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História das Religiões no Brasil Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Edgar Silva Gomes Revisão Textual: Prof.ª Me. Alessandra Fabiana Cavalcanti Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil • Introdução; • Breve Histórico das Religiões Afro-Brasileiras e Espirita no Brasil; • A Relação do Cristianismo com outras Expressões Religiosas. · Entender a formação e a expansão de religiões “não” cristãs tradicio- nais na transição dos séculos XIX e XX. OBJETIVO DE APRENDIZADO Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Introdução Segundo a Associação Inter-Religiosa de Educação, “A primeira manifestação religiosa presente em nosso continente é a religiosidade dos povos indígenas. Então, podemos afirmar que a matriz religiosa originalmente brasileira é a nativa” (Subsídios, n. 37, p.1). Há uma grande diversidade de populações nativas no Brasil; as etnias que compõem está diversidade cultural e religiosa a elas foi imposta uma religião estrangeira com uma relação bastante conturbada, em que, às vezes, foi “aceita” (a religião estrangeira), como estratégia para se livrar da opressão do dominador, ou pelo menos, para atenuar seus efeitos no cotidiano de seu povo. Devemos entender o contexto, mas não podemos atenuar seus efeitos nefastos sobre a cultura e a religiosidade dos povos nativos que foram praticamente dizimados, não pelo fato de terem uma crença diferente do invasor, pois os interesses religiosos de conversão estavam ancorados no desejo de conquista da terra e de seus bens que faziam parte do ideal mercantilista dos reinos e dos impérios europeus da transição do feudalismo para o capitalismo e que se “perpetuou” durantes séculos por aqui, mantendo o status quo da elite brasileira. Apesar da imposição do estado e do cristianismo, o Brasil desde a colonização passou por um sincretismo religioso nascido do encontro das religiões nativas com a chegada do cristianismo e que se intensificou com a presença dos escravizados afri- canos inseridos no país como “mercadoria”, mas que tinham uma rica cultura e uma religiosidade marcante, fruto de uma religião tão antiga como as que estavam aqui. De certa forma, o ideal cristão estava enraizado no Brasil, fruto da mentalidade europeia de “cultura-padrão”, e do cristianismo como amalgama cultural. Essa cul- tura “superior” nunca deixou de submeter culturalmente os outros povos que aqui se encontravam e de tentar incutir neles um sentimento de inferioridade, porém a resistência a esta tentativa de submissão, podemos apreciar, atualmente, por meio de nossa diversidade religiosa. Breve Histórico das Religiões Afro- -Brasileiras e Espirita no Brasil Nossa intenção aqui é fazer uma síntese da relação da religião oficial do Brasil no oitocentos, que mesmo caindo a oficialidade com o decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, em que o país se tornará “laico” e republicano, não deixará de estigmati- zar as religiões nativas e o sincretismo religioso que será a gênese das religiões afro- -brasileiras, resultando do encontro das religiões africanas com as religiões nativas e o cristianismo, entre elas a umbanda. 8 9 A Religiosidade dos Povos Autóctones No Brasil, assim como em toda a América, falar de uma religiosidade “indígena” é incorrer em erro gravíssimo. Havia e há uma multiplicidade de expressões dessas religiosidades, como nos afirma o pesquisador, Elói dos Santos Correa, que é dou- tor em geografia da religião. Em suas pesquisas e na entrevista que pode ser vista na indicação de material complementar: Religiões indígenas do Brasil, Presença & Harmonia, ele analisa a diversidade religiosa dos povos nativos, e corrobora com o que é discutido em conteúdos da História da América Colonial, na qual o termo “Índio” é uma forma pejorativa de tratar o nativo; acrescente-se, ainda, a análise do que foi uma forma de homogeneizar aqueles povos, para submetê-los a uma Lei, a um Rei e uma Religião. No caso a do branco europeu, o contato com essas nações, povos, e até Impérios como os Maias e os Astecas, e até fontes ma- teriais deixadas pelos Maias, que no momento da chegada dos europeus já tinha perdido seu poderio e os povos que compunham este império, retornaram as anti- gas formações de “reinos étnicos”; já se sabia da grande dificuldade de submetê-los por causa desta diversidade étnico-cultural. Mas a questão que muitos se colocam é, como os europeus em menor número, submeteram grandes impérios na “América” pré-colombiana?! Não é tão comple- xo entender este fato histórico, ou