo tempo histórico. (pág. 93)
16. Os crimes da criminologia racista: campos de extermínio e eugenia
É certo que o racismo do neocolonialismo, com seu reducionismo biologista, desembocou na própria Europa, no maior estilo de “o feitiço virou contra o feiticeiro”, quando foi usado na Alemanha para legitimar um poder punitivo sem limitações. Era inevitável que acontecesse, e aconteceu. (pág. 95)
Os novos condutores nazistas, que tomaram em suas mãos o poder punitivo, usaram-no para homogeneizar a frente interna, inventando um novo Satã (inimigo), e elevando ao máximo o verticalismo social, com o objetivo de preparar a sociedade para a colonização de todo o planeta, seguindo a lógica de que a verticalização sempre anuncia uma colonização.
Por mais maluco ou irrealizável que tenha sido o projeto final, esse objetivo rompeu com a relativa prudência das classes tradicionais e, como o discurso positivista não se havia preocupado em fixar-lhe limites, continuou servindo de legitimação a um poder punitivo sem freios. (pág. 96)
O nacional-socialismo alemão não inventou ideologicamente quase nada sobre a questão criminal, e sim usou o que outros haviam inventado; tampouco teve um discurso criminológico original, pois, para encobrir seus massacres, valeu-se do que dominava havia muito tempo. (pág. 96)
O aniquilamento de todas as raças inferiores e incômodas é um corolário dessa lógica de seres humanos “perfeitos” terem o direito de subjugar os ”não perfeitos”. Tanto é assim que não vale a pena manter presos os fracassados internos que causam problemas aos aparatos mais aperfeiçoados. A eliminação dos que custam muitíssimo dinheiro nos manicômios e asilos não é menos coerente. Mais ainda. Explicam-se essas consequências quando esses recursos são considerados necessários para sustentar os perfeitos que oferecem sua vida nas trincheiras após a conquista do planeta. Consequentemente, fica claro que os campos de concentração, de trabalho forçado e de extermínio tenham sido legitimados com racionalizações provenientes do racismo positivista. (pág. 96) 
A isso se deveu a Declaração Universal de 1948 que anunciou a mudança de paradigma no plano mundial. Sem as atrocidades nazistas o discurso racista teria continuado a se espalhar pelo planeta e jamais se teria formulado semelhante declaração diante do concerto mundial. Seu próprio texto parece elementar e ingênuo, se não o contextualizarmos como uma mudança de paradigma que procurava enterrar o discurso do racismo até então dominante.
Além desse biologismo criminal, houve também na Europa, principalmente na Inglaterra, uma teoria que teve a sua vez: a eugenia, criado por Francis Galton, primo de Darwin, que falava sobre as possibilidades de “melhoramento da raça” a partir da escolha do parceiro certo ou com esterilização forçada, livrando-se a humanidade de todos os inferiores.
17. A criminologia do canto da faculdade de direito
Na Europa, os penalistas começaram a ficar nervosos. Isso porque gostavam cada vezmenos do estilo inquisitorial da criminologia que lhes dizia como deviam decidir e resolveram recuperar seu território por razões puramente acadêmicas sem que isso implicasse necessariamente consequências políticas. Não se queixavam do potencial genocida do positivismo biologista, mas não suportavam estar subordinados aos médicos. (pág. 101)
Por conseguinte, foram isolando os criminosos. Decidiram que o delito era definido pelos penalistas e os criminosos deviam ater-se a explicar as causas das condutas que os penalistas previamente identificavam como delitos. Quer dizer, não os expulsaram das faculdades de direito, deixando-os com seus crânios e frascos de resto sem formol mas em um canto. (pág. 102)
Não vem ao caso explicar que argumentos usaram, embora já tenhamos feito alguma referência ao mais elaborado: o neokantismo, que distinguia entre ciências naturais e culturais. Como o direito era uma ciência cultural, não podia contaminar-se com a outra, natural. A criminologia positivista biologista passava a ser uma ordem de conhecimentos servis ao direito penal, como um conhecimento auxiliar.
Com a inquisição e o positivismo, a criminologia mandava no direito penal; com o neokantismo, o direito penal subordinava a criminologia. Porém, a criminologia que ficava no canto continuava sendo exatamente a mesma do Reducionismo biologista e tão racista como antes. tratava-se de uma questão de prioridade acadêmica, na qual tudo ficava igual quanto ao conteúdo.
