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DIEGUEZ, Consuelo - Os invisíveis

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OS INVISÍVEIS 
A noite de terror, os mortos e os sobreviventes da Maré depois da operação do Bope 
por CONSUELO DIEGUEZ 
 
Por volta das onze da noite do dia 24 de junho, Cláudio Duarte Rodrigues e sua mulher, Nilzete, 
voltavam para casa, no Parque União, uma das favelas do Complexo da Maré, que margeia a 
avenida Brasil, principal via de acesso ao Centro do Rio de Janeiro. Motorista de uma van que 
transporta passageiros do NorteShopping para o Complexo, Cláudio tivera um dia atípico. Por causa 
de uma manifestação marcada para as cinco da tarde, em Bonsucesso, do outro lado da avenida, o 
movimento havia caído. Preocupado com que a passeata acabasse em confronto, ele ligou para a 
mulher e avisou que iria buscá-la à saída do trabalho – uma empresa de ônibus da região, na qual 
ela é faxineira – às dez da noite. Ao passarem em frente à favela Nova Holanda, ao lado do Parque 
União, avistaram um grande tumulto. Pela movimentação de carros, logo perceberam que se tratava 
de uma ação policial. “Vamos sair logo daqui que o bicho tá pegando”, Nilzete falou para o marido. 
As ruas do Parque União estavam desertas por causa da confusão na Nova Holanda. Cláudio entrou 
na favela com todas as luzes da van acesas, de modo a evitar que fossem confundidos com a 
polícia ou com bandidos. Diminuiu a velocidade para passar entre duas barras de ferro colocadas na 
rua pelos traficantes, que servem para dificultar a circulação de viaturas na área. Foi então que um 
tiro estilhaçou o vidro de trás do veículo. Nilzete se atirou no chão da caminhonete e gritou para o 
marido acelerar. Em seguida outro tiro, e mais outro. Nilzete sentiu a van perder velocidade. Nesse 
momento, uma nova bala atravessou o vidro a seu lado, espalhando estilhaços sobre os dois. Ela 
voltou a gritar: “Acelera, eles vão nos matar.” Viu então Cláudio levantar a camisa ensanguentada, 
abrir a porta e avisar, enquanto caía no chão, com um fio de voz: “Eu já fui atingido.” 
Nilzete é uma mulher diminuta. Mede 1,50 metro e tem o corpo franzino. Seus cabelos são negros, 
cacheados e compridos. De longe, pode ser confundida com uma criança. Desesperada ao ver o 
marido ferido, ela saiu do carro. Olhou para a rua escura e deserta e se deparou com o Caveirão – o 
blindado, semelhante a um tanque de guerra, do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope. 
Com os braços levantados, correu em direção ao veículo gritando: “Ajudem pelo amor de Deus, 
somos trabalhadores, vocês atingiram meu marido.” Parou na frente do Caveirão esperando que dali 
saísse algum policial. Não houve reação. Nilzete permaneceu alguns instantes em frente ao 
blindado, até ser tomada pelo medo. Então, lentamente, sempre com as mãos para cima, se 
encostou na parede das casas e voltou, andando de lado, para junto da van. Deu-se conta do risco 
que estava correndo. Agachou-se ao lado do marido e começou a gritar por socorro. Logo, 
moradores apareceram nas portas. Fizeram uma roda em volta dela e do marido, num gesto 
instintivo de proteção. Um vizinho colocou Cláudio em seu carro, um Gol branco, e partiu com o 
casal para o hospital. 
A passeata que seguiria pela pista lateral da avenida Brasil tomou forma por volta das seis da tarde. 
Como nas demais manifestações que sacudiram o país, aquela havia começado em paz, embora 
tornasse ainda mais caótico o sempre tumultuado trânsito da via. Por volta das sete e meia da noite, 
trombadinhas se juntaram a um grupo de viciados em crack, que costumam transitar feito zumbis 
entre os canteiros da avenida Brasil, e iniciaram um arrastão. Bolsas, carteiras esacolas foram 
arrancadas dos manifestantes. Houve pânico e a polícia, que até entãoapenas acompanhava de 
perto a manifestação, correu atrás dos ladrões. Em fuga, o grupo, estimado em cerca de vinte 
pessoas, atravessou a passarela e entrou na favela Nova Holanda, misturando-se aos moradores. 
Os policiais que faziam a perseguição pediram o auxílio do Batalhão de Choque. Ao chegar à 
entrada da favela, o Choque achou mais prudente chamar o Bope. Toda a movimentação era 
acompanhada por soldados da Força Nacional, já de prontidão na avenida em preparação para a 
visita do papa Francisco. 
