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Vida e obra WILLIAM SHAKESPEARE nasceu em Stratford-upon-Avon, Inglaterra, em 23 de abril de 1564, filho de John Shakespeare e Mary Arden. John Shakespeare era um rico comerciante, além de ter ocupado vários cargos da administração da cidade. Mary Arden era oriunda de uma família cultivada. Pouco se sabe da infância e da juventude de Shakespeare, mas imagina-se que tenha frequentado a escola primária King Edward VI, onde teria aprendido latim e literatura. Em dezembro de 1582, Shakespeare casou-se com Ann Hathaway, filha de um fazendeiro das redondezas. Tiveram três filhos. A partir de 1592, os dados biográficos são mais abundantes. Em março, estreou no Rose Theatre de Londres uma peça chamada Harry the Sixth, de muito sucesso, que foi provavelmente a primeira parte de Henry VI. Em 1593, Shakespeare publicou seu poema Venus and Adonis e, no ano seguinte, o poema The Rape of Lucrece. Acredita-se que, nessa época, Shakespeare já era um dramaturgo (e um ator, já que os dramaturgos na sua maior parte também participavam da encenação de suas peças) de sucesso. Em 1594, após um período de poucas montagens em Londres, devido à peste, Shakespeare juntou- se à trupe de Lord Chamberlain. Os dois mais célebres dramaturgos do período, Christopher Marlowe (1564-1593) e Thomas Kyd (1558-1594), respectivamente autores de Tamburlaine, the Jew of Malta (Tamburlaine, o judeu de Malta) e Spanish Tragedy (Tragédia espanhola), morreram por esta época, e Shakespeare encontrava-se pela primeira vez sem rival. Os teatros de madeira elisabetanos eram construções simples, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a plateia, de pé. Ao fundo, havia duas portas, pelas quais atores entravam e saíam. Acima, uma sacada, que era usada quando tornava-se necessário mostrar uma cena que se passasse em uma ambientação secundária. Não havia cenário, o que abria toda uma gama de versáteis possibilidades, já que, sem cortina, a peça começava quando entrava o primeiro ator e terminava à saída do último, e simples objetos e peças de vestuário desempenhavam importantes funções para localizar a história. As ações se passavam muito rápido. Devido à proximidade com o público, trejeitos e expressões dos atores (todos homens) podiam ser facilmente apreciados. As companhias teatrais eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativas: todos recebiam participações nos lucros. Escrevia-se, portanto, tendo em mente cada integrante da companhia. Em 1594, Shakespeare já havia escrito as três partes de Henry VI, Richard III, Titus Andronicus, The Two Gentleman of Verona (Dois cavalheiros de Verona), Love’s Labour’s Lost (Trabalhos de amor perdidos), The Comedy of Errors (A comédia dos erros) e The Taming of the Shrew (A megera domada). Em 1596, morreu o único filho homem de Shakespeare, Hamnet. Logo em seguida, ele escreveu a primeira das suas peças mais famosas, Romeo and Juliet, à qual seguiram-se A Midsummer’s Night Dream (Sonho de uma noite de verão), Richard II e The Merchant of Venice (O mercador de Veneza). Henry IV, na qual aparece Falstaff, seu mais famoso personagem cômico, foi escrita entre 1597- 1598. No Natal de 1598, a companhia construiu uma nova casa de espetáculos na margem sul do Tâmisa. Os custos foram divididos pelos diretores da companhia, entre os quais Shakespeare, que provavelmente já tinha alguma fortuna. Nascia o Globe Theatre. Também é de 1598 o reconhecimento de Shakespeare como o mais importante dramaturgo de língua inglesa: suas peças, além de atraírem milhares de espectadores para os teatros de madeira, eram impressas e vendidas sob a forma de livro – às vezes até mesmo pirateados. Seguiram-se Henry V (Henrique V), As You Like It (Como gostais), Julius Caesar (Júlio César) – a primeira das suas tragédias da maturidade –, Troilus and Cressida, The Merry Wives of Windsor (As alegres matronas de Windsor), Hamlet e Twelfth Night (Noite de Reis). Shakespeare escreveu a maior parte dos papéis principais de suas tragédias para Richard Burbage, sócio e ator, que primeiro se destacou com Richard III. Em março de 1603, morreu a rainha Elisabeth. A companhia havia encenado diversas peças para ela, mas seu sucessor, o rei James, contratou-a em caráter permanente, e ela tornou-se conhecida como King’s Men – Homens do Rei. Eles encenaram diversas vezes na corte e prosperaram financeiramente. Seguiram-se All’s Well that Ends Well (Bem está o que bem acaba) e Measure for Measure (Medida por medida) – suas comédias mais sombrias –, Othello, Macbeth, King Lear, Anthony and Cleopatra e Coriolanus. A partir de 1601, Shakespeare escreveu menos. Em 1608, a King’s Men comprou uma segunda casa de espetáculos, um teatro privado em Blackfriars. Nesses teatros privados, as peças eram encenadas em ambientes fechados, o ingresso custava mais do que nas casas públicas de espetáculos, e o público, consequentemente, era mais seleto. Parece ter sido nessa época que Shakespeare aposentou-se dos palcos: seu nome não aparece nas listas de atores a partir de 1607. Voltou a viver em Stratford, onde era considerado um dos mais ilustres cidadãos. Escreveu então quatro tragicomédias, subgênero que começava a ganhar espaço: Péricles, Cymbeline, The Winter’s Tale (Conto de inverno) e The Tempest (A tempestade), sendo que esta última foi encenada na corte em 1611. Shakespeare morreu em Stratford em 23 de abril de 1616. Foi enterrado na parte da igreja reservada ao clero. Escreveu ao todo 38 peças, 154 sonetos e uma variedade de outros poemas. Suas peças destacam-se pela grandeza poética da linguagem, pela profundidade filosófica e pela complexa caracterização dos personagens. É considerado unanimemente um dos mais importantes autores de todos os tempos. PERSONAGENS DA PEÇA TESEU, duque de Atenas HIPÓLITA, rainha das amazonas, noiva de Teseu LISANDRO, jovens cortesãos, apaixonados por Hérmia DEMÉTRIO, jovens cortesãos, apaixonados por Hérmia HÉRMIA, apaixonada por Lisandro HELENA, apaixonada por Demétrio EGEU, o pai de Hérmia FILÓSTRATO, mestre de festividades de Teseu OBERON, rei das fadas e dos duendes TITÂNIA, rainha das fadas e dos duendes Uma Fada a serviço de Titânia BUTE, ou Robin Bom Companheiro, um duende endiabrado, bufão e ajudante de ordens de Oberon FLOR DE ERVILHA, duendes a serviço de Titânia TEIA DE ARANHA, duendes a serviço de Titânia MARIPOSINHA, duendes a serviço de Titânia SEMENTE DE MOSTARDA, duendes a serviço de Titânia PEDRO CUNHA, um carpinteiro; Prólogo (no Interlúdio) NANDO FUNDILHO, um tecelão; Píramo (no Interlúdio) CHICO FLAUTA, um conserta-foles; Tisbe (no Interlúdio) TONHO CHALEIRA, um funileiro; Muro (no Interlúdio) JUSTINHO, um marceneiro; Leão (no Interlúdio) BETO FAMÉLICO, um alfaiate; Luar (no Interlúdio) Outras fadas e outros duendes a serviço de Oberon e Titânia Lordes e Serviçais de Teseu e Hipólita Cenário – Atenas e um bosque nas cercanias de Atenas. SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO PRIMEIRO ATO CENA I Atenas. Um aposento no Palácio de Teseu. Entram Teseu, Hipólita, Filóstrato e Serviçais. TESEU – Agora, graciosa Hipólita, o momento de nossas núpcias vem de nós aproximando-se, a passos acelerados. Quatro gloriosos dias, e teremos uma mudança de lua. Mas, ah, parece-me que esta lua, agora antiga, demora-se tanto a minguar! Ela vai protelando os meus desejos, como madrasta ou nobre viúva que faz mirrar e murchar e secar os rendimentos de um mancebo herdeiro. HIPÓLITA – Quatro dias vão rapidamente submergir em quatro noites, e quatro noites farão as horas esvanecer rapidamente em sonhos, e então a lua, como um arco prateado recém-arqueado no céu, contemplará a noite da celebração de nossas bodas. TESEU – Vá, Filóstrato, incite a juventude ateniense a participar dos festejos. Acorde o atrevido e ágil espírito do júbilo, expulse a melancolia daqui para os funerais. Essa pálida companhia não combina com nossa pompa. [Sai Filóstrato.] Hipólita, eu te cortejei com minha espada, e conquistei teu amor causando-te ferimentos, mas te desposareiem um outro tom, com pompa, com triunfo e com folia. Entram Egeu, Hérmia, Lisandro e Demétrio. EGEU – Feliz seja Teseu, nosso renomado duque! TESEU – Obrigado, meu bom Egeu. Que novidades trazes contigo? EGEU – Cheio de vergonha venho eu, com queixas contra minha prole, minha filha Hérmia. – Apresente-se, Demétrio. – Meu nobre senhor, esse homem tem o meu consentimento para com ela casar-se. – Apresente-se, Lisandro. – E, gracioso duque, esse enfeitiçou o coração de minha criança. – Tu, tu, Lisandro, tu a presenteaste com rimas, e trocaste lembrancinhas de amor com minha filha. Tu à luz do luar cantaste, ao pé de sua janela, com voz dissimulada, versos de dissimulado amor, e roubaste para ti os afetos de sua fantasia com braceletes tecidos de teus cabelos, anéis, bugigangas, palavras imaginosas, truques, doces baratos, ramalhetes de florzinhas, gulodices, todos mensageiros de muita força e prevalência sobre uma juventude ainda não calejada. Com astúcia surrupiaste o coração de minha filha. Transformaste sua obediência, a mim devida, em áspera teimosia. – E, gracioso duque, se o caso for de ela não consentir em casar-se com Demétrio aqui, diante de Sua Graça, eu vos peço: concedei-me o antigo privilégio de Atenas. – Como ela é minha, dela posso dispor. E dela disporei, dando-a a esse cavalheiro ou à sua morte, de acordo com nossas leis, especificamente designadas para tais casos e das quais não se pode recorrer. TESEU – O que diz a senhorita, Hérmia? Esteja avisada, linda donzela: para você, seu pai deve ser como um deus, o deus que compôs suas formosuras. Sim, e o deus de quem você é nada mais que uma forma em cera composta, por ele gravada, e em seu poder de pai está deixar a figura como está ou desfigurá-la. Demétrio é um valoroso cavalheiro. HÉRMIA – Lisandro também o é. TESEU – Valoroso cavalheiro, na pessoa dele, ele é. Mas, numa questão desta natureza, faltando a aprovação do senhor seu pai, o outro deve ser