Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi (Org.) Memorial Acadêmico gênero, docência e geração Tatyana M abel N obre Barbosa M aria da C onceição Passeggi (O rg.) M emorial A cadêmico gênero, docência e geração Série Escritas de si Livros da série Memorial acadêmico: gênero, docência e geração Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi (Org.) Memorial acadêmico: gênero, injunção institucional, sedução autobiográfica Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi (Org.) Autoras do livro Cynthia Pereira de Sousa Heloisa Helena Oliveira Buarque de Hollanda Jane Soares de Almeida Maria Arisnete Câmara de Moraes Maria da Conceição Passeggi Marta Maria de Araújo Tatyana Mabel Nobre Barbosa O memorial acadêmico, como escrita de si, exige um exercício contínuo de reflexão para construir sentidos, dar unidade e coerência ao que foi formador na elaboração da história da sua vida. E é nesse sentido que a leitura dessas fontes autobiográficas contribui para a investigação dos construtos sócio-culturais de gênero, que se constituem na confluência das relações com as instituições, entidades sociais, acontecimentos e personagens. Memorial Acadêmico gênero, docência e geração Coleção “ Pesquisa (Auto)Biográfi ca ∞ Educação ” Série Escritas de Si EDUFRN Coordenação da Coleção Maria da Conceição Passeggi | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Brasil Elizeu Clementino de Souza | Universidade do Estado da Bahia | Brasil Christine Delory-Momberger | Universidade de Paris 13/Nord Coordenação da Série Tatyana Mabel Nobre Barbosa | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Brasil Parcerias Collection “(Auto)biographie ∞ Education” Paris:Téraèdre Colección “Narrativas, autobiografías y Educación” Buenos Aires: FFyL| UBA- CLACSO Universidade Federal do Rio Grande do Norte Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitora Maria de Fátima Freire Ximenes Diretor da EDUFRN Herculano Ricardo Campos Editor Helton Rubiano de Macedo Supervisão Editorial Alva Medeiros da Costa Conselho Editorial Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo Herculano Ricardo Campos Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia Cristina Meira Garcia Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo Willian Eufrásio Nunes Pereira Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi (Org.) Memorial Acadêmico gênero, docência e geração Grafi a atualizada segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa: Wilson Fernandes de Araújo Filho Editoração eletrônica: Paola Cristina Fernandes de Araújo Normatização e revisão: Jason Rafael Pereira de Lima Revisão científi ca: Tatyana Mabel Nobre Barbosa Impressão e acabamento: EDUFRN Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN | Biblioteca Central Zila Mamede Divisão de Serviços Técnicos Memorial acadêmico : gênero, docência e geração / organizadores Tatyana Mabel No- bre Barbosa, Maria da Conceição Passeggi. – Natal, RN: EDUFRN, 2011. 214 p. – (Coleção pesquisa (auto)biográfi ca ∞ educação) Série Escritas de Si. Bibliografi a ISBN 978-85-7273-773-9 1. Educação. 2. Memorial acadêmico. 3. Gênero. 4. Docência. 5. Geração. 6. Memória. I. Barbosa, Tatyana Mabel Nobre. II. Passeggi, Maria da Conceição. RN/UF/BCZM 2011/19 CDU 370 CDU 37 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem a autorização expressa das autoras Impresso no Brasil, 2011 Av. Senador Salgado Filho, 3000, Lagoa Nova Natal/RN-Brasil 59.078-970 Tel.: (84) 3215-3236 Fax: (84) 3215-3206 edufrn@editora.ufrn.br | APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO De que modo os percursos de vida contemporâneos, caracterizados pela pluralidade das experiências educativas, sociais e profissionais, singularizam-se nas histórias individuais? A pesquisa (auto)biográfica analisa as modalidades segundo as quais os indivíduos e, por extensão, os grupos sociais trabalham e incorporam biograficamente os acontecimentos e as experiências de aprendizagem ao longo da vida. As fontes (auto)biográficas, constituídas por histórias de vida, relatos orais, fotos, diários, autobiografias, biografias, cartas, memoriais, entrevistas, escritas escolares e videográ- ficas, configuram-se como objeto de investigação transversal nas Ciências Sociais e Humanas. Em Educação, a pesquisa (auto)biográfica amplia e produz conhecimentos sobre a pes- soa em formação, as suas relações com territórios e tempos de aprendizagem e seus modos de ser, de fazer e de biografar resis- tências e pertencimentos. O símbolo do infinito presente no título da coleção “Pesquisa (auto)biográfica ∞ Educação”, sugestivamente, tem a intenção de marcar a abertura entre esses dois espaços e inves- tir na liberdade de percorrer diferentes domínios da atividade humana mediante essa dupla entrada, a do (auto)biográfico e a do educativo. Concebida numa perspectiva intercultural, a coleção aco- lherá textos sob a forma de relatos, ensaios, trabalhos de pes- quisa que confirmem as diversidades — geográfica e teórica — de situações, de abordagens e de pontos de vista. Coleção “ Pesquisa (Auto)Biográfi ca ∞ Educação ” Série Escritas de Si EDUFRN Coordenação da Coleção Maria da Conceição Passeggi | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Brasil Elizeu Clementino de Souza | Universidade do Estado da Bahia | Brasil Christine Delory-Momberger | Universidade de Paris 13/Nord Coordenação da Série Tatyana Mabel Nobre Barbosa | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Brasil Conselho Científi co Ana Chrystina Venancio Mignot | Universidade do Estado do Rio de Janeiro | Brasil Ari Antikainen | Universidade de Joensuu | Finlândia Christoph Wulf | Universidade Livre de Berlin | Alemanha Danielle Desmarais | Universidade do Québec em Montreal | Canadá Daniel Suárez | Universidade de Buenos Aires | Argentina Duccio Demetrio | Universidade degli Studi de Milan Biccoca | Itália Elsa Lechner | Centro de Estudos em Antropologia Social do ISCTE | Portugal Gaston Pineau | Universidade François Rabelais | França Giorgos Tfi olis | Universidade de Creta, Rethymo | Grécia Guy de Villers | Universidade Católica de Louvain la Neuve | Bélgica Henning Salling Olesen | Universidade de Roskkilde | Dinamarca Isabel López Górriz | Universidade de Sevilla | Espanha Laura Formenti | Universidade degli Studi di Milano Bicocca | Itália Linden West | Universidade de Canterbury | Inglaterra Maria Helena M. B. Abrahão | Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul | Brasil Marta Maria de Araújo | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Brasil Peter Alheit | Universidade Georg August, Göttingen | Alemanha Pierre Dominicé | Universidade de Genebra | Suíça Victoria Marsick | Teachers College, Columbia University, New York | EUA Valerij V. Savchuk | Universidade de Saint-Petersburg | Rússia Apoio ANNHIVIF | Associação Norte-Nordeste das Histórias de Vida em Formação BIOgraph | Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfi ca ASIHVIF - RBE | Association International des Histoires de Vie en Formation et de la Recherche Biographique en Education | APRESENTAÇÃO DA SÉRIE A Série Escritas de si publica textos (auto)biográ-ficos de caráter ou interesse acadêmico, com o objetivo de dar maior visibilidade à singulari- dade de trajetórias intelectuais e valorizar a sua relevância histórico-cultural. Busca-se, nesse sentido, promover e pre- servar as memórias das instituições, dos grupos e dos sujei- tos e responder a uma demanda crescente das Ciências Humanas e Sociais acerca das potencialidades dessas fontes como método de investigação e prática social de formação. | SUMÁRIO | Memorial acadêmico: suasrepresentações de gênero e| Memorial acadêmico: suas representações de gênero e processos de transmissão intergeracional da docênciaprocessos de transmissão intergeracional da docência............... 11 Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi 1| Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi ............................................. 21 2| Tempora mutantur et nos cum illis Jane Soares de Almeida ...................................................... 39 3| Pelo fi o do passado, do presente e do futuro Marta Maria de Araújo ........................................................ 81 4| Caminhos e descaminhos de uma professora universitária Heloisa Helena Oliveira Buarque de Hollanda ................... 97 5| Entre o inventário de lembranças e aproximações de similitudes Maria Arisnete Câmara de Morais ...................................... 143 6| Rememorações Cynthia Pereira de Sousa .................................................... 155 7| “Rememorações”: aprendizagem por ascendência, docência e gênero Tatyana Mabel Nobre Barbosa ............................................ 191 | Organizadoras e autoras| Organizadoras e autoras............................................................ 