O que mais impactou a criminologia do canto foram as classificações segundo os biotipos, ou seja, voltou-se a correlacionar as características físicas com as psicológicas, ao estilo dos fisiognomistas. Algum autor mais moderno diz que era uma nova frenologia, só que Gall deduzia as características psicológicas dos volumes no crânio e agora pretendiam fazê-lo a partir dos glúteos, embora não necessitassem recorrer à palpação.
Houve várias classificações biotipológicas, Porém a mais difundida foi a alemã de Ernst Kretschmer, que em seu livro “Korperbau und Charakter” Estabelecia 5 biotipos: leptossómico, atlético, pícnico, displásico e misto. em qualquer esquina de Buenos Aires se conhecem com outros nomes: magro, sarado, gordo, urso e yeti. (pág. 103)
As profundas consequências criminológicas indicam que os magros costumam ser ladrões; os atléticos, homicidas; e os gordos, farçantes; os outros 2 não se sabe bem. Creio que ninguém imagina um obeso ousado, escorregando por uma janela estreita. (pág. 103)
Nesse período do pré-guerra houve uma variante no interior da tese biologista que é necessário destacar por causa de suas consequências diferentes. Por um lado, havia a posição genética, assumida pelo nazismo, que, como não dava outra solução senão impedir a reprodução, deduzia a necessidade de matar todos os inferiores incluindo as crianças. Por outro, estava a tese da Transmissão dos caracteres adquiridos de Lamarck, cuja consequência era que as crianças deviam ser colocadas sob os cuidados das famílias saudáveis. Esta última foi a que predominou na ditadura franquista inspirando os criminosos contra a humanidade em nosso país. (pág. 103/104)
18. A agonia da criminologia do canto
Essa criminologia do canto entrou em crise depois da guerra. Embora desde muito antes ninguém sustentasse a tese lombrosiana do criminoso nato, até o final da guerra a criminologia do canto conservava pela biologia um interesse destacado, seja pelo tema debilidades, seja pelo tema taras, pelo tema conformação etc. Porém, a partir do pós-guerra, ao rechaçar o racismo e o reducionismo biologista, a criminologia, embora continuasse sendo etiológica, deixava de considerar o delinquente uma variável do ser humano e, por conseguinte, perdia seu objeto diferenciado e natural, seu bicho diferente. Esta criminologia etiológica do canto se foi esvanecendo e terminou por derreter-se nas contradições de sua plurifatorialidade. (pág. 104)
Importante ressaltar que sempre houve pessoas que nadaram contra a maré, vozes prudentes que se fizeram ouvir, como a da criminóloga feminista espanhola Concepción Arenal. Contemporâneos de Lombroso, autores como Turatti e Vaccaro rechaçavam o biologismo. Alfredo Niceforo, não obstante ser um etiologista, deu-se conta perfeitamente de que os pretensos signos biológicos eram os da miséria. O holandês Willen Bonger escreveu o primeiro ensaio de criminologia marxista em princípios do século XX e seguiu essa linha até que se suicidou, no dia em que os nazistas ocuparam a Holanda. (pág. 105)
19. O parto sociológico
A agonia da criminologia do canto da faculdade de direito estava indicando que a hegemonia do discurso criminológico logo deixaria de estar nas mãos de médicos e de advogados formados por estes, para passar a outra corporação de especialistas que, em outras latitudes, já vinha, há muito tempo, trabalhando a questão criminal. Começava a era dos sociólogos, que nos Estados Unidos, algumas décadas antes, havia começado a discutir e investigar as coisas de uma perspectiva diferente. Eles anunciaram a direção que haveria de conduzir as colocações atuais.
A sociologia veio observando os fenômenos a partir do plano social, e foi a partir da análise da questão criminal que essa nova ciência foi ganhando forma e terminou obtendo patente académica.
Primeiro, Adolph Quetelet e André-Michel Guerry chamaram a atenção para as regularidades na frequência dos homicídios e dos suicídios. Na mesma época surgiu Augusto Comte, adepto à teoria organicista social, que teve como grande mérito ter dado impulso a uma ciência da sociedade livre do lastro religioso, apesar de ter ideias reacionárias. (págs. 109-110)
20. Os verdadeiros pais fundadores
A rigor, a criminologia e a sociologia nasceram gêmeas, só que a criminologia permaneceu presa ao racismo e ao reducionismo biologista de Spencer, desintegrando-se paulatinamente A partir da crise dessas lamentáveis bases ideológicas, enquanto na sociologia, as ideas de Comte, talvez por serem reacionárias e insólitas, abriram um amplo espaço de discussão e análise. (pág. 110)
No final do séc. XIX e início do séc. XX, surgiram sociólogos que passaram a pensar mais a sério, como os franceses Emile Durkheim e Gabriel Tarde e os alemães Max Weber e Georg Simmel.