Eram oito da noite quando um pequeno efetivo do Bope entrou pela rua Teixeira Ribeiro, a principal 
artéria da favela. Àquela hora, as ruas da Nova Holanda estavam apinhadas de gente. Os bares 
estavam cheios, as barracas de feira atendiam moradores que compravam frutas e legumes na volta 
para casa. Lojas, salão de beleza, barbearias, padarias, casas lotéricas, lan houses, tudo estava 
aberto. Crianças brincavam, mães passeavam com bebês entre ruas estreitas. Nada disso impediu 
que os policiais fossem recebidos à bala por traficantes armados com fuzis. O sargento Ednelson 
Jerônimo dos Santos Silva, de 42 anos, que comandava a operação, foi baleado na cabeça e 
morreu na hora. Sua morte deixou os policiais em choque. Revoltados, os homens da tropa de elite 
da polícia voltaram à favela uma hora depois, dessa vez com um efetivo muito maior. Iriam, em tese, 
tentar prender o assassino do sargento. Mas o que inicialmente seria apenas uma perseguição a 
batedores de carteira se transformou numa operação de guerra. Até o começo da manhã do dia 
seguinte, um sem-número de casas da Nova Holanda e das favelas do entorno na Maré foram 
invadidas pelo Bope sem mandado de busca. Dezenas de moradores ficaram feridos. Dez pessoas 
morreram, incluindo o sargento Ednelson dos Santos. 
“O que aconteceu naquela noite não pode ser considerado uma operação policial em busca de um 
assassino que eles não tinham noção de quem era. Não foi uma ação planejada. Aquilo foi um 
revide, um ato de vingança do Bope contra a morte do companheiro de farda”, disse Ubirajara 
Carvalho, o Bira, fotógrafo profissional de 42 anos, morador da favela. Ele ouviu tiros a madrugada 
inteira. “Foi uma noite de terror que vitimou muita gente e traumatizou os moradores. Todos 
pagaram pela morte do sargento.” 
O Complexo da Maré é formado por dezesseis favelas, onde hoje habitam 140 mil pessoas. As 
primeiras casas começaram a surgir em 1936, junto com o início das obras de construção da 
avenida Brasil. A via foi inaugurada em 1946, e os trabalhadores que participaram das obras 
acabaram se instalando ali definitivamente. Nove das dezesseis comunidades foram estimuladas por 
políticas de remoção de outras áreas patrocinadas pelo Estado. Uma de suas favelas, a Vila do 
João, criada em 1982, foi batizada com esse nome em homenagem ao último presidente da ditadura 
militar, o general João Batista Figueiredo. 
A chegada do Bope fez com que as pessoas corressem em pânico e se espalhassem pela favela em 
busca de abrigo. Com Robson Guimarães não foi diferente. Ele é pedreiro e constrói casas na Maré. 
Passou o dia trabalhando numa obra e voltou para casa no fim da tarde. Fez um lanche com a 
mulher, Célia, com quem é casado há 26 anos, e a filha Carolyne, de 14 anos, cujo nome ele traz 
tatuado no braço esquerdo. Evangélico da Igreja Nova Vida, no braço direito Guimarães tatuou uma 
imagem de Cristo. Por volta das nove, ele estava na rua Principal, próxima à sua casa, conversando 
com amigos. Ao ouvir os tiros, o grupo se dispersou. Robson correu para a casa da mãe, na mesma 
rua, onde vivem sua avó, de 78 anos, sua irmã, o cunhado e um sobrinho de 16 anos. Ao entrar, ele 
viu o garoto na varanda de cima, espiando o tiroteio. Subiu a escada e puxou o sobrinho para dentro 
de casa, repreendendo-o: “Você está louco? Quer levar um tiro?” Quando voltou para fechar a porta 
da sacada, foi atingido por uma bala de fuzil. O artefato bateu primeiro na parede, ricocheteou e 
perfurou-lhe o rim, o baço e o pulmão, indo se alojar na costela. Antes de perder os sentidos, ele 
ainda ouviu os gritos da mãe e da avó. O cunhado o arrastou pela escada, deixando um rastro de 
sangue, e o levou até a porta de casa, em busca de socorro.Carmen Onofre, de 41 anos, é uma mulher morena, troncudinha e falante, que trabalha como agente 
comunitária. Ela chegou à Maré pouco depois do início do arrastão na avenida Brasil. Logo na 
entrada da favela, Carmen parou num bar e assistiu pela televisão à confusão do outro lado da 
avenida. Achou que era mais seguro ir logo para casa. Ela mora na parte térrea de um sobrado de 
três andares numa das principais ruas da Nova Holanda. Sua casa se resume a três cômodos 
minúsculos. A sala, que faz as vezes de quarto, a cozinha e o banheiro. Não tardou para que 
começasse o tiroteio entre o Bope e os traficantes. As balas zuniam sem cessar muito próximas de 
sua casa. Apavorada, ela se encolheu num canto da sala. Ao ouvir os gritos dos moradores que 
corriam pelas ruas tentando se proteger do tiroteio, saiu do estado de torpor e abriu a porta. Sua 
casa logo ficou lotada de gente que tentava se abrigar. “Eu não conhecia a maioria daquelas 
pessoas. Mas não podia deixá-las na rua no meio do tiroteio”, contou. Por um longo tempo, homens, 
mulheres e crianças se espremeram no pequeno espaço da casa de Carmen. Ninguém falava nada. 