207 |MEMORIAL ACADÊMICO: SUAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E PROCESSOS DE TRANSMISSÃO INTER- GERACIONAL DA DOCÊNCIA1 O memorial acadêmico, como escrita de si, exige um exercício contínuo de reflexão para construir sentidos, dar unidade e coerência ao que foi formador na elabo- ração da história de sua vida. Seus autores não somente regis- tram seus itinerários, mas analisam suas escolhas, investigam os elos entre seus tempos de formação e atuação profissional e re.significam suas trajetórias, a partir das diferentes dimensões. E é nesse sentido que a leitura dessas fontes autobiográficas contribui para a investigação dos construtos sócio-culturais de gênero, que, como sabemos, também se constituem na conflu- ência das relações com as instituições, entidades sociais, aconte- cimentos e personagens. Analisar essa fonte autobiográfica é, portanto, tarefa imen- samente significativa para a compreensão dos processos edu- cativos, sociais, políticos e históricos protagonizados no seio das universidades. E, ainda mais: permite o acesso a essas dimensões pela voz dos que a fazem, mediante discursos cons- truídos na e para a academia, mas, nem por isso, divorciados de suas singularidades e subjetividades. E é nessa direção que esta publicação contribui. Este livro reúne três memoriais acadêmicos, escritos entre os anos de 1993 e 2000, como requisitos institucionais para ascensão na carreira docente em diferentes universidades públicas brasileiras. Além disso, traz quatro artigos cientí- ficos, produzidos por professoras do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, especialistas em pesquisa autobiográfica; relações de gênero; Literatura e Educação; cultura, escola e escolarização. Em seus artigos, 1 Este livro foi realizado no âmbito do seguinte projeto: “Autobio- grafias de mulheres-professoras” CNPq / Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República- SPM/PR / Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA / Ed. 57/2008, no. 402966/2008-2, C2. 12 | Memorial acadêmico: suas representações de gênero e processos... analisam os memoriais acadêmicos como discursos antropo- lógicos que revelam a exemplaridade de memórias docentes, relações de gênero e processos de transmissão intergeracional de experiências formadoras. De um lado, este livro permite a leitura dos memoriais e o acompanhamento da trajetória des- sas professoras que se tornaram notáveis por seus trabalhos na área de gênero; e, de outro, permite relacionar suas próprias interpretações com aquelas apresentadas por outras autoras, especialistas em temáticas-chave para a análise das relações de gênero e da escrita autobiográfica. As autoras dos memoriais – Jane Soares de Almeida da Universidade do Estado de São Paulo, Heloisa Buarque de Hollanda da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Cynthia Pereira de Sousa da Universidade de São Paulo – são professo- ras de universidades públicas, pesquisadoras sêniors, bolsistas de produtividade do CNPq, que, ao longo de décadas, adota- ram como temas de pesquisa as relações de gênero, mulheres e feminismos, publicaram livros, participaram de grupos de pesquisa, realizaram estudos em universidades estrangeiras e protagonizaram ações administrativas e acadêmicas que aju- daram a realizar novas ideias e espaços em suas universidades2. O que há, ainda, em comum na trajetória dessas pesqui- sadoras é que seus memoriais ilustram uma situação relativa- mente paradoxal: foram escritos como requisito para ascensão na carreira docente no momento em que a aposentadoria se insinuava em seus horizontes profissionais. Essa peculiaridade 2 Agradecemos às professoras que, gentilmente, nos permitiram pu- blicar seus memoriais acadêmicos: Jane Soares de Almeida (UNESP, Campus de Araraquara), Heloísa Buarque de Hollanda (UFRJ) e Cyn- thia Pereira de Sousa (USP). O desprendimento em publicar sua his- tória de vida profissional é ainda mais notável pelo fato de terem-na disponibilizado aos seus pares para análise e escrita dos artigos. As aprendizagens estabelecidas com essas autoras, há dez anos, atra- vés da leitura de seus trabalhos, quando iniciávamos nossa pesquisa acerca das relações de gênero, também contribuíram para tornar possível esta publicação. Destacamos também a colaboração das professoras do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cuja participação neste livro dá continuidade à tradição desta instituição na pesquisa acerca da História da Edu- cação, das relações de gênero, das práticas socioeducativas e das tradições discursivas Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 13 nos permite não só conhecer e analisar o itinerário de vida e intelectual que contribuiu para que essas professoras se tornas- sem referência na área de gênero, como nos possibilita pergun- tar: “quais histórias já podem contar?”, “quais representações de gênero lhes serviram como referência?”, “de que modo essas representações foram ocultadas em suas próprias produções acadêmicas?” e “quais experiências de vida foram importan- tes para sua atuação profissional?”. A possibilidade de escrever sua autobiografia docente num contexto em que seu memorial atesta um trabalho sólido em benefício da própria universidade que, agora, a avalia, talvez seja uma das situações mais favo- ráveis para se relativizar, na escrita de si, as injunções institu- cionais, criar algo novo e reinventar a própria trajetória a ser transmitida a outras gerações de professoras. Por outro lado, o memorial acadêmico é também uma escrita da história parti- lhada entre a narradora e sua universidade e, portanto, inven- taria uma espécie de legado simbólico e comum à instituição e ao sujeito. E essa situação é, certamente, geradora de tensões para a escrita: “de que modo essa história questiona a história oficial da instituição, presente em seus documentos internos de regulamentação de seu funcionamento?”. Como vemos, o memorial acadêmico é rico de elementos a serem analisados e, nesse sentido, este livro permite itinerários de leitura plurais, seja em função da publicação de três diferentes trajetórias inte- lectuais de pesquisadoras da área de gênero, seja pelos diferen- tes olhares que cada artigo apresenta sobre essa escrita de si. No artigo Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Conceição Passeggi adotam dois conceitos-chaves para analisar os construtos de gênero: a autopoiésis e antropofagia feminina. Para as autoras, as narradoras-personagens dos memoriais transitam entre a criação de si e a submissão às relações de gênero naturaliza- das socialmente e, dessemodo, observam esse movimento em momentos e situações específicas: entrada na profissão, a cria- ção dos filhos, as relações conjugais, a escrita do memorial. Em Tempora mutantur et nos cum illis, memorial acadêmico de Jane Soares de Almeida, apresentado como requisito para o concurso público de Livre-docência, na UNESP, Campus 14 | Memorial acadêmico: suas representações de gênero e processos... de Araraquara, o leitor conhecerá a trajetória de uma profes- sora de origem modesta, com longa experiência em escolas da zona rural, onde ensinou aos filhos da pobreza. Seu memorial dissipa muitas injunções acadêmicas canônicas3 e coloca em cena as experiências formadoras, a subjetividade, a convivên- cia estreita entre o quadro, o giz e os diplomas, o casamento, o divórcio, os filhos, os netos. Se a escrita de si no contexto institucional não deixa de ser uma autobiografia, nem deixa de ser um texto acadêmico, Jane Soares de Almeida coloca a subjetividade e as experiências mais comuns à vida de uma mulher-professora no centro da sua narrativa e, nessa direção, se distancia do curriculum vitae como mimese de sua escrita. Poderemos pensar em uma escritura feminina?4. Em Pelo fio do passado, do presente e do futuro Marta Maria de Araújo usa as lentes de Pascal para ver no memorial de Jane Soares os processos de transmissão intergerações – a figura da mãe, dos alunos... –, a relação movediça com o tempo que auto- biografar impõe e a dimensão social nas histórias individuais. Sobre esse último aspecto, focaliza as narrativas experienciais do memorial e traz ao leitor seus vínculos com o contexto histórico-social e político do Brasil. E, nesse cruzamento, per- mite uma análise fina das travessias da narradora-personagem, que transcende, segundo Marta Maria de Araújo, os lugares- -comuns, vivencia dinâmicas culturais criativas, alterna seus mediadores nos processos de transmissão intergeracional e, em última instância, renova a si mesmo. 3 Esse é um conceito que Passeggi (2008) trabalha para analisar o memorial como produção flutuante entre a adesão ao cânone cien- tífico e às normatizações para os concursos, também acadêmicas, que exigem do professor-candidato reinventar-se e tecer os fios que entrelaçam os fatos. Nesse sentido, seu texto “Memoriais: injunção institucional e sedução autobiográfica” detalha essa discussão. Conferir: PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA, Elizeu Clemen- tino de (Org.); (Auto)biografia: formação, territórios e saberes. Pre- fácio Gaston Pineau. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Pesquisa (Auto)Biográfica Educação). 4 BARBOSA, T. M. N.; PASSEGGI, M. C. Escritura feminina e mulher escrita: interfaces da formação autobiográfica docente. Revista Educação em Questão, Natal: v. 25, n. 11, p. 80-101, jan./abr., 2006. Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 15 O memorial acadêmico Caminhos e descaminhos de uma professora universitária foi apresentado ao Departamento de Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro para concurso ao cargo de professor titular em Teoria Crítica da Cultura. Escrito por Heloisa Helena Oliveira Buarque de Hollanda, esse memorial indica-nos os diferentes espaços que as relações de gênero e de si mesmo como mulher ocupam em sua vida: torna-se profes- sora em meio a uma naturalização da relação mulher/ docên- cia; observa/acompanha a amiga Clara Alvim ir às ruas grávida de ideais; publica 26 poetas hoje, Tendências e impasses; diz não ao casamento e sim ao amor; observa a crítica sexista do seu trabalho e nem se apercebe; torna-se engenheira de pon- tes entre a universidade e o cinema, os grupos de teatro e os demais espaços de efervescência literária; ganha estatura aca- dêmica: é lida. Nesse exercício entre a imprudência da escrita autobiográfica que se encerra sob o paradoxo do sentimento de mudança e repetição de si mesmo sua vida partilha de uma identidade feminina típica da geração de 60, em que as mobi- lizações políticas colocaram as mulheres nas cenas públicas. Desse modo, tomando o feminismo como uma lente nova para ler os discursos circulantes é que compreende que não se sai ilesa na carreira intelectual das contingências de ser mulher. Maria Arisnete Câmara de Morais estabelece uma leitura em rede entre o memorial de Heloisa Buarque e sua própria narrativa de vida intelectual. Nesse cruzamento, aparecem as vozes das escritoras oitocentistas brasileiras, de Virgínia Woolf e de tantas outras que compõem as memórias de lei- tura e pesquisa da autora de Entre o inventário de lembranças e aproximações de similitudes. Essas vozes, distantes em tem- pos históricos e espaços geográficos se articulam nesse artigo pelas mãos-tecelãs de Maria Arisnete Câmara de Morais. Seu texto aponta as singularidades e recorrências que entrelaçam todas essas trajetórias de mulheres notáveis, anônimas ou de reconhecida importância acadêmica, intelectual e literária. Seu olhar para todas essas narrativas busca a utopia da pala- vra e, por isso, seu texto traz muito além do dito... leva-nos a ler olhando para dentro. E é também esse movimento que se 16 | Memorial acadêmico: suas representações de gênero e processos... aponta como necessário para a leitura que nos permite fazer do memorial de Heloisa Buarque de Hollanda e, em última ins- tância, para a leitura e escrita das narrativas femininas. No memorial Rememorações, apresentado como exigên- cia para obtenção do título de Livre-Docente em História da Educação na Universidade de São Paulo, Cynthia Pereira de Sousa traz inúmeras análises sobre a importância dos seus professores, desde a infância no contexto escolar, aos mestres da universidade. A relevância que essas personagens tem para sua formação e atuação profissional no ensino superior é mate- rializada em seu memorial e na sua produção científica. Esse aspecto da transmissão intergeracional das representações de gênero entre mestras e futuras professoras, presentes na dimensão mais experiencial do memorial acadêmico, e objeto das pesquisas de Cynthia Pereira de Sousa é o que analisa o artigo Rememorações: aprendizagem por ascendência, docên- cia e gênero de Tatyana Mabel Nobre Barbosa. Em seu artigo, relaciona a escrita do memorial à pintura-poesia de Edward Hopper, a partir de três de suas telas: A woman in the Sun (1961), Western motel (1957), Rooms by the sea (1951). Busca, com isso, lentes para melhor ler as narrativas autobiográficas e credencia à arte um repertório significativo para elucidar a subjetividade e a invenção de si no memorial acadêmico. Como vemos pela escrita de cada um desses textos, sejam os memoriais, sejam os artigos, a vida acadêmica coloca-nos num processo permanente de biografização: analisamos o outro, colocamo-nos como objeto da escrita, referenciamos nossa produção científica,... são muitos e diversos os exercícios da escrita de si na produção acadêmica e, se é assim, por que desconfiaríamos do exercício reflexivo sobre a experiência? Será pelo fato do memorial aderir a outras formas de normatização e colocar o professor como efetivo autor do seu discurso? Será em função da academia adotar como paradigma a exclusão do sujeito como ser capaz da autoformação? Para permitir aos leitores se aproximarem mais dos memo- riais conforme eles foram depositados nas universidades na ocasião dos concursos a que se submeteram suas autoras, opta- mos por poucas alterações em seu formato original e buscamos Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 17 manter, especialmente, elementos que caracterizavam o exer- cício de subjetivação da escrita acadêmica5. Assim, pensamos que a reflexão sobre as perguntas realizadas anteriormente necessita da manutenção dos elementos de liberdade estética exercidos pelas autoras dos memoriais, como: a assinatura que uma delas dá ao final do memorial, aproximando-o das corres- pondências e gerando um grau deintimidade com seu leitor e nas diferentes formas de incorporação da bibliografia ao texto, que pode sinalizar o modo como se autorizam a dizer sua pró- pria voz, com mais autonomia do que permitem outros gêneros acadêmicos. Consideramos esse conjunto de elementos pistas importantes para entender como o memorial acadêmico é uma fonte (auto)biográfica relevante para nos permitir conhecer como as mulheres escrevem sua história e, mais especialmente, as singularidades das histórias das professoras universitárias do Brasil. Natal, março de 2011. Tatyana Mabel Nobre Barbosa Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria da Conceição Passeggi Universidade Federal do Rio Grande do Norte 5 Assinalamos que não sem dificuldades buscamos manter esses elementos em conformidade com a versão dos memoriais deposi- tada nas universidades. A padronização típica às publicações aca- dêmicas entrou, muitas vezes, em tensão com nossa tentativa de “preservar o texto original”. Nesse sentido, abrimos mão dos ele- mentos pré-textuais dos memoriais acadêmicos, mas buscamos re- cuperar o seu contexto de produção na nota de rodapé inicial de cada texto. Por outro lado, mantivemos a forma de referenciação das fontes e permitimos ao leitor observar o modo como as autoras dos memoriais incorporam e assumem o discurso científico em seu texto. Além disso, todas as autoras indicaram título para seus me- moriais. Apenas uma delas adicionou comentários à versão original, destacando-os sempre em itálico, como notas reflexivas posteriores à escrita da versão depositada para concurso. Memorial AcadêmicoMemorial Acadêmico estudos para uma bailadora andaluza Tatyana Mabel Nobre Barbosa Maria da Conceição Passeggi 1| MEMORIAL ACADÊMICO: ESTUDOS PARA UMA BAILADORA ANDALUZA1 Tatyana Mabel Nobre Barbosa2 Maria da Conceição Passeggi3 Dir-se-ia, quando aparece dançando por siguiriyas, que com a imagem do fogo inteira se identifica. [...] Então, o caráter do fogo nela também se adivinha [...] Porém a imagem do fogo é num ponto desmentida: que o fogo não é capaz como ela é, nas siguiriyas, de arrancar-se de si mesmo numa primeira faísca, nessa que, quando ela quer, vem e acende-a fibra a fibra, que somente ela é capaz de acender-se estando fria, de incendiar-se com nada, de incendiar-se sozinha. João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza Ao ler o poema de João Cabral não há como não rela-cionar com Danse serpentine II. Um vídeo cuja única personagem é uma dançarina que parece uma bor- boleta a flutuar sobre o próprio corpo. Esse vídeo, produzido pelos irmãos Lumière, em 1897, é uma projeção contínua de 44 segundos, sem som, colorida à mão e transferida a vídeo, per- tencente ao acervo do Centro de Arte Reina Sofia em Madrid4. No vídeo, a dançarina e seu manto se confundem, mudam de cor... ela é só movimento. Não vemos seu corpo, que ganha as formas flutuantes que giram, giram na tela. A bailadora de João 1 Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto “Autobiografias de mulheres-professoras: suas representações de gênero na for- mação intergeracional da docência” (CNPq / Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República- SPM/PR / Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA / Ed. 57/2008, no. 402966/2008-2, C2). 2 Professora adjunta do Centro de Educação da Universidade Fede- ral do Rio Grande do Norte. 3 Professora titular do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 4 Em visita recente ao Centro George Pompidou, em Paris, vimos o mesmo vídeo no acervo da exposição permanente, sob o título de anônimo na direção. 22 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza Cabral se aproxima dessa fluidez, dessa plasticidade,... se uma é o manto branco que dança como serpentina em volta do próprio corpo, a outra é como fogo... é mais do que o fogo, pois é capaz de arrancar-se de si mesmo. Ambas, com seu corpo de fogo em serpentina dão vida ao vento, ao espaço e ao nosso olhar. Assim são as autoras dos memoriais. Bailadoras que, num movimento autopoiético, riscam e desenham a própria vida num gesto que visa a perpetuar a sua história de travessias rea- lizadas na efemeridade do tempo. E é justamente tomado nesse sentido que realizaremos, neste artigo, a leitura de três memo- riais acadêmicos, escritos para fins de ascensão ao magistério superior, e buscaremos compreendê-los como lugar em que as representações de gênero são importantes para a reinvenção das suas definições profissionais. Professoras-bailadoras: movimentos para criação das representações de gênero Quais passos as professoras-bailadoras dão nas danças da vida e da escrita de si? Como as representações de gênero cir- culam e envolvem-nas como serpentinas a flutuar sobre seus corpos? Como os construtos simbólicos generificados em dife- rentes momentos da vida profissional são relatados no memo- rial acadêmico na ocasião do balanço da quase totalidade do tempo de carreira? Partindo dessas perguntas, buscaremos fazer a leitura da dinâmica de constituição dos construtos de gênero, a partir do memorial acadêmico de três professoras: Jane Soares de Almeida, cujo memorial foi apresentado como requisito para o concurso público de professor adjunto, na Universidade Estadual Paulista-Unesp, Campus de Araraquara, para obtenção do título de professora livre-docente, em 2000; Heloisa Buarque de Hollanda, cujo memorial foi apresen- tado ao Departamento de Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro para o concurso de provimento do cargo de professor titular no setor Teoria Crítica da Cultura, em 1993; e Cynthia Pereira de Sousa, cujo memorial foi apresentado como exigência para Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 23 obtenção do título de Livre-Docência em História da Educação junto ao Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 2000 . Nosso objetivo é compreender a dinâmica dos processos significantes das relações de gênero, a partir de um olhar pri- vilegiado: das narradoras-personagens desses memoriais