considerado de maior mérito. HÉRMIA – Gostaria eu que meu pai enxergasse com os meus olhos. TESEU – Pelo contrário, são os seus olhos que devem com o discernimento de seu pai enxergar. HÉRMIA – Suplico à Sua Graça que me perdoe. Desconheço que forças me fazem audaciosa, e tampouco sei por que isso diz respeito à minha modéstia, estar aqui, em vossa presença, a advogar minhas ideias. Mas estou rogando a Sua Graça que me deixe conhecer o pior que pode abater-se sobre mim neste caso, se eu me recusar a desposar Demétrio. TESEU – Ou morre a senhorita a sua morte, ou abjura para sempre a sociedade dos homens. Portanto, formosa Hérmia, questione os seus desejos, tenha em mente a sua pouca idade, examine com cuidado seu temperamento e sua estirpe, o sangue que lateja em suas veias. Pese bem: se a senhorita não cede à escolha de seu pai, conseguirá suportar o hábito de freira? Para sempre engaiolada em claustro sombroso, vivendo a vida de estéril irmã sua vida inteira, cantando sufocantes hinos a uma lua fria, infrutífera. Três vezes abençoadas aquelas que assim controlam o seu sangue para empreenderem tal peregrinação de virgindades. Porém, mais mundanamente feliz é a rosa destilada que aquela que, murchando em seus castos espinhos, cresce, vive e morre em abençoada solteirice. HÉRMIA – Assim crescerei, assim viverei, e assim morrerei, milorde. Isso me é preferível a abrir mão da prerrogativa de minha virgindade em prol da autoridade desse cavalheiro, a cuja aliança indesejada minh’alma não consente em dar soberania. TESEU – Tire um tempinho para refletir e, quando entrar a lua nova (no dia em que selamos nosso amor, meu amor e eu, num laço eterno de companheirismo), nesse dia a senhorita prepare-se ou para morrer por desobediência às ordens de seu pai ou então para desposar Demétrio, como quer seu pai. Ou no altar de Diana vai a senhorita prometer para sempre austeridade e vida celibatária. DEMÉTRIO – Abranda-te, doce Hérmia. – E, Lisandro, cede o teu título inútil ao meu acertado direito. LISANDRO – Você tem o amor do pai dela, Demétrio. Deixe-me ter o amor de Hérmia. Você case-se com ele. EGEU – O irônico Lisandro! Verdade, ele tem o meu amor. E tudo que é meu, meu amor a ele entregará. E ela é minha. E todos os direitos que tenho sobre ela doo como herança a Demétrio. LISANDRO – Eu sou, milorde, tão bem-nascido quanto Demétrio, tenho tantos bens materiais quanto ele, e meu amor é maior que o dele. Minhas riquezas são, em todos os aspectos, tão bem aquinhoadas quanto as dele, se é que não levam vantagem. Mas, o que vale mais que todas essas bazófias juntas possam valer, sou amado pela linda Hérmia. Por que então não deveria eu exercer meu direito? Demétrio, e, pela cabeça de Demétrio, posso sustentar o que digo, fez amor com a filha de Nedar, Helena, e conquistou-lhe o coração. E ela, doce dama, baba-se por ele, pôs-se devotadamente doida de amor por ele, idolatra-o, esse homem maculado e inconstante. TESEU – Devo confessar que ouvi falar de tal coisa, e pensei em conversar com Demétrio sobre isso. Contudo, estando por demais ocupado com meus assuntos pessoais, disso me esqueci completamente. – Mas, Demétrio, venha. E venha você também, Egeu. Devem os dois acompanhar-me. Tenho algumas instruções a dar-lhes, em particular. – Quanto à senhorita, formosa Hérmia, veja que se fortifique a sua pessoa a fim de encaixar seus caprichos à vontade de seu pai. Do contrário, as leis de Atenas (e não há recurso que possa mitigá-las) exigem que você se entregue ou à sua morte, ou a um voto de castidade. – Vem, minha Hipólita. Como estás te sentindo, minha querida? – Demétrio e Egeu, vão andando. Preciso aproveitá-los em algum dos serviços em preparação para nossas núpcias, e trocar ideias com os dois sobre algo que lhes diz respeito de perto. EGEU – Por dever e por ser essa a nossa vontade, nós o seguimos, milorde. [Saem Teseu, Hipólita, Egeu, Demétrio e Séquito.] LISANDRO – Pois então, meu amor! Por que tens as faces tão pálidas? Como pode acontecer de as rosas desmaiarem tão rápido? HÉRMIA – Possivelmente por falta de chuva, coisa que eu poderia muito bem garantir-lhes com a tempestade de meus olhos. LISANDRO – Ai de mim! Em todas as histórias e romances que eu pudesse ter lido, que eu pudesse ter ouvido me contarem, a trajetória de um amor verdadeiro nunca transcorreu em caminhos suaves. Mas isso porque havia diferença de estirpes entre um e outro... HÉRMIA – Que cruz tão pesada! Muito superior para ser escravizado a um inferior! LISANDRO – Ou então era um amor erroneamente transplantado em função dos anos de vida de cada um... HÉRMIA – Quanta maldade do destino! Muito velho para comprometer-se com pessoa mais nova! LISANDRO – Ou então baseou-se na escolha de amigos... HÉRMIA – Que coisa mais diabólica! Escolher um amor pelo olhar de terceiros! LISANDRO – Ou, se havia uma compaixão no escolher! Guerra, morte ou doença sitiando aquele amor, tornando-o momentâneo como o som, veloz como uma sombra, curto como todos os sonhos, breve como um relâmpago na mais fuliginosa das noites, o relâmpago que, num ímpeto apaixonado, mostra céu e terra e, antes que um homem tenha a capacidade de dizer “Olha!”, devoram-no os beiços da escuridão. Com essa rapidez, o que era brilhante alcança a ruína. HÉRMIA – Mas, então, se amantes fiéis sempre foram traídos, isso é uma lei do destino. Assim sendo, ensinemos nós paciência a esta nossa provação, porque é de costume carregar essa cruz, tão devida ao amor como os pensamentos e sonhos e suspiros, desejos e lágrimas, todos acompanhantes, coitados, de nossa imaginação. LISANDRO – Argumento bem persuasivo; portanto, escuta-me, Hérmia: tenho uma tia, viúva dotada, de muitos proventos, e sem filhos. Tem ela uma casa distante sete léguas de Atenas. E refere-se ela a mim como seu filho único. Em sua casa, gentil Hérmia, posso casar-me contigo. E até a esse lugar não podem perseguir-nos as severas leis atenienses. Se tu me amas, então foge da casa de teu pai amanhã à noite. E, no bosque a uma légua da cidade, onde encontrei-te uma vez comHelena, a observar um amanhecer de maio, lá estarei, esperando por ti. HÉRMIA – Meu bom Lisandro! Juro-te, pelo arco mais forte de Cupido, por sua melhor seta de ponta dourada, pela simplicidade das pombas de Vênus, por tudo que faz as almas entrelaçarem-se, por tudo que faz os amores prosperarem, e pelo fogo em que ardeu a rainha de Cartago quando o falso troiano foi avistado partindo sob velas enfunadas... por todos os juramentos que os homens já quebraram em todos os tempos, porque muitos mais eles são do que contaram as mulheres ao longo dos tempos..., nesse exato lugar que me indicaste, amanhã estarei seguramente para contigo encontrar-me. LISANDRO – Cumpre tua promessa, amor. Olha, aí vem Helena. Entra Helena. HÉRMIA – Que Deus te acompanhe, Helena, tão linda! Para onde estás indo? HELENA – A mim estás chamando de linda? Pois essa palavra podes desdizer. Demétrio ama a beleza em ti. Ah, como é feliz a tua beleza! Teus olhos são estrelas-guia, e o doce ar em tua boca, mais melodioso que a cotovia aos ouvidos de um pastor quando o trigo aparece verdejante, quando surgem nos espinheiros os primeiros botões de flor. As enfermidades são contagiantes; mas, ah, contagiosa fosse a formosura, gostaria eu de contagiar-me de tuas palavras, linda Hérmia, antes de partir. Meus ouvidos deveriam infectar-se de tua voz, e meus olhos, dos teus olhos. Minha boca deveria contagiar-se da doce melodia de tua boca. Fosse meu o mundo, excluído dele Demétrio, do resto eu abriria mão, para que a ti fosse transferido. Ah, ensina-me, Hérmia, a parecer-me contigo, ensina- me com que artes tu balanças os movimentos do coração de Demétrio. HÉRMIA – Meu olhar te estranha, e, no entanto, sim, ele me ama. HELENA – Quisera eu que o estranhamento de teu olhar a meu sorriso ensinasse tais práticas. HÉRMIA – Eu lhe rogo pragas, e, ainda assim, ele me jura amor. HELENA – Tomara minhas preces pudessem incitar uma afeição assim. HÉRMIA – Quanto mais o detesto, mais ele vem atrás de mim. HELENA – Quanto mais o quero, mais ele me detesta. HÉRMIA – O desatino dele, Helena, não é culpa minha. HELENA – É culpa tão somente de tua beleza... Como eu queria que essa culpa fosse minha! HÉRMIA – Consola-te: ele não mais verá meu rosto. Lisandro e eu fugiremos daqui. Antes do momento em que avistei Lisandro, Atenas parecia-me ser o paraíso. Mas, então, por mais encantos que tenha o meu amor, ele conseguiu transformar o paraíso num inferno. LISANDRO – Hélen, a você nossos planos revelaremos: amanhã à noite, quando Febe contemplar o próprio rosto, prateado, no espelho das águas, decorando com pérolas liquefeitas a grama, de tantas folhas cortantes composta, naquela hora que sempre oculta os amantes em fuga pelos portões de Atenas, é quando pensamos partir. HÉRMIA – E na floresta, onde seguidas vezes tu e eu, sobre canteiros de pálidas prímulas, costumávamos nos deitar, aliviando nossos corações de seus doces segredos; lá, meu Lisandro e eu temos encontro marcado e, de lá, desviaremos nosso olhar para longe de Atenas, para buscar novos amigos e a companhia dos que agora nos são estranhos. Adeus, minha doce companheira de folguedos, reza por nós, e que te traga boa sorte o teu Demétrio. – Mantém tua palavra, Lisandro. Devemos deixar passar fome nossos olhos. Que careçam eles daquilo que alimenta os amantes, até amanhã na escuridão da meia-noite. [Sai Hérmia.] LISANDRO – Manterei minha palavra, Hérmia. – Helena, adeus. Que Demétrio adore você, tanto quanto você o adora. [Sai Lisandro.] HELENA – Como são felizes uns, muito mais que outros podem ser! Por toda a Atenas me acham tão linda quanto ela. Mas, e daí? Demétrio não pensa assim. Ele não quer saber daquilo que todos, menos ele, sabem. E, assim como ele está equivocado, ao adorar os olhos de Hérmia, estou eu igualmente equivocada, admirando nele as qualidades. Coisas baixas e vis, sem o menor valor, pode invertê-las o amor em caráter e dignidade. O Amor não enxerga com os olhos, e