seja, pensando nos tempos hodiernos, e cons- tatar que até hoje as elites vivem de acordos e alianças e submetem um grande nú- mero de trabalhadores às suas leis, porque invariavelmente, os Estados Nacionais e as Grande Corporações que controlam a economia e o trabalho estão sempre impondo suas leis de cima para baixo. E voltando a refletir sobre os povos nativos da América Latina, percebemos que naquele contexto, no início do século XVI, o Império Inca estava em uma disputa dinástica pela posse do poder com a morte do imperador Inca e o desejo de seus filhos, um herdeiro e outro “bastardo”, o que deu possibilidade para seus inimigos históricos se unirem com os castelhanos; as- sim como ocorreu no império Asteca que havia colecionado inimigos ao longo das décadas de dominação sobre reinos menores. Segundo Williamson, Estabelecido o domínio espanhol, a aristocracia índia teve de escolher entre colaborar com seus conquistadores ou organizar revoltas com o objetivo de recuperar o poder (...) o jovem príncipe Manco Inca, do Peru, começou por escolher a colaboração, na esperança de levar a melhor sobre os seus rivais dinásticos (...) sucedia por vezes que os colaboradores aristocráticos mudavam de ideia e tentavam rebelar-se contra o poder espanhol. Este tipo de resistência era elitista e dinástico, pouco tendo a ver com a defesa das massas de índios. Alguns reinos índios formaram até alianças com os invasores espanhóis contra os seus inimigos históricos. No México, o exemplo mais famoso é o dos Tlaxcalas, que atacaram Tenochtitláne ajudaram Cortés a destruir a cidade; no Peru, o apoio do povo Huanca foi crucial para a derrota que Pizarro infligiu aos Incas. (Williamson, p. 96, 2009). 9 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Estas alianças mostram as contradições existentes dentro dos impérios “índios” que subjugavam outros povos nativos, porém as suas elites, ávidas por retomar a antiga condição de protagonista no jogo de poder dentro de seu próprio reino étni- co, passaram a fazer alianças com os invasores europeus. Esta relação também foi tensa, pois as alianças de interesses invariavelmente chegam ao fim quando uma das partes se sente lesada pela outra parte. O interessante em toda essa explanação sobre a forma de encontro e de dominação no período colonial latino-americano se dá inclusive nas relações religiosas destes povos. Para Williamson, “as estruturas da sua mentalidade religiosa sobreviveram à conversão o cristianismo, resultando muitas vezes num sincretismo desequilibrado de velho e de novo (...) a resistência cultural dos índios foi notável, sua capacidade de resistir” (Williamson, 2009, p. 98-99). Os nativos tinham grande capacidade de escolher elementos da cultura europeia e isso era realizado de acordo com suas conveniências. Muitas vezes, as elites nati- vas se “inculturavam” para estar mais próxima das elites brancas e assim participar mais ativamente da sociedade que estava se formando “vizinhas” das cidades ín- dias. O caso da religião não foi diferente, o próprio Williamson relata que a “con- versão” se dava mais de uma forma social do que na prática, isto também não era novidade para esses nobres e seu povo, pois no panteão da religiosidade dos povos nativos sempre cabia mais um deus, seja o do deus dominador “aceito” pelos do- minados e vice-versa, por exemplo, “A religião Inca era (...) um assunto de família, (...) o inca supremo e os seus parentes possuíam a aura sagrada da linhagem divina (...) os incas converteram os costumes tribais em ferramentas do imperialismo” (Williamson, 2009, p. 60). Os povos andinos adoravam seus “fundadores” como verdadeiros deuses, e ao serem dominados por outros reinos étnicos ou pelos três maiores impérios pré- -colombianos, os Maias, os Incas e os Astecas, automaticamente deveriam inserir em seus panteões os deuses dos dominadores. Havia uma enormidade de deuses, a religião era animista e seus fundadores míticos poderiam ser identificados com uma árvore, uma pedra ou um lago. No império Inca a proliferação de divindades era tanta, pois cada reino tinha seu deus, que o imperador Pachacuti resolveu con- trolar esse tipo de proliferação, e instituiu a crença no Ser Supremo e criador do universo, este seria o Viracocha. Entretanto este “decreto” não proibia a adoração a outros deuses como, por exemplo o Deus Sol. Povo Fulni-ô: Towe significa fogo em Ia-tê, língua materna dos Fulni-ô. Conheça o povo indígena, de origem pernambucana, é o único do Nordeste que conseguiu preservar a própria língua: https://goo.gl/wuqS3S Ex pl or Um ponto