Durkheim e Max Weber foram os pioneiros da sociologia funcionalista e sistêmica, enquanto que Tarde e Simmel abriram o caminho do que haveria de ser o interacionismo.
Durkheim pensava que o delito cumpria a função social positiva de provocar uma recusa e, com isso, reforçar a coesão da sociedade. Em outras palavras, para Durkheim não era positivo que alguém esquartejasse a avó, mas sim a reação social de coesão que esse crime provocava. Dessa forma, ele despatologizava o delito, o considerava normal na sociedade. (pág. 111)
Cabe frisar que, a essa época, não se podia evitar Karl Marx, muito embora não tenha sido sociólogo e não tenha tratado da questão criminal senão de modo muito tangencial. Há um artigo publicado na Gazeta Renana, em 1842, no qual ele critica a penalização do furto de lenha, e um parágrafo na Teoria da mais-valia, em que ironiza acerca da necessidade dos delinquente. Nesse último caso, ele parece um funcionalista, mas coloca algo real: se os delinquentes não existissem, teriam de ser inventados. Com efeito, ainda que Marx não o tenha dito, se deixarmos voar a imaginação e pensarmos em uma fantasmagórica greve geral de delinquentes, veremos que o sistema todo seria derrubado: os seguros, os bancos, as polícias, as alfândegas, os escritórios que tratam dos impostos etc. se tornariam inúteis. (pág. 112)
A criminologia marxista, como veremos mais adiante, não se apoia nas escassíssimas referências de Marx ao tema, mas sim na aplicação que os criminólogos marxistas fizeram das categorias de análise dele.
21. A criminologia sociológica dos estados unidos
Como a I Guerra Mundial não atingiu os EUA, este começou a viver grande crescimento econômico e também a receber diversos emigrantes europeus. Também nessa época houve uma reafirmação do puritanismoestadunidense e a proibição da venda do álcool em território nacional. Com isso, diversos problemas sociais foram surgindo, o que chamou a atenção dos sociólogos dos EUA.
Foi nesse clima que a questão criminal começou a ser estudada sociologicamente, a trabalhar com a investigação de campo, a perguntar o que condiciona o delito na sociedade. Desse modo, com a passagem do primado da sociologia da Europa para os Estados Unidos teve início uma nova etapa da criminologia. Não obstante, a criminologia se arrastará ainda durante décadas em uma falha fundamental: continuará se perguntando pelo delito e deixará de lado o funcionamento do poder punitivo. Se bem que seja inevitável que quem pergunte sobre a etiologia social do delito em algum momento se depare com o próprio aparato punitivo como reprodutor de boa parte do fenômeno, esse era um caminho que ainda havia de ser trilhado. (pág. 115) 
Além de sepultar carga de racismo manifesto de seu antecessor, a criminologia sociológica encarou o problema pela via adequada e foi o passo necessário para chegar ao que hoje parece quase evidente: não se pode explicar o delito sem analisar o aparato de poder que decide o que define e o que reprime como delito, muito embora esses sociólogos tenham continuado a se perguntar, de 1920 a 1970, pela eitologia do crime. (pág. 116)
Nessa busca por causas, fatores, correlações ou como se queira chamar, eles se dividiram, concentrando sua atenção em cinco diferentes fontes: 1) na desorganização social; 2) na associação diferencial; 3) no controle; 4) na tensão; e 5) no conflito. Com isso, abriram-se cinco grandes correntes nessa etapa da criminologia sociológica, muito presentes no senso comum, inclusive.
Quando escutamos que a entrada/inclusão de pessoas negras desorganizaram a cidade, isso é a essência da teoria ecológica da Escola de Chicago. Quando escutamos que o delito juvenil acontece por falta de educação, isso é teoria do controle. Quando ouvimos que a cultura do delito se forma na favela, onde há narcotraficantes e delinquentes, isso é a teoria da associação diferencial. Quando se denuncia que a TV mostra riquezas fáceis, êxitos súbitos e sem esforço, oferece automóveis de luxo que a grande maioria das pessoas não podem adquirir, esta é a essência da teoria da tensão. Por último, quando se abserva que reina um individualismo em que cada um atira para seu lado, que todos são grupos de interesses, que se chocam e que matam entre si, isso é a teoria do conflito. (pág. 116/117)
Essas teorias serviram para enxergar uma possibilidade de a sociedade avançar, de remover o cerne gerador da criminalidade e, assim, superar as causas do delito. Esse caminho foi ao encontro do Estado social. Diferente do que seria o Estado policial, que buscaria resolver o problema da criminalidade não enxergando essas suas causas, mas apenas lançando mão do poder vertical que lhe foi aduzido. Essa passou a ser a grande questão: qual desses modelos de Estado escolher?