sim com a mente, e por isso pinta-se cego o Cupido alado. Tampouco a mente do Amor tem faro para qualquer discernimento. Com asinhas e sem olhos, representa a pressa da imprudência. Dizem, portanto, que o Amor é uma criança; porque, ao escolher, ele é tantas vezes enganado. Como meninos travessos numa brincadeira quebram as próprias promessas, assim o menino Amor comete perjúrio em todo canto. Pois, antes de Demétrio olhar nos olhos de Hérmia, ele fazia chover sobre mim juras de amor, promessas de que era meu e de mais ninguém. Quando essa chuva sentiu o calor por Hérmia desprendido, evaporou- se, e minhas lindas gotas de amor viraram fumaça. Vou contar a ele da fuga de sua linda Hérmia. Então irá ele à floresta, amanhã à noite, procurá-la; e, por essa informação, se eu receber um muito obrigado, isso terá me custado caro. Mas com isto espero ser recompensada por meu esforço: teremos nos visto, Demétrio e eu, indo e vindo da floresta. CENA II Atenas. A casa de Pedro Cunha. Entram Cunha, o carpinteiro; e Justinho, o marceneiro; e Fundilho, o tecelão; e Flauta, o conserta-foles; e Chaleira, o funileiro; e Famélico, o alfaiate. CUNHA – Nossa companhia está toda aqui? FUNDILHO – Penso que você deveria chamar todos um por um conjuntamente, de acordo com o documento. CUNHA – Aqui temos a lista dos nomes de cada homem considerado apto, e escolhidos em toda a Atenas, para representar os papéis do nosso interlúdio perante o Duque e a Duquesa no dia de suas núpcias à noite. FUNDILHO – Primeiro, meu bom Pedro Cunha, diga de que se trata a peça; depois, faça a leitura dos nomes dos atores; e, assim, vá chegando a alguma conclusão. CUNHA – Certamente. Nossa peça chama-se “A mais lamentável das comédias ou a morte cruelíssima de Píramo e Tisbe”. FUNDILHO – Uma excelente obra, posso assegurar, e divertida. Agora, meu bom Pedro Cunha, chame os seus atores pelos nomes de acordo com a lista. Mestres, acomodem-se. CUNHA – Apresentem-se à medida que eu for chamando. Nando Fundilho, o tecelão? FUNDILHO – A postos. Diga qual o meu papel, e prossiga. CUNHA – Você, Nando Fundilho, está escrito aqui no roteiro que será Píramo. FUNDILHO – Quem é Píramo? Um amante, ou um tirano? CUNHA – Um amante, que se mata de modo muito galante, por amor. FUNDILHO – Isso vai requerer algumas lágrimas para que seja bem interpretado no palco. Se eu fizer isso, a plateia que se cuide para não debulhar-se chorando por demais. Fabricarei tempestades, saberei lamentar-me até o ponto certo. Avante! ...e, no entanto, meu temperamento pede por um tirano. Eu me sairia esplendidamente representando Hércules, ou um papel que exigisse destratar todo mundo, esfolar uma criatura viva e disso me gabar, promover um quebra- quebra geral. As pedras pesadas, Tremores irados, Das portas das jaulas Abriram cadeados. Brilhou de mui longe O carro de Apolo; E pôs e dispôs Das Parcas bobocas. Isso sim, é grandioso. Agora, chame os nomes dos outros atores. Esse é o estilo de Hércules, o estilo de um tirano; um amante é coisa mais simpática, mais digna de pena. CUNHA – Chico Flauta, o conserta-foles? FLAUTA – Presente, Pedro Cunha. CUNHA – Flauta, você fica com o papel de Tisbe. FLAUTA – Quem é Tisbe? Um cavaleiro andante? CUNHA – É a dama por quem Píramo deve se apaixonar. FLAUTA – Não, pelo Deus que me guia, não me peça a mim para representar uma mulher. Está me nascendo a barba na cara. CUNHA – Não faz diferença; você vai representar Tisbe com uma máscara, feminina proteção contra o sol. E vai poder falar numa voz mais ou menos aguda, como quiser. FUNDILHO – Se posso esconder meu rosto, deixe comigo o papel de Tisbe também. Vou falar numa vozinha monstruosamente aguda: – “Tisbezinha, Tisbezinha!” – “Ah, Píramo, meu amado querido! Sou tua Tisbe querida, tua doce dama!” CUNHA – Não, não, você tem de representar Píramo; e, Flauta, você fica com o papel de Tisbe. FUNDILHO – Bem, prossiga. CUNHA – Beto Famélico, o alfaiate? FAMÉLICO – Presente, Pedro Cunha. CUNHA – Beto Famélico, você fica com o papel da mãe de Tisbe. TonhoChaleira, o funileiro? CHALEIRA – Presente, Pedro Cunha. CUNHA – Você fica com o pai de Píramo. Eu representarei o pai de Tisbe. Justinho, o marceneiro, você fica com o papel do leão. E espero ter aqui o elenco de uma peça. JUSTINHO – Você já tem as falas do leão escritas? Se for assim, eu lhe peço encarecidamente que as entregue a mim, porque eu sou lento para decorar. CUNHA – Você pode dizer suas falas espontaneamente, pois não é nada mais que rugir. FUNDILHO – Deixe-me fazer o papel do leão também. Rugirei de tal modo que farei bem ao coração de qualquer homem que me ouça. Rugirei de tal modo que farei com que o Duque diga: “Façam-no rugir de novo; façam-no rugir de novo!” CUNHA – Mas se você rugir de modo pavoroso, assustará a Duquesa e as damas de tal modo que elas vão gritar. E isso seria o suficiente para que nos enforcassem a todos. TODOS – Isso nos enforcaria a nós todos, todos filhos de nossas mães. FUNDILHO – Eu lhes garanto, amigos, que, se vocês assustarem as damas a ponto de fazê-las gritar, elas estariam em seu bom juízo pedindo a forca para nós. Mas eu vou agravar minha voz, tanto que rugirei para vocês tão de mansinho como a mais inocente das pombinhas, um cordeiro da paz. Rugirei para vocês como se o leão fosse um rouxinol. CUNHA – Você não pode representar outro papel que não o de Píramo, pois Píramo é um homem de feições bonitas, um homem homem, viril, uma bela figura num dia de verão, um cavalheiro adorável. Portanto, você por certo precisa representar Píramo. FUNDILHO – Bem, aceito a incumbência. Com que tipo de barba eu o representarei melhor? CUNHA – Ora, a barba que você quiser. FUNDILHO – Interpretarei Píramo com a sua barba num tom amarelo-palha... ou amarelo-queimado... ou de um ruivo bem avermelhado... ou da cor de uma moeda de ouro dos franceses: o amarelo perfeito! CUNHA – Nem todas as caras e coroas dos franceses têm cabelo, carecas que ficam por causa da sífilis, essa doença francesa. Assim é que o senhor vai apresentar-se sem pelos na cara. Mas, mestres, aqui vocês têm: os seus papéis. E eu devo pedir, solicitar, implorar que os senhores os estudem até amanhã à noite. Venham encontrar-me no bosque junto ao palácio, uma milha distante da cidade, à luz do luar. Ali ensaiaremos, pois, se nos encontrarmos na cidade, é certo que vão nos seguir e nos cercar, e nosso projeto não mais será segredo. Neste meio- tempo, redigirei uma lista, com os adereços de que nossa peça necessita. Rogo- lhes: não me desapontem. FUNDILHO – Nos encontraremos, e no bosque se dará o nosso ensaio dessa arte corajosa, arte obscênica. Concentrem-se, almejem a perfeição na dicção de suas falas. Adieu! CUNHA – Nos encontramos então junto ao carvalho do Duque. FUNDILHO – É isto: nos encontramos, faça chuva ou faça sol. [Saem.] SEGUNDO ATO CENA I Um bosque perto de Atenas. Entram uma Fada por um lado, e Bute por outro. BUTE – Ora, ora, espírito! Passeando! Aonde está indo? FADA – Por cima dos vales, por cima dos montes, Através de espinhos, através de flores, Por cima de muros, por cima de paliçadas, Através do fogo, através da água, Eu passeio por todo lugar, Mais veloz que a esfera lunar; Sirvo à Rainha das Fadas: sou eu a orvalhar, Nela, o olhar que faz a grama verdejar. As prímulas, belas e altas, real guarda, Têm manchas nas jaquetas douradas: São rubis, um imperial favor; Nessas pintas reside seu sabor. Procuro pingentes, gotas orvalhadas Em orelhas de prímulas, pérolas penduradas. Adeus, ó tu, o mais palhaço dentre os espíritos. Estou me retirando. Nossa Rainha, com todos os seus elfos, logo estará aqui chegando. BUTE – O Rei tem uma festança hoje à noite, e bem aqui. Cuide para que a Rainha não seja vista por ele, pois Oberon anda violento, furioso, porque ela mantém de acompanhante um rapaz adorável, roubado de um rei da Índia. E ela nunca antes tivera um bebê feinho dos nossos trocado por tão querida criança humana. Oberon, ciumento, queria o rapaz para cavaleiro de seu séquito, para percorrer os mais recônditos confins das florestas. Porém, ela forçosamente segura o rapaz amado, enfeita-o com coroas de flores, e faz dele a sua maior alegria. Desde então eles jamais se encontram – em nenhum arvoredo, em nenhum gramado, nem perto de uma fonte límpida, nem sob o brilho cintilante de um céu estrelado – sem que troquem farpas entre si; tanto que todos os seus elfos, de assustados, vão, rastejando, encolher-se dentro de cascas de bolotas frutos do carvalho, e ali se escondem. FADA – Ou muito me engano com sua forma e aparência, ou você é aquele espírito patife – maligno e arteiro – chamado Robin Bom Companheiro. Não é você aquele que assusta as donzelas dos vilarejos, estraga o leite roubando-lhe a nata e, às vezes, trabalha naquela nata que se bate e bate, botando fora o trabalho da dona de casa que chega a perder o fôlego na tentativa vã de fazer manteiga? Não é você aquele que, às vezes, não deixa a cerveja fermentar, e desorienta os viajantes noturnos e ri de sua desgraça? Para aqueles que chamam você de Silfo, ou Meu Doce Bute, você os atende em seus desejos, e eles têm boa sorte. Não é você, esse? BUTE – Falaste muito acertadamente. Sou eu, aquele que, feliz, perambula à noite. Sou eu, o bufão de Oberon, sou eu quem o faz sorrir quando seduzo um cavalo gordo e criado a feijão, relinchando como se fosse uma potranca. Tem vezes em que me ponho à espreita, no caneco de uma velha faladeira, bem como se fosse maçã azeda e assada, e, quando do caneco ela vai beber, bato-lhe nos beiços e derrubo-lhe a cerveja nas nojentas pelancas do pescoço. Tem vezes em que a mais velha das tias, ao contar a mais triste das histórias, confunde-me – menos de metro de altura – com um banquinho onde sentar-se; então eu saio de debaixo de sua bunda, ela se vai ao chão gritando “Ai, meu traseiro”, e tem um acesso de tosse; então todos ao seu redor levam as mãos à cintura e ficam se rindo e vão se divertindo e se divertindo, cada vez mais, e ridicularizam quem caiu, e chegam a