Só se ouviam a respiração uns dos outros encolhidos no chão e os tiros do lado de fora. 
Com o passar das horas, a violência recrudesceu. Na perseguição aos traficantes, o Caveirão 
seguiu das favelas Parque Marée Nova Holanda para a Parque União. Depois de acertar a van na 
qual estavam Cláudio e Nilzete, o blindado entrou atirando na rua Ari Leão, que dá acesso à avenida 
Brasil. O garçom Eraldo Santos da Silva, um paraibano de 35 anos, que servia as mesas no bar 
Paradinha Um, uma construção acanhada com as paredes pintadas de verde e laranja, não teve 
tempo de se proteger e foi alvejado no rosto. Os clientes, entre eles uma grávida, além de um outro 
garçom, se jogaram no chão. O blindado prosseguiu atirando até o final da rua. Deu meia-volta e 
retornou pelo mesmo caminho. Passou duas vezes pelo corpo de Eraldo estendido na porta do bar. 
Na terceira vez, os policiais pararam o Caveirão. Entraram chutando mesas e xingando os clientes 
encolhidos num canto da parede. Aos berros, mandaram que todos entrassem no banheiro. Depois, 
apagaram as luzes. De dentro do banheiro, era possível ouvi-los dizer: “Olha a merda que a gente 
fez.” Ao ser alvejado, Eraldo usava um cordão e anéis e trazia no bolso uma carteira com 
documentos e dinheiro. Os policiais enrolaram um pano na sua cabeça e transportaram o corpo para 
dentro do Caveirão. Recolheram balas na rua (inclusive a que atingiu Eraldo, encontrada no bar) e 
foram embora. A carteira do garçom foi deixada no chão, sem o dinheiro. 
O torneiro mecânico Cezar Antônio de Oliveira, de 45 anos, tem uma pequena serralheria, a Deus 
Proverá, na rua Tatajuba, na favela Parque Maré. O comércio à sua volta é variado. O bazar 
Simone, em frente, vende uma infinidade de quinquilharias para o lar; o Atelier Paty vende camisolas 
sensuais. Há também três salões de beleza, alguns bares e igrejas evangélicas de nomes variados. 
A Tatajuba estava toda enfeitada com bandeirolas por causa das festas juninas. O aspecto festivo, 
porém, convivia com muitas paredes perfuradas à bala, resultado de confrontos entre a polícia e os 
traficantes, e de guerras entre facções rivais do tráfico. 
Na tarde do dia 24, quando começou o arrastão na avenida Brasil, Cezar foi atrás do filho, José 
Everton Silva de Oliveira, conhecido pelos moradores como Betinho. Com 21 anos, Betinho tinha 
uma posição de destaque no tráfico do Parque Maré. Cezar pediu ao filho para que desse um basta 
na confusão. Estava certo de que a turma do arrastão respeitaria as ordens dos traficantes. Betinho 
disse ao pai que não precisava ficar preocupado e podia voltar a trabalhar. Cezar obedeceu, mas 
voltou com o receio de que, se o tumulto do outro lado da avenida aumentasse, a polícia seria 
atraída para a Maré. 
Quando o Bope entrou na favela atirando, Cezar foi novamente atrás do filho. Aflito, queria 
convencer o rapaz a se esconder e evitar qualquer confronto com os policiais. Não conseguiu 
encontrá-lo. Voltou para casa angustiado e se trancou com a mulher e as duas filhas adolescentes. 
Betinho era filho de seu primeiro casamento. Cezar e a ex-mulher vieram de Natal, no Rio Grande 
do Norte, com o filho ainda criança, e se instalaram na Maré. 
À uma e meia da manhã, com o tiroteio atingindo dimensões de guerra civil, o torneiro mecânico não 
conseguiu mais ficar na cama. Pegou a moto e saiu em busca de Betinho. Dessa vez o encontrou. O 
filho coordenava a ação dos traficantes por meio de um rádio. O pai novamente insistiu para que ele 
se escondesse. O rapaz colocou o pai na garupa da moto e o levou para casa. No caminho, ouviu 
pelo rádio que um traficante de seu grupo havia se ferido. Deixou o pai e seguiu para socorrê-lo. Ao 
tentar arrastar o colega de tráfico, também foi baleado pela polícia. Morreu na hora. Seu corpo foi 
levado pelos policiais antes que fosse feita a perícia. 
Na rua Teixeira Ribeiro, na Nova Holanda, outro grupo do Bope arrombava a porta de um morador e 
subia as escadas. Encontraram o filho e o genro da dona da casa, paralisados de terror. Um policial 
ameaçou: “Se eu achar qualquer coisa, eu vou matar vocês.” Os dois ficaram sob a mira das armas. 
