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Ficha Técnica T ítu lo : NÓS MATÁMOS O CÀO -TINH OSO! C olecção : Prosa A u to r: Luís Bernardo Homvana Editora: ALCANCE T-DITORES C o o rd en ação : Cáda Fernandes P ro je c to G ráfico e P ag in ação :Yolauda Mondlane C apa: Rajau de Carvalho Revisão: Almiro Lobo F ra g m en to s dc D esenhos n o in te r io r : Benina Lopes Im pressão e acab a m e n to s : Diário do M inho A u d ito ria e c o n tro lo de qualidade: A U D IT SA Edição Comemorativa de acordo com a l .a edição. Endereços M OÇAM BIQUE: Av. Zedcquias Manganhela, n." 309, 1.° andar, Maputo - Moçambique Tel: +258 826714444, Kxo: +258 21 312325/6, Fax: +258 21 312704 PO RTU GA L: R ua de S.João, n.° 124, 5." Esq., 4050-552, Porto - Portugal Tel: +351 913 596 404 comercial@alcanceeditores.co.mz www.alcaiiceeditores.co.mz Alcance Editores Reservados todos os direitos de autor. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, seja ele fotocópia, oâsct, fotografia, texto, ilustração ou arranjo gráfico. A violação destas regras será passível dc procedimento judicial, de acordo com o estipulado no código dos direitos do autor. Maputo. Junho dc 2014 RI.INLO N." 8099/RL1NLD/2014 Distribuição em Moçambique: AICANCli EDITORES Distribuição em Portugal: DUPLO ALCANCE, LI )A Tiragem: 1.000 exemplares No Alcance de uma Educação dc Futuro. mailto:comercial@alcanceeditores.co.mz http://www.alcaiiceeditores.co.mz PREFACIO Palavras (des)necessárias 1 No início do ano de 1964 foi publicada em Moçambique uma colectânea de contos intitulada Nós matámos o cão-tinhoso, com 135 páginas, ilustrada com desenhos da pintora Bertina Lopes e formato «Livro de Bolso». Tratava-se de uma edição de autor composta e impressa na Sociedade de Imprensa, Lda., proprietária do jornal A Tribuna e incluía os contos: “Nós matámos o cão-tinhoso”; “Inventário de Imóveis e Jacentes”; “Dina”, “A Velhota”. “Papá, Cobra e Eu”, “As mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”. A anteceder as narrativas, duas epígrafes (desaparecidas das edições pos teriores): à Dori que é sensível à angústia dos cães; ao José Craveirinha, expressão verdadeira da poesia de Moçambique. O autor, Luís Augusto Bernardo Manuel Honwana, era então um jovem com 22 anos, que se iniciara no jornalismo, assinando algumas Notas de Reportagem do Notí cias e colaborando regularmente na página juvenil “Despertar” deste jornal, desde 1962. Colaborava também no vespertino A T rib u n a podendo ainda 1 O jomal A Tribuna fora fundado por João Reis cm Outubro dc 1962 como diário, podendo o seu aparecimento ser interpretado como uma tentativa de criação dc um espaço jornalístico profissional e moderno, independente dos interesses governamentais. Contou com a participação de Gouvea Lemos, Ilídio Rocha, José Craveirinha, Ricardo Rangel, Domingos de Azevedo, Garizo do Carmo e de jovens jornalistas que se viriam a distinguir nomeadamente Fernando Magalhães, António Barradas, Amândio Cordeiro e Luis Bernardo Honwana. Contou ainda com colaboração de Adrião Rodrigues, Eugênio Lisboa, Rui Knopfli, assim como do arquitecto Pancho Miranda Guedes. Dos protagonistas iniciais, Gouvea Lemos (chefc de redacção), Ilídio Rocha c uma parte da equipa de reportagem (Fernando Magalhães, Amândio Cordeiro, António Barradas e Luis Bemardo Honwana) viriam a sair. Parece-me ter havido um conjunto de circunstâncias, que levaram a que João Reis cuíssc numa espécie dc cilada com objectivos políticos, acabando por entregar o jomal ao Banco Nacional Ultramarino em 1963 e perder o controlo sobre o mesmo, o que terá levado a que muitos dos redactores e colaboradores do jornal se vissem compelidos a afastar-sc. As cartas enviadas por João Reis ao advogado Eurico Ferreira, interceptadas e copiadas pela PIDE, deposi tadas nos Arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, ajudam a melhor perceber a trama que envolveu todos os participantes neste projccto que, desiludidos, o abandonaram, ou não tiveram outra saída senão demitir-se, como aconteceu com Gouvea Lemos e José Craveirinha. De notar que, em finais dc 1964, Luís Bernardo Ilonwana c João Reis foram presos pela PIDE, (cm simultâneo com José Craveirinha, Malangatana Valente Ngwenya, Rui Nogar e outros militantes da Frelimo) como resultado do clima político repressivo provocado pela reacção da PIDE à tentativa de implantação de uma rede clandestina do movimento no sul dc Moçambique. Agradeço a Luis Bernardo Honwana a rectificação de alguns dados relativos aos colaboradores do jornal nessa fase. 3 assinalar-se colaboração sua nos jornais Voz de Moçambique, Diário de Moçambique (Beira) e A Voz Africana (Beira). Alguns dos contos incluídos no livro haviam sido já publicados nestes orgãos de imprensa, nomeada mente “A velhota”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Papá, cobra e eu” e “As mãos e as palmas”, provável primeira versão de “As mãos dos pretos”, devendo-se a Eugênio Lisboa, Rui Knopfli e Josó Craveirinha, a iniciativa dessas publicações, como o próprio autor explica na discreta nota introdutória do livro: “Depois do “Despertar”, Eugênio Lisboa, Rui Knopfli e José Craveirinha entusiasmaram-me, publicando algumas das minhas histórias em jornais”. O livro viria a provocar uma polémica imediata devido a um artigo publicado por Rodrigues Júnior - jornalista e autor de numerosos romances, antigo colaborador de Seara Nova que, tendo vindo para Moçambique nos anos 30, adoptara, a partir dos anos 50, uma postura de defesa do lusotro- picalismo e do denominado humanismo português de Salazar - o qual, no jornal Diário de 4/4/64, punha em causa a “boa-fé do jovem escritor” ao mesmo tempo que questionava a validade do apoio dado pelo arquitecto Pancho Miranda Guedes, à publicação do livro2. De facto Miranda Guedes e sua mulher Dorothy (Dori), de nacionalidade sul-africana, tiveram um papel fundamental quer nesta edição quer na publicação em 1969 da versão em língua inglesa, da autoria de Dorothy Guedes3 com o título We Killed Mangy Dog & Other Mozambique Stories na colecção “African Writers Series”, coordenada por Chinua Achebc, o que favoreceu a projecção internacional do livro. As declarações de Pancho Miranda Guedes e de Dori em entrevista a João Manuel Neves, publicada em 20134, deixam suspeitar que o casal fora atraído tanto pela qualidade da escrita como (ou talvez mais) pela vertente - Esta polémica c analisada por Abudo Machude cm A recepção critica de Nós matámos o cão tinhoso. Maputo: Alcance, 2014. 5 A génese da relação de amizade com o arquitecto Miranda Guedes é descrita por Luis Bernardo Honwana em entrevista a Michel Laban. Ver l.aban, M., Moçambique encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998, p.666. Pancho Miranda Guedes e Dori Guedes evocam esse período, fornecendo alguns detalhes sobre a sua relação com Honwana e a publicação do livro em João Manuel Neves. Encontro com Dori e Pancho Guedes. PortotAfrontamento, 2013. 4 João Manuel Neves. Ibidem. 4 autobiográfica que pressentiam existir nas narrativas e os colocava frente a uma realidade incómoda para a sua sensibilidade. Rui Knopfli em entre vista a Michel Laban definia Pancho Guedes como o espírito criador e Dori como “o tipo daquela feminista de tradição inglesa left wing, que deve tê-lo empurrado dominadoramente para o contacto e o confronto [...]”s De algum modo, a atitude do casal Guedes pode-se enquadrar nas acções das missões protestantes que, actuando à margem do quadro institucional do poder colonial, punham em prática uma filosofia, cuja origem radica na filantropia abolicionista dos EUA, com a promoção da publicação de nar rativas autobiográficas de ex-escravos ou escravos fugitivos. Essa filosofia circulou na África Austral nas áreas de influência dessas missões, nomea damente na África do Sul, Moçambique e antigas Rodésias (hoje Zâmbia e Zimbábwè) e o seu conteúdo pode-se sintetizar em algumas ideias-chave, nomeadamente a capacidade intelectual do africano face ao europeu, de que a escritaseria uma prova, e as arbitrariedades dos sistemas coloniais. Com as proporções devidas ao distanciamento temporal e condições histó ricas, a proximidade do arquitecto à missão suíça, a sensibilidade de Dori, reconhecida por Honwana como se percebe pela epígrafe, e o convívio com escritores sul-africanos como Richard Rive ou Nadine Gordimer coloca vam-nos numa esfera de apadrinhamento análoga ao fenómeno norte-ame- ricano das autobiografias 'sugeridas' e apadrinhadas por sectores liberais6. Por outro lado, para Josc Craveirinha, Rui Knopli ou Eugênio Lisboa, movidos por concepções marcadamente estéticas, bastante aproximadas dos critérios oriundos das correntes da arte pela arte em Eugênio Lisboa7 (no caso de Craveirinha acresciam certamente a afectividade e partilha das ideias nacionalistas que os levaram à cadeia), a escrita de Luis Bernardo 5 i.aban. Michel. Moçambique — encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998,p.517. 6 Analiso esta questão com base cm Chitlango filho de chefe (autobiografia sugerida de F.duardo Mondlane) c Tales and songx o f the dark contlnenl (biografia de Kamba Simango por Natalie Curtis)em “Idcntidadc(s) literária(s) e cânone : biografias e autobiografias”. In Literatura moçam bicana as dobras da escrita, Maputo: Ndjira, 2011, p.35-45. 