num momento em que já são apontadas como referência em algu- mas das áreas – como de gênero, memórias, história da profis- são docente – de interesse para nossa leitura. Para nós, esta escrita é particularmente significativa. Estamos também nela envolvidas sob algumas das matizes autobiográficas, uma vez que nosso interesse de pesquisa pelas áreas de gênero, memórias e escritas de si, que hoje balizam este texto, ocorreu, especialmente, a partir da leitura das pro- duções científicas das autoras dos memoriais que ora lemos e publicamos na edição deste livro. Foi a partir de suas publi- cações que compreendemos a rede de representações generi- ficadas que mobilizavam ou paralisavam muitas das nossas escolhas como mulheres e como professoras. Escrever sobre seus memoriais acadêmicos é um momento de síntese das aprendizagens que realizamos em partilha com essas professoras. Portanto, o leitor está diante, também neste artigo, de uma das inúmeras dimensões autobiográficas que o exercício acadêmico demanda. Autopoiésis e antropofagia feminina No contexto atual, talvez, pesquisar sobre as relações de gênero, mulheres e feminismos suscite algumas perguntas que questionem a necessidade de permanência dessas investiga- ções. No entanto, a pergunta “O que é uma mulher?”, embora lançada por Simone de Beauvoir há cerca de sessenta anos, numa das suas obras clássicas – “O Segundo Sexo” –, ainda busca respostas e, portanto, o que são, o que podem, o que fazem e o que pensam e querem as mulheres ainda não é algo sabido. Nesse sentido, é importante compreender, como esses memoriais acadêmicos, escritos por professoras sêniors na área 24 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza de gênero, e, além disso, contemporâneas das lutas feministas,elucidam esses embates nas suas experiências profissionais, na escolha da docência e na alternância entre as demandas inte- lectuais e a vida afetiva: Minha entrada na Escola Normal foi parte de uma decisão tomada segundo critérios de facilidade de acesso e como consequência natural da vida que levávamos numa cidade do interior, com poucas opções profissionais. Nesse tempo, trabalho e profissão eram coisas longínquas, entrevistos leve- mente entre os imensos afazeres de crescer e de conhecer a vida. (ALMEIDA, 2000, p. 6) Para as jovens, a voz corrente era de que o ideal era fazer o Curso Normal, pelas possibilidades concretas de se profis- sionalizar mais rapidamente. As outras opções implicavam, necessariamente, a continuidade dos estudos em uma facul- dade. Nem meu pai, nem minha mãe me aconselharam outras opções. Para meu irmão mais velho, o caminho foi o curso Científico e a faculdade de Engenharia. Meu outro irmão, seis anos mais novo, ainda tinha muitos degraus a galgar. E assim entrei para a Escola Normal, como se fosse um destino natural para mim, como mulher. (SOUSA, 2000, p. 07) Meu pai, um médico e pesquisador influente, diretor do Instituto de Puericultura da UFRJ e membro da Academia Nacional de Medicina, expressava uma razoável expecta- tiva em relação ao sucesso profissional – e conjugal – de suas filhas. [...] De certa forma, o destino de professora pare- cia já estar definido em algum nexo discursivo familiar, o qual não me sentia com poder e/ou desejo de interpelar. O magistério parecia uma carreira nobre, cujos voos, por mais ambiciosos que fossem, não se incompatibilizariam com as cir- cunstâncias de um provável futuro de esposa e mãe de família. (HOLLANDA, 1993, p. 07) A partir das citações de seus memoriais acadêmicos, escri- tos para diferentes instituições de ensino superior, vemos, com pequenas variações, um mesmo padrão de entrada na profis- são. Dominicé (2010) fala em movimentos de adesão e distan- ciamento que, ao longo da formação do adulto, mobilizam suas escolhas diante dos valores familiares e dos demais espaços de sociabilização. Todas retomam o contexto cultural-fami- liar para descrever como realizaram a escolha pela docência. Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 25 Teriam esses sentidos profissionais que ligavam a docência à vida de mulheres (alternativa que não geraria desconforto ao destino de mães e esposas) como um elemento importante para as trajetórias intelectuais que trilharam na área de gênero? Naquele momento, cada uma se via diante de um destino implacável e, como todas as mulheres, precisariam, a partir dali, aprender a amar o que não escolheram. Ao ver esses relatos de professoras do ensino superior bra- sileiro, em ascensão na carreira, reconhecidas por seus méritos acadêmicos e intelectuais, declararem as contingências insu- peráveis que as levaram à docência, recordamos nossa pró- pria história de criação e convivência em grupos familiares sertanejos. Lembramo-nos de alguns dos relatos de nossa avó sobre suas expectativas quando se descobria prenhe. Revelara- nos, por mais de uma vez, que desejava que fossem natimor- tos seus filhos no caso de serem mulheres5: “Eu pedia a Deus para levar se fosse menina”, dizia-nos. Parecia-nos, num pri- meiro momento, assombrosa a ideia de tal desejo, mais ainda pelo modo tranqüilo com que nos relatava: para quem o ideal dessa estranha luta estabelecia algum tipo de coerência com os dogmas religiosos também tão fortes no interior do Nordeste brasileiro. Mais tarde, quando começamos a nos interessar pelas relações de gênero como objeto de pesquisa, compreen- demos esse sentimento e o denominamos antropofagia femi- nina. Nascida numa cultura nordestina, sertaneja, machista e impiedosa às mulheres, perpetuar a espécie fêmea era pro- longar seu próprio sofrimento e condenar às gerações futu- ras um destino cruel. De certo modo, a nosso ver, seu desejo guardava uma visão cristã de salvação. Para ela, não seria, portanto, pecado e teria uma espécie de consentimento para tal pensamento (“Eu pedia a Deus para levar...”). No momento desta escrita, ao lembrar dessas histórias de todas nós, é que 5 Este fato retoma as memórias familiares de uma das autoras deste texto. A personagem a que faz referência, a avó, é Maria de Lour- des de Medeiros Nobre, nascida em 1926 numa pequena cidade do interior do Nordeste Brasileiro. Maria de Lourdes cursou até o 3º ano primário, teve 03 meninos-homem e 05 filhas e nunca escondeu sua predileção pelos meninos. É para ela que dedicamos cada uma destas páginas. 26 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza melhor compreendemos os círculos instransponíveis que leva- ram cada uma das professoras a escolher a profissão docente. A nossa avó só restara desejar o luto à vida e se suas filhas tei- mavam em escapar ao destino por ela traçado e conseguiam sobreviver só lhe restaria aprender a amar aquilo que, de certo modo, também não escolhera. Sua luta era recolher-se e findar a espécie, delegando-nos ao silêncio da inexistência simbólica. Para Cynthia, Jane e Heloisa (cuja geração corresponde a de descendentes culturais de nossa avó) lutar contra esses cons- trutos simbólicos era, primeiramente, aceitar o destino para, depois, numa trapaça inicialmente pouco planejada tentar dri- blar e construir novos sentidos para a existência das mulheres. E, nessa direção, seus livros, suas ações na vida acadêmica e seus memoriais são vozes desse plano. Por isso, a pergunta de Beauvoir, ao contrário de ter enve- lhecido, é hoje, mais atual do que nunca: depois de tantas mudanças e conquistas, o que de tão novo seria adicionado para respondê-la? Mesmo depois de seis décadas da obra de Beauvoir teríamos o que acrescentar às suas profícuas reflexões? Em que medida a docência se mostrou como um “destino” efe- tivamente acolhedor à vida de mães e esposas, conforme fazia parte dos discursos sociais? Em meados dos anos 1980, minha vida sofreu uma reviravolta em todos os sentidos e vi-me mudando de casa, de cidade e de trabalho. [...] tinha feito inscrição para o concurso de pre- enchimento de função docente no Departamento de Didática da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara e fui aprovada. Após um ano de espera, saiu minha contratação [...]. Ir para Araraquara iria introduzir mudanças significativas na minha vida e na dos meus filhos [...]. Cerrei os dentes com força, dei adeus aos dezesseis anos vividos em Botucatu e coloquei no caminhão de mudanças os móveis e as roupas; no velho Chevette 78, dois meninos excitados e um adolescente revoltado, mais dois gatos, uma cachorrinha preta e um aquário de peixes que morreram no caminho sob o terrível calor de janeiro de 1987. Foi um tempo de muita ansiedade, de preocupações com os filhos, de empenho em conseguir finalmente a segurança profissional e a possibilidade de concretizar alguns sonhos.... (ALMEIDA, 2000, p. 17) Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 27 Essa é uma das inúmeras passagens dos memoriais em que a dimensão da vida – a de mãe ou esposa – aparece como se inter- rompesse o fluxo profissional, ou como obstáculo ao pleno exer- cício da docência, que exige, muitas vezes, um movimento quase heróico das narradoras para permitir que sejam conciliáveis. Em que medida, o caminho natural como mulher que as levou à docência era conciliável com a vida de mãe e esposas? Teriam, portanto, abraçado por engano um destino profissional? Nas últimas décadas, a “mulher” foi/é, certamente, um dos objetos de investigação mais plásticos das Ciências Humanas em torno do qual passaram a orbitar os mais diversos senti- dos. Pensando mais particularmente nas pesquisas situadas no âmbito educacional, é possível afirmar que esses estudos impulsionaram novos campos de reflexão para além da dico- tomia biológico-social, já longamente posta em xeque em “O Segundo Sexo”: o papel da mulher na Educaçãoe sua inserção no mercado de trabalho; os estudos históricos sobre docên- cia e gênero; as interfaces entre as