22. desorganização, associação diferencial e controle
Com o crescimento desorganizado das cidades, a vida cada vez mais urbana e o êxodo rural, vieram os problemas sociais. Chicago, nos EUA, foi uma cidade que, nas primeiras décadas do século passado, passou de 4 mil para 3 milhões de habitantes em um século. (pág. 119)
Charles Cooley professor de Michigan, enxergou nesse fenômeno desorganizacional alguns conceitos, como a distinção entre grupos primários e secundários. Grupo primário seria a família e a comunidade. Grupo secundário as instituições como escolas.
A figura mais destacada da primeira Escola de Chicago foi William I. Thomas que elaborou o chamado Teorema de Thomas, segundo o qual se os homens definem as situações como reais, suas consequências são reais. Isso tem uma imensa validade em todas as ordens sociais: pouco importa sua frequência ou gravidade, mas se se afirma que são altas se reclamará mais repressão, os políticos concordarão com isso e a realidade repressiva será como se a gravidade fosse real.
Ernest Burgess foi um dos expoentes da Escola de Chicago. Burgess dividiu a cidade em cinco zonas concêntricas: I (a central, com atividade comercial intensa), II (o círculo seguinte tende a ser invadido pelo anterior e por isso as moradias são precárias e ocupadas pelos recém-chegados), III (a zona ocupada pelos operários que fogem da anterior), IV (a residencial) e V (a dos subúrbios ou comutação).
Ele assinalava que a zona de desorganização permanente era a II, devido à contínua invasão dos imigrantes que logo passavam à III. Não encontrava diferenças étnicas, pois a transferência para a III não trazia consigo a criminalidade.
No geral a escola de Chicago representou um notável progresso em particular por seu antirracismo e por inaugurar uma sociologia criminal urbana muito mais razoável. É claro que teve limitações importantes, uma vez que a criminalidade que observava era só a dos pobres e a zonificação de Burgess é própria de uma sociedade muito dinâmica, em crescimento permanente, mas não poderia explicar os fenômenos de zonas precárias das grandes concentrações urbanas da atualidade. 
Por outro lado, a maior criminalização dos jovens de sua zona II não leva em conta que esta se achava sob maior controle policial (os recém-chegados são sempre suspeitos) e a precariedade habitacional expõem mais a criminalização (os jovens de classe média não têm necessidade de fumar maconha fora de casa). Pág. 121)
Erwin Sutherland, Professor da universidade de Indiana, opôs-se à tese chicaguiana da desorganização, afirmando que não era isso e sim que se tratava de uma organização diferente. A ideia central de Sutherland era que o delito é uma conduta aprendida e que se reproduz, como qualquer ensinamento, por efeito de contatos com definições favoráveis e da aprendizagem dos métodos. (pág. 122)
Sutherland introduziu sua tese, a partir do princípio da associação diferencial, dizendo o seguinte: Uma pessoa se torna delinquente por efeito de uma excesso de definições favoráveis à violação da lei, que predominam sobre as definições desfavoráveis a essa violação. Com isso, ele pretendia explicar a criminalidade de forma mais ampla do que a Ecola de Chicago, porque os de Chicago explicavam apenas os delitos dos pobres, ao passo que Sutherland deixou claro que a criminalidade perpassa toda a escala social e que há tantos delitos de pobres como de ricos e poderosos. Assim, a única cara visível dos prisioneiros deixa de ser a dos delinquentes. Em 1949, Sutherland publicou um estudo sobre o crime do colarinho branco (White Collar Crime) que se tornou um clássico da criminologia e cuja dinâmica não era antes compreendida. (pág. 123)
Se bem que Sutherland Não chegou a incorporar ao poder punitivo à criminologia, deu um passo fundamental e deixou a questão no limite, pois o delito do colarinho branco (grandes delitos contra o patrimônio, quebras fraudulentas etc.) deixava a descoberto a seletividade da punição. era demasiado claro que os poderosos raramente iam para a cadeia.
A associação diferencial levou, de imediato, outros sociólogos a pensar que não eram o bairro que causava a delinquência dos pobres e nem o club que causava a dos ricos, mas sim que havia outros agrupamentos que treinavam e, estudando as gangues ou os bandos, Cloward e Ohlin afirmaram, nos anos seguintes, que se deviam à formação de subculturas. Segundo eles, os que têm menos oportunidades sociais se agrupam e se submetem a uma aprendizagem diferencial. Dito mais claramente, As condições sociais desfavoráveis levariam à marginalização e esta favoreceria os agrupamentos de semelhantes com definições favoráveis ao delito, ou seja, uma variável cultural ou subcultura.
Esta teoria subcultural pressupõe a existência de uma cultura dominante, o que não é simples em sociedades plurais e menos ainda quando as condições sociais desfavoráveis são as da maioria, como em muitíssimos países periféricos. (pág. 124)
Em 1955, Albert K. Cohen expôs uma nova teoria da subcultura criminal afirmando que as crianças e jovensdos estratos desfavorecidos, como não podiam ajustar sua conduta a cultura de classe média que lhes ensinada nas era escolas, reagiam, rechaçando-a e invertendo os valores da classe média. Cabe observar que esta tese negava toda a criatividade valorativa às classes mais desfavorecidas, pois se limitava a inverter os valores da classe média. (pág. 124)
Essas teorias sub culturais receberam uma resposta crítica por parte de 2 sociólogos: Gresham Sykes e David Matza, em 1957. A tese central de Sykes e Matza É que os jovens delinquentes não negam nem invertem os valores dominantes, e sim aprender a neutralizá-los. Seria A consequência de recebeu um excesso de definições que ampliam, de modo inadmissível, as causas de justificação e de se livrar da culpa. Não se trata de que eles racionalizam atos perversos, por que a racionalização é posterior ao fato, ocorre quando eu digo uma mentira e depois tento me justificar. Não, as técnicas de neutralização são anteriores ao ato, são algo que se aprende antes e permitem realizar o ato na convicção de que se está justificado ou não se é culpado. 
Sykes e Matza revelam os seguintes cinco tipo de técnicas de neutralização:
1. Negação da própria responsabilidade (são as circunstâncias que me fazem assim, eu não escolhi, minha mãe é castradora, meu velho é rígido, a sociedade me faz assim );
2. Negação do dano (não me compadeço de ninguém, têm muito mais grana, não é tão grave, havia ofendido a minha velha);
3. Negação da vítima (foi ele que me agrediu, eu só fiz me defender, são uns negros, uns maricas, uns favelados etc.)
4. Condenação dos condenadores (a polícia é corrupta, na escola me tratam mal, meu velho é intolerante, os juízes são uns hipócritas);
5. Apelo a lealdades superiores (não posso deixar os companheiros sozinhos, não posso me afastar deles agora, não posso faltar aos amigos, tenho que atender aos compinchas).
23. Sistêmicos e conflitivistas
Abordemos melhor agora as teorias da tensão e do conflito. As teses sistêmicas concebem a delinquência como resultado de tensões provocadas dentro de um sistema, As conflitivistas a explicam como resultado do permanente conflito entre grupos sociais.
O sociólogo sistêmico mais interessante para a criminologia foi Robert K. Merton com sua obra Social Theory and Social Structure de 1949. Merton explica o delito como resultado de uma desproporção entre as metas sociais e os meios para alcançá-las são poucos e, por conseguinte, gera-se uma tensão porque nem todos podem chegar a ela. É como um concurso: à medida que as provas vão se sucedendo, mais concorrentes vão sendo excluídos, até que apenas uns poucos chegam ao final. Ele denomina essa desproporção de anomia (palavra tomada de Durkheim, embora para este significasse outra coisa).
A tese de Merton merece críticas, como a de não conseguir explicar o delito do colarinho branco, de não levar em conta, aparentemente, a delinquência grupal e, sobretudo, pela dificuldade em definir as metas comuns em sociedades plurais. De qualquer maneira, porém, não se pode ignorar que trouxe uma série de conceitos que até hoje iluminam a criminologia.
Os conflitivistas são os que partem da ideia oposta de sociedade, concebendo-a como resultado dos conflitos entre diferentes grupos que em algumas ocasiões encontram algum equilíbrio precário, mas que nunca constitui um sistema. Seus antecedentes remontam a Marx e a Simmel, mas a primeira expressão moderna do conflitivismo criminológico foi a do holandês Willen Bonger, que, no começo do século passado, rechaçava todas as teses que subestimavam os fatores sociais do delito, enfrentando o positivismo e em particular Garofalo.
Ele afirmava, de uma perspectiva marxista, que o sistema capitalista gerava miséria por inocular egoísmo em todas as relações e por isso era o único criador do delito, tanto nas classes despossuídas quanto na burguesia. Negava, desse modo, o pretenso caráter socialista das teses de Ferri. Rechaçou inteiramente o biologismo criminológico e combateu frontalmente a esterilização e o racismo, o que constitui um mérito que hoje ninguém lhe pode negar.
Afirmava que o delito resulta das condições de sobrevivência dos trabalhadores obrigados a competir entre si, ressaltando algo sobre o qual se costuma passar por cima, inclusive por criminólogos progressesitas: a pobreza não gera mecanicamente o delito de rua, mas sim, quando se combina com o individualismo, o racismo, as necessidades artificiais e o machismo.
Se bem que Bonger tenha sido considerado durante muitos anos o expoente da criminologia marxista, o certo é que continuava fazendo criminologia etiológica e não chegava a criticar o próprio poder criminalizador, razão pela qual os criminólogos marxistas mais modernos o consideram um marxista formal.
24. A prateleira caiu!
Até esse momento, ninguém havia analisado o exercício do poder repressivo. Mas chegou um momento em que não dava mais para ignorá-lo. Foi então que a prateleira caiu, ou seja, houve uma mudança de paradigma no modo de pensar e de fazer a criminologia.
Desse modo, abriu-se uma nova etapa na criminologia acadêmica que, por incorporar o poder punitivo, é chamada de criminologia da reação social, embora também possa ser chamada de criminologia crítica. Dentro dessa nova criminologia, podem distinguir-se duas correntes, às quais se convencionou chamar de liberal e radical, respectivamente. (pág. 134)
A crítica ao sistema penal é uma crítica ao poder e, portanto, pode se situar no nível do sistema penal (ou seja, do aparato repressivo) ou elevar-se até diferentes níveis do poder social. Posso analisar e criticar o que a polícia, os juízes, os agente penitenciários, os meios de comunicação etc. fazem, ou ir mais além e analisar sua funcionalidade em relação a todo o poder social, econômico, político etc. e chegar a uma crítica do poder em geral. A crítica mais contundente foi chamada de radical em contraponto à crítica mais moderada denominada liberal.
Nos anos 1970, a discussão entre as duas correntes da criminologia crítica era forte, mas nas últimas décadas, o giro brutalmente regressivo da repressão penal, especialmente nos Estados Unidos, fez com que elas cerrassem fileiras e o enfrentamento perdeu força. Os radicais, geralmente baseados no marxismo não institucionalizado (como a Escola de Frankfurt), afirmavam que os liberais eram reformistas, se deixavam ficar no meio do caminho e que era preciso se chegar a uma transformação mais profunda de toda a sociedade. (pág. 135)
A questão é que a criminologia radical, por elevar sua crítica a essas alturas, chegar a se tornar impotente em certo plano, porque há de sempre esperar pela grande mudança, a revolução, para atirar tudo pela janela e a própria janela também, de modo que quem exerce o poder punitivo teme muito menos essa corrente do que a liberal. Quando perceberam que a criminologia radical prescindia de uma reconstrução brutal do Estado policial, essas posições tiveram de ceder à prudência. Por outra parte, a criminologia liberal tampouco era tão ineficaz quanto se pensava.
Com efeito, a criminologia liberal-reformista bastava para deslegitimar o poder punitivo de forma irreversível. Essa criminologia mostrou que o poder punitivo é altamente seletivo, que não respeita a igualdade, que se fundamenta no preconceito de unidade valorativa social, que não persegue atos e sim pessoas, que seleciona conforme estereótipos etc. Por certo que isso não é nada inofensivo para o poder, porque embora a crítica não chegue a níveis mais altos, deslegitima um instrumento necessário para seu exercício; não arremessa a janela, mas a deixa bastante desmantelada. (pág. 136)
A criminologia da reação social chegou à América Latina nos anos 1970 e foi difundida por duas distinguidas criminólogas venezuelanas: Lola Aniyar de Castro e Rosa del Olmo. 
25. A criminologia crítica liberal e a psicologia social
A criminologia liberal não estava isolada da sociologia geral; antes, procedia diretamente dela e, em particular, de duas grandes influências que ela havia

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