7 Recentemente E.Lisboa confirma o seu posicionamento referindo-se a Rui Knopfli, Adrião Rodrigues e a si próprio: “amávamos os três uma arte livre de imposições ideológicas uma arte que preservasse , acima dc tudo, os valores da arte. ”Ver: Eugênio Lisboa. Acta est Fabula - Memórias- III-Lourenço Marques Revisited- ( 1955-197(5/Guimarães: Opera Omnia, p .318. 5 Honwana surgia como algo valioso e necessário, atendendo ao panorama literário na época que, desde a publicação póstuma de Godido de João Dias em 1952, assistia a um estagnação da ficção narrativa, diferentemente da poesia que, desde os anos 50, se autonomizara, desenvolvera e constituirá num corpus próprio extremamente rico e diverso. Sintomaticamente, a narrativa que dá título ao livro foi incluída numa pequena antologia apresentada por uma delegação da Frelimo à 3a Confe rência de escritores afro-asiáticos em Beirute em 1967 em cuja apresentação se pode ler: “O único prosador que apresentamos é o mais novo dos escritores moçambicanos apresentados. Vivendo e escrevendo em Moçambique, a sua coragem levou-o à prisão onde ainda se encontra. No seu conto “Nós ma támos o cão tinhoso”, além de toda a simbólica que o cão pode sugerir, vale sobretudo como um testemunho do extraordinário poder de observação. Os personagens modelados são gente de carne e osso que todos os que viveram a realidade moçambicana facilmente reconhecem. O mundo da infância reflecte com uma lúcida nitidez o mundo colonialista em que está mergulhado. Tudo isto sem aquela directiva própria dos panfletos, mas num intricado de nuances que o revelou como uma verdadeira capacidade de escritor8. Anteriormente, as opções de escrita de Honwana já se haviam manifes tado em crónicas publicadas nos orgãos em que colaborava. Era visível, em alguns desses textos, um potencial criativo orientado para a necessidade de manter entre a escrita e a leitura uma tensão, própria do material ficcio nal, em que as significações emergiam de forma insinuada, em planos paralelos, deixando à leitura o cuidado de as concretizar, como acontece com o notável “Equilíbrio cromático” publicado no jomal Voz de Moçam bique? arguta interpelação da prática racista da ideologia colonial, que transitando, de forma alegórica para o conto “As mãos dos pretos”, permeia todas as narrativas. s Frelimo. Breve antologia de literatura moçambicana, apresentada à 3a conferência de escritores afro-asiáticos, realizada em Beirute, Líbano, de 25 a 30 de Março de 1967 [ciclostilado], Uma cópia deste documento toi-mc facultada pelo primeiro reitor da Universidade F.duardo Mondlane e militante da Frelimo, Fernando Ganhão, já falecido. 9 Voz de. Moçambique n.°78 de 25/05/63. 6 2 Educado entre a protecção da Missão Suíça e algumas vantagens oriun das do estatuto social da família, Luís Bernardo Honwana fazia então parte de uma pequena burguesia africana letrada, sobrevivente da dinâmica colonial da República, mas já asfixiada pelo salazarismo.10 A vivência até aos dezassete anos no pesado ambiente de uma administração colonial, onde se desenhavam todos os efeitos do sistema (compartimentação e dis criminação raciais, violência das leis, comportamentos individuais) ter-lhe- -á servido de base para a construção de algumas personagens e situações narrativas. Mas a técnica discursiva foi certamente produto de um talento individual e absorção de influências variadas que lhe permitiram inaugurar uma forma de escrita peculiar que, devido ao contexto político que a rodeou, só veio a ser recuperada na década de 80, com jovens autores surgidos depois da Independência como Izaac Zita (Os Molwenes, 1986, obra póstuma) ou Suleiman Cassamo, claramente filiados em Honwana. Em entrevista a Michel Laban, Luis Bernardo Honwana explica como a vivência na cidade, a vida associativa, nomeadamente no Centro Associativo dos Negros de Moçambique, o convívio com jornalistas e escritores mais velhos, provenientes de diversos meios sociais, o seu interesse pelo cinema amador, contribuíram para que a sua visão do mundo se alargasse e que o conhecimento dos fenómenos estéticos e literários se diversificasse e o levasse a opções que a sua juventude não levava a supor, mas que se reflectem de forma criativa c consistente em todas as narrativas incluídas no livro. A opção por uma narração distanciada em que a focalização se processa externamente, como uma câmara em movimento, e que atinge o seu limite máximo cm “Inventário de Imóveis e jacentes” e, a um outro nível, em “Dina” foi um dos recursos que colocaram imediatamente as narrativas num patamar que as distinguiam e ainda hoje conseguem surpreender. Essa opção, sabemo-lo por declarações do próprio autor, colocava-o em sintonia com tendências vanguardistas nomeadamente a estética do nouveau roman 10 As leis discriminatórias só viriam a scr totalmente abolidas com o Decreto - Lei 3893 de 6 dc Setembro de 1961 de Adriano Moreira, o qual punha fim ao F.slatuto do Indígena dc 1953. 7 de Alain Robbe-Grillet que o atraiam e que habilmente conseguiu combinar com uma temática que normalmente não lhes estava associada, em que relações de poder, tensões sociais e raciais estão implicadas. As concepções de Robbe-Grillet, praticadas em La Jalousie (1957) c teorizadas posteriormente em Pour un nouveau roman (1963) levavam à exclusão das motivações psicológicas das personagens e à substituição da narração das acções, por um discurso marcado pela descrição obsessiva dos objectos, despojados de contaminações afectivas, de onde lhe advém tam bém a designação de école du regará (escola do olhar). Diversos estudos de que foram objecto os seus romances vieram questionar a 'acusação' de alienação da realidade social que lhes era feita, destacando-se o ensaio dc Lucien Goldmann Nouveau roman et realité, incluído em Pour une socio- logie du roman (1964) que analisa as relações entre os romances de Robbe- Grillet e a teoria marxista da reifícação e o livro de Jacques Lecnhardt Lecture politique du roman "La Jalousie" d ' Alain Robbe Grillei (1973). O autor de Nós matámos o cão tinhoso serviu-se, pois, das possibilidades teóricas dessa hiperbolização do objecto, explorando-as intensamente em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, remetendo as significações para o que Maria Alzira Seixo, na recensão que fez do livro em 1973, considera ser a revelação, o saldo significativo em todos os contos, uma “conclusão surpreendida (a boca que se tapa enquanto os olhos se alargam)”. É o efeito produzido por essa combinação de estratégias que impõe novos protocolos de leitura e obriga ao preenchimento dos espaços em branco deixados por uma escritaseca e quase desprovida de intromissões por parte dos narradores (ao contrário de Goáido de João Dias em que as intromissões do narrador abundam), mas que, como Honwana sugere, cons tituiu um dos ingredientes do seu sucesso: O apelo à revolta, o apelo à violência, suponho que também se pode fazer dessa maneira: não precisa de ser explícito. Eu suponho ate que esse apelo c mais profundo, é mais duradouro quando seja nào expresso. Se estas histórias termi nassem com as punhadas no peito e as palavras de ordem, se calhar não havíamos de estar aqui, trinta anos depois a falar delas11. n Laban, M, Moçambique encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António dc Almeida, 1998, p. 657-658. 8 Outro elemento diferenciador das narrativas foi a opção por narradores autodiegéticos ou homodiégéticos, isto é, narradores que, tendo participado nos acontecimentos narrados ou sendo deles apenas testemunha, os contam na primeira pessoa, exceptuando-se “Dina” em que o processo continuado e exacerbado de focalização externa, comparável a uma sucessão de planos cinematográficos alternados, impõe outro tipo de narrador. Não se trata, porém, do narrador heterodiegético mais comum que, não participando na história narrada, assegura uma focalização omnisciente, mas dc um narra dor de "grau zero" que se dissolve na sua própria focalização, no olhar absoluto e frio de uma câmara. A escolha estratégica de narradores cujas idades percorrem o ciclo da vida humana, infância (“Nós matámos o cão-tinhoso”, “Inventário de imó veis e jacentes”, “As mãos dos pretos” e “Papá, cobra e eu”) juventude (“Nhinguitimo”), idade adulta (“A velhota”) assim como as características de anti-herói que revelam, não só narradores mas também personagens (Vírgula Oito em “Nhinguitimo” e Madala cm “Dina”), acrescentam às nar rativas uma coerência estrutural que nos permite percebe-las como parte de uma grande narrativa que, retomando ainda Maria Alzira Seixo se revela “larga e impossível, apenas concretizável em fragmentos ou intuições de instante, adivinhando-se cruel o seu desdobramento coerente, impressio nante o salto das suas significações subjectivas.” Há, portanto, na composição destas narrativas uma mestria na manipu lação e combinação de recursos técnico-narrativos reconhecíveis como ino vadores relativamente não só a Godido, mas igualmente às correntes realistas "tout, court", que tomam inevitáveis as aproximações a outros textos regidos por convenções similares, o que terá levado Eugênio Lisboa a assinalar algumas das influências que o livro acusaria, nomeadamente de escritores norte-americanos como Erskine Caldwell, que Honwana não parece subscrever, remetendo antes para Robbe-Grillet e para o escritor norte-americano J.D. Salinger, autor de The Catcher in the rye (1951): Quer directamente, quer por tradução, em Moçambique tinha-se acesso à literatura