jurar que ali nunca tinham visto coisa tão engraçada. Mas, abre caminho, Fada! Aí vem Oberon. FADA – E aí vem também minha senhora. Quisera eu que ele desaparecesse! Entra Oberon, o Rei das Fadas e dos Duendes, de um lado, com seu Séquito; e Titânia, a Rainha, de outro lado, com o seu Séquito. OBERON – Que encontro infeliz, este nosso à luz do luar, minha orgulhosa Titânia. TITÂNIA – O quê? Oberon, o ciumento? Fadas, duendes, embora daqui. Desisti de com ele partilhar cama e companhia. OBERON – Calma aí, criatura teimosa, volúvel: não sou eu o marido e senhor de tua pessoa? TITÂNIA – Então devo ser eu a esposa e senhora; mas eu estou sabendo de quando tu fugiste da terra das fadas e duendes e, assumindo a forma de Corino, ficavas o dia inteiro recostado, tocando avenas e versejando um amor a uma amorosa Fílida. Por que estás aqui, chegado que és da porção mais longínqua da Índia? A não ser que seja porque – mas claro! – a forte e saudável amazona, tua amante de botas de cano alto, tua amada guerreira deve casar-se com Teseu, e tu retornas para abençoar-lhes a cama com alegrias e prosperidade! OBERON – Faze-me o favor, Titânia! Como podes olhar assim enviesado a minha conquista de Hipólita, sabendo que sei de teu amor por Teseu? Não foste tu quem o conduziu numa noite mal-iluminada para longe de Perigônia, a quem ele desonrou? E não o obrigaste a quebrar as juras de fidelidade que tinha ele com a linda Egle, por causa de Ariadne e Antíopa? TITÂNIA – Isso são invenções do ciúme. E nunca, desde que estávamos no auge do verão, conseguimos nos encontrar, fadas e duendes, para as danças de roda ao sabor do vento sussurrante, sem que viesses, com teus gritos, perturbar nossa diversão – fosse em colina ou vale, floresta ou pradaria; fosse perto de uma fonte forrada de seixos ou perto de um córrego ladeado por juncos; fosse até mesmo em praia que margeia o oceano! Por isso os ventos, ao silvarem para nós em vão, parecem agora se vingar: sugaram dos mares névoas contagiosas que, ao caírem sobre a terra,transformaram até o mais insignificante dos rios em orgulhoso curso de água, a tal ponto que os rios subjugaram seus continentes. Assim foi que o boi esforçou-se longas horas na canga, e em vão; o lavrador perdeu todo o seu suor, e o milho, ainda verde no pé, apodreceu antes mesmo de criar-se a barba da juventude. O curral permanece vazio no campo alagado, e os urubus engordam com os rebanhos dizimados. A grama cortada para ser quadra do jogo de nove pedras está coberta de lama, e os engenhosos labirintos na luxuriante vegetação, por falta de uso, já não se podem distinguir. Os mortais humanos ficaram sem seus festejos de inverno, e agora nenhuma noite recebe as bênçãos de um hino ou de um cântico. Por isso, pálida de raiva, a lua, governante das marés, molha o ar que se respira e faz aflorar em grande número as corizas e as doenças reumáticas. E ao longo desse tempo destemperado vemos as estações alterando-se: grisalhas e gélidas geadas caem no colo ainda quente da rosa mais vermelha; nos cabelos ralos e poucos e nevados daquele velho senhor, o Inverno, assenta-se uma coroa perfumada das doces florzinhas de verão, como se fosse zombaria; a primavera, o verão, o outono fecundo, o furioso inverno, mudam seus trajos costumeiros; e o mundo, desnorteado com o que produz cada estação, sequer sabe qual é qual. E uma igual proliferação de males nasce de nossas brigas, de nossas desavenças. Somos pais e origem desses males. OBERON – Então você pode corrigir isso; só depende de você. Por que Titânia desobedeceria ao seu Oberon? Peço tão somente que um certo menino trocado seja meu pajem. TITÂNIA – Apazigue o seu coração. A terra das fadas e duendes não me comprará essa criança. Sua mãe era uma devota da ordem que me venera; e no ar impregnado de temperos da Índia, à noite, muitas vezes esteve ela a conversar comigo; e comigo sentou-se nas amareladas areias de Netuno, observando os navios mercantes nas marés que os traziam à praia. Ríamos ao ver as velas concebendo, suas enormes barrigas a crescer com aqueles enamorados ventos, coisa que ela iria imitar, com o lindo gingado de um corpo que mais parecia deslizar. Ela copiou a cena, seu ventre então enriquecido com o meu jovem acompanhante, e ela velejava na terra, e buscava presentinhos para mim, e voltava, como de uma viagem, trazendo uma fortuna em mercadorias. Ela, porém, sendo mortal, morreu no parto, e é por causa dela que estou criando o menino; e é por causa dela que dele não me separo. OBERON – Quanto tempo você pretende permanecer aqui, neste bosque? TITÂNIA – Talvez até depois do casamento de Teseu. Se você quiser dançar pacientemente em nossa roda e acompanhar nossas folias ao luar, venha conosco. Se não, afaste-se de mim, e eu cuidarei de evitar os seus lugares preferidos. OBERON – Dá-me o menino, e eu te acompanharei. TITÂNIA – Nem mesmo por teu reino de fadas e duendes. – Minhas fadas, vamos embora! – Vamos terminar brigando feio se eu ficar aqui mais tempo. [Saem Titânia e seu Séquito.] OBERON – Muito bem, segue teu caminho. Mas não sairás deste bosque até que eu te atormente por esse insulto. Meu gentil Bute, vem cá. Será que te lembras daquela vez em que me sentei num promontório e fiquei escutando uma sereia, que passeava no dorso de um golfinho, emitindo um sopro melodioso, harmônico, doce de se escutar, e tão doce que o mar bravio civilizou-se ante sua canção, e certas estrelas fugiam enlouquecidas de suas órbitas para escutar a música da donzela do mar? BUTE – Eu me lembro. OBERON – Naquele mesmo momento enxerguei (mas tu não podias enxergar), voando entre a frígida lua e a terra, Cupido, de arma em punho: fez mira, ele, na direção de uma linda vestal, coroada pelo Ocidente, e libertou desde seu arco a flecha do amor, com muita habilidade e energia... como se devesse trespassar uma centena de milhares de corações. Contudo, eu pude ver a flamejante flecha extinguir-se nos castos raios de uma lua aguada; e a imperial devota passou adiante, em virginal meditação, livre de fantasias amorosas. Eu, porém, observei onde caiu o dardo de Cupido: bem em cima de uma florzinha do Ocidente, antes branca como o leite, agora púrpura com a ferida do amor. E as donzelas chamam de amor-perfeito àquele amor ocioso. Busca-me essa flor, a erva que uma vez te mostrei. Basta deitar o sumo dessa florzinha nas pálpebras adormecidas de um homem ou de uma mulher, e ele ou ela sentirá uma paixão enlouquecida pela primeira criatura viva que lhe aparecer na frente. Busca-me essa erva, e trata de voltar antes que o leviatã possa nadar uma légua. BUTE – Em quarenta minutos ponho uma cinta em volta da terra. OBERON – Uma vez de posse desse sumo, vigiarei Titânia quando ela tiver adormecido, e pingarei a solução em seus olhos. A primeira coisa que ela enxergar depois de ter se acordado (seja leão, urso, ou lobo, ou touro, um macaco intrometido ou qualquer símio arteiro), ela perseguirá com a alma apaixonada. E, antes de eu retirar esse feitiço de sua visão (pois eu posso retirá- lo com uma outra erva), farei com que ela me entregue o seu pajem. Mas... quem vem lá? Eu estou invisível. E ficarei escutando o que conversam. Entra Demétrio, com Helena seguindo-o. DEMÉTRIO – Eu não te amo; portanto, peço-te: não me persigas. Onde andará Lisandro? E a formosa Hérmia? Quanto a ele, eu o matarei. E, quanto a ela, ela está me matando. Tu me disseste que eles fugiram para este bosque, e cá estou, em meio às pedras deste bosque, eu, doido de pedra, porque não consigo encontrar minha Hérmia. Vai-te embora, some daqui, e não me persigas mais. HELENA – Você me atrai, como se fosse um ímã, um pedaço frio de ferro, duro como o seu coração. E, contudo, você é ímã que não atrai ferro, pois meu coração é confiável como o aço. Dispa-se você de sua força magnetizante, e eu já não terei forças para segui-lo. DEMÉTRIO – Por um acaso eu tento seduzi-la? Digo-lhe palavras amorosas? Ou não será que, ao contrário, com toda a franqueza, eu lhe digo que não a amo, nem poderia amá-la? HELENA – E é exatamente por isso que mais o amo. Sou o seu cachorrinho; e, Demétrio, quanto mais você judiar de mim, mais abano o rabinho para você. Você pode me usar como se eu fosse o seu cachorro: pode me chutar, pode me bater, esquecer de mim, pode até me perder. Mas eu lhe peço licença, indigna que sou, de segui-lo. Que lugar mais pior posso pedir? E, mesmo assim, a meu ver, um lugar respeitável: ser usada tal qual você usa o seu cachorro. DEMÉTRIO – Não ofereças tamanha tentação ao ódio em meu espírito. Olhar tua pessoa causa-me náusea. HELENA – E náusea sinto eu quando não te enxergo. DEMÉTRIO – Você compromete por demais o seu recato ao deixar a cidade e entregar-se nas mãos de alguém que não a ama, ao confiar na oportunidade da noite e nos maus conselhos de um lugar deserto, com o rico valor de sua virgindade. HELENA – Sua virtude é minha proteção, pois, quando vejo o seu rosto, não é noite e, assim sendo, penso que não saí à noite. Tampouco este bosque carece de mundos de companhia, pois você, aos meus olhos, é o mundo todo. Então, como pode-se dizer que estou sozinha se o mundo todo está aqui, olhando para mim? DEMÉTRIO – Fugirei de ti, e vou me esconder no meio do verde, e vou deixá-la à mercê de feras selvagens. HELENA – Nem a mais selvagem das feras tem um coração como o seu. Fuja quando bem entender. A história não mais será a mesma. Apolo foge, e Dafne mantém-se no seu encalço. A pomba persegue o grifo, a suave corça faz-se veloz para alcançar o tigre – velocidade vã, quando é o covarde quem persegue e o valoroso quem foge! DEMÉTRIO – Não ficarei para ouvir teus argumentos. Deixa-me ir, e, se me seguires, podes acreditar que vou fazer mal a ti, aqui neste bosque. HELENA – Sim, no templo, na cidade, no campo, faça mal a esta donzela. Que vergonha, Demétrio! Seus maus-tratos fazem-me ser escandalosa, eu, tão feminina! Nós, mulheres, não podemos lutar por um amor, como os homens podem; nós devemos ser cortejadas, e não fomos feitas para