representações de gênero, o feminismo e diversidade sexual na escola; mulher, escritas de si, literatura, artes e mídia sob uma perspectiva educacio- nal; Educação e saúde da mulher são alguns dos eixos sob os quais já não se pode prescindir para entender “a mulher” e, mais amplamente, a teia de valores familiares, sociais e cultu- rais partilhados. Nessa direção, compreender quais são os signos novos e velhos que as autoras dos memoriais agregam ou afastam, ao longo de suas trajetórias como professoras debutantes, experien- tes e sêniors para “responder” o que é uma mulher? faz-se ainda novo. Como esses construtos mudam e se ressignificam ao longo da vida profissional, e como se fazem relevantes para a docência? Talvez a citação a seguir nos ajude um pouco nessa discussão: Sinto um certo desconforto. O gênero [o memorial], tal como descrito pela teoria literária, certamente me traz alguns pro- blemas. No caso de uma narrativa cujo sujeito é feminino, como o “privado” se situa em termos de “público”? Seriam, na realidade, o privado e o público oposições irreversíveis? Alguns insights (ou meros sentimentos?) me vêm à cabeça. Realizo que a escrita autobiográfica levanta questões perigo- sas sobre o “privado” em termos de self e sobre o próprio 28 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza posicionamento do self nesta escrita. Sinto que a autobiografia revela fraturas, intervalos, não só de espaço e tempo ou entre o individual e o social, mas, sobretudo, uma clara divergência entre a forma e o conteúdo de seu discurso. Como traduzir para o feminino as propriedades da noção de autobiografia que a teoria literária me oferece? (HOLLANDA, 1993, p. 06) Nesse sentido, a perspectiva autobiográfica é uma opção fundamental à pesquisa sobre as relações de gênero, uma vez que esses sujeitos – as mulheres –, secularmente alienados e impedidos de serem protagonistas da sua própria história, tem, sob essa abordagem, a possibilidade de ganhar voz e emergir para outro status, seja na sua vida profissional – em que têm a possibilidade de dizer sobre si – seja no âmbito formativo – em que dispõem da alternativa de redizer a si mesmo, de rein- ventar-se. No entanto, ao considerar junto com Bruner (1997) que as autobiografias das mulheres foram marginalizadas pela adoção de um cânone absolutamente masculino de escrita, percebemos que o memorial acadêmico não é um lugar apenas de realizações, mas de lutas e tensões, conforme bem ilustra a citação anterior do memorial de Hollanda. Os memoriais acadêmicos são formas de simbolização das conexões entre os elementos culturais, a experiência relacional, individual formada ao longo do processo de socialização do sujeito (BRONCKART, 1999) acerca da sua trajetória institu- cional. Essas escritas, como bem situa Passeggi (2008), estão inscritas dentre as práticas que procuram, essencialmente, proferir uma figura pública do eu, nas quais forma e conteúdo entrelaçam-se nessa busca de conhecimento e exposição de si. Gaston Pineau (2003) situa a prática das histórias de vida como “sincronizadora”, que permite a historicidade pessoal da formação. Ou seja, a seleção e ordenação de acontecimentos específicos, a atribuição de valores aos espaços que responde- ram pela constituição da professora que cada uma se tornou, a identificação das pessoas que foram charneiras na formação. Essa característica das autobiografias permite que suas nar- radoras disponham de exercício interpretativo, uma vez que, segundo o autor, a escrita de si é dotada de reflexão educativa, pela inclusão da vida do sujeito na sua formação institucional. Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 29 Como se vê, o enfoque nos gêneros autobiográficos utili- zados em contextos institucionais de avaliação acadêmica ganha também um sentido político. Como prática investiga- tiva não vertical, a pesquisa autobiográfica situa essas escritas como possibilidade de ter acesso e de partilhar da construção de sentidos do conhecimento de si (PINEAU, 2003) e aos jogos de interpretação que as professoras articulam para identificar, analisar e sistematizar as representações de gênero que incidem sobre suas práticas profissionais. Nesse sentido, a opção pela autobiografia nos permite o acesso à rede de representações de gênero narradas, reinventadas, transformadas e cristalizadas pelas professoras em suas narrativas de vida profissional. Ao analisar a trajetória feminina na profissão docente, Guacira Lopes Louro (2000a, 2000b, 2000c) assinala três ele- mentos essenciais na constituição das representações profis- sionais: a religiosidade, a associação com os saberes maternais e as relações amorosas. A vida docente vai se alternando nas narrativas que seguem com as esferas mais íntimas das ins- tâncias familiares e afetivas, que, às vezes, aparecem como se interrompessem o fluxo da escrita, conforme, a citação de Hollanda a seguir e também um recurso bem típico ao memo- rial de Cynthia, como discutimos em nosso artigo neste livro. Em outras passagens, são elos que permitem à narradora tecer as histórias e encontrar seus elementos coesivos, como faz Jane Soares de Almeida: No galpão improvisado da Avenida Chile, onde funcionava a Faculdade de Letras, as aulas se transformavam em arena para a discussão da reforma universitária, o texto literário em alfa- beto explosivo definindo questões até então impensáveis no âmbito das salas de aula. Nas horas vagas, participava, empe- nhadíssima, de meu primeiro GT: A Comissão Paritária para a Implantação da Reforma Universitária. Em casa, um casamento seguro, três filhos e o compromisso do comício e da festa. Mudar o mundo. Mudar de vida. Final de 1967: uma famosa festa, promovida pelo grupo do Cinema Novo, foi o palco de 18 divórcios. Entre eles, o meu. (HOLLANDA, 1993, p. 13) 30 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza [...] a pessoa cuja influência foi decisiva para meu desejo de estudar foi minha mãe. Tendo vivido sua infância na zona rural e sendo possuidora de escassa escolaridade, sempre foi uma exímia contadora de histórias.[...] Em pouco tempo, tornei-me exímia na arte de usar a lousa e o giz, desenhava em cores substituindo a falta de outros meios e, como minha mãe, fui também uma contadora de histórias para os pequenos ouvintes atentos. (ALMEIDA, 2000, p. 5-6,) Nas passagens supracitadas, o texto transita entre a profis- sional, a mãe e a mulher, fazendo-nos questionar como essas escritas de si compilam seus saberes e práticas profissionais, quais arquétipos elaboram sobre a profissão e a quais saberes se ligam. A adoção dessa perspectiva exige uma mudança de olhar acerca da voz da mulher-professora, pois essa se torna importante foco de análise, em que subjazem as representações e questionamentos sobre a prática docente. Em Rememorações, Cynthia nos permite observar um cru- zamento entre profissão e maternidade, que passa a ser funda- mental na relação que estabelece com a docência: A leitura que fiz desse excelente trabalho acerca da época de Getúlio Vargas, tratando de temas até então pouco explo- rados, foi determinante para a definição do meu projeto de doutorado, cujos créditos iniciei no primeiro semestre de 1981, finalizando-os no primeiro semestre de 1983. A essa altura estava grávida de minha filha Suzana, que nasceu em setembro. Com os créditos de disciplinas em dia e em gozo da licença-gestante, dediquei-me a leituras e fichamentos do material que tinha mais à mão, nos intervalos destes outros banhos, fraldas e mamadeiras. (SOUSA, 2000, p. 17) Seu texto remete a dois universos, aparentemente distintos, mas que se mostram confundíveis e intercambiáveis: a docên- cia e a maternidade. Seu memorial sinaliza a confluência de papéis e de sujeitos – a mãe, a professora , numa teia geracional que, muitas vezes,está antes de nós e ocorre, segundo Lani- Bayle (2008), de forma insciente, constituindo um conjunto de modelos que só nos apercebemos na ocasião da escrita de si. Nesse processo, estão em jogo justamente os construtos Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 31 sócio-culturais de gênero, que são historicamente partilhados e apropriados em cada memorial. Assim, o memorial acadêmico exige viver tensões na escrita que traduzem as experiências sócio-culturais. A escrita e a vida como autopoésis e antropofagia feminina. Como se escrever como mulher? Conforme questiona Hollanda: O que fazer de um texto cujo sujeito é feminino? Quais de seus traços precisam ser cortados para fazer caber numa autobiografia acadêmica que valoriza a dimensão pública, quando esse sujeito habita o privado? Intensos exercícios são realizados para emergirem. São movimentos autopoiéticos que se contrastam com a dimensão antropofágica também presente nos memoriais acadêmicos. É por esse movimento de reinvenção de si que as autoras tentam protagonizar passos mais propositivos diante das contingên- cias que os construtos simbólicos de gênero impõem às mulhe- res, seja na escolha profissional; no espírito hercúleo para fazer conciliar fraldas e mamadeiras com teses e fichamentos; seja na naturalização imperceptível das relações de poder e de subes- timação das mulheres. Seus memoriais acadêmicos revelam várias das estratégias usadas para superar a antropofagia e per- mitirem-se a criação de si: as narrativas da dimensão privada que interrompem ou se entrelaçam aos relatos profissionais dos fatos ocorridos na dimensão pública, como tentativas de escrever uma narrativa em que possam se assumir no discurso e no conteúdo; o relato do esforço em emergir das condições de gênero sócio-culturais estratificadas; as atividades profis- sionais realizadas como gestos políticos e científicos para per- mitir uma outra leitura do lugar da mulher e reconstruir os significados de gênero partilhados. Esses são movimentos que aproximamos anteriormente dos passos da bailadora andaluza e da bailarina do vídeo dos irmãos Lumiére, mas a dança (a escrita) também é reveladora da luta com as palavras e com a vida para fazer e escrever outra história e aprender outros pas- sos que nem se sabe ao certo se existiam. 