norte- -americana mesmo aquela que era, na altura, meio experimental. fJ.D.Salinger], mesmo Reverdy, o da literatura do olhar. Esse impacto chegou-nos, Robbe-Grillct. Obviamente que 6 prcciso falar num aspccto magaiça, provinciano, o de as pessoas sc porem nos bicos 9 dos pés para discutirem as coisas que se discutem nessas metrópoles distantes. Tambcm há essa componente, não digo que não. Mas seja como 1'or, desde que não seja uma postura subserviente e imitativa, mas sim uma discussão-apropriação, a pés juntos, acho que está culturalmente certa.12 Há certo de tipo de proximidade entre autores ou de relações arquitex- tuais ou transtextuais entre textos para as quais se encontram motivações óbvias. A forma como o problema afro-americano foi percebido e interio rizado pelos escritores moçambicanos das décadas de 40 e 50, conduziu a anologias inevitáveis e ao questionamento das relações sociais dominadas pelo critério racial predominante na sociedade colonial. O sujeito coloni zado ao definir-se, quebrando o silêncio, passou também a enfrentar a necessidade de interpelar o outro que o silenciava. No caso de Godido, em que João Dias erigiu como modelo o romance Native Son (1940) do escritor afro-americano Richard Wright, motivações e analogias são evidentes. Contudo, ainda que as duas narrativas tenham como cenário a violência da sociedade americana e da sociedade colonial, as personagens são movidas por impulsos diferentes na forma como lhe respondem. Enquanto o prota gonista de Native son não consegue racionalizar as acções violentas que pratica, a motivação e o processo de autoconhecimento são claros em Godido: trata-se da resposta violenta à violência da sociedade colonial. A grande novidade, interesse e valor de Nós matámos o cão-tinhoso foi, por um lado, a mudança de orientação estética na representação dessa mesma realidade, relativamente quer a Godido quer a Portagem (1966)L\ ultrapassando as convenções narrativas que orientam esses dois textos e, por outro, os mecanismos de apropriação e transformação de uma herança literária compósita que se pressente. O predominância de um narrador-protagonista, distanciado da história que narra, em “Nós matámos o cão-tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “A Velhota” e “Papá, cobra e eu” e “As mãos dos pretos” cons tituem um ingrediente que coloca as narrativas numa modernidade próxima de algumas tendências do romance norte-americano, que se desenhavam 12 Laban. up.aí,.p .659-660. ° Não deixa de ser significativo o facto de Orlando Mendes ter indicado no final do romance que o mesmo havia sido escrito nos anos 1950. 10 desde os anos 30, o que tem levado a comparações com Faulkner, Caldwell etc. No entanto, se seguirmos a pista lançada pelo autor de Nós matámos o cão-tinhoso e pusermos em confronto a personagem Ginho da narrativa epónima (replicada nas outras narrativas de 1 .a pessoa), com a postura dis tanciada do jovem Holden Caufield, protagonista de The catcher in the rye que viria a consagrar (e também a amaldiçoar) o escritor norte-americano J.D. Salinger, perceberemos a adequação das estratégias técnico-narrativas de Salinger aos propósitos de Honwana. Tal como o entediado e distanciado jovem de classe média Holden Caufield se impôs como representação de uma juventude rebelde e voz crítica da superficialidade da moral americana, também as personagens- -chave de Honwana protagonizariam por processo idêntico, um poderoso contra-discurso, na forma como interpelavam os sustentáculos ideológicos do sistema colonial. Honwana parece estar longe do tipo de autor descrito por Harold Bloom, em A Angústia da Influência, reflexão centrada na génese dos textos, com descrição dos sucessivos passos percorridos por um autor desde que, marcado por determinada influência, se vai sucessivamente apropriando dela até que a mesma se instale no seu próprio texto, última fase do pro cesso que Bloom designa com o termo grego apophrades - o retomo dos mortos. É nesta relação ambígua entre um escritor e os seus antecessores que Bloom faz centrar a angústia da influência, levando-nos porventura até alguns escritores africanos como Chinua Achebe para nos interrogarmos sobre a forma como as perturbadas personagens de Dostoievsky e de Shakespeare se introduzem nas suas intenções programáticas de construção de um romance africano. Ou então a situar a posição radical expressa a partir dos finais dos anos 80 por Ngugi wa Thiong'o de deixar de escrever em língua inglesa para, desta forma, não contribuir (segundo ele) para o enriquecimento da literatura inglesa, como o grau máximo dessa angústia. Honwana, diferentemente, à distância de algumas décadas, reclama a sua pertença a uma herança literária bastante lata, forjada na cultura dos anos 60, nomeadamente pelo cinema, que considera ter atingido "índices de universalização muito maiores do que aconteceu subsequentemente" (Laban:659). 11 Dando a esta questão uma formulação teórica, sabemos que desde o for malismo russo com Tynianov, e posteriormente com as teorias de Mikhail Bakhtin,a articulação da obra literária com textos literários pré-existentes quebrou a noção de hierarquia pressuposta pelo estudo das fontes e influên cias, em que a relação entre as literaturas se processa segundo uma lógica de subordinação entre quem influencia e quem é influenciado. Em substi tuição dessa noção, desenha-se o conceito de interterxtualidade, mais tarde elaborado por Júlia Kristeva como ”absorção de um texto por outro texto”. Nesta abordagem, hoje amplamente praticada, o texto literário adquire complexidade pela sua inserção num múltiplo conjunto de práticas sociais relevantes (históricas, políticas etc), formando uma malha de significações. Assim, a apropriação será não apenas uma estratégia discursiva cons ciente do escritor, mas também, como refere Benjamim Abdala Júnior: uma apreensão intcrtextual e intcr-scmiótica múltipla da série literária em relação dialética com outras series culturais. [...'] A apropriação não sc restringe apenas a uma operação de colagem ou de bricolagem, como aparcce nas artes modernas e contemporâneas, uma forma dc “dessacralização” do objeto artístico. [...] Na apropriação inerente à produção cultural, a fusão intertextual é múltipla e cada segmento ou instância discursiva dialoga cm vários níveis com o conjunto da vida cultural.M 14 Benjamin Abdala Júnior. De voos e ilhas. Literatura e comunitarismos. Cotria-SP: Ateliê Editorial. 2003, p.113. 3 Em 1971, Luis Bernardo Honwana publicou na revista Vértice “Rosita ate morrer”15, texto escrito na cadeia (Laban:673), posterior, portanto, à publicação de Nós matámos o cão-tinhoso. Sob forma epistolar, este texto tem como característica a exploração do registo linguístico popular da língua portuguesa que, depois da independência, se revelou terreno fértil para muitos escritores, não sem alguma polémica. Honwana, admitindo embora o interesse de experiências de exploração da área vocabular entre as línguas, e o facto de ter gostado de o ter feito, cm “Rosita até morrer”, afirma não ser esse o seu caminho e explica: Eu sou uma pessoa bilingue, tenho esta questão complicada comigo: eu falo ronga e falo português. Tenho a pretensão de poder explorar os limites da expressividade e da elaboração mental quer de uma língua, quer doutra. Então verifico que, por maior que seja o mérito do criador que explora esta área intermédia, o discurso que é produzido pelas personagens 6 um discurso empobrccedor da capacidade mental. Por maior que seja a ginástica que a gente faz, ao ler determinados textos, determinadas falas, temos da personagem a ideia de uma menor capacidade intelectual. Ou porque é uma linguagem meio ridícula, a que se chama preloguês |\..] ou porque, indo buscar um termo a outra língua para se enriquecer o discurso que se faz numa determinada língua, empobrecem-se duas línguas: o resultado é sempre redutor. [...] Dizer isto, obviamente pode parecer uma crítica a estes textos. Há criatividade, há enriquecimento em todo o caso da própria literatura, mas não é o meu caminho. [...] Concordo cm que há um problema aqui. Mas pelo menos podemos admitir que posssa haver mais do que uma solução. (Laban:.673-674). Na realidade, Honwana havia posto em prática essa necessidade de ve rosimilhança, dc forma a adequar as falas das personagens à sua tipificação enquanto representação de uma realidade objectiva, em alguns dos contos, nomeadamente em “Nhinguitimo” e “Dina”, deixando explícito o que é fala em português traduzida de outra língua, pelo narrador em “Nhingui timo” - Vírgula Oito refere, na conversa com os amigos: “Vocês sabem... 13 Vórtice, vol. XXXI, n.° 331-332,(1971), p.634-635. 