cortejar. [Sai Demétrio.] Eu teseguirei, e transformarei inferno em paraíso, morrendo junto às mãos que tanto amo. [Sai.] OBERON – Passar bem, minha ninfa. Antes que ele possa sair deste arvoredo, tu estarás fugindo dele, e ele buscará o teu amor. Entra Bute. Trazes aí contigo a flor encomendada? Bem-vindo sejas, viajante. BUTE – Sim, trago-a comigo. OBERON – Peço-te, entrega-me a flor. Conheço uma ribanceira onde floresce o tomilho selvagem, onde crescem a primavera-dos-jardins e a vacilante violeta, cobertas pelo dossel luxuriante de uma videira virgem, com adocicadas rosas, e com madressilvas dos bosques. Ali dorme Titânia em certas horas da noite; ali embalam-na, nessas flores, com danças e deleites. E ali a cobra troca sua pele esmaltada, um traje de bom tamanho para com ele cobrir-se uma fada. E com o sumo disto aqui poluirei seus olhos, fazendo dela criatura cheia de odiosas fantasias. Pega tu um pouco disto, e procura neste mesmo bosque uma doce dama ateniense, apaixonada por um jovem desdenhoso. Unge os olhos dele. Mas cuide para fazer isso quando a próxima coisa que ele aviste possa ser a dama. Reconhecerás o homem por suas vestimentas atenienses. Cumpre tua missão com cuidado, de modo que ele se mostre mais afeiçoado a ela do que ela ao seu amado. E vê que me encontres aqui antes de cantar o primeiro galo. BUTE – Fique tranquilo, meu senhor, pois assim procederá este seu criado. [Saem.] CENA II Em outro ponto do bosque. Entra Titânia, Rainha das Fadas e dos Duendes, com seu Séquito. TITÂNIA – Vamos lá, agora uma dança de roda e uma canção de fadas; depois, na última terceira parte de um minuto, todos embora daqui. Alguns, para matar lagartas nas rosas em botão; outros vão guerrear com os morcegos por suas asas feitas de couro, para delas fazer os meus casaquinhos de elfos; e outros ainda devem manter afastada a coruja gritalhona, que toda noite pia, admirada com nossos espíritos tão delicados, tão deliciosos. Cantem agora, para que eu possa adormecer. Depois, ao trabalho, e deixem-me repousar. As Fadas e os Duendes cantam. PRIMEIRA FADA – Cobras de couro manchado, língua bifurcada, E também você, porco-espinho, não façam nada. Salamandras, cobras-de-vidro: bem comportadas! Ninguém chegue perto de nossa rainha das fadas. CORO – Filomel, rouxinol a cantar, Pura melodia vais entoar: Uma doce canção de ninar. Nina, nina, ninar; nina, nina, ninar. Nenhum mal, nem feitiço ou encanto Chegue perto desta dama por enquanto. A ela nós estamos ninando; Boa noite; nós a estamos ninando. PRIMEIRA FADA – Aranhas tecelãs, não venham cá; Fiandeiras de longas pernas, fiquem por lá! Negros besouros, nem cheguem perto; Minhocas, lesmas, ficar longe é o certo. CORO – Filomel, rouxinol a cantar etc. [Titânia adormece.] SEGUNDA FADA – Xô, embora daqui! Agora está tudo bem. Um de vocês fica de sentinela, à distância. [Saem as Fadas e os Duendes.] [Entra Oberon (e espreme o sumo nas pálpebras de Titânia).] OBERON – O que tu vires quando acordares, toma por teu verdadeiro amor. Ama- o e, por ele, fica lânguida. Seja ele um lince, um gato ou mesmo um urso. Leopardo ou javali de pelo eriçado que te apareça ante os olhos quando tu acordares, este será o teu querido. Acorda-te quando aproximar-se uma coisa assim repulsiva. [Sai.] Entram Lisandro e Hérmia. LISANDRO – Lindo amor meu, você está abatida com este passeio no bosque, e, para falar a verdade, esqueci o caminho de volta. Vamos descansar, Hérmia, se você achar boa ideia, e esperaremos pelo conforto do clarear do dia. HÉRMIA – Que assim seja, Lisandro. Procure por uma cama, pois eu, sobre este montinho, repousarei a cabeça. LISANDRO – Um morrinho de grama poderá servir de travesseiro para nós dois. Um sentimento, uma cama, dois corações e uma promessa de casamento. HÉRMIA – Não, meu bom Lisandro. Faça isto por mim, meu querido: deite-se por enquanto mais longe; não venha deitar-se tão perto. LISANDRO – Ah, veja o real sentido, minha querida, de minha inocência! O amor só tem significado na conversação amorosa. Eu quero dizer que meu sentimento está costurado ao seu, tanto que o nosso é um sentimento só; dois corações acorrentados por um juramento, de tal maneira que são dois corações e uma só promessa de casamento. Então, não me recuse um lugar na cama ao seu lado. Quero dormir, e não mentir, Hérmia. HÉRMIA – Lisandro joga muito bem com as palavras. Agora, se Hérmia quis dizer que Lisandro havia mentido, maldigo meus modos e meu orgulho! Mas, meu gentil amigo, por amor e por cortesia, deite-se mais adiante, com toda a modéstia humana. Essa separação, se podemos assim chamá-la, convém a um virtuoso homem solteiro e uma donzela. Portanto, mantenha uma pequena distância, e boa noite, doce amigo. Que o teu amor nunca se modifique antes de terminada tua doce vida! LISANDRO – Amém, amém, a essa linda oração que me dizes; e que se termine minha vida se eu terminar com a fidelidade! Esta aqui é minha cama; que o sono traga a ti todo o seu repouso. HÉRMIA – Com o mesmo desejo, desejo que os olhos de quem desejou fechem-se com a chegada do sono. [Eles adormecem.] Entra Bute. BUTE – Pela floresta andei e andei e andei e Sinto dizer, nenhum ateniense encontrei Nos olhos de quem pudesse pingar Esta flor com poder de fazer amar. É noite, e é silêncio – quem está cá? Roupas de ateniense está ele a trajar. Esse é ele, como meu mestre disse, O que desprezou a bela virgem; E, aqui, em sono profundo, a donzela, Num montinho úmido e sujo de terra. Bonita alma, ela não se atreve a deitar Com esse grosseirão que não sabe amar. Seu bruto, em teus olhos agora pingo Toda a força que trago neste feitiço. Quando acordares, perderás o sono: Por causa do amor, não pregarás o olho. Acorda, criatura, quando eu me for; Devo agora voltar ao meu senhor. Entram Demétrio e Helena, correndo. HELENA – Fica, embora tu estejas me matando, meu doce Demétrio! DEMÉTRIO – Ordeno-te: fora daqui, e chega de ficar assim à minha volta. HELENA – Ah, vais me deixar no escuro? Não faças isso. DEMÉTRIO – Fica, por tua conta e risco. Eu me vou, e sozinho. [Sai.] HELENA – Ah, que já me falta o ar, nesta ridícula caçada amorosa! Quanto maiores as minhas orações, com menos fineza me tratam. Feliz é Hérmia, onde quer que esteja, pois tem olhos atraentes e abençoados. Como foi que se puseram tão brilhantes aqueles olhos? Por certo que não foi com lágrimas salgadas. Fosse isso... meus olhos são muito mais vezes lavados que os dela. Não, não; eu é que sou feia como um urso, pois as feras que me encontram fogem de medo de mim. Portanto, não admira que Demétrio também fuja de minha presença, como se fosse eu um monstro. Qual foi o espelho hipócrita, perverso, que me deixou comparar meus olhos aos de Hérmia? Mas quem está aqui? Lisandro, deitado no chão? Morto, ou dormindo? Não vejo sangue, nem ferimento. Lisandro, se está vivo, meu bom senhor, acorde! LISANDRO [acordando] – E por ti atravessarei labaredas de fogo, doce criatura! Gloriosa, transparente Helena! A Natureza mostra-se mágica, e consigo enxergar teu coração através de teu peito. Onde está Demétrio? Ah, que palavra adequada, esse vil nome, para morrer sob minha espada! HELENA – Não diga isso, Lisandro, não diga uma coisa dessas. E daí, que ele ama a mesma Hérmia que o senhor também ama? E daí, senhor? E, no entanto, Hérmia ainda lhe ama; assim, dê-se por contente. LISANDRO – Contente com Hérmia? Não. Eu me arrependo dos minutos entediantes que passei com ela. Não Hérmia, mas Helena é minha amada. Quem não trocaria um corvo por uma pombinha? A vontade de um homem muda de sentido conforme a razão, e a razão me diz que você é a donzela mais valorosa. Enquanto ainda em crescimento, coisa nenhuma está madura até chegar sua hora. Eu, sendo jovem, até este momento não havia amadurecido o meu raciocínio. Alcançando agora o ápice do discernimento humano, a razão torna-se mestre de cerimônias para meu desejo, conduz-me até seus olhos, onde posso ler verdadeiras histórias de amor, escritas nas mais preciosas páginas de amor. HELENA – Porque fui nascer? Para essa cruel zombaria? Quando foi que fiz por merecer um tal escárnio de sua boca? Não basta, será que não basta, jovem senhor, jamais ter merecido eu, nunca ter merecido eu, e saber que nunca merecerei, um olhar mais doce dos olhos de Demétrio, e ainda vem o senhor me fazer desfeita de minha deficiência? Deveras, você me faz grande injustiça – para dizer a verdade, enorme injustiça –, cortejando-me de modo tão desdenhoso. Mas, passe bem. Devo confessar-lhe, todavia, que o imaginava senhor de uma genuína gentileza. Mas – ah! –, uma dama por um homem rejeitada ser por outro homem abusada...! [Sai.] LISANDRO – Ela não viu Hérmia. Hérmia, fica aí, dormindo, e que nunca mais chegues perto de Lisandro! Pois, assim como o estômago detesta profundamente haver se nauseado porque empanturrou-se de doces, e assim como os homens que mais detestam as falsas crenças são os que tiveram de abandoná-las porque nelas acreditavam, do mesmo modo eu, dentre todos os que te odeiam, sou quem mais te odeia, a ti, minha náusea e minha heresia! Que todas as minhas forças levem o meu amor e o meu vigor para homenagear Helena, e que seja eu o seu cavaleiro! HÉRMIA [levantando-se, sobressaltada] – Ajuda-me, Lisandro, socorro! Faze o teu melhor para arrancar esta serpente rastejante de meu peito! Ai, tem pena de mim! Que sonho eu tive! Lisandro, vê como estou tremendo de medo. A mim me parecia que uma serpente botava-se a devorar meu coração, e você... ficava sentado, sorrindo desse terrível ato predatório. Lisandro! Mas, como? Está longe? Lisandro! Meu senhor! Mas, como? Não me ouve? Foi-se embora? Nenhum som, nenhuma palavra? Meu Deus, onde está você? Fale, se está me ouvindo. Fale, em nome de todos os amores verdadeiros! Quase desfaleço de susto. Nada? Então agora entendo que você não está perto de mim. Um dos dois encontrarei sem mais demora: ou você, ou a morte. [Sai.] Titânia continua deitada, dormindo. TERCEIRO ATO CENA I No bosque; Titânia ainda