32 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza Considerações Assim, o memorial permitirá reflexões acerca das relações de poder e das tensões sociais impostas a essas autoras como mulheres. Inicialmente, a indução à adesão do que é dado na dimensão sócio-cultural é sempre reconhecida com facilidade quando essas marcas das imposições do gênero e do lugar da mulher na esfera social referem-se ao espaço familiar de ori- gem. A necessidade de coesão da escrita e de compreensão das escolhas e tomadas de decisão profissionais exigem que sejam trazidos à tona elementos da esfera privada, mais espe- cialmente, dos papéis que exercem como mães e esposas para justificar e explicar seu percurso profissional. Em alguns momentos da narrativa, admitiam que essas relações semânticas pareciam como nuvens que não se conse- guiam, ao certo, compreender. O mundo dado e naturalizado, à medida que a narrativa do memorial emerge da infância esco- lar e, especialmente, do entorno do grupo familiar e transita no espaço acadêmico, passa a ser efetivamente questionado. Os longos relatos sobre as leituras realizadas, trabalhos de pes- quisa desenvolvidos, grupos de pesquisa que formaram, livros publicados e socialização dos seus estudos de gênero entre os pares vai amadurecendo os desconfortos iniciais acerca de sua condição naturalmente menor como mulher. Essas leituras tem nos permitido apontar como as rela- ções de gênero são significadas em cada uma dessas escritas. O memorial acadêmico, utilizado como dispositivo de avalia- ção em concursos públicos, na promoção da carreira docente, exames e seleção para diversas atividades universitárias é um gênero rico da história da universidade brasileira, das suas dinâmicas, das leituras mais privilegiadas, dos progra- mas e atividade por ela fomentados e, de modo mais amplo, da sua relação com a política e com a sociedade. Através das narrativas dos memoriais acadêmicos, compreendemos tam- bém como várias das esferas de sociabilidade interagem com a universidade e tornam-se mediadoras de saberes na traje- tória de constituição intelectual dessas professoras. Falamos de grupos como a igreja, o sindicato, os grupos culturais, que Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 33 respondem, em parte, pelos processos formativos dessas pro- fessoras e podem interagir com a universidade através delas. Nesse sentido, retomamos a imagem anterior das professoras como bailadoras, cuja vida e a escrita transita entre o dentro e o fora da universidade, entre o público e o privado das trajetórias docentes. E é justamente como bailadoras entre os diferentes espaços e condições de gênero que as professoras vão se encon- trando e, muitas vezes, entrando em embates importantes para re.significar esses construtos simbólicos. Referências ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possí- vel. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. _______. Memorial. Araraquara, 2000. (Digitado). BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre; PASSEGGI, Maria da Conceição. Memórias de professoras bem comportadas: representações de gênero na escrita autobiográfica. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre (org.). Narrativas de formação e saberes biográficos. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. (Pesquisa (auto)biográfica ∞ educação). BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre; PASSEGGI, Maria da Conceição. Memórias de professoras bem comportadas: representações de gênero na escrita autobiográfica. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre (org.). Narrativas de formação e saberes biográficos. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. (Pesquisa (auto)biográfica ∞ educação). BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BEAUVOIR, Simone de. Memórias de uma moça bem-comportada. Tradução de Sérgio Milliet. 6. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e Mitos. Tradução de Sérgio de Milliet. 12. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980a. v. 1 34 | Memorial acadêmico: estudos para uma bailadora andaluza BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio de Milliet. 10. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980b. v. 2 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 10. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BRUNER, J. Atos de significação. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de Linguagem, textos e discur- sos: por um interacionismo sócio discursivo. Tradução Anna Rachel Machado, Pericles Cunha. São Paulo: EDUC. 1999. DEL PRIORE, Mary. (org.). História das mulheres no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2002. DOMINICÉ, Pierre. A Biografia Educativa: instrumento de investi- gação para a educação de adultos. In: NÓVOA, António e FINGER, Matthias (org.). Método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2010. JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. Tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira. São Paulo: Cortez, 2004. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ________. Memorial. Rio de janeiro, 2000. (Digitado). LANI-BAYLE, Martine. Histórias de vida, transmissão interge- racional e formação. In: PASSEGGI, Maria da Conceição (Org.). Tendências da pesquisa autobiográfica. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: PAULUS, 2008. (Pesquisa (auto)biográfica ∞ educação) LAURENTIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In: HOLLANDA, HeloísaBuarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto, 2000a. LOURO, Guacira Lopes. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000b. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: ________. Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000c. Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Maria da Conceição Passeggi | 35 LOURO, Guacira Lopes. Gênero e magistério: identidade, história, representação. In: CATANI, Denice Barbara et al. (Orgs.). Docência , memória e gênero. São Paulo: Escrituras, 2000d LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma pers- pectiva pós-estruturalista. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. DOMINICÉ, Pierre. O processo de formação e alguns dos seus com- ponentes relacionais. In: FINGER, Matthias; NÓVOA, ANTÓNIO. O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. (Pesquisa (auto)biográfica ∞ educação) PASSEGGI, Maria da Conceição. Memoriais: injunção institucio- nal e sedução autobiográfica In: PASSEGGI, Maria da Conceição, SOUZA, Elizeu Clementino de (Org.); (Auto)biografia: formação, territórios e saberes. Prefácio Gaston Pineau. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: PAULUS, 2008. (Coleção Pesquisa (Auto)Biográfica ∞ Educação). PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre; CÂMARA, Sandra Cristinne Xavier da. Gêneros acadêmicos auto- biográficos: desafios do GRIFARS. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria da Conceição (Org.). Pesquisa (auto)biográfica: cotidiano, imaginário e memória. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Pesquisa (Auto)Biográfica ∞ Educação). PINEAU, Gaston. Temporalidades na formação. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: TRIOM, 2003. SOARES, Magda. Metamemória-memórias. Travessia de uma educa- dora: São Paulo: Cortez, 1991. SOUSA, Cynthia Pereira de. Rememorações. São Paulo, 2000. (Digitado). Tempora mutantur et nos cum illisTempora mutantur et nos cum illis Jane Soares de Almeida Pelo fio do passado, do presente e do futuro Marta Maria de Araújo 2 | TEMPORA MUTANTUR ET NOS CUM ILLIS1 Jane Soares de Almeida Neste ano de 2010 completei 44 anos de magistério. Desses, 37 anos em escola pública. Esses números che-gam a me espantar e faço-me a pergunta: para onde foram? Terei feito a minha parte? Em que contribuí para a edu- cação do povo deste país? Um país que é meu e que amo, mesmo que às vezes me cause dor. O lugar onde nasci, criei meus filhos, enterrei seres amados e onde irei repousar para sempre quando minha vez chegar. Nesse dia, que espero ainda distante, terei, talvez, tempo apenas para sentir a doçura do ar e de como o sol nos acaricia a pele. Se for noite, terei a imagem de uma lua bri- lhante através das folhas das palmeiras, mesmo que esteja longe. Se houver chuva ou vento, ainda assim sentirei o sol. Este país é o meu Brasil que se cruza em imensos planaltos e planícies, é pontilhado de verde e de luz refletida em inúmeras águas. E seu povo, o meu povo brasileiro, miscigenado em poderosas matri- zes étnicas, também reflete em seu semblante as cores faiscantes dessa beleza. É para esse meu povo, que merece ser cuidado com carinho e responsabilidade, que dedico esta narrativa. A narra- tiva de uma educadora que, a cada ano, a cada grupo de alunos, recria para si a esperança. Escrevi este texto em 2000, quando defendi minha tese de livre-docência na Universidade Estadual Paulista – UNESP, para o concurso de professora-adjunta. Agora, neste ano de 2010, volto a ele com olhos uma década mais velhos. E não houve o que mudar. Ainda sou a mesma professora que há quase meio século subiu numa charrete puxada por um lindo cavalo marrom e seguiu por uma estradinha de terra ao encontro de seus primeiros alunos. Desnudo-me aqui com a coragem que me 1 Os tempos mudam; e nós com eles. Memorial apresentado como requisito para o concurso público de professor adjunto, na Univer- sidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Araraquara, para ob- tenção do título de professora livre-docente, em junho de 2000. 