13 Eu não sei falar como o intérprete ou o enfermeiro, eu não sei falar bem a língua deles e a fala expressa realisticamente em português pela personagem, quando Vírgula Oito fala com o administrador, ou quando, em “Dina”, Maria responde ao capataz - “Eu não está engatar Djimo - res pondeu Maria, tentando falar português.” Aqui colocar-se-ia uma questão de âmbito teórico que é o de nos inter rogarmos, quando se trata de ficção, e tendo em conta o desenvolvimento das técnicas narrativas ao longo do século XX, até que ponto a autonomia do narrador pode ser cerceada por constrangimentos impostos pelo critério de verosimilhança. Ignoro se estas questões terão sido objecto de interro gação por parte do autor ou se terão porventura pesado numa possível mudança de rumo de que “Rosita até morrer” seria um ensaio programado, ou mesmo se terão contribuído para que Luis Bernardo Honwana se tivesse imobilizado enquanto ficionista, perante a perplexidade dos seus entusias mados leitores. Quando Rui Knopfli e Eugênio Lisboa, que dominavam o ambiente literário na época, assinalaram, nas páginas do jornal Voz de Moçambique, a estreia de Nós matámos o cão-tinhoso como “um dos acontecimentos mais significativos na incipiente vida literária moçambicana”, referenciando o seu autor como um dos mais positivos valores no [então] considerado triste panorama dos ficcionistas de Moçambique, transportavam a expectativa de um percurso literário promissor, chamando a atenção para o aparecimento de uma voz já dotada de som próprio, um gosto até, um gozo dc escrever já dé si pronunciados, um exemplo de trabalho e de apuro que já não engana o que fazia esperar uma daquelas obras que ajudarão a edificar, aos poucos, o edifício da almejada Literatura Moçambicana [...]. Mais tarde, em 1971, Eugênio Lisboa viria mesmo a invocar um argu mento de autoridade ao referir a forma como José Regio saudara o “rea lismo fresco e espontâneo” de Nós matámos o cão-tinhoso. Lisboa mantinha então o mesmo entusiasmo em relação ao que considerava, na sua forma característica de se exprimir, a vocação de “novelista ou contista, diabolicamente amadurecido antes da idade, fino chinês, dotado de um sen tido de humor metálico e manhoso e de doas genuínos de repórter írio e 14 articulado, que esconde atrás de uma fachada de monstrosinho uma inte gridade genuina.” Desde então a previsão feita nas páginas de Voz de Moçambique em 1964 foi-se confirmando com as sucessivas edições, dentro e fora de Moçambique, traduções, adaptações teatrais, à medida que se sucederam estudos universitários, se assistiu à sua consagração em programas de ensino e se legitimou a sua enorme fortuna16. Ao cabo de cinquenta anos, Nós matámos o cão-linhoso continua a ser apresentado pela crítica como paradigma de uma forma inovadora da nar rativa de ficção escrita em Moçambique, deixando-se transformar por cada nova perspectiva de análise, tomando-se referência para outros escritores.17 Ao mesmo tempo, desde que as redes sociais permitiram o alargamento do campo de leitura, alguns dos contos, estando disponíveis, encontram uma assinalável recepção por parte de um público leitor cada vez mais vasto. Em cada visita a esta obra solitária, pequena “jóia” do património cultural e literário nacional, e às diferentes leituras que dela são feitas, podemos perceber como, através das suas possibilidades ilimitadas, a lite ratura tem o poder de convocar uma infinidade de diálogos que desassos segam os nossos anódinos quotidianos. Maputo, Janeiro de 2014 Fátima Mendonça 16 Nós Matámos o Cão-Tinhoso. Lourenço Marques, Publicações Sociedade da Imprensa de Moçambique, 1964, [Ilustração de Bertina Lopes]; Lourenço Marques: Académica, 1975; Maputo: INLD, 1978 e 1984; São Paulo: Ática, 1980, Porto: Afrontamento, 1972 a 2000; Lisboa: Biblioteca Editores Independentes (Livro de Bolso) -■ Cotovia, 2008; We killed mangy- dog. London: Hclnemann, 1969; Wir Haben den baudigen hund getõtet enzàhhmgen Leipzig: Verlag Philipp Rcclam, 1980. Noas avons tué le chiert teigneux. Paris: Chcndcigne, 2006; Nosoti-os matámos aiperro-tinoso. Madrid: Baobab editorial, 2009. 17 Nós Matámos o Cão-Tinhoso figura na lista dos 100 melhores livros africanos do século XX seleccionados por um júri internacional, presidido pelo escritor sul-africanoNjabulo Ndcbcle, em 2001, por iniciativa da Feira Internacional do Livro do Zimbábwc. No decorrer da última reunião do júri em Accra, onde estive presente, Njabulo Ndebele referiu a influência das narrativas de Honwana no seu primeiro livro de contos (Fools and other stories, 1983) .Ver tb. Ondjaki “Nós chorámos pelo cão-tinhoso”. In Os da minha m a. Lisboa: Caminho 2007. 15 Bibliografia sobre Nós Matámos o Cão-Tinhosol Afolabi, Niyi Golden Cage; Regeneration in lusophone african litera- ture and culture. Trenton, NJ: Africa World Press, 2001. Afonso, Maria Fernanda - O Conto moçambicano. Lisboa: Caminho, 2004. Anónimo [Rui Knopfli?] - “Esfolando o «Cão-Tinhoso»”. A Voz de Moçambique, Ano V, n.° 124, 11-4-1964, p. 6. Anónimo[Eugénio Lisboa?] - “Perspectiva moçambicana do ano de 1964 Vida Literária”. Voz de Moçambique, Ano V, n.° 161, 3-1-1965, p. 7. Anónimo [Eugênio Lisboa?]- “Perspectiva Sumária da Literatura em Moçambique”. Voz de Moçambique Ano XII, n° 346, 15/08/1971, p. 7-8 Carvalho, Alberto “Ginho, ou a catarse do medo em Nós matámos o câo- -tinhoso”. In Largo mundo alumiado. Braga: Universidade do Minho, 2004, p.49-60. César, Amândio - Parágrafos de Literatura Ultramarina. Lisboa: Sociedade de expansão cultural, 1967, p. 203 - 208. César, Amândio - Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina. Lisboa: Sociedade de expansão cultural, 1971, p. 29. Conrado, Júlio - “Os retratos de Honwana”. Vida Mundial, 5-5-72, p.55. Coutinho, José - “Luís Bernardo Honwana Wir Haben den baudigen hundgetõtet enzãhlungen ”Africa, literatura, arte e cultura n° 9, (Lisboa), Julho/Setembro, 1980, p. 511-513. [Recensão crítica à tradução alemã de Nós matámos o cão-tinhoso]. Farra, Maria Lúcia (dal) - “A identidade de um certo olhar Infantil”. In Les litteratures africaines de langue portugaise. Actes do Colloque Inter national. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1985, p.363-366. Ferreira, Carla - “Nós Matámos o Cão-Tinhoso: abordagens para uma aprendizagem”. 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Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio da Escola, ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada. O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu gostava de o ver, com os ossos todos mostrados no corpo magro, de pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Eu nunca via o Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha. Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo do rabo uns nos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade. Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-Tinhoso. Depois zangavam-se e punham-se a ladrar, mas como ele não dissesse nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar debaixo do rabo uns nos outros e a correr Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada 23 NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO! e avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o que ele queria, teve medo e parou no meio da estrada, mas com a cabcça ainda levantada, as orelhas ainda espetadas e o rabo ainda teso. Só as pemas é que lhe tremiam, mas quase que nem se notava. Ou outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar a olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com eles. Depois, o cão do senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e avançou devagar até onde estava o Câo-Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não o ver e nem se mexeu quando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente. O Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi a correr dizer qualquer coisa aos outros - o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a Mimosa e o Lulu - e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles zangaram-se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então que ele recuou com medo, e, voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com a cabeça baixa, a fazer balanço para poder levantar as pemas e o rabo todo enfiado. Quando passou por mim ouvi-o a chiar com a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis,cheios de lágrimas e tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Mas ele nem olhou para mim e foi pela sombra do pátio da Escola, sempre com a cabeça a fazer balanço como os bois e a andar como uma carroça velha, para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar para o portão da Escola, todos zangados, mas voltaram para o capim do outro lado da estrada para continuar a correr, a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr c a cheirar debaixo do rabo uns aos outros. De vez em quando o Bobí olhava para o portão da Escola e, lembrando- -se do Cão-Tinhoso, punha-se a ladrar outra vez. Ou outros, ao ouvi-lo, deixavam de brincar e punham-se também a ladrar, muito zangados, para o portão da Escola. Às vezes calavam-se. Mas quando se calavam ouviam o Bobí e voltavam a ladrar, todos tão zangados como ele. O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando andava, as 24 Luís Bernardo HotMuna moscas iam com ele, a voar em volta e a pousar nas crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe passar as mãos pelas costas como aos outros cães. Bem, a Isaura era a única que fazia isso, mas a Isaura era maluca, todos sabiam disso. O Quim disse-me um dia que o Cão-Tinhoso era muito velho, mas que quando ainda era novo devia ter sido um cão com o pelo a brilhar como o do Mike. O Quim disse-me também que as feridas do Cão-Tinhoso eram por causa da guerra e da bomba atómica, mas isso é capaz de ser pêta. O Quim diz muitas coisas que a gente nem pensa que podem não ser verda deiras, porque quando ele as conta a gente fica tudo de boca aberta. A malta gosta de ouvir o Quim a contar as coisas de outras terras e os filmes que vai ver lá em Lourenço Marques, no Scala, e as coisas do El índio