em comum entre esses povos era a cosmogonia, ou seja, a visão de formação do universo que dividia a formação do mundo em sóis. Não havia uma diferença profunda na crença e na religiosidade dos povos nativos da América La- tina. O que podemos ressaltar é a forma de adoração dos povos nativos de acordo com sua formação social, os povos sedentários tinham seus templos, alguns em 10 11 forma de pirâmide, em cidades muito estruturadas política e economicamente or- ganizadas, ou em pequenas “huacas”, um tipo de santuário, geralmente erigido nos reinos étnicos menores. Este aspecto que se verifica em povos sedentários não tem o mesmo paralelo em povos nômades ou seminômades que habitavam em sua maioria no território brasileiro. Na colônia portuguesa, segundo Williamson, predominavam quatro famílias lin- guística, o Tupi, o Macro-Jê, o Aruaque e o Caribe; e dentro delas vários grupos étnicos com variações no “vocabulário”, ou seja, havia uma grande variedade de dialetos. A economia era composta de uma agricultura itinerante e combinava a caça e a pesca, esses povos habitavam “aldeias temporárias”. A religião não foi respeitada, o regime de Padroado Real era pragmático quanto à relação que se deveria estabelecer entre Estado e Igreja no Brasil, os monarcas portugueses goza- vam de direitos sobre os assuntos eclesiásticos em seus domínios e a igreja oficial funcionava mais como um braço administrativo do estado, as Ordens Religiosas cumpriam mais o papel missionário. “Para o índio, toda palavra possui espírito. Um nome é uma alma provida de um assento, diz-se na língua ayvu. É uma vida entonada em uma forma. Vida é o espírito em movimento. Espírito, para o índio, é silêncio e som. O silêncio-som possui um ritmo, um tom, cujo corpo é a cor. Quando o espírito é entonado, torna- se, passa a ser, ou seja, possui um tom. Antes de existir a palavra “índio” para designar todos os povos indígenas, já havia o espírito índio espalhado em centenas de tons. Os tons se dividem por afi nidade, formando clãs, que formam tribos, que habitam aldeias, constituindo nações. Os mais antigos vão parindo os mais novos. O índio mais antigo dessa terra hoje chamada Brasil se autodenomina Tupy, que na língua sagrada, o abanhaenga, signifi ca: tu=som, barulho; e py= pé, assento; ou seja, o som-de-pé, o som-assentado, o entonado. De modo que o índio é uma qualidade de espírito posta em uma harmonia de forma.” JACUPÉ, Kaká Werá. A terra dos mil povos: histórias indígenas do Brasil contadas por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998. Subsídios Pedagógicos Para O Ensino Religioso Informativo Da Assintec N° 37. Desde o início, a diversidade religiosa dos nativos ficou de lado para que se atendesse ao projeto mercantilista de expansão colonial, em que a igreja teve papel importante ao tentar reduzir os nativos à cultura branca europeia. Segundo Willia- mson, “as sociedades eram geralmente pequenas e móveis, assentes em grupos unidos por laços de parentesco que formavam unidades multifamiliares, lideradas por anciãos e xamãs” (Williamson, 2009, p. 64). A falta de conhecimento e mesmo de pesquisas sobre a religiosidade dos povos nativos do Brasil, e falo de pesquisas sobre a diversidade existente, e não apenas de citações sobre xamanismo, antropofagia entre outros mitos criados pelo pre- conceito da religião oficial, provoca ainda algum tipo de desprezo e perseguição de religiosos, em especial cristãos, que estigmatizam seus praticantes. Segundo o pesquisador Elói dos Santos Correa, as religiosidades desses povos são praticadas por um número pequeno, mas cada vez mais interessante de pessoas não índias. É difícil mensurar o alcance das práticas religiosas do brasileiro, Segundo Sousa, em seu artigo, Religiosidade no Brasil, publicado na Revista Estudos Avançados, 11 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil mesmo dentro do contexto dessas manifestações cristãs majoritárias, encontramos marcas de diversidade e pluralidade que correspondem a contingências históricas e a conjunturas sociais e culturais das mais diversas. A religiosidade brasileira possui uma identidade plástica e metamorfa, que trai os números censitários. (Sousa, 2013, p. 285). É muito importante refletir sobre o encontro da(s) cultura(s) dos povos nativos, do branco europeu e do negro africano durante o período colonial brasileiro como um encontro que deixa marcas indeléveis na religiosidade do brasileiro, e estas marcas não são, muitas vezes, institucionalizadas, ela aparece nas formas como o povo brasileiro vivência sua fé cotidiana. A prova disso