40 | Tempora mutantur et nos cum illis deram os anos. E com o sonho de driblar pela palavra escrita a voragem da vida que passa e a finitude da existência. Revisitando o passado Quando nos dispomos a debruçar sobre o que temos vivido e realizado, hesitamos entre o prazer de falar daquilo que somos e o comedimento necessário para não nos alongarmos em demasia e não perder a racionalidade. Penso que autobio- grafias, histórias de vida e memoriais assemelham-se, embora, por uma questão de coerência com os objetivos do meio acadê- mico, intentemos extirpar destes últimos a maior parte daquilo a que chamamos a subjetividade da existência: as emoções, os sentimentos, os desejos e paixões dos quais se nutrem as bio- grafias dos sobejamente conhecidos. Procuramos, em nome da seriedade profissional que a ciência nos impõe, minimizar atos, decisões e atitudes que tomamos no decorrer de toda uma vida adulta dedicada a essa mesma ciência, que, como mestra severa, vigia e pune nossos atos. À semelhança das biografias, que comumente iniciam com o “nasci em...”, não pretendo abrir este memorial falando de minha infância. Essa não interessa à academia, foi simples demais, normal o suficiente para ser comum. Porém, minha vida não se iniciou quando ingressei na universidade, nem minha atração pelo conhecimento se deu depois de adulta. Meu relato é, antes de tudo, uma elegia de amor à leitura. Portanto, não posso deixar de registrar que sempre fui uma leitora ávida, deslumbrada pelo mundo que os livros punham ao meu alcance e meu verdadeiro ingresso na vida deve ter sido por meio deles. Na pequena cidade onde cresci, a minúscula biblioteca do clube local, montada com esforço pela comu- nidade por meio de muitas doações e algumas encomendas, era meu paraíso. Abria duas vezes por semana e, impaciente, eu deixava de lado amigas e brincadeiras, (mesmo durante as férias), para sair de lá com o máximo de livros que era permi- tido para deleitar-me com sua leitura. Desde que aprendi as primeiras letras, lia tudo que me caía nas mãos. Comecei pelos contos de fada, os livros de Monteiro Jane Soares de Almeida | 41 Lobato, depois passei para ficção científica, as obras comple- tas de Júlio Verne, as aventuras, os magníficos contos góticos de Edgar Allan Poe, as histórias de amor, os contos policiais e, finalmente, os clássicos como O morro dos ventos uivan- tes, Hamlet, O egípcio, Horizonte perdido, Moby Dick, A peste, Zorba, o grego, perdidos agora entre as lacunas da memória, mas que naquele tempo colocaram em mim sua marca. Fui introduzida no mundo do letramento pela escola. O Grupo Escolar de Manduri, a escola pública onde tive contato pela pri- meira vez com o mundo das letras e dos números, era pequeno e simples, era modesta a sala de aula, era formidável a profes- sora, e isso foi suficiente para meu aprendizado. A escola foi um deslumbramento. Gostava tanto de estudar como de ler, e minha mãe vivia preocupada com essa menina que não sai do quarto... No curso ginasial, no qual ingressei por meio do exame de admissão, o grande entrave para ali- jar as classes populares do prosseguimento de estudos, entrei em contato mais estreito com algumas disciplinas, entre elas uma que se tornou a minha predileta, a História. Não sei se foi pela professora, uma verdadeira artista em sala de aula, de uma atuação que me deixava boquiaberta, despertando-me o desejo de imitá-la. Era uma mulher, dinâmica, enérgica e exi- gente. Tratava sua disciplina como se fosse a única do currículo e assistir às suas aulas era como se uma máquina do tempo nos transportasse para cada local onde se deu cada fato histórico. No entanto, a pessoa cuja influênciafoi decisiva para meu desejo de estudar foi minha mãe. Tendo vivido sua infância na zona rural e sendo possuidora de escassa escolaridade, sempre foi uma exímia contadora de histórias. A televisão só chegou à minha pequena cidade quando eu já era uma jovem professora, assim minha infância e adolescência foram embaladas pela memória de minha mãe. Minha mãe, pobre de letras, mas uma mestra na oralidade e com uma imensa riqueza de imaginação, povoava meus sonhos infantis com as histórias de sua infância, das fazendas cafeeiras, dos coronéis, a família numerosa, os irmãos auto- ritários, as festas na roça, as mortes, os casamentos, a sub- missão das mulheres aos maridos. Nunca tendo ouvido falar 42 | Tempora mutantur et nos cum illis em feminismo e direitos das mulheres, indignava-se ao lem- brar as proibições de sair de casa sozinha, de atender a porta para estranhos, de conversar em público com rapazes ou de rebelar-se e levantar a voz. Dizia-me, resignada, que ter nas- cido mulher representava uma desvantagem, mas que o fato de ser capaz de gerar filhos tudo compensava... Circunscrita ao limitado mundo doméstico e aos pobres horizontes cultu- rais de uma pequena cidade interiorana, criou um universo mágico que embalou minha vida e povoou meu cotidiano acanhado com a presença dos fantasmas amigos do passado que, na escuridão da noite, evocados pela minha imaginação, aproximavam-se lentamente de minha cama, sussurravam coi- sas no meu ouvido e me estremeciam ao toque de seus dedos. Ainda hoje os tenho por companhia, principalmente quando a saudade dos que se foram (e todos sofremos perdas ao longo da existência) e a busca de um sentido para as separações irre- mediáveis colocam em meu espírito a angústia existencial do enfrentamento da própria finitude. Tempo de conhecer: os caminhos da Escola Normal Minha entrada na Escola Normal foi parte de uma decisão tomada segundo critérios de facilidade de acesso e como con- sequência natural da vida que levávamos numa cidade do inte- rior, com poucas opções profissionais. Nesse tempo, trabalho e profissão eram coisas longínquas, entrevistos levemente entre os imensos afazeres de crescer e de conhecer a vida. Dos anos cursados na Escola Normal ficaram algumas noções pedagó- gicas abstratas e a experiência marcante dos estágios curricu- lares feitos nas classes do curso primário. Tive uma formação fragmentada, baseada em noções básicas de biologia, história, psicologia e filosofia da educação, estrutura e funcionamento do ensino, didática e prática de ensino, desenho pedagógico e estatística; um pouco de matemática, educação física e música. Os estágios curriculares eram atividades maçantes, repeti- tivas e rotineiras que nos faziam olhar o relógio e desejar estar em outro lugar que não ali, numa sala de aula do curso primá- rio observando uma cansada professora impor aos alunos as Jane Soares de Almeida | 43 mesmas tarefas, dia após dia. Onde encontrar o ensino dinâ- mico, ativo e eficiente dos livros? Onde redescobrir o prazer de aprender? Como entender as etapas da aprendizagem de Piaget olhando aqueles rostinhos cansados, suando para copiar frases difíceis da lousa, enquanto a vida lá fora tinha tantos atrativos? Do aluno concreto, da criança real que seria encontrada em sala de aula, das dificuldades de se fazer um trabalho peda- gógico que levasse em conta os determinantes sociais, políti- cos e econômicos que permeiam o trabalho docente, nenhum professor jamais a isso se referiu, e foi uma jovem professora, despreparada pessoal e profissionalmente, que se dirigiu para a escola rural para ensinar crianças carentes, cheias de ansiedade e esperança... Foi nessa escolinha da roça que se deu o meu despertar profissional, quando lá comecei a lecionar aos dezoito anos (como é possível dar aulas para crianças quando mal se saiu da adolescência?). O fato é que eu, com alguma sensatez e mui- tos erros, dei conta de alfabetizar quase quarenta meninos e meninas. Não sei como consegui tal proeza, até hoje isso me espanta em vista da minha inexperiência e movida apenas pela vontade. Em pouco tempo, tornei-me exímia na arte de usar a lousa e o giz, desenhava em cores substituindo a falta de outros meios e, como minha mãe, fui também uma contadora de histórias para os pequenos ouvintes atentos. Fascinava-me ver as mãozinhas rudes e desajeitadas, mais afeitas ao cabo da enxada do que aos lápis e cadernos, buscando dominar a arte da leitura e escrita, e vê-los debruçar-se sobre as carteiras osci- lantes, compenetrados, tentando decifrar as primeiras letras. Eles eram o sal da terra. Como disse Cecília Meirelles, “ fortes e simples como as pedras”, e me mostraram o sentido da pala- vra solidariedade. Rijos como a natureza, os pés sujos da lama vermelha que se entranhava entre seus dedos, pisavam deter- minados os degraus da entrada de minha sala de aula e seus olhos de muitas cores me fitavam com confiança e afeto a cada nova manhã. Respeitavam-me pelo conhecimento que julga- vam que eu possuía, aquele conhecimento adquirido na escola e na cidade. Esperavam algo de mim, e essa esperança era tão transparente, tão límpida, que não pude deixar de senti-la e de 44 | Tempora mutantur et nos cum illis tentar corresponder. Iniciou-se, assim, uma história de amor que ainda não teve um final, e talvez seja por isso que eu acre- dito e continuo tentando... Desde o primeiro dia de aula, que aguardei com antecipa- ção e sobressalto, estabeleci com eles um entendimento mútuo. Eu tinha medo da responsabilidade, mas queria ensinar; eles tinham medo da nova professora, mas queriam aprender! Além disso, um princípio de querer bem recíproco era genu- íno. E eles, na sua humildade emoldurada por roupas pobres, muitas vezes remendadas, pelos pés descalços, pelas mãos cur- tidas no trabalho na terra e nos cabelos desbotados pelo sol e pela chuva, tinham nos rostinhos infantis um ar de maturi- dade e conhecimento que me desconcertava quando os fitava e pensava: “o que poderei fazer por vocês?” Esse ano foi determinante na minha vida