Apache a jogar luta-livre c a fazer tourada, e aquilo que o El índio Apachc fez ao Zé Luís no Continental. O Quim diz que El índio Apache só não vai ao focinho do Zé Luís porque não quer. O Quim disse-me isso de o Cão-Tinhoso ser muito velho quando um dia o vimos a bocejar sem dentes na boca. Foi nesse dia que me contou a his tória da bomba atómica com os japoneses pequeninos a morrer todos que era uma beleza e o Cão-Tinhoso a fugir depois de ela rebentar e a correr uma distância monstra para não morrer. O Quim não me contou a história toda logo de uma vez e disse que só a acabava se eu me portasse bem lá dentro, na prova. Eu passei-lhe quase toda a prova mas a Senhora Profes sora topou e deu-lhe 8 reguadas no rabo. Quando saímos eu não lhe pedi para acabar a história da bomba atómica porque ele era capaz de se lembrar do que a Senhora Professora lhe tinha feito lá dentro c zangar-se comigo. Ele só a acabou à tarde no Sá, antes de começarmos a jogar o setc-e-meio a cigarros. Todos ficaram de boca aberta a ouvir. Até o Sá deixou de atender os clientes para ouvir o Quim a contar. Ele contou tudo desde o princípio sem ninguém pedir, mas era diferente daquilo que tinha começado a contar na Escola, porque já não metia o Cão- -Tinhoso. Eu não disse nada porque ele era capaz de se zangar comigo. O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas, e em muitos sítios não tinha pelos nenhuns, nem brancos nem pretos e a pele era preta e cheia de rugas como a pele de um gala-gala. Ninguém gostava de lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães. A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo todo 25 NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO! com ele, a dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe festinhas, mas a Isaura era maluca, todos sabiam disso. A Senhora Professora já nos tinha dito que ela não regulava bem c que o pai a havia de tirar da Escola pelo Natal. A Isaura não brincava com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe. A Senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros na cópia, e dizia-lhe que sé não lhe dava reguadas porque sabia que ela não tinha tudo lá dentro da cabeça. A Isaura parecia não entender, e ficava com aquela cara de parva a olhar para todos os lados à procura de não sei quê, como dizia a Senhora Professora. Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada e a gente dizia — «Não se ouve nada, não se ouve nada» e a Senhora Professora dizia que os meninos da quarta classe não tinham nada que ouvir. Então os meninos da segunda classe começavam a dizer: «Não se ouve nada, não se ouve nada». A Senhora Professora zangava-se e fazia uma bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as outras meninas faziam uma roda com a Isaura no meio e punham-se a dançar e a cantar: «Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso». A Isaura parecia que não ouvia e ficava com aquela cara de parva, a olhar para os lados à procura de não sei quê, como dizia a Senhora Professora. Houve um dia em que falei com a Isaura. Foi assim: Estava sentado nas escadas da Escola, mesmo em frente ao portão, a comer o lanche. Era o intervalo do lanche. A Senhora Professora estava a ler um livro e passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo para a outra. Como ela passava por mim (ouvia os sapatos, cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava a pensar para saber se me havia de levantar ou não quando ela passava, porque era chato levantar-me todas as vezes que ela passava por mim. De resto, era mesmo capaz de estar a pensar que eu não dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde passeava, e não me perguntar depois, na aula, se os meus pais não me davam educação. Eu estava a pensar nisso e a comer o lanche, quando vi que a Isaura olhava para todos os lados a procura do Cão-Tinhoso. Depois foi lá para fora e espreitou a estrada toda. Como não visse o Cão-Tinhoso, ficou no portão a olhar para todos os lados até que me viu. Ficou uma quantidade de tempo a olhar para mim e, depois, veio até às escadas, a andar devaga rinho e de lado, subiu-as, e quando chegou perto de mim voltou-se para uma coluna e pôs-se lá a riscar qualquer coisa, muito distraída. Perguntou-me 26 Luis Bernardo Honwana como se estivesse a falar com outra pessoa que eu não via: - Viste o meu cão? Heim? Viste? Como eu não desse nenhuma resposta, porque era a primeira vez que ela falava comigo, insistiu: - Não passou lá para fora?... Nisto, o Cão-Tinhoso apareceu no portão, a andar devagar, com uns pas sos tão malucos que parecia uma carroça velha, e com a cabeça a fazer o balanço como os bois. Parou um bocado, e depois, em vez de ir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, veio para as escadas. Eu disse: - Está ali. A Isaura voltou-se logo: - Aonde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear? A Senhora Professora parou mesmo atrás de mim (ouvi o cóc, cóc, cóc dela a vir e um cóc mais forte mesmo atrás de mim. De resto, senti o cheiro dela em cima de mim). A Isaura tinha corrido logo, escadas abaixo, a agarrar-se ao Cão-Tinhoso, quando a Senhora Professora disse: - Ó menina, que pouca vergonha é essa? Vai já lavar as mãos! Eu estava ainda a pensar para saber se me havia de levantar ou não, porque ouvia-a mesmo por sobre as minhas costas, embora não a estivesse a ver. A Isaura afastou-se do Cão-Tinhoso e virou-se para a Senhora Profes sora. O Cão-Tinhoso ficou também a olhar para ela. Foi aí que a Senhora Professora disse para o Cao-Tinhoso: - Suca! O Cão-Tinhoso ainda ficou um bocado a olhar para a Senhora Profes sora, com os olhos grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Eu vi-lhe as lágrimas a brilhar em riscos no focinho. A Senhora Professora deu um grito para o Cão-Tinhoso ouvir bem: - Suca daqui! O Cão-Tinhoso voltou-lhes as costas e desapareceu pelo portão fora, sem dizer nada, com o seu andar de carroçavelha e com a cabeça a fazer balanço como os bois. A Senhora Professora continuou a andar (cóc, cóc, cóc de uma ponta da varanda para a outra) e Isaura ficou um bocado a olhar com aquela cara de parva para o sítio atrás de mim onde a cara da Senhora Professora devia ter 27 NÓS MATÁMOS O CÂO-TlNHOSO! estado, e depois veio devagarinho e a andar de lado e encostou-se outra vez à coluna, muito distraída a riscar na cal. Daí a bocado disse-me: -Viste?... E eu disse: -V i. E cia: - Correu com ele... E eu: - Sim. Ficámos um bocado sem falar e depois ela veio numa corridinha pôr- -se-me em frente para me olhar com força. Os cantos dos olhos dela come çaram a encher-sc de lágrimas e quando os olhos estavam cheios elas rebentaram e caíram-lhe pela cara abaixo, a fazer dois riscos grossos. Perguntou-me: - Viste?... Viste o que ela fez?... Eu respondi: -V i. E ela: -E la é m á ... Ém á... Eu não disse nada e ela continuou: - Todos são maus para o Cão-Tinhoso... Os olhos dela não eram azuis, mas eram grandes e olhavam como os olhos do Cão-Tinhoso - como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Depois ela foi-se embora, lá para trás, onde os outros estavam a comer os lanches e a brincar. O Senhor Administrador cuspiu para nós os dois e disse aquilo do Cão-Tinhoso, mas era só porque ele e o parceiro tinham levado uma lirapa-q u atro-bolas: O Cão-Tinhoso costumava aparecer no Clube aos sábados à tarde para ver a malta a treinar futebol. Eu não sei porque é que o Cão-Tinhoso gostava disso, mas a verdade é que ele estava lá todos os sábados à tarde. Houve um dia que a malta quis fazer um desafio a serio e não me deixou jogar. O Gulamo nem me deixou jogar à baliza. Ele disse-me: «Aguenta um bocado na varanda do Clube. Ficas como suplente. Daqui a pouco entras, mas há-dc ser quando estivermos à rasca ou a perder, porque aí entras tu e a gente resolve o jogo». Eu vi logo que eles não me haviam dc 28 Luís Bernardo I lonwdtta deixar jogar porque o jogo era a dinheiro e quando e assim eles não me deixam. Isso de eu ficar como suplente era o que eles diziam quando não queriam que eu jogasse, mas eu não disse nada e fui para a varanda do clube. O Cão-Tinhoso estava lá. O Senhor Administrador e os outros estavam na varanda do Clube, a jogar à sueca como também era hábito todos os sábados à tarde. Eu estava a olhar para o Senhor Administrador quando ele e o parceiro levaram um capote e ele disse ao Doutor da Veterinária, que se estava a rir todo satis feito, por lhe ter dado o capote: «Não acho graça nenhuma... Isso foi leiteira». Depois olhou para mim e viu que eu também me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e viu-o também a rir-se. Por isso zangou-se e perguntou aos outros: «Eh! Quem é que disse que isto não era a Arca dc Noé?». Depois continuaram a jogar à sueca e o Senhor Administrador e o parceiro levaram uma limpa-quatro-bolas. Eu estava a olhar para ele quando ele disse ao Doutor da Veterinária que se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas: «Mas qual é a piada, pôrra? Com os trunfos todos na mão quem é que não fazia o que vocês fizeram? Olha filho, toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteira...» Depois olhou para mim e zangou-se. Ele sabia que eu sabia que ele estava a perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual de nós os dois havia correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os dois, isto é, para um sítio entre nós os dois. Está^-se mesmo a ver que o cuspo tanto era para mim como para o Cão-Tinhoso. O Doutor da Veterinária ainda se estava a rir por lhe ter dado a limpa- -quatro-bolas e ele acabou com aquilo dc uma vez: - Ouve lá, o que é que este cão está a fazer ainda vivo? Está tão podre que é um nojo, caramba! Bolas para isto! Ai que eu tenho de me meter em todos os lados para pôr muita coisa em ordem. O Senhor Chefe dos Correios, que era o parceiro do Senhor Adminis trador, já estava a dar as cartas nessa altura, e por isso ficaram todos a ver quantos trunfos é que lhes haviam de sair. Eu fiquei um momento a olhar para aquilo tudo até compreender o que o Senhor Administrador queria dizer: - O CÃO-TINHOSO VAI MORRER! Olhei para ele: estava a dormir com a cabeça entre as patas, muito descansado da vida. Fui a correr para o campo de futebol para avisar a malta: «O Cão-Tinhoso vai 29 NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO! morrer». - O Gulamo disse-me: «Fora daqui!» - Agarrei-me a ele e voltei a dizer-lhe que o Cão-Tinhoso ia morrer: «Larga-me». Ele só dizia isso. «Larga-me» - Mas estava quieto. Ficámos os dois a ver uma avançada do grupo do Quim. O Faruk, que era o ponta direita deles, foi com a bola até ao canto, depois de ter batido o Narotamo em corida, e de lá centrou. O Quim passou por nós a correr para a baliza, mas o Gulamo só dizia: «Larga-me». O Quim meteu o golo com uma cabeçada. O Gulamo foi logo a correr: «Este golo não valeu porque este tipo estava a agarrar-me». O Quim e os outros não quiseram saber: «Isso é que vale, estás a ouvir?» Depois o Gulamo veio ter comigo: - Ó filho da mãe, suca daqui para fora e não voltes a chatear, estás a ouvir? Suca daqui antes que eu te rebente o focinho! Bem, como o Gulamo dizia aquilo muito zangado eu fui-me embora para fora do campo, mas fiquei chateado porque os outros não queriam saber do Cão-Tinhoso. Quando ia já a sair do campo, o Teimo correu para mim e pôs-se a bater- -me na cabeça e a gritar: - Só, só, só mais um! Só, só, só mais um!... Agarrei-lhe os braços e disse-lhe o que ia acontecer ao Cão-Tinhoso, mas ele continuava: - Só, só, só mais um, só, só, só mais um... Tive vontade de bater no Teimo, mas o Gulamo estava ali perto a olhar para mim com os braços cruzados no peito e tive mesmo de me ir embora. Quando passei pela varanda do Clube, o Senhor Administrador e os outros estavam muito entretidos a jogar à sueca, e o Cão-Tinhoso estava muito quieto, a dormir com a cabeça entre as patas sem ter percebido o que lhe havia de acontecer. Na segunda-feira de manhã fui ver o Cão-Tinhoso logo que cheguei à Escola. A Isaura estava ao pé dele e dava-lhe o lanche dela, partindo o pão aos bocadinhos e espalhando-os perto da boca do Cão-Tinhoso, que ia comendo devagar, porque levava muito tempo a mastigar. Quando tocou para entrar, a Isaura despediu-se dele e veio a correr para a chamada. Lá dentro, enquanto fazia as contas e o desenho, e mesmo durante o ditado, fui pensando no Cão-Tinhoso a ser morto pelo Doutor da Veteriná ria, depois de ter escapado da bomba atómica e tudo, depois de ter corrido 30 Luís Bernardo / hnwana uma distância monstra para não morrer por causa da bomba atómica. O Doutor da Veterinária se calhar não tinha vontade nenhuma de matar o Cão-Tinhoso, mas como é que ele havia de fazer, coitado, se foi o Senhor Administrador que mandou? Perguntei ao Quim como é que o Doutor da Veterinária havia de matar o Cão-Tinhoso, e ele disse-me: «Um cão mata-se com antibióticos». Eu perguntei-lhe o que era isso de antibióticos e ele zangou-se e disse: «O seu burro!». E depois de se calar um bocado e continuar a fazer o desenho, voltou a falar, mas já sem estar zangado: «Meu Deus, quem é que te manda ser tão besta? E quem é que me manda ter tanta paciência para te aturar. É que ainda por cima não sei em que língua é que te hei-de falar porque não percebes nada de português, chiça?! Um cão mata-se com uma bala de Ponto 22. Sim, para ti tem de ser assim. É com uma bala de Ponto 22 e pronto, arre!» Calou-se mas continuou: «Ou com antibióticos...». E pouco depois disse: «A não ser que o Doutor da Veterinária seja tão burro como tu que só o possa matar com uma bala de Ponto 22». - Ó meninos, isto não é um bazar, heim... - - Era a Senhora Professora. - O que é que o Quim te estava a dizer? Sim, tu, Ginho. Responde! Eu ia a responder mas o Quim deu-me um beliscão. - Não queres dizer? Será preciso usar a régua no teu rabinho? - Não era nada, Senhora Professora,era por causa do Cão-Tinhoso. O Doutor da Veterinária vai matá-lo. - Vocês não têm tempo para tratar desses sigilosos negócios de estado durante a hora do intervalo? - Temos, sim, Senhora Professora. - Então toca a fazer o desenho e bico calado. Ficamos de bico calado a fazer o desenho. Quando chegou a hora do intervalo a Isaura veio ter comigo, muito aflita: - O que é que tu e o Quim estavam ali a dizer? Eu já tinha falado com ela uma vez, mas era como se fosse a primeira vez, porque fiquei sem saber o que lhe havia de responder. - O que é que tu e o Quim estavam para ali a falar do Cão-Tinhoso? - Nada ... - Vão matá-lo? O Doutor da Veterinária vai matá-lo? 31 NÓS MATÁMOS O CÀO-TINI lOSO! - Não, isso é mentira do Quim... - Então, porque é que estavam a falar nisso? - Para passar o tempo. É que o desenho era chato... - Vocês não sabem que não devem dizer mentiras? (Ela estava a armar em Senhora Professora ou qualquer outra pessoa já crescida). - O Quim é que disse mentiras, foi o Quim... A Isaura respirou fundo (ainda a armar em pessoa crescida) e foi a correr para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Antes de chegar lá parou e voltou-se para mim com as mãos a tapar a boca, mas como visse que eu ainda estava a olhar para ela voltou-me as costas e continuou, mas mais devagar. O Cão-Tinhoso viu-a chegar e pôs-se logo a abanar o rabo e a balancear a cabeça como os bois, embora não estivesse a andar. A Isaura ajoelhou-se diante dele, agarrou-lhe a cabeça e pôs-se a dizer-lhe uma data de coisas que não ouvi. Depois sentou-sc sobre os calcanhares, cruzou os dedos no regaço e pôs-se a olhar para as mãos. Eu estava mesmo atrás dela quando ela disse: - Não ligues a isso tudo porque é pêta do Quim, o Doutor da Veterinária não te quer matar nem nada, isso é pêta. Nós ainda vamos falar das nossas coisas e eu hei-de dar-te de comer todos os dias. Também posso vir à tarde depois da hora do lanche c trazer-te de comer, a minha mãe não diz nada. Cão-Tinhoso! Não sejas malcriado! O que é que estás a querer ver debaixo das minhas saias? - E puxava a saia para tapar os joelhos. - Oh! Desculpa- -me, Cão-Tinhoso! Estás a ver a barra da minha saia nova! Desculpa-me, eu devia saber que não és como esses meninos malcriados que andam por aí. Não tinhas visto ainda a minha saia nova? Tem muita roda, queres ver? - Levantou-se e esticou a saia pelos lados para mostrar a roda que tinha. Estava a dar uma voltinha quando me viu mesmo atrás dela. Ficou de boca aberta a olhar-me e depois virou-se para mim com a boca muito fechada e de mãos nas ancas: - O que é que você quer daqui? Fingi que estava a apanhar qualquer coisa com que tivesse estado a brin car e tivesse ido parar ali sem ser de propósito, e depois fui-me embora a fingir que metia a coisa ao bolso. Um dia, o Senhor Duarte da Veterinária veio ter connosco quando estávamos no Sá a contar filmes e anedotas e disse-nos: - O rapazes, tenho uma coisa para vocês. 32 I m í s Bernardo Honwatta Claro que fomos todos atrás dele até ao muro da Veterinária. - Oiçam, ó rapazes, tenho uma coisa para voccs - repetiu - depois de se sentar ao alto do muro, com a malta toda em volta. - É mesmo uma coisa para a malta. - Calou-se por um bocado e olhou para as nossas caras. «E uma coisa dc malta, mesmo de malta (agora só olhava para as unhas com os olhos quase fechados por causa do fumo do cigarro). E coisa que eu com a vossa idade não deixaria de fazer, se me pedissem para fazer. Bem, voccs sabem, que o Doutor mandou-me dar cabo de um cão, aquele, vocês conhecem-no, aquele que anda aí todo podre que é um nojo, vocês não o conhecem?... Ora bem, o Doutor mandou-mc dar cabo dele. Bem, eu já o devia ter liquidado há mais tempo, mas o Doutor só me disse esta manhã. Bem, acon tece que eu tenho visitas em casa e é bera estar agora a pegar em armas e zuca-zuca atrás de um cão, vocês compreendem, não é rapazes?... Mas eu nem me afligi porque pensei para cá comigo - que diabo, os rapazes estão sem fazer pêva e é para as ocasiões que a gente conta com os amigos - e pensei logo em vocês, porque já se vê, vocês até devem gostar de mandar uns tiritos, hem? Bem, calem-se não digam mais, eu já sabia que vocês são malta fixe. Olhem rapazes, vocês pegam aí numa corda qualquer, procuram lá o cão e levam-no para o mato sem grandes alaridos e aí ferram-lhe uns tiritos nos comos, que tal?... Está bem, está bem, calma, deixem-me acabar de falar»... (O Quim bateu-me na boca - «Deixa ouvir o Senhor Duarte, caramba!»). «Olhem, vocês, cu sei que vocês andam por aí aos tiritos às rolas e aos coelhos, olhem que eu sei... Mas deixem lá que eu não levo a mal, malta é malta, isto é assim mesmo, eu só não quero é que façam as coisas à minha frente porque tenho rcsponsabilidades, vocês sabem. Ora, vocês já têm armas e por isso não tenho de vos emprestar as Ponto 22 daqui da Repartição, aliás uma chega, mas se vocês quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada com isso... Mas, pst, sem fazer um cagaçal que se oiça aqui na vila, heim?... Pronto, rapazes, ide, ide divertir-vos um pedaço, mas cuidado lá com as armas, hem? Nada de desatar a ferrar tiros nos comos uns dos outros...». 33 NÓS MATÁMOS O CÀO-TINHOSO! A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte tcvc de se pôr de pé ao alto do muro da Veterinária para nos chamar de novo. Depois esperou que chegássemos bem ao pé dele para nos olhar bem nas caras antes de falar com os olhos outra vez quase fechados por causa do fumo do cigarro: «Oiçam, rapazes, eu estou a falar entre homens, porra! Isto escusa de ser propalado por aí aos quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dar um prazer à malta porque sei que vocês gostam de dar uns tiritos de vez em quando e eu não levo a mal. .. .Sim, sei que vocês gostam de dar por aí uns tiritos às rolas e aos coe lhos, mesmo sem terem licença de uso e porte de arma, para não falar da licença de caça, e vocês sabem que se são apanhados por mim ou por um fiscal de caça, chupam uns mesecos de prisão que se lixam. Mas deixa lá que cu não levo a mal nem digo a ninguém que vocês usam as armas dos vossos pais ilegalmente. Eu só quero que não me façam essas coisas mesmo debaixo do nariz, porque tenho responsabilidades, vocês sabem. Mas eu não levo isso a mal, porque conheço bem a malta, mas isto não é para ser espalhado por aí, vocês não acham? De resto, isto nem tinha de ser dito, porque estou a falar entre homens...» - Fique descansado, Senhor Duarte... - Foi o Quim. - Pronto, rapazes, ide divertir-vos, mas pouco alarido ... O Sá, da varanda da loja, fazia-nos sinal para lhe irmos contar o que o Senhor Duarte nos tinha dito, mas nós nem olhámos para lá. Fomos logo para a escola, e no canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Pro fessor lá estava o Cão-Tinhoso a dormir. Quando nos viu, levantou-se e veio por ali fora a cobrejar, todo cansado, com as patas a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, sem saber que nós queríamos matá-lo e veio encostar-se às minhas pernas. Depois de estar um bocado assim encostado, deixou escorregar o trazeiro e sentou-se. Eu senti-o a tremer como não sei o quê, enquanto os outros combinavam, e via os meus sapatos a brilhar onde ele os lambia. - Ouve lá, tu deixas esse cão todo podre que é um nojo encostar-se a ti? - O Faruk estava sempre a meter-se comigo, mas o Quim queria combinar a coisa e não queria ouvir o que ele dizia: - Deixa lá, é preto e basta, deixa lá... Bem, malta, o cão não sai daqui e a gente vai cada um para a sua casa buscar as armas e depois levamo-lo para a mata atrás do matadouro e damos cabo dele, ó quêi? - Como é que o levamos? Eu é que não o levo às costas... 34 Imíc Bernardo Honwana - Ó minha besta! - O Quim não gostava daquelas piadinhas. - E isso seria demais? - Como é que vocês, os quadrúpedes, costumam levar as coisas? - Depois virou-sc para mim: - Toucinho, tu trazes aquela cordaque tens na tua casa debaixo do canhueiro. - E quem c que leva o Cão? - Eu não queria levar o Cão-Tinhoso. - A gente depois atira uma moeda ao ar e vê quem é que o leva. - Não me digam que este gajo também atira... - Ó malta, vamos fazer o que o Senhor Duarte mandou ou não? Fomos todos a correr para ir buscar as armas. Quando cheguei a casa, a minha mãe estava sentada numa esteira mesmo à porta. Escondi-me atrás de uma árvore para pensar como é que havia de levar a minha Ponto 22 de um tiro sem ela se zangar, mas ela viu-me logo e chamou-me: «Ginho! O que é que estás aí a fazer todo escondido»? - Corri para ela e entrei em casa saltando-lhe por cima das pemas. «Eh! Que brincadeira é essa» - Mas eu já não a ouvia. Fui buscar a arma e voltei muito devagar, sem fazer barulho nenhum, até ao corredor. Depois corri com força e saltei por cima dela. - «O que é isso? Para onde c que levas a espingarda? Anda cá! Olha que eu queixo-me ao teu pai!» Só parei um bocado para levar o rolo dc corda debaixo do canhueiro. Depois não ouvi mais os berros dela. Enquanto corria para a escola fui pen sando que afinal até era bom matar o Cão-Tinhoso porque andava todo cheio de feridas que era um nojo. E até era bem feito para a Isaura que an dava cheia de manias por causa dele. Quando cheguei à escola, apalpei o bolso da camisa para sentir as balas a esfregarem-se umas nas outras. Bem, esqueci-me de dizer que, quando fui buscar a espingarda, também levei al gumas balas. Se não as levasse, como é que havia de matar o Cão-Tinhoso? Nós éramos 12 quando fomos para estrada do Matadouro com o Cão-Tinhoso. O Quim, o Gulamo, o Zé, o Xangai, o Carlinhos, o Issufo e o Chico, iam pelo meio da estrada com as espingardas apontadas para a frente. Atrás deles ia o Faruk, que não tinha espingarda, a arrastar o Cão-Tinhoso pela corda. O Cão-Tinhoso não queria andar e chiava que se danava, com a boca fechada. Nós, eu e o Teimo dc um lado, o Chichorro e o Narotamo do outro lado, íamos também armados, meio metidos no capim, como o Quim tinha mandado, a bater o mato. Eu não entrava muito pelo capim, porque, quando me aparecia uma micaia pela frente, eu contomava-a pelo lado da estrada 35 NÓS MATÁMOS O CÀO-T1NHOSO! do matadouro, por onde o resto da malta ia, e volta e meia o Quim tinha de me perguntar se eu ia a bater o mato ou quê, porque eu só queria era olhar para o Cão-Tinhoso, a chiar, que se danava e mais aquele barulho de ossos lá dentro dele que às vezes ouvia quando o Faruk o puxava com força, e mesmo lá na escola, no canto das camas dc poeira das galinhas do Senhor Professor, quando ele andava. Quando chegámos ao matadouro os mulequcs do Costa vieram ver a malta a passar: - Onde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça? Mas quele cão num prrêsta! - Fora daqui, negralhada! - Era o Quim. Os muleques julgaram que o Quim falava na brincadeira e não se mexeram, mas o Quim apontou-lhes a arma e repetiu: - Fora daqui, negralhada, fora daqui cabroada escura! Desapareceram todos num instante, a correr, que batiam com os calca nhares no cú, como dizia o Quim. Avançámos para o mato, mas eu tinha a certeza de que eles nos estavam a seguir. - O pá, vocês ajudem-me, - era o Faruk - venha outro tipo puxar o sacana do cão... - O pá, mas a gente mandou uma moeda ao ar e ficaste tu ... - Então mandem outra vez... - Bolas, assim não! Nós tínhamos combinado... Bem, ôquei... O Quim olhou para mim: - Toucinho, anda tu! - Ó pá, mas eu vou a bater o mato como tu disseste... - O Faruk fica a bater o mato! - Ó pá, não há direito... - Não há uma ova! Vai tu e não refiles! Dá a tua arma ao Faruk! Os outros pararam um pouco atrás. Eu sabia disso, mas não fui capaz de parar. O Cão-Tinhoso agora ia à frente de mim e eu é que andava deva gar. Eu via-o de cabeça esticada para a frente e de rabo espetado. Andava todo inclinado para a frente, com as pernas a fazer músculos com o esforço dc fugir da corda que lhe apertava o pescoço. Tínhamos entrado muito pelo mato adentro mas estávamos num sítio onde não havia árvores c só havia capim. As árvores estavam à nossa frente e o Cão-Tinhoso queria ir para lá. Às vezes ele nem se via no capim alto, 36 Luís Bernardo H onuuru mas de vez em quando andava tão depressa, que a corda se esticava e eu tinha de andar um pouco mais depressa para não sentir na mão, na cabeça, aqui dentro, no corpo todo, a força dos ossos dele a chiar, a chiar, c a chiar. - Ei, para onde é que levas isso? Parei e o peso veio todo na corda para dentro de mim. Virei-me devagar e vi o Quim a meter um cartucho na Calibre 12 de Dois Canos. - Ó Chico, o que é que dizes, SG ou 3A? - Agora falava com o Chico, com o cartucho meio metido num dos canos e com o dedo a empurrá-lo devagarinho lá para dentro da câmara. O Cão-Tinhoso atirava-se todo para a frente e chiava com a boca fechada, com os ossos lá dentro da pele, e eu sentia aquilo tudo a entrar- -mc pelo corpo adentro através da corda esticada. - Ó Quim, pá, põe-lhe o número 4, não sejas bera que com isso escan galhas o cão todo, pá!... - Ouve lá, para onde é que levas isso? - Eu estava parado, a sentir tudo aquilo do Cão-Tinhoso que vinha pela corda esticada. O Cão-Tinhoso virou-se para mim e atirou-se para trás de recuo a chiar por todos os lados. Eu sabia que ele me estava a olhar com os olhos azuis, mas não pude deixar de olhar para a malta, que a estava a fazer meia roda, andando devagar e sem fazer barulho, sempre a armar e a desarmar as espingardas. O Quim, em cima de uma pedra, olhava para mim com o cartucho meio metido num dos canos de Calibre 12. O Faruk agarrava com força a minha Ponto 22 de Um Tiro, e já lhe tinha metido uma bala expansiva na câmara. Ele era o único que não estava sempre a mexer na culatra para armar e desarmar a espingarda. - Ó Quim, não atires com SG nem com 3A que isso c chato... -N ão atires, Quim, isso é bera... - Assim, o gajo quina logo... - Ó Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte disse que nós também podíamos atirar... - Pôça, Quim, isso não! O Cão-Tinhoso já não fazia força e de repente senti a corda lassa. Daí a pouco o Cão-Tinhoso encostava-se às minhas pemas, todo a tremer c a chiar baixinho. O Quim acabou de meter o cartucho num dos canos da espingarda e endireitou-a devagar até fechar a câmara. A arma ficou voltada para mim. Eu não pude olhar mais para lá, mas era por causa dos olhos do Quim, que 37 NÓS MATÁMOS O CÂO-TINHOSO: mc olhavam quase fechados, a