Os policiais subiram para a laje da casa e montaram ali uma espécie de quartel-general, de onde 
atiravam. Ao notar a polícia, Roberto Rodrigues, um usuário de drogas, tentou se esconder debaixo 
de um carro. Levou um tiro e morreu. Durante a madrugada, mais três homens seriam atingidos e 
mortos, e levados para fora da favela pela polícia. Boa parte das ruas e das casas da Nova Holanda, 
do Parque Maré e do Parque União ficou no escuro porque policiais e traficantes destruíram à bala 
postes e transformadores de luz. 
O Bope não deu trégua durante a madrugada. Na rua São Jorge, no Parque Maré, um grupo de 
policiais entrou atirando. Pararam na frente de um sobrado azul e, aos pontapés, arrombaram a 
porta. Das casas vizinhas, os moradores podiam ouvir os gritos que vinham dali, mas ninguém 
ousou chegar às janelas com medo de ser atingido. Aterrorizada, uma mulher vizinha ao sobrado 
teve uma crise de diarreia e engatinhou até o banheiro. Aos poucos, os gritos se transformaram em 
gemidos, até silenciarem por completo. 
Por causa do confronto, muitos moradores não conseguiram voltar para casa e passaram a noite ao 
relento, na entrada das favelas. Os tiros só cessaram de vez por volta das onze da manhã, quando 
os policiais decidiram se retirar para ir ao enterro do sargento morto. O fotógrafo Bira diz ter ouvido 
um deles intimidando um grupo de moradores ao sair: “À noite nós voltamos. Se preparem porque o 
terror está só começando.” 
Eliana Sousa Silva é uma assistente social articulada e bastante agitada. Filha de imigrantes 
nordestinos, ela foi criada na favela Nova Holanda. Formou-se em letras e fez seu doutorado em 
serviço social e políticas públicas na puc. Nunca abandonou o vínculo com a favela e divide seu 
tempo entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual é professora, e a Redes de 
Desenvolvimento da Maré, uma ONG que oferece cursos aos moradores, que ela criou e comanda. 
Eliana é uma das figuras mais respeitadas da Nova Holanda. Há poucos anos, mudou-se de lá, mas 
vai ao local quase diariamente. 
Eliana foi uma das primeiras a chegar na manhã do dia 25. Conseguiu entrar na favela às sete da 
manhã. Foi logo cercada por moradores que queriam lhe relatar os abusos da noite. Junto com 
outras ONGs que trabalham na Maré, Eliana começou a levantar os casos. A Polícia Civil, a Polícia 
Militar e a Defensoria Pública do estado foram chamadas para atestar os estragos. Pela primeira 
vez, mortes cometidas pela Polícia Militar na favela foram periciadas pela Polícia Civil. “As 
investigações desses abusos só são feitas quando elas ocorrem fora das áreas pobres”,disse 
Eliana, numa tarde de julho, durante uma conversa na sede da sua ONG. “O morador da favela é 
destituído de direitos. É como se a violência policial sobre eles fosse não só permitida, mas 
esperada.” 
Quando os peritos chegaram, as cenas em que a maior parte das pessoas tinha sido morta já 
haviam sido desfeitas. As cápsulas das balas tinham sido recolhidas e os corpos levados da favela. 
Tal procedimento, corriqueiro quando a polícia age nas favelas, é ilegal. Isso acontecendo, é mais 
difícil para os peritos saberem se as pessoas morreram em confronto ou foram executadas. 
 Havia, porém, um local que continuava intacto: o sobrado azul, de onde se escutaram os gritos e 
gemidos na madrugada. Pela manhã, os moradores viram que a porta continuava aberta. Quando os 
peritos chegaram, encontraram uma cena sinistra. Havia sangue por toda a casa. Três homens 
estavam mortos, crivados de balas e com sinais de tortura. Eram Ademir da Silva Lima, de 29 anos; 
André Gomes de Souza Junior, de 16; e Fabricio Souza Gomes, de 26. Os três tinham passagem 
pela polícia por furto e tráfico. O inquérito corre em sigilo e o delegado que apura o caso ainda 
investiga se eles reagiram ou não à chegada do Bope. 
Na manhã do dia 25, Henrique Guelber, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria 
Pública, foi contatado pelo Observatório das Favelas, uma outra ONG com sede na Maré. Nervosos, 
os integrantes da ONG, cuja sede estava sem luz por causa do tiroteio, pediram que ele 
acompanhasse os parentes dos mortos à delegacia. Além do garçom Eraldo e dos três homens do 
sobrado, uma lista de mais cinco mortos foi apresentada: Jonatha Farias da Silva, de 16 anos; 
Carlos Eduardo Silva Pinto, de 23; José Everton, o Betinho; Renato da Silva, de 39 anos; e Roberto 
Rodrigues. Três deles eram desconhecidos dos moradores. 
Numa conversa, no final de julho, Guelber deu sua opinião sobre o caso, depois de ressalvar que o 
inquérito está em andamento. “Em nenhum lugar do mundo se pode ver com naturalidade esse 
número de óbitos”, avaliou. Perguntei-lhe se os mortos tinham antecedentes criminais. O defensor 
respondeu que essa não é a questão principal. “Houve pessoas que morreram nas ruas, outras em 
casebres. Eram pessoas humildes, algumas com antecedentes criminais. A ficha criminal de alguém 
não é justificativa para sua morte”, disse. “Não há dúvida de que o tráfico é violento. Mas a polícia 
tem obrigação de ser melhor do que o tráfico.” 
Uma semana após o episódio na Maré, quinze associações de moradores de favelas, junto com 
ONGs e outras entidades envolvidas em causas humanitárias, organizaram uma manifestação 
contra as violações e as mortes, inclusive a do sargento do Bope. “Não é mais aceitável a política 
militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses locais fossem moradas 
de pessoas sem direitos”, dizia uma carta aberta à população. Mais de 5 mil pessoas compareceram 
ao ato na avenida Brasil. Incentivadas pelos professores da Redes da Maré, as crianças pintaram 
desenhos e dizeres em cartazes com os seus protestos. Num deles se lia: “Eu, Carlos, protesto: por 
matarem o meu avô, feito pelos traficantes; por ameaçarem meu tio, pelos policiais do Bope; por 
matarem a minha tia, feito pelos policiais do Bope.” 
O comando da Polícia Militar decidiu investigar os abusos cometidos contra os moradores (as 
mortes estão sob a responsabilidade da Polícia Civil). Designou-se para a missão o coronel Ibis 
Silva Pereira, comandante da Academia de Formação de Oficiais da Polícia Militar. O coronel Ibis 
foge completamente ao estereótipo de um oficial de polícia. Formado em direito, com pós-graduação 
em filosofia contemporânea pela PUC do Rio, ele é um homem pequeno e magro, com cabelos 
completamente raspados em razão da calva pronunciada. Sua fala e seus gestos são mansos e 
contidos. Num começo de tarde, em meados de julho, ele estava na sala da Divisão de Integração 
Universidade–Comunidade, na UFRJ, onde Eliana Souza e Silva é diretora, para ouvir os 
depoimentos dos moradores da Maré sobre os episódios dos dias 24 e 25 de junho. O coronel 
preferiu ouvi-los ali, e não na favela, para que os depoentes se sentissem mais à vontade. Naquele 
dia, ele usava uma camiseta de malha rosa com gola azul-marinho e calça jeans. Trazia um cordão 
de prata no pescoço e anéis de osso nos dedos anulares. 
A primeira a depor foi Nilzete Neves Rodrigues. Ela estava ansiosa para falar. “Já fiquei muito tempo 
calada. Agora quase mataram meu marido. O que mais pode acontecer? Temos que tomar coragem 
para denunciar”, disse, antes de entrar na sala onde o coronel Ibis a esperava. Usava um vestido de 
listras azul e branco, sandálias de salto alto e brincos. Narrou o episódio da van, de como chegou ao 
Hospital Federal de Bonsucesso, do esforço dos médicos para salvar o marido que ficou quase dez 
dias hospitalizado, depois de terem retirado a bala que lhe perfurou as costas. Desde que teve alta, 
Cláudio Rodrigues continuava em casa, sem condições de trabalhar, não apenas por causa do 
ferimento, mas também pelo trauma sofrido. Nilzete contou também ao coronel um outro episódio 
que a revoltou. Em maio, numa ação na favela, um policial a repreendeu “xingando todos os 
palavrões” porque ela estava na moto com o filho sem capacete. Ela reconheceu que estava errada, 
mas explicou ao policial que o tráfico obrigava os moradores a andar daquele jeito. Ele não se 
convenceu e ameaçou cortar o pneu da moto. “Eu disse que se ele fizesse aquilo eu o denunciaria 
ao Batalhão [o 22º Batalhão de Polícia Militar fica na entrada do Complexo da Maré]”, ela contou. O 
policial deu-se por satisfeito em esvaziá-los. “Eu acho que eles não precisam falar dessa forma com 
a gente, sempre gritando”, reclamou Nilzete para o coronel. “Eles nos tratam como se fôssemos 
lixo.” 
O depoimento seguinte foi de Carmen Onofre. Ela também não se limitou aos episódios dos dias 24 
e 25. Queixou-se de que os policiais usam uma chave mestra para invadir as casas dos moradores. 
“Eles abrem tudo quanto é porta. Acabam com as nossas fechaduras”, ela disse. Na sua pequena 
casa, já entraram quatro vezes. “Eles chegam nos chamando de piranha para baixo”, contou. 
“Aposto que tu é mulher de bandido. Onde é que ele está? Vou te fazer falar”, prosseguiu, imitando a 
fala de um policial. 
Carmen é solteira e mora sozinha. Certa vez, fazia muito calor e ela estava dormindo só de calcinha 
quando os policiais entraram e arrancaram o lençol da cama. “Imagine o que é você estar dormindo 
e de repente se deparar com três policiais na sua frente levantando o seu lençol. Quero ver se eles 
têm coragem de fazer isso em algum apartamento na Zona Sul.” 
Bira, o fotógrafo, também falou ao coronel. Disse que policiais do Bope forçaram dois garotos a fazer 
sexo oral um no outro após terem apreendido o celular de ambos com fotos da invasão. “Foi 
devastador para os garotos. Imagina uma situação traumática como essa num ambiente machista 
como o da favela”, disse. Além da noite do dia 24 de junho, ele relatou a violência de que foi vítima 
no dia 2 de maio. Bira é paraplégico e circula na favela em cadeira de rodas. Ajudava um colega 
italiano que fotografava a Nova Holanda quando foi avisado de que sua casa havia sido arrombada 
pela polícia. Foi para lá junto com o irmão. O cenário era de destruição. As comidas nas latas de 
mantimento foram espalhadas no chão. Seu computador foi quebrado e sua câmera jogada dentro 
do vaso sanitário. 
O coronel Ibis ouviu as histórias durante horas. Disse ter ficado impressionado, mas não parecia 
animado com o resultado das investigações. “Poucos se dispõem a vir aqui denunciar. Todos têm 
muito medo. A comunidade tem mais de 50 anos e um histórico de violência difícil, duro”, ele 
explicou, sempre com a voz pausada. “Se esses abusos estão configurados da maneira com que 
foram relatados, épreciso repensar toda a lógica de atuação da polícia”, disse Ibis. Mantendo o tom 
de voz baixo, prosseguiu: “Não é razoável, racional, compreensível, no momento histórico que 
vivemos, com uma Constituição de 25 anos, e que tem o compromisso com a dignidade da pessoa 
humana, continuarmos convivendo com esse tipo de fato.” E completou: “Sou comandante de uma 
escola preparatória de oficiais e posso lhe garantir que em nenhum de nossos cursos há qualquer 
defesa de ações que desrespeitem os direitos, tanto os da população como os dos criminosos.” 
Ibis Pereira acredita estar demonstrando que o modelo atual de combate ao tráfico está destinado 
ao fracasso. “É preciso discutir a questão das drogas de uma maneira menos preconceituosa. É 
preciso pensar essa questão privilegiando o prisma da prevenção, e não o viés penal.” Ele usa o 
cigarro como exemplo: “Nos últimos vinte anos, o número de fumantes tem caído sem que fumar 
seja crime”, disse. 
O sociólogo Luiz Eduardo Soares é especialista em segurança pública. Foi secretário de Segurança 
do Estado do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000 na gestão de Anthony Garotinho e deixou o cargo 
rompido com o governador. Foi exonerado após ter denunciado a banda podre da polícia. Tempos 
depois, os alvos de suas denúncias foram presos, acusados de corrupção e envolvimento com o 
crime. Entre eles, o chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins. Como à época em que estava no governo, 
Soares segue pregando que o confronto não é a saída. “Os traficantes conhecem o território e usam 
a comunidade como escudo”, disse, durante uma conversa no final de julho, no escritório de sua 
casa, em São Conrado, Zona Sul do Rio. 
O fundamental, sustentou Soares, é que a polícia tenha crédito. Que a população perceba que não 
vai haver jogo hipócrita de apreensão da droga que a seguir será revendida para outro traficante. 
“O morador quer que o traficante saia da favela. Mas não quer entregá-lo para ser morto”, disse o 
sociólogo. A seguir, acomodou-se na cadeira e inclinou o corpo para a frente. “É conversa fiada dizer 
que precisa haver incursão bélica. Como chegamos a essa situação absurda de territórios 
armados?”, questionou. E respondeu: “Só existe tráfico por causa da polícia. A polícia sempre foi 
sócia do tráfico, da boca de fumo. Se o consumidor sabe onde fica o ponto, o policial também sabe. 
Só funciona porque tem acordo com a polícia.” 
O coronel Mario Sérgio Duarte mora em um apartamento no bairro do Grajaú, com a mulher, 
também oficial da PM, e um casal de filhos gêmeos de 2 anos. Numa noite, no final de julho, ele 
tentava conversar enquanto seu filho brincava de Homem-Aranha na sua frente, até ser retirado a 
contragosto da sala. Duarte foi comandante do Bope. O sargento Ednelson, morto na Maré, foi seu 
segurança particular. 
Ele acredita que, se o sargento não tivesse morrido, a violência que veio a seguir não teria ocorrido. 
Ele diz, no entanto, que o Bope tinha que ter ido para a Nova Holanda depois do arrastão na avenida 
Brasil. “Era impossível que o Bope não fosse para lá. Naquele momento, o problema tinha que ser 
resolvido daquela forma. O que não podia ter acontecido era os traficantes atirarem. O Estado tem 
que poder entrar em qualquer território e eles têm que saber que a polícia está lá”, disse. E 
continuou: “Aquilo não é outro país, aquilo é um bairro da cidade.” 
Antes de comandar o Bope, Mario Sérgio Duarte foi comandante do 22º Batalhão da Maré. 
Lembrou-se do período com amargura. “Em um ano e quatro meses eu enterrei quinze policiais”, 
contou. Perguntei-lhe se a morte do sargento justificava a forma com que o Bope atuou. “É muito 
fácil falar quando não se está lá dentro, com tiros vindos de todos os lados. Como saber o que traz 
ou não risco? Eles estavam entrando em um território completamente hostil”, justificou o coronel. 
De qualquer forma, Duarte considera que o resultado da ação foi muito ruim para todos. “É claro que 
eu lamento as mortes. Além disso, o Complexo da Maré vai ser pacificado e um confronto como 
esse com a polícia é desastroso porque cria resistência à pacificação.” Para ele, o que diferencia as 
UPPs dessas outras ações da polícia é o apoio da população às primeiras. 
A polícia do Rio está entre as mais violentas do mundo. Segundo dados coletados por Soares, de 
2003 a 2012, houve 9 231 mortes provocadas por ações policiais no Rio de Janeiro. Para um estado 
com 15 milhões de habitantes e 55 mil policiais, somando-se os efetivos da Militar e da Civil, 
ocorrem cerca de mil mortes por ano. Nos últimos dois anos, as mortes anuais provocadas pela 
polícia no Rio de Janeiro caíram para 540, mas é ainda um percentual muito elevado. Nos Estados 
Unidos, com 300 milhões de habitantes e um histórico de violência policial, as mortes de civis em 
confronto com a polícia em todo o país não ultrapassam 350 por ano. 
A criação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, pelo governador Sérgio Cabral, de certa 
forma tenta mudar a lógica do enfrentamento. A prioridade passou a ser desarmar o tráfico, e não 
apreender drogas. Criou-se uma espécie de novo pacto com o crime. “Apesar de todas as críticas, já 
caminhamos muito no sentido de desarmar algumas áreas. A realidade nas favelas pacificadas é 
diferente da que existia cinco anos atrás, quando a incidência de crimes era muito maior”, disse o 
coronel Ibis. 
O mês de junho de 2013 foi marcado por manifestações e revoltas em várias cidades do país. Os 
confrontos entre a polícia e a legião de insatisfeitos ganharam as manchetes dos jornais e extensa 
cobertura televisiva. Nas redes sociais, esse foi o grande assunto. A imprensa internacional também 
dedicou grande cobertura ao tema. Na maior parte dos casos, quem liderou e deu o tom da tomada 
das ruas foram grupos oriundos das camadas médias da sociedade. Protestavam contra o preço do 
transporte público, contra a corrupção em vários níveis, brandiam cartazes e palavras de ordem a 
favor de sistemas de saúde e educação mais dignos e eficientes. 
O Rio acabou tendo um protagonismo um tanto diferente nesses episódios. Enquanto os protestos 
país afora iam minguando, as manifestações contra o governador Sérgio Cabral ganhavam corpo na 
orla carioca. Da final da Copa das Confederações à visita do papa à cidade, ao longo do mês de 
julho o noticiário político da capital fluminense orbitou em torno dos atos contra Cabral. A tragédia da 
Maré já havia ficado para trás. Noticiada no dia seguinte com algum destaque, a madrugada de 
terror à margem da avenida Brasil praticamente sumiu da pauta depois de 48 horas. Pode-se 
especular qual seria o comportamento da imprensa caso as dez mortes, incluindo a de um policial, 
tivessem ocorrido entre moradores da Zona Sul. 
“Por que nós nos dispusemos a conviver com isso é o que talvez seja mais enigmático. Nós 
naturalizamos de tal maneira essa brutalidade que sequer temos a percepção de que é 
extraordinário conviver com essa situação”, disse o sociólogo Luiz Eduardo Soares. 
Uma semana depois de colher os depoimentos dos moradores da Maré, o coronel Ibis Pereira 
estava no quartel da PM, no Centro da cidade, discutindo com o comando as estratégias da polícia 
para enfrentar os manifestantes. 
Três andares abaixo da sala onde o coronel conversava, os praças circulavam pelo pátio. Ele olhou 
em direção à porta e refletiu: “Os policiais reproduzem uma sociedade violenta. A polícia integra um 
sistema de justiça criminal que replica a lógica da penalização. O Código Penal é dirigido para uma 
classe. É controle social. Essa coisa de falar de impunidade é uma grande bobagem. Nossas 
cadeias estão lotadas. Mas de quem?” 