deitada, dormindo. Entram Cunha, Fundilho, Justinho, Flauta, Chaleira e Famélico. FUNDILHO – Estamos todos reunidos? CUNHA – Pontualmente; e aqui temos um local conveniente, maravilhoso, para o nosso ensaio. Esta nesga de grama será nosso palco, estes espinheiros, nossos bastidores. E vamos ensaiar não só as falas, mas também os gestos e movimentos, como faremos diante do Duque. FUNDILHO – Pedro Cunha! CUNHA – O que tens a dizer, caro amigo? FUNDILHO – Tem coisas nesta comédia de Píramo e Tisbe que não vão agradar. Primeiro, Píramo tem de sacar da espada para se matar, coisa que as damas não suportam. Como você responde a isso? CHALEIRA – Por Nossa Senhora, é um tremendo susto. FAMÉLICO – Penso que devemos deixar essa morte de fora quando tudo for representado. FUNDILHO – De modo algum. Sei de um truque para deixar tudo bem. Que se escreva um prólogo, e deixe-se que o prólogo dê a impressão de dizer que não estaremos ferindo com nossas espadas, e que Píramo na verdade não morre. E, para ficarmos ainda mais seguros, que se lhes diga que eu, Píramo, não sou Píramo, mas sim Fundilho, o tecelão. Isso deixará todos livres de sustos. CUNHA – Bem, teremos então um tal prólogo; e ele será escrito em versos alternados de oito e seis sílabas, como uma balada. CHALEIRA – Não ficarão as damas com medo do leão? FAMÉLICO – Eu tenho medo dele, isso eu lhes garanto. FUNDILHO – Mestres, vocês têm de levar em conta o seguinte: trazer (Deus que nos proteja!) um leão para o meio das damas é coisa das mais pavorosas, pois não há grifo mais assustador, selvagem e fabuloso que o seu leão vivo. E temos de examinar a questão. CHALEIRA – Assim sendo, um outro prólogo deve dizer que ele não é um leão. FUNDILHO – Não: vocês devem chamá-lo pelo seu nome, e metade de sua cara deve ficar à vista através do pescoço do leão. E ele mesmo deve falar pela abertura, dizendo o seguinte – ou algo parecido, mas com o mesmo defeito: “Senhoras”, ou “Formosas senhoras, eu gostaria que as senhoras...”, ou “Eu pediria às senhoras...”, ou “Eu suplico às senhoras que não se assustem, que não estremeçam de medo. Minha vida em troca de suas vidas! Se as senhoras pensam que aqui estou como um leão, as senhoras teriam que sentir pena por minha vida. Não, eu não sou tal criatura; sou um homem, como outros homens o são”. E ali e então, deveras, deixem-no chamar-se pelo seu nome e dizer francamente às senhoras que ele é Justinho, o marceneiro. CUNHA – Bem, assim será. Mas há duas questões difíceis, ou seja, trazer o luar para dentro do aposento, pois, como vocês sabem, Píramo e Tisbe encontram-se à luz do luar. CHALEIRA – Não estará a lua brilhando na noite em que encenamos nossa peça? FUNDILHO – Um calendário! Um calendário! Olhem no almanaque; procurem lua cheia, procurem lua cheia! CUNHA – Sim, é lua cheia nessa noite. FUNDILHO – Ora, então vocês podem deixar aberta uma folha da janela do grande aposento onde encenamos; e a luz do luar pode entrar pela abertura. CUNHA – Sim, ou então um de nós deve entrar em cena com um espinheiro e uma lanterna e dizer que chega para desfigurar ou representar a pessoa da Lua Cheia. Depois tem outra coisa: precisamos ter um muro no grande aposento, pois Píramo e Tisbe, assim diz a história, falavam um com o outro por uma rachadura no muro. CHALEIRA – Você jamais poderá trazer um muro para dentro da cena. O que é que você diz, Fundilho? FUNDILHO – Um homem vai ter de representar Muro. E que se deixe ele ter um pouco de gesso, ou greda, ou argamassa por cima, para significar muro; e que se deixe ele mostrar os dedos assim, e, através dessa fenda, Píramo e Tisbe vão sussurrar um ao outro. CUNHA – Se pode ser assim, então está tudo bem. Venham sentar-se, vocês, filhos de suas mães, e que cada um ensaie a sua parte. Píramo, você começa. Quando tiver terminado a sua fala, entre naquele espinheiro; e assim por diante, cada um de acordo com sua deixa. Entra Bute [atrás]. BUTE – Que caipiras temos aqui, fanfarreando-se nuns trajos grosseiros de cânhamo, e tão perto do berço da Rainha das Fadas? Mas, o quê? Uma peça sendo ensaiada? Serei ouvinte; e, talvez, um ator também, se eu achar necessário. CUNHA – Fale, Píramo; Tisbe, venha para a frente. FUNDILHO – As doces flores, Tisbe, de sabores amoráticos... CUNHA – “Aromáticos!”, “aromáticos!” FUNDILHO – ... de sabores aromáticos; Têm o mesmo perfume, Tisbe, de teu doce hálito, Minha amada Tisbe querida. Mas, escuta, uma voz! Fica aqui, E num instante eu volto para ti. BUTE – Jamais aqui, jamais antes, encenou-se um Píramo tão estranho! FLAUTA – Preciso eu falar agora? CUNHA – Sim, pela Virgem Maria, você precisa. Você precisa entender que ele vai verificar um barulho que ouviu e deve retornar logo. FLAUTA – Alvo como um branco lírio é o radiante e belo Píramo, Um jovem muito adorável, um Juvenal tão vívido, Corado igual rubra rosa de triunfante urze branca, Como cavalo correto e leal que não se cansa; Contigo encontrarei, Píramo, no túmulo de meninos. CUNHA – “Túmulo de Ninus”, homem! Mas, ora, você não deve falar isso agora; essa é a sua resposta a Píramo. Você está falando toda a sua parte de uma vez só, deixas e tudo! – Píramo, entre! Sua deixa já passou; é “que não se cansa”. FLAUTA – Ah... Como cavalo correto e leal que não se cansa. Entra Fundilho, com a cabeça de um burro [e entra Bute também]. FUNDILHO – Fosse eu adorável, linda Tisbe, e seria teu somente. CUNHA – Oh, monstruoso! Oh, esquisito! Há espíritos perseguindo-nos! Façam suas orações, mestres! Fujam, mestres! Socorro! Saem Cunha, Justinho, Flauta, Chaleira e Famélico. BUTE – Eu acompanho vocês. Mostrarei o caminho, e vocês andarão em círculos! Por brejos e arbustos, por moitas e sarças, por vezes serei um cavalo, por vezes um cão de caça. Um porco capado, um urso sem cabeça, por vezes uma labareda. E relincharei, e latirei, e grunhirei, e bramirei, e brilharei, como cavalo, cão e porco, como urso e fátuo-fogo, um de cada vez, cada um um pouco. [Sai.] FUNDILHO – Por que estão fugindo? Isso é alguma trapaçadeles, tramada entre eles para que eu me assuste. Entra Chaleira. CHALEIRA – Ah, Fundilho, como mudaste! O que é isso que vejo em ti? FUNDILHO – O que vês em mim? Vês tua própria cabeça de asno, não é? [Sai Chaleira.] Entra Cunha. CUNHA – Deus te abençoe, Fundilho, Deus te abençoe! Estás transformado. FUNDILHO – Estou entendendo a trapaça deles: isso é para me fazer de besta, para me dar um susto, como se eles pudessem. Mas não vou me mexer daqui, e daqui não saio, façam eles o que fizerem. Vou caminhar de lá para cá, aqui mesmo, e vou cantar, para que eles escutem que não tenho medo. [Canta.] O melro, de cor tão negra, De bico amarelo-queimado, A carriça, que pia tão agudo, O tordo, que pia tão afinado... [A cantoria acorda Titânia.] TITÂNIA – Que anjo vem me acordar, tirando-me de minha cama florida? FUNDILHO [canta] – O tentilhão, o pardal, a cotovia, O cuco, de simples melodia, Esses todos cantam de tudo, E o homem não passa de um chifrudo... pois, deveras, que homem de cabeça no lugar – e sem enfeites na cabeça – perderia tempo para ficar ouvindo esses bobos desses passarinhos? TITÂNIA – Suplico-te, gentil mortal, canta de novo. Meu ouvido enamorou-se de tua voz; também meu olho encantou-se com tua forma; e a força de tuas belas virtudes por força me leva, à primeira vista, dizer, jurar, que te amo. FUNDILHO – Parece-me, senhorita, que você não tem nenhuma razão para tanto. E, no entanto, para falar a verdade, amor e razão não andam juntos nesses tempos de agora. Dá-me muita pena ver que alguns honestos vizinhos recusam- se a torná-los amigos. E não é que eu posso ser sagaz de vez em quando? TITÂNIA – És tão sábio quanto és formoso. FUNDILHO – Nem um, nem outro. Mas, se eu fosse esperto o suficiente para sair deste bosque, essa esperteza seria o suficiente para mim. TITÂNIA – Não queiras sair deste bosque. Tu deves aqui permanecer, seja esse o teu desejo ou não. Sou um espírito de incomparável valor. O verão encarrega-se de sempre servir o meu país. E eu te amo; portanto, vem comigo. Eu te presentearei com fadas e duendes, para que eles te sirvam; e eles buscarão para ti joias do fundo dos mares; e para ti cantarão, enquanto dormes sobre um leito de flores. E eu expurgarei de ti tua mortal materialidade, de modo que andarás como um espírito, etéreo. Flor de Ervilha! Teia de Aranha! Mariposinha! E Semente de Mostarda! Entram quatro Duendes: Flor de Ervilha, Teia de Aranha, Mariposinha e Semente de Mostarda. FLOR DE ERVILHA – A postos. TEIA DE ARANHA – Eu também. MARIPOSINHA – Eu também. SEMENTE DE MOSTARDA – Eu também. TODOS – Aonde devemos ir? TITÂNIA – Sejam gentis e corteses com esse cavalheiro: vão saltitando ao redor dele em suas caminhadas, e pulem de alegria diante de seus olhos. Alimentem- no com damascos, e amoras-pretas, com uvas rosadas, e figos verdes, e amoras- vermelhas. Aliviem os zangões de seu carregamento de mel, e de suas patas raspem toda a cera para que se ilumine a noite com velas, e acendam as velas na luz faiscante dos vaga-lumes, para assim levar o meu amor à cama, e para assim despertá-lo. E arranquem as asas das borboletas multicoloridas para com elas abanar os olhos sonolentos do meu amor, deles afastando os raios de luar. Saúdem-no com gestos de cabeça, elfos, e façam-lhe reverências. FLOR DE ERVILHA – Salve, mortal! TEIA DE ARANHA – Salve! MARIPOSINHA – Salve! SEMENTE DE MOSTARDA – Salve! FUNDILHO – Peço perdão a Vossas Senhorias, do fundo do meu coração. Suplico: qual o nome de Vossa Senhoria? TEIA DE ARANHA – Teia de Aranha. FUNDILHO – Muito honrado fico eu em conhecê-lo, meu bom Mestre Teia de Aranha. Se eu cortar meu dedo, tratarei de usá-lo em meu ferimento. Seu nome, respeitável cavalheiro? FLOR DE ERVILHA – Flor de Ervilha. FUNDILHO – Imploro-lhe, mande minhas lembranças à Senhora Vagem, sua mãe, e ao Senhor Legume, seu pai. Meu bom mestre Flor de Ervilha, muito honrado fico eu em conhecê-lo também. Seu nome, peço-lhe que me diga, senhor. SEMENTE DE MOSTARDA – Semente de Mostarda. FUNDILHO – Meu bom mestre Semente de Mostarda, bem lhe conheço por sua paciência. Aquele covarde que mais parece um gigante, o bife da carne do boi, tem devorado muitos cavalheiros de sua família. Asseguro-lhe o seguinte: seus parentes muito fizeram lacrimejar meus olhos até hoje. Muito honrado em conhecê-lo, meu bom mestre Semente de Mostarda. TITÂNIA – Vamos lá, sirvam o cavalheiro. Levem-no até o meu caramanchão. A lua, parece-me, exibe um olhar lacrimejante e, quando ela chora, choram todas as florezinhas, lamentando-se por alguma castidade violentada. Amarrem a língua do meu amor, tragam-no em silêncio. [Saem.] CENA II Em outra parte do bosque. Entra Oberon, Rei das Fadas e dos Duendes. OBERON – Será que Titânia já acordou? Se já acordou, o que for que primeiro ela viu deve ser o alvo de sua paixão desmesurada. Entra Bute. Aí vem o meu mensageiro. E então, espírito doido? Quais são as diversões noturnas agora neste arvoredo infestado de espíritos? BUTE – Minha senhora apaixonou-se por um monstro. Próximo ao seu caramanchão secreto e consagrado, enquanto ela adormecida encontrava-se, um bando de palhaços, rudes trabalhadores braçais, que labutam pelo pão que comem em tendas do mercado em Atenas, reuniram-se para ensaiar uma peça planejada para o dia das bodas do grande Teseu. O mais estúpido casca-grossa daquele grupo de tapados, que representava Píramo naquela brincadeira, abandonou a cena e embrenhou-se num espinheiro, quando eu disso tirei proveito: fixei-lhe na cabeça uma cara de burro. Em seguida a isso, a Tisbe desse Píramo precisava de uma resposta; e apresenta-se o meu comediante. Quando dão uma espiada nele, foi como gansos selvagens que o caçador, rastejando, avistasse, ou como as gralhas de plumagem parda na cabeça, em numerosa revoada, alçando voo e esganiçando-se ao estampido de uma arma de fogo, separando-se e enlouquecidamente espalhando-se pelo céu; assim foi que, ao enxergarem-no, escafederam-se os seus camaradas. Eu sapateio com força e, assustados, um vai tropeçando uma, duas, três vezes na correria, outro grita “Assassino!”, e pede o socorro de Atenas. Com o tino assim enfraquecido, derrotado por seus medos assim fortalecidos, fizeram com que os seres inanimados começassem a lhes fazer mal, pois as urzes brancas e os espinheiros pegaram suas vestes, e algumas mangas e alguns chapéus essas coisas agarram de quem lhes as cede. Eu os conduzi nesse pavor desatento e para trás deixei o doce Píramo transformado. Foi então que aconteceu de Titânia acordar e, despertada, imediatamente ficou por um asno apaixonada. OBERON – Isso resultou melhor do que se eu tivesse planejado. Mas, e tu, já molhaste os olhos do ateniense com o sumo do amor, conforme te ordenei? BUTE – Peguei ele dormindo – isso também, está cumprido –, e a mulher ateniense ao lado dele, de modo que, quando ele acordasse, necessariamente ela seria avistada. Entram Demétrio e Hérmia. OBERON – Fica aqui, e esconde-te. Esse é o nosso ateniense. BUTE – Essa é a mulher, mas não é esse o homem. [Eles param ali perto, e observam.] DEMÉTRIO – Mas, ah... por que você rejeita este que tanto a ama? Melhor seria deitar palavras tão cáusticas sobre um cruel inimigo. HÉRMIA – Agora estou só te repreendendo, mas deveria estar eu te tratando muito pior, pois tu, e este é o meu temor, me deste causa para amaldiçoar-te. Se mataste Lisandro enquanto ele dormia, estás até o pescoço em sangue. Pois mergulha de vez, e mata-me também. Nem o sol foi tão verdadeiro e leal com o dia como ele foi comigo. Teria ele fugido de uma Hérmia adormecida? Prefiro acreditar que se poderia perfurar o globo terrestre de lado a lado, e a lua iria insinuar-se pelo centro da terra para assim perturbar, com os Antípodas, a maré alta do meio-dia de seu irmão. Não há outra explicação: tu mataste Lisandro. E te pareces com um assassino, assim tão letal, com a cara tão fechada. DEMÉTRIO – Essa deve ser a cara de quem foi assassinado, e devo estar assim, ferido que está meu coraçãocom essa sua horrenda crueldade. E, no entanto, você, a assassina, tem a aparência radiante e luminosa de Vênus, distante em sua mais cintilante órbita. HÉRMIA – O que tem isso a ver com o meu Lisandro? Onde está ele? Ah, meu bom Demétrio, vais devolvê-lo para mim? DEMÉTRIO – Prefiro entregar a carcaça dele aos meus cães de caça. HÉRMIA – Seu cachorro, cai fora daqui! Seu patife vira-lata, sai de perto de mim! Tu me fazes perder toda a paciência que uma donzela deve ter. Tu o mataste, então? Que não sejas mais contado entre os homens daqui em diante! Conta-me a verdade, de uma vez por todas. Conta-me a verdade, nem que seja por amor a mim! Tiveste a coragem de encará-lo nos olhos enquanto ele estava acordado e o mataste enquanto ele dormia? Que proeza! Quanta bravura! Não teria um verme, uma víbora, feito o mesmo? Pois uma víbora o fez, pois com língua mais bifurcada que a tua, serpente, nunca nenhuma víbora picou! DEMÉTRIO – Desperdiças tua reação apaixonada numa raiva totalmente equivocada. Não sou culpado de derramamento de sangue. Tampouco está Lisandro morto, que eu saiba. HÉRMIA – Suplico-te, então: fala-me que ele está bem. DEMÉTRIO – E, se eu pudesse, o que ganho com isso? HÉRMIA – O privilégio de nunca mais ver a minha cara. E, de tua detestável presença me despeço assim: Lisandro morto ou não, não me procures mais. [Sai.] DEMÉTRIO – Não tem sentido acompanhá-la, com o sangue assim fervendo-lhe nas veias. Espero, portanto, aqui sozinho, mais um pouquinho. E o peso de minha tristeza pesa cada vez mais. E o meu sono, falido por causa da tristeza, está em dívida comigo, o que traz acréscimo à minha tristeza. Mesmo que seja um pouquinho, algo dessa conta ele agora vai me pagar, pois em troca de algum descanso aqui vou me deitar. Deita-se [e dorme]. Oberon e Bute aproximam-se. OBERON – O que aprontaste? Tu te enganaste completamente, pingando o sumo do amor nos olhos de quem sente um amor verdadeiro. De tua negligência forçosamente resultará algum amor verdadeiro falseado, e não um falso amor retificado. BUTE – Então prevalece o destino: para cada homem que mantém sua palavra, um milhão de outros falham, quebrando um juramento depois do outro. OBERON – Atravessa o bosque, vai mais ligeiro que o vento e procura Helena de Atenas até encontrá-la: é aquela que está doente de amor, fisionomia pálida, suspirando de paixão, cada suspiro custando-lhe uma gota de seu precioso e jovem sangue. Vê que a trazes até aqui – por meio de algum engodo. Colocarei o feitiço nos olhos dele, preparando-o para quando ela aparecer. BUTE – Estou indo, estou indo, veja como já estou indo! Mais ligeiro que uma flecha do arco de um tártaro. [Sai.] OBERON [espremendo o sumo nas pálpebras de Demétrio] – Flor da mais púrpura cor, Flechada pelo Deus do Amor, Penetra essa pupila repousada. Quando ele avistar sua amada, Como Vênus ela deve brilhar, Em toda a sua glória estelar. Ao despertares, e ela por perto, Pede que ela te dê o remédio certo. Entra Bute. BUTE – Do nosso bando de fadas e duendes o senhor é o Capitão, e tenho a relatar-lhe o seguinte: Eis Helena, e junto dela vem chegando Esse jovem, que pensei ser aquele outro. Ele chega pelo amor dela suplicando. Podemos ver, e já daqui a pouco: Ridículo espetáculo estarão encenando. Senhor, que esses mortais são bobos! OBERON – Fazem tal barulho! Te mantém distante. Vão acordar Demétrio, e é num instante. BUTE – Então teremos dois cortejando uma só. Isso é diversão garantida, senhor; tenha dó: Não tem coisa que mais me apraz na vida Que as coisas extraordinariamente acontecidas [Eles se colocam a uma certa distância.] Entram Lisandro e Helena. LISANDRO – Por que você pensaria que a cortejo por zombaria? Zombaria e escárnio nunca se apresentam sob a forma de lágrimas. Sempre que faço uma jura, eu choro. Promessas assim nascidas são verdadeiras desde o berço. Como podem coisas assim nascidas em mim parecer escárnio para você? Minhas juras trazem a insígnia da lealdade, o que prova serem elas verdadeiras. HELENA – Você prossegue, exibindo mais e mais sua astúcia. É uma verdade destruindo outra verdade! É um combate diabólico numa guerra santa! Essas juras são para Hérmia. Ou você está desistindo dela? Pese bem, promessa com promessa, e verá que não está pesando nada. Coloque suas juras de amor, para ela e para mim, nos pratos de uma balança, e eles vão estar equilibrados, os dois igualmente leves, cheios de palavras vazias. LISANDRO – Faltou-me discernimento, quando a ela prometi o meu amor. HELENA – A meu ver, falta-lhe discernimento mas é agora, disposto que você está a desistir de Hérmia. LISANDRO – Demétrio é apaixonado por ela, não é você que ele ama. DEMÉTRIO [acordando] – Ah, Helena! Deusa, ninfa, perfeita, divina! A que, meu amor, devo comparar teus olhos? O cristal é turvo. Ah, quão maduros mostram- se teus lábios, essas beijáveis cerejas; quão tentadora essa fruta que é tua boca! Aquele branco puro, congelado, neve das altas montanhas de Taurus, onde sopram os ventos orientais, torna-se escuro como o corvo quando ergues tua mão. Ah, deixa-me beijar essa brancura imaculada de princesa, esse certificado de êxtase e felicidade! HELENA – Ai, que ódio! Ai, que inferno! Vejo que estão os dois determinados a atacar-me para sua diversão. Fossem educados e soubessem o que é gentileza, e não estariam me insultando dessa maneira. Não basta me detestarem, como eu sei que me detestam, mas precisam também unir-se em espírito para me ridicularizar? Fossem vocês homens, como homens na aparência vocês são, e não estariam abusando assim de uma gentil dama. Isto não se faz: juras, promessas, elogios às minhas virtudes, quando estou certa de que me odeiam de todo coração. Vocês são rivais, os dois apaixonados por Hérmia; e agora são rivais em ridicularizar Helena. Que bela façanha, que iniciativa tão viril, chamar lágrimas aos olhos de uma pobre donzela com o seu escárnio! Ninguém de nobre natureza ofenderia de tal modo a uma virgem, nem atormentaria a paciência de uma pobre alma; e tudo para vocês se