brilhar sem ele estar a chorar. O Cão-Tinhoso olhava-me quando me voltei para ele. Os seus olhos azuis não tinham brilho nenhum mas eram enormes e estavam cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar para mim como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Quando eu olhava para eles sentia um peso muito maior do que quando tinha a corda a tremer de tão esticada, com o chiar dos ossos a querer fugir da minha mão e com os latidos que saíam a chiar, afogados na boca fechada. Eu tinha uma danada vontade de chorar mas não podia fazer isso com aqueles todos a olhar para mim. - Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-o das feridas e escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas que é um nojo... O Quim olhou para mim como se nunca me tivesse visto em nenhum lado, mas respondeu aos outros: -Vocês que se lixem, eu atiro com o cartucho que quero e pronto! -A tiras um raio é que atiras! Não julgues que temos medo de ti! O Quim olhou para o Gulamo c perguntou devagar e em voz baixa: - Ó meu filho da mãe, queres que eu te rebente o focinho? - Rebentas uma ova, tu aqui não armes em mandão que eu não tenho medo de ti. - O Gulamo tinha se virado para o Quim, com arma e tudo. - Ouve lá, queres ter alguma coisa comigo, monlié de um raio? O Quim não teve medo da arma do Gulamo. - Isso era o teu avô, meu labreguinho ordinário! Nunca te contaram issolá na tua aldeia? Seu maguerre!... - Monhé! Filho de um corno! - O Quim, não atires com SG nem com 3a que isso é ser chato... - Não atires, Quim, isso é bera... -Assim , o gajo quina logo... - Ó Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte disse que nós também podíamos atirar... - Pôça, Quim, isso não! O Quim tinha descido da pedra e avançava para o Gulamo. O Cão-Tinhoso chiava baixinho e roçava-se pelas minhas pemas a tremer. O Faruk agarrava a minha espingarda com força e apontava-a para mim com as pemas afastadas, mas olhava para o Cão-Tinhoso, com os olhos grandes de medo. Todos os outros tinham os olhos cheios dc medo 38 Luís Bernardo H ouuwm quando olhavam para os olhos azuis do Cão-Tinhoso. - Eh, malta, vamos acabar com isto que é tarde e está quase escuro. Vocês não desatem aqui aos tiros para os comos um do outro... O Quim parou e virou-se para o Xangai: - Cornos tem o teu pai, estás a ouvir? Eu não deixo que um monhé abuse sem levar na cara! De mim ninguém se fica a rir... E se ladras mais também comes no focinho... Tu ou qualquer outro! Vocês todos estão a ouvir? Se me chateiam comem... Eu rebento-vos... Eu escangalho-vos... Eu... Seus cachorros! Seus capados! A mim ninguém levanta a voz! Nem o sacana do meu pai, estão a ouvir? Eu mato-vos, eu limpo-vos o sarampo... Cães! Cães danados! Filhos da puta! Fi-lhos-da-puta, filhos-da-pu-ta! Fi-lhos-da-puta... Vocês querem alguma coisa comigo? Querem?... O Quim gritava como um doido, mas o Gulamo não tinha medo dele porque começou a arregaçar as mangas da camisa. Já estava quase escuro e o Cão-Tinhoso tremia contra as minhas pernas como não sei quê. - Eh pá, vamos deixar isto para o outro dia, - o Faruk olhava para o bri lho do cano da Ponto 22 de Um Tiro - vamos deixar isto para amanhã ou outro dia... Ele talvez ficasse por aqui, mas como o Quim deixasse de berrar para ouvir o que ele dizia, continuou: - E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro, com tantas espingardas... O Quim gritou logo: - O meus filhos da mãe, vocês estão com medo? Só eu é que respondi: - Eu estou com medo - custou-me dizer aquilo porque mais ninguém estava com medo, mas foi melhor assim - eu estou com medo, Quim... Apesar dc já estar quase cscuro eu via os meus sapatos a brilhar nos sítios onde o Cão-Tinhoso os lambia. Mesmo com o capim e tudo. O Quim e a outra malta riam-se com força e o Gulamo rebolava no capim de tanto se rir por eu ter medo. - Esta é forte, malta - dizia o Quim, com a boca toda aberta c os olhos a chorar dc tanto se rir por eu ter medo. - Esta é que foi - dizia o Gulamo que nem se via por estar a rebolar no capim. Os outros riam-se muito, também. Parece que eu tive muita vergonha por ter dito aquilo. Voltei a sentir um 39 NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO! peso monstro dentro de mim e no pescoço. Eu não me mexia para os outros não se rirem mais de mim, mas as pemas tremiam-me por causa do Cão-Tinhoso, a tremer encostado a elas. - Esta é forte! - 0 Quim berrava outra vez. - Esta é forte! - O Gulamo dizia isto enquanto rebolava no capim de tanto se rir de mim. - Esta é forte... Os outros, às vezes calavam-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre, sempre e cada vez com mais força. Os outros ouviam-no quando se calavam e voltavam a rir-se com força como ele. E riam-se, riam-se, riam-se enquanto o peso no meu pescoço e cá dentro aumentava cada vez mais. Parece que nunca mais acabavam de se rir, e eu com aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir com o Câo-Tinhoso, mas também tinha medo de voltar a sentir a corda a tremer de tão esticada, com o chiar dos ossos a querer fugir da minha mão, e com os latidos que saíam a chiar, afogados na boca fechada como ainda há bocado. Sim, eu nunca mais queria voltar a sentir isso. Mas eles continuavam a rir-se e o Quim estava agora agarrado à barriga com as duas mãos, ajoelhado ao pé do Gulamo que não se cansava dc rebolar no capim de tanto se rir de mim. Os dois diziam esta é forte, esta é forte e continuavam a rir-se. Os outros às vezes calavam-se, mas então ouviam o Quim e o Gulamo e voltavam a rir-se com força, como eles. O Quim estava de novo em cima da pedra, mas ainda se ria de vez em quando e dizia esta é forte, esta é forte. O Gulamo estava ajoelhado, sentado sobre os calcanhares e com a camisa limpava a cara das lágrimas que saltaram dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo e também dizia esta é forte, esta é forte. Os outros já não se riam mas de vez em quando concordavam com o Quim e com o Gulamo nisso de esta é forte, esta é forte. Já estava quase escuro e o Quim, do alto da pedra disse para a malta: - Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desata a corda! - Eh, Toucinho, desata a corda, eh, Toucinho desata a corda, eh. Toucinho, desata a corda - todos disseram eh Toucinho, desata a corda. Mas eu não era capaz de me mexer, todo envergonhado e com o pescoço a doer como não sei o quê. - Eh, malta, vocês nunca me viram a matar um preto? - O Quim apro ximou-se de mim: «Eh, Toucinho, desata a corda!» 40 Laís Bernardo Honwctia O Gulamo aproximou-se também. «Eh, Toucinho, desata a corda!» Como eu não mc mexia, o Quim bateu-me na cabeça com o cano da Calibre 12 e o Gulamo meteu-me o cano da Pressão de ar Diana 27 na barriga. «Eh, Toucinho, desata a corda!». O nó estava feito dc tal maneira que custava a desatar, c eu não tinha força nenhuma nos dedos. Tinha vontade de chorar ou de fugir com o cão e tudo. -A nda lá, senão rebentamos contigo, preto de um raio! - Anda lá com isso, caramba, - agora era o Faruk - anda lá com isso, preto dc um raio!... No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso já não tinham crosta por causa da corda, mas só saíam delas uma águadilha vermelha que me molhava as mãos. -A nda lá, não tentes ser besta, Toucinho! O Cão-Tinhoso chiava baixinho, a olhar para mim com os olhos azuis agora brilhantes, todo encostado às minhas pernas, a tremer e com o rabo a dar e a dar. Tive de fechar os olhos para não ver os olhos azuis do cão, a olhar para mim como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer falar. Quando acabei de desapertar o nó, agarrei a corda com força para ela não cair e continuei a mexer no pescoço do cão, mesmo com os olhos fechados. - Eu tenho medo, desculpa-me Cão-Tinhoso - eu disse aquilo tão bai xinho que só o Cão-Tinhoso me podia ouvir - eu tenho medo, Cão-Tinhoso. Doem-te as feridas? Aonde, aqui? Pronto, Cão-Tinhoso, pronto, isto há-de passar, eu levo-te comigo, trato-te das feridas e depois nunca mais andas aí pela vila, com estas feridas que é um nojo... Eu vou pedir isso ao Quim e à malta, e eles deixam concerteza, e eu levo-te e trato-te e depois vais outra vez dormir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, e a Isaura dá-te pão com manteiga e carne na hora do lanche e eu dou-te também o meu lanche para tu comeres. Eu vou pedir ao Quim e à malta e eles deixam. Mas, não me olhes como se eu tivesse culpa, Cão-Tinhoso! Desculpa, mas eu tenho medo dos teus olhos... Abri os olhos e o Cão-Tinhoso estava com os olhos cm cima de mim, como se não tivesse percebido o que cu tinha pedido. Tive de desviar a cara depressa e por isso a corda caiu-me das mãos: POR FAVOR, CÃO-TI- NHOSO! - Ei, o que é que estás para aí a dizer? O quê, já acabaste? 41 NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO! - QUIM, A GENTE PODE NÃO MATAR O CÃO, EU FICO COM ELE, TRATO-LHE AS FERIDAS E ESCONDO-O PARA NÃO ANDAR MAIS PELA VILA COM ESTAS FERIDAS QUE É UM NOJO!... O Quim não queria saber do que eu estava a dizer c, por isso, agarrou-me pela gola da camisa e pcrguntou-me o que é que eu estava para ali a dizer. O Cão-Tinhoso tremia, cada vez mais enfiado nas minhas pernas e eu empurrei o Quim para voltar a agarrar no pescoço do cão para os outros não verem. Mas só pude chcgar com as mãos ao pescoço do Cão-Tinlioso, porque o Quim voltou a agarrar-me pela gola da camisa e por isso
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