profissional. Se a princípio a escolha se efetivou por circunstâncias e opções reduzidas, a decisão de permanecer no magistério foi algo que fui adquirindo com o tempo. Eu ensinava meus alunos a ler, escrever, fazer contas, a conhecer o seu país e a vida nas cidades. Em troca, eles me ensinavam como colher mangas no pé, como pescar no ribeirão e apanhar pombas em armadilhas. Aprendi a adivinhar quando ia chover e se durante a noite cairia geada, aprendizados que infelizmente se perderam na voragem dos anos e da vida... Eu lhes contava sobre o descobrimento do Brasil, sobre a escravidão, os índios, e eles narravam-me casos de assombração, dos lobisomens nos cafezais, dos afogados dos rios e dos defuntos vivos que apareciam na Semana Santa, deleitando-se, deliciados, com meu medo e credulidade... Nesse momento me enxergavam não mais como a professora, mas uma jovem que ainda tinha medo do escuro e ali, na zona rural, as noites podiam ser muito escuras e silenciosas. Meus alunos explicavam-me como era a arte de fazer pamonha com o milho verde e quando era o tempo das jabuticabas, quais inse- tos tinham veneno e onde cavar para encontrar minhocas para as pescarias, que nas pitangas costumava haver bichos brancos e pequenos chamados corós e que havia uma mosca que botava ovos em nossa pele e ali mais tarde nasciam larvas que nos iam comendo por dentro e possuía um nome asqueroso, berne. Jane Soares de Almeida | 45 Onde buscar as origens etimológicas dessa brasilidade cabo- cla rica e fértil, com nomes metafóricos e escatológicos que me deixavam quase em pânico? Apontavam para o horizonte anunciando um dia seguinte muito frio, repartiam comigo os bagos suculentos da jaca madura, traziam-me grossas fatias de pão feito em casa e mostravam o bosque onde alguém tinha se enforcado e que ainda guardava os sons arrepiantes de seu delírio de suicida. Foium tempo de inocência e riso... Os anos em que lecionei na zona rural ensinaram-me a maior parte do que hoje sei e sinto acerca do povo de nosso país, não importa se seus pés rudes se espalham pelos sertões paulistanos, nos pampas gaúchos, nas praias pantaneiras, no verde amazônico ou nas caatingas nordestinas. Ou se cami- nham apressados pelos calçamentos das metrópoles desen- volvidas ou pelas inigualáveis praias de nosso imenso litoral. Temos em nossa pele multicor os testemunhos da mestiçagem, e nosso sangue está eternamente misturado desde a coloniza- ção. E minha alma fica pálida e dolorida quando penso que ainda há entre nós espaço para a discriminação. É nessa ances- tralidade indígena, negra, branca, europeia, oriental que a raça brasileira deve abrir espaço para a diversidade e ver a suprema riqueza que possui. Nessa raça brasileira se origina minha crença no poder da educação e no dever de estendê-la a todos sem distinção. Lembro-me que nesse período ainda não tinha um conceito claro de cidadania, mas a exercia intuitivamente ao lado dos meus pequenos meninos e meninas de cabelos de várias cores e olhos que iam do azul ao negro. Muitos foram os desencantos, as decepções, as angústias, as fraquezas... Mas nem por um momento duvidei da importância do que fazia. Passei alguns meses desorientada, tendo a meu favor ape- nas a vontade e o esforço. Que métodos utilizar, quais os melhores livros e cartilhas? A quem recorrer? Os colegas mais experientes ajudavam no que podiam, assoberbados com seus próprios afazeres. Diretores e inspetores escolares eram vigi- lantes atentos às mínimas falhas burocráticas, valorizando o correto preenchimento de papéis, diários de classe caprichados e provas mensais difíceis. Penso que nunca valorizaram aquilo 46 | Tempora mutantur et nos cum illis que realmente se fazia dentro de uma sala de aula, com seres humanos pulsantes de vida. Pelo menos nunca perguntaram sobre isso... As crianças vinham de longe, filhos de lavradores, meeiros, vaqueiros, criadores de porcos e galinhas, pescadores de água doce, amansadores de cavalos. Vinham de família numerosa, moravam em casas de pau a pique ou de barro, onde nas frestas se escondiam os temíveis barbeiros e conviviam com cobras, morcegos, baratas e aranhas. Eram de idades variadas, magros e mal vestidos. Tinham cabelos rudes, infestados de piolhos, arranhões nos braços e nas pernas resultantes do mato que atravessavam todos os dias no trabalho na lavoura. Os dentes permanentes recém-nascidos caíam em pouco tempo pela falta de cuidados e de nutrientes. Não sabiam o que era um cinema, televisão ou uma peça teatral, não sabiam mesmo o que era um liquidificador ou uma torradeira de pão. Onde viviam não existiam eletricidade, nem água encanada, nem conforto. Nas mãozinhas encardidas traziam pedaços de papel, tocos de lápis e um embrulhinho gorduroso de pão para o lanche... quando traziam! Às vezes uma fruta aparecia misteriosamente na minha mesa de trabalho, uma oferta de amor anônima de uma criança envergonhada e carente de afeto, o que me comovia e angustiava, pois a pergunta continuava se impondo, “o que poderei fazer por vocês?” De algum modo sobrevivi aos primeiros anos, e, pelas minhas mãos agora mais afeitas à lousa e ao giz, passaram os pequenos filhos da terra, conhecedores do tempo e da colheita, da seca e do granizo e eu também pude conhecer essa natureza que alimenta e faz sofrer. Não poucas vezes, sentei- -me com a cabeça entre as mãos e com lágrimas que teima- vam em me queimar os olhos na minha pequena escolinha da roça, olhando o futuro deste país, sentado em toscas cartei- ras de segunda mão, refugo das escolas da cidade, a debater- -me com a falta de material escolar, com minha falta de jeito e com a merenda que não era entregue... e eles tinham fome! Eles tinham fome, eu tinha que cozinhar e ensinar... [Ensinar todos os afluentes do rio Amazonas, da margem direita e da margem esquerda; o nome das cordilheiras e das serras de um Jane Soares de Almeida | 47 país imenso; de quantos ossos é feito o corpo humano; por que morreu Tiradentes; o que fez Duque de Caxias, o grande herói brasileiro; como D. Pedro I proclamou a Independência do Brasil; e que a Princesa Isabel, a Redentora, libertou os escravos com uma simples assinatura, e os pobres negros ficaram livres e felizes na Pátria amada...] .Pelos manuais oficiais eu tinha que ensinar isso e muito mais, e eles tinham fome de comida e de saber, um saber autêntico que eu não era capaz de lhes proporcionar porque também não o possuía... que escola o pode dar? Eles incorporavam um saber originado do contato com a natureza, da herança cultural estabelecida há décadas e passadas por gerações; um saber com o qual eu, uma estranha vinda do mundo urbano, mantinha uma relação de distancia- mento; um saber em bruto, porém não menos autêntico. Eu queria encontrar a pertença que possuía de direito, mas estava ausente de minhas origens e era um custo intentar recuperá- -las. Hoje penso: será que eu considerava esse saber como uma manifestação menor de um grupo social rudimentar que deveria ser introduzido numa cultura que não a sua? Ou apenas estava com dificuldades de interpretar seus códigos? Tempo de construir: ser pessoa e ser profissional Meu amor pelo estudo continuava uma força latente e decidi, enquanto dava aulas, também fazer faculdade. O curso de Pedagogia parecia a escolha acertada, afinal eu já tinha uma profissão, gostava dela e a faculdade seria interessante para o exercício do magistério. Preparei-me sozinha para o vestibular. Estudava no tempo que sobrava de ir dar aula na zona rural, da viagem diária por caminhos de pedras e lama, que percorria pelas manhãs num velho jipe Aero Willys, ano 1951, verde como minha esperança. Isso foi em finais dos anos 1960 e, nessa época, as professoras primárias eram proibidas por lei de lecionar mais de um perí- odo. Para aumentar o salário exíguo, instalei num quartinho no fundo do quintal de minha casa uma escolinha para pre- parar crianças para os exames de Admissão ao Ginásio, hoje 48 | Tempora mutantur et nos cum illis extintos. Cheguei a ter grupos de 20 alunos e conseguia, parti- cularmente, dobrar meus ganhos. No dia do vestibular, amanheci com quase quarenta graus de febre devido à infecção causada por uma picada de inseto na perna quando estava dando aulas na zona rural. E, por incrível que pareça, (talvez a febre, a dor e o inchaço tenham contribu- ído), fui aprovada em primeiro lugar, o que me inflou o coração de orgulho e alegria. Um orgulho que se espelhou nos olhos de meus pais, duplamente, pois pessoas pobres valorizam o estudo, que é a única maneira de sair de um cotidiano vati- cinado e o caminho para um futuro que não a rotina de dias sempre iguais, sem esperança, sem horizontes e que se encer- ram somente com a morte. Para poder continuar trabalhando, tive que optar pelo curso noturno e viajar todas as noites mais de 150 km para assistir às aulas. Isso foi em 1968, num período de transtornos políticos e sociais no país. Militares davam guarda nas salas de aula, armados e atentos aos gestos, às falas. Se pudessem, eles nos vigiariam até mesmo os pensamentos. Não podíamos discutir temas subversivos e não tínhamos nenhum acesso a determi- nado tipo de leituras que fossem perigosas para nossa formação. Os professores vinham e sumiam sem qualquer explicação, e era difícil entender o que estava acontecendo, principalmente pela ausência de informações. A primeira impressão que tive da faculdade foi que devia ser um lugar muito seguro (tantos militares armados com submetralhadoras nos guardavam con- tra as ameaças vindas de fora!). Somente mais tarde entendi. As vozes podem ser caladas, mas não os sussurros nos corredo- res e nos banheiros, as histórias contadas em meio ao medo, a música que alegrava e falava pelo povo. Nos festivais de música popular, Chico Buarque cantava com sua
Compartilhar