divertirem! LISANDRO – Você é insensível, Demétrio. Não seja assim, pois é Hérmia que você ama. Isso você sabe que eu sei. E aqui, e agora, com toda a boa vontade, de todo o meu coração, do amor de Hérmia cedo-lhe a minha parte; e a sua parte do amor de Helena, peço-lhe que me ceda a mim. É Helena que eu amo e amarei até a morte. HELENA – Nunca vi piadistas gastarem tanta saliva inutilmente. DEMÉTRIO – Lisandro, fica com a tua Hérmia. Não quero nada com ela. Se antes eu a amava, esse amor todo já se foi. Meu coração tinha viajado até ela como um convidado, mas agora ele voltou para Helena, voltou para casa, voltou para ficar. LISANDRO – Helena, isso não é assim, não é verdade. DEMÉTRIO – Não desacredite uma lealdade que você desconhece, a menos que você queira correr o risco de por isso pagar caro. Olhe que por ali vem a sua amada; é ela, a sua querida, que vem lá. Entra Hérmia. HÉRMIA – Esta escuridão noturna, que rouba a função dos olhos, deixa o ouvido mais rápido em captar os sons; naquilo que prejudica o sentido da visão, traz recompensa em dobro à audição. Não consigo encontrar-te com meus olhos, Lisandro; meu ouvido, e a ele sou grata, trouxe a mim o som de tua voz. Mas por que me deixaste tão indelicadamente? LISANDRO – Por que deveria ficar, este a quem o amor incita a partir? HÉRMIA – Que amor poderia incitar Lisandro a partir para longe de mim? LISANDRO – O amor de Lisandro, que não o deixa chegar perto: a formosa Helena, aquela que brilha na noite, mais que todas as cintilantes esferas celestes, todas as faiscantes estrelas. Por que me procuras? Não basta isso, para entenderes que o que me fez deixar-te foi a aversão que sinto por ti? HÉRMIA – Você não está falando o que pensa. Não pode ser! HELENA – Mas, vejam, ela é mais uma nessa conspiração! Agora estou percebendo: os três uniram-se, para moldar essa mentira, essa brincadeira para me deixar magoada. – Hérmia, sua infame! Donzela mais ingrata! Você mancomunou, vocêcom esses dois tramou, para atormentar-me com essa zombaria nojenta? Está tudo esquecido? As confidências que trocamos, as promessas de sermos irmãs uma para a outra, as horas que passamos juntas, quando xingávamos o tempo por passar tão rápido, obrigando-nos a nos separar? Diga: está tudo esquecido? A amizade de todos os dias de colégio, a inocência da infância? Nós duas, Hérmia, como deuses engenhosos, bordamos com nossas agulhas uma única flor, num pano só, sentadas as duas na mesma almofada, as duas garganteando a mesma música, afinadas no mesmo tom, como se nossas mãos, nossas vozes, nossas mentes, um lado do meu corpo e um lado do seu tivessem se incorporado. Assim foi que crescemos juntas, como uma cereja dupla, aparentemente dividida em duas, mas na verdade uma união dividida, duas adoráveis frutas moldadas em um único talo; éramos, assim, dois corpos em aparência, mas um só coração. Dois em um, como num brasão da heráldica, revelando a união de duas famílias numa só, com pluma ou elmo coroado na crista. E você vai destroçar o nosso antigo amor para unir-se a homens nesse escárnio a sua pobre amiga? Isso não é simpático, e isso não é feminino. As do nosso sexo, assim como eu, podem repreendê-la por isso, embora tão somente eu sinta o insulto. HÉRMIA – Surpreendem-me suas palavras apaixonadas. Não estou zombando de você; parece-me que é você quem zomba de mim. HELENA – Por um acaso você não incentivou Lisandro, por zombaria, a me seguir, e elogiar meus olhos e meu rosto? E não fez o seu outro amor, Demétrio, que há bem pouco tempo tratava-me a pontapés, chamar-me de deusa, ninfa, divina e única, preciosa e celestial? Por que razão falaria ele assim com aquela que ele detesta? E por que razão Lisandro nega o amor que sente por você, para ele tão valioso, e oferece-me – deveras! – afeição? Por que razão isso tudo se não por seu incentivo, com o seu consentimento? Que importa que eu não seja tão cortejada como você, tão cercada de amor, tão afortunada? Pelo contrário, sou de todas a mais miserável, porque não amada, pois o amor esqueceu-se de mim. Você deveria disso apiedar-se, não menosprezar. HÉRMIA – Não entendo o que você quer dizer com isso. HELENA – Sim, faça isso! Continue: simule olhares tristes, e faça caretas para mim quando viro as costas. Pisquem uns para os outros, levem adiante esse lindo joguinho. Essa brincadeira, bem encenada, entrará para a história. Tivessem vocês compaixão, dignidade, ou mesmo bons modos, não estariam fazendo de mim objeto de ridículo. Mas, passem bem; isso em parte é culpa minha, e a morte, ou o meu afastamento, logo remediará. LISANDRO – Fique, gentil Helena, escute a minha justificativa. Meu amor, minha vida, minha razão de ser, formosa Helena! HELENA – Ah, excelente! HÉRMIA – Querido, não zombe assim dela. DEMÉTRIO – Se não basta ela suplicar, eu posso obrigá-lo. LISANDRO – Tu não me podes obrigar, e de nada adianta ela suplicar. Tuas ameaças não têm mais força que as débeis preces dela. Helena, eu te amo, juro por minha vida, eu te amo. Juro por esta vida que vou perder por ti, provando que ele está errado ao dizer que não te amo. DEMÉTRIO – Eu digo que te amo, e mais do que ele jamais poderia te amar. LISANDRO – Se assim o dizes, acompanha-me, e prova. DEMÉTRIO – Rápido, vamos lá! HÉRMIA – Lisandro, qual o propósito disso tudo? LISANDRO – Saia daqui, sua negra etíope! DEMÉTRIO – Não, não! Ele faz parecer que está fora de si... [Dirigindo-se a Lisandro:] Você finge que vai me acompanhar, mas não vem! Um homem apático, isso é o que você é. Andando! Saia daqui! LISANDRO – Não chega perto! Gata vadia, carrapato! Coisa nojenta, me larga, ou vou ser obrigado a te chacoalhar, como se faz a uma serpente, para te desgrudar de mim. HÉRMIA – Por que ficaste assim tão grosseiro? Que mudança é essa, meu querido, meu amor? LISANDRO – Teu amor? Xô, negra tártara! Xô, fora daqui! Longe de mim, remédio intragável! Sua poção venenosa, vai-te embora! HÉRMIA – Não está brincando, você? HELENA – Sim, deveras, e você também. LISANDRO – Demétrio, mantenho minha palavra contigo. DEMÉTRIO – Bem gostaria eu, de ter a sua assinatura num contrato escrito, pois percebe-se que são fracos os elos que prendem você. Não confio em sua palavra. LISANDRO – Ora, mas então devo eu machucá-la, estapeá-la, dar-lhe uma morte matada? Muito embora eu a deteste, não desejo feri-la. HÉRMIA – Ora, mas então você tem como me ferir mais do que dizendo que me detesta? Me detesta? Por quê? Ai de mim! O que está me contando, meu amor? Não sou eu Hérmia? Não é você Lisandro? Sou tão formosa agora como era há pouco. Quando anoiteceu, você me amava; e, no entanto, quando anoiteceu, você me deixou. Mas, ora, então você me deixou – ah, que isto os deuses não permitam! – de verdade mesmo? É isso? LISANDRO – Sim, juro pela minha própria vida, sim! E quisera nunca mais te ver. Portanto, perde as esperanças, esquece as dúvidas, deixa de perguntas; podes estar certa, nada é mais verdadeiro, e não estou brincando: eu te detesto, e amo Helena. HÉRMIA – Ai de mim! [Dirigindo-se a Helena:] Sua trapaceira! Flor podre, comida de vermes! Sua ladra do amor dos outros! O que fez você, esgueirou-se na noite e veio roubar de meu amado o próprio coração? HELENA – Ótimo, de verdade! Será que você não tem moderação, não tem vergonha, donzela que é, nem um pouquinho de acanhamento? Vai fazer o quê, arrancar respostas impacientes de meus lábios gentis? Que vergonha, que vergonha, sua falsa! Sua... sua... boneca! HÉRMIA – “Boneca”! Ora, mas então é assim? Está muito bem: é esse o jogo que vamos jogar! Agora percebo que ela traçou comparação entre nossas estaturas; realçou o fato de ser alta; e, com sua personalidade, seus altos encantos, sua altura, deveras, insinuou-se para ele. E você cresceu tanto na estima dele por quê? Porque eu sou tão nanica e tão baixa? E quão baixa sou eu, seu pau de virar tripa maquilado? Fala: quão baixa sou eu? Não sou tão baixa que não possam as minhas unhas chegar nos teus olhos. HELENA – Suplico-lhes, muito embora vocês zombem de mim, cavalheiros, não deixem que ela me machuque. Nunca tive um gênio difícil; não tenho vocação nenhuma para ser megera. Sou a própria donzela, tal é minha covardia. Não deixem que ela bata em mim. Vocês até podem pensar, porque ela é um pouco mais baixa que eu, que sou páreo para ela. HÉRMIA – “Mais baixa”? Escutem, de novo! HELENA – Minha boa Hérmia, não fique tão amarga comigo. Sempre amei você, Hérmia, sempre guardei os seus segredos, jamais a enganei, a não ser quando, apaixonada por Demétrio, contei a ele de sua fuga aqui para este bosque. Ele a seguiu; por amor, eu o segui. Mas ele me xingou, mandando-me embora, ameaçou me bater, chutar-me a pontapés, e até mesmo matar-me! E agora, uma vez que você me deixe ir embora em paz, levo de volta para Atenas a minha sandice, e não lhe sigo mais. Deixe-me ir; você está vendo como sou simples, como sou boba. HÉRMIA – Ora, vá andando, que já vai tarde! Quem é que está lhe segurando? HELENA – Um coração tolo e insensato que deixo aqui, que deixo para trás. HÉRMIA – Ora, veja! Deixa-o com Lisandro? HELENA – Com Demétrio. LISANDRO – Não tenhas medo; ela não te fará mal, Helena. DEMÉTRIO – Não senhor, ela não fará mal algum, embora o senhor esteja do lado dela. HELENA – Ah, quando ela está furiosa, ela é mordaz, e ela é má. Era uma raposa quando frequentava a escola e, apesar de ser pequena, ela é feroz. HÉRMIA – “Pequena” de novo? Nada além de “baixinha” e “pequena”? – Como é que você tolera, ela me ofendendo dessa maneira? Deixe-me chegar nela! LISANDRO – Trate de ir andando, sua anãzinha de meia-tigela, criatura mínima, feita de sempre-noiva, uma graminha prostrada. Bolota, semente de gente! DEMÉTRIO – Você se intromete demais atendendo aos interesses daquela que menospreza os seus préstimos. Deixe-a em paz; não fale de Helena; não tome o partido dela; pois, se tens a intenção de mostrar o menor sinal de amor por ela, pagarás caro por isso. LISANDRO – Ela agora não me
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