Ao contrário do que se costuma dizer, o Brasil não é o país da impunidade. O país tem a quarta 
população carcerária do mundo. Em 2013, havia 550 mil encarcerados em presídios brasileiros. 
Desses, em torno de 12 mil (ou 2,18%) cumprem pena por homicídio.Dois terços dos presos, 367 
mil pessoas, foram encarcerados sob a acusação de tráfico de drogas ou crime contra o patrimônio. 
Sem alterar o tom de voz, Ibis insistiu no seu ponto: “Uma bomba de gás lacrimogênio que estoura 
no Leblon tem muito mais efeito sobre a imprensa e o resto da sociedade do que dez cadáveres na 
Maré”, disse. Pela dimensão do que ocorreu nos dias 24 e 25, ele achava que a repercussão seria 
maior. “A cobertura foi estranha. Um policial e mais nove pessoas mortas. Não entendi por que não 
teve repercussão maior”, disse, e a seguir tentou uma explicação: “Há muito tempo essas mortes já 
se tornaram comuns. Fazem parte do que se espera. A sociedade raciocina da seguinte forma: eles 
vendem drogas, estão armados e o Estado vai combatê-los. A morte pelo enfrentamento é o que se 
espera. Dez pessoas mortas e a gente não é capaz de entender como horror.” 
Ele acredita que a cobertura da mídia está ajudando a anestesiar a nossa sensibilidade. “Por isso a 
gente bate palma para o Tropa de Elite e glamoriza o capitão Nascimento. Entender como aquele 
psicopata virou herói brasileiro, a ponto de a plateia bater palmas quando ele tortura um usuário de 
drogas com um saco plástico na cabeça, é um caminho para se decifrar a violência policial. Talvez 
as pessoas esperem isso da polícia e até queiram isso. Desde que não seja na porta do seu 
apartamento. Se for na favela, tudo bem. A favela ainda é a senzala e a polícia é o capitão do mato. 
E o que mais me angustia é que não vejo saída para isso.” 
 
Menos de um mês depois dos conflitos dos dias 24 e 25, a vida na Nova Holanda, no Parque Maré e 
no Parque União parecia ter voltado ao normal. Nas tardes em que passei por lá, o comércio estava 
aberto, as ruas fervilhavam de gente, carros, vans, motos e bicicletas congestionavam as vias 
estreitas. Em várias delas, o cheiro de churrasquinho e frango assado se misturava ao de maconha. 
Traficantes, bastante jovens em sua maioria, vendiam maconha, cocaína e crack embalados em 
pacotes expostos sobre pequenas mesas montadas nas calçadas, junto ao comércio. Tinha-se a 
impressão de que eram barraquinhas de frutas ou de uma bugiganga qualquer, tamanha a 
naturalidade com que os moradores passavam por elas. Meninos aparentando 12 anos desfilavam 
em motos com cigarros de maconha na boca. Outros andavam com sinalizadores pendurados no 
pescoço para serem detonados em caso de chegada da polícia. 
O pedreiro Robson Guimarães, que fora baleado na varanda da casa da mãe, já estava em sua 
casa, recuperando-se da cirurgia. A casa, um sobrado, estava arrumada com esmero. Toda a obra 
foi realizada por ele. Deitado na cama, Robson mostrou os curativos. Explicou que não pode fazer o 
exame de corpo de delito para ver a origem da bala porque ela está alojada na costela. “Os médicos 
disseram que não têm como tirá-la daí porque corro o risco de ficar paraplégico.” Como ele não paga 
o INSS, está em casa sem receber salário. Não sabe quando voltará a trabalhar. Reclamou de ter 
sido forçado a dar queixa na polícia. “Eu queria ter ficado quieto aqui. Não quero confusão. Não 
tenho raiva da polícia. A favela é uma maravilha”, disse ele, com resignação. Sua mulher, Célia, uma 
jovem morena de olhos verdes e cabelos encaracolados, me acompanhou pela rua. Ela tem uma 
visão diferente daquela do marido. Não vê a hora de ir embora da Maré. Contou que no dia em que 
Robson foi baleado ela estava em frente de casa conversando com as amigas. Viram o confronto 
entre os traficantes e a polícia na rua ao lado da sua. Foi o tempo de abrir a porta e se atirarem 
umas por cima das outras. “Outro dia minha filha me falou que um amigo de 12 anos entrou para o 
tráfico. Como ele, tem muitos. Eu não queria ver minha filha sendo criada num ambiente desses”, 
desabafou. 
O serralheiro Cezar de Oliveira também acredita que na favela poucos conseguem ficar alheios ou 
não ser atingidos pela marginalidade. “Outro dia eu estava vendo um filme em que meu filho Betinho 
aparecia ainda criança. Vi os amiguinhos dele em volta e fiz minha matemática. De dez, um virou 
estudante, o outro trabalhador. Os outros oito entraram para o tráfico. Que futuro eles terão? O 
mesmo do meu filho”, disse, em tom de lamento.

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