está no nosso dia-a-dia, em que expressões de “graças a Deus” é dita sem reservas por quem se diz ateu e “Mi- nha Nossa Senhora” por quem se diz evangélico; e aqui não se trata de nenhuma censura ou preconceito, muito ao contrário, isto expressa a riqueza do nosso povo. A riqueza destes encontros vai se expressar de forma visível em umadas religiões mais populares do país, a Umbanda. Religiões Afro-Brasileiras As religiões africanas, e em sequência as religiões afro-brasileiras, sempre foram estigmatizadas pelo padrão europeu de religiosidade como sendo algo “diabólico”, especialmente pela forma que expressam sua religiosidade baseada na comunicação com seus ancestrais! O Candomblé, o Batuque, a Macumba e a Umbanda, entre outras formas de expressão religiosa, ligadas ao povo negro africano, sempre sofreu em nossa história algum tipo de preconceito. Segundo a análise de Nascimento, na transição do século XIX para o século XX, uma nova onda de preconceitos atingiu essa parcela de crentes, pois as “importa- ções dos ideais europeus trouxeram inúmeras consequências dentre as quais des- tacamos: o sucessivo combate à herança africana presente em nossa cultura, vista como primitiva e atrasada” (Nascimento, 2010, p. 934). Havia, também, segundo a pesquisadora, “o gradativo isolamento dos núcleos negros, considerados pela polícia local de malandros, criminosos, bêbados, desocupados, etc., especialmente por meio de Planos Sanitaristas” (Nascimento, 2010, p. 934). Na cidade do Rio de Janeiro, governada por Barata Ribeiro, no ano de 1893, com propósito higienista, começou-se a destruir cortiços, as chamadas “Cabeça de Porco”, com a desestruturação das vidas dessas pessoas e sem um plano para realocá-las os moradores juntaram o que restou de seus pertences e montaram seus casebres no Morro da Providência, e a religião estava presente. Segundo Nasci- mento, “onde os deuses eram recebidos no êxtase do transe produzido por danças sensuais, músicas agitadas e alegres, e que envolvia o consumo de comidas exóticas e de bebidas, em alguns casos, alcoólicas” (Nascimento, 2010, p. 934). 12 13 Morro da Providência: https://goo.gl/fH8SFpExp lo r Importante! Existe um imaginário preconceituoso que liga negros e negras à sensualidade, este imaginário está presente em várias análises, inclusive ao se analisar sua religiosidade de forma simplista, ou seja, vendo sensualidade em tudo! Vamos analisar de forma sucinta as duas maiores expressões da religiosidade de raiz negra, mas que, devido à mestiçagem do nosso povo e à adesão dos brancos, hoje a religiosidade trazida até nós pelos negros e seus descendentes faz parte da religiosidade do povo brasileiro Importante! Umbanda A Umbanda é considerada por estudiosos e por pesquisadores de história das religiões, como sendo uma religião brasileira, sua gênese se dá através do sincre- tismo religioso que combina a religiosidade nativa dos índios, do Candomblé, a religião de origem africana, e do cristianismo do branco europeu, além do espiri- tismo Kardecista francês. Segundo Lísias Nogueira Negrão, a “institucionalização” da Umbanda se deu na década de 1920, “quando kardecistas de classe média, atraídos pelos espíritos de caboclos e pretos-velhos que se incorporavam nos terrei- ros de macumba do Rio de Janeiro, neles adentraram e assumiram sua liderança”. (Negrão, 1994, p. 113). A Umbanda, carrega em si os pontos comuns das estru- turas religiosas do culto do catolicismo popular e das religiões de origem indígena e africana, com acento especial à devoção aos santos e aos deuses, possibilitando o sincretismo e a síntese da qual se originaram as religiões afro-brasileiras. Para Negrão a possibilidade de ter acontecido o mesmo, dos kardecistas assumi- rem o comando, pode ter ocorrido em outros estados, entre eles São Paulo e Rio Grande do Sul, uma questão que se coloca é que a partir da “invasão” kardecista nos espaços da macumba carioca, gerando a Umbanda, a religião com maior influ- ência negra e índia passou pelo crivo cristão branco europeu, ou seja, “Extirpam-se dos cultos os rituais mais primitivos ou capazes de despertar os pruridos da classe média: matanças de animais, utilização ritual da pólvora e de bebidas alcoólica”. Para o autor, é como se houvesse a moralização das entidades que se manifesta- vam nos rituais de macumba, “educando-os nos princípios da caridade cristã em sua leitura kardecista, racionalizam-se as crenças, tendo-se por base a teodiceia reencarnacionista e organizam-se as primeiras federações que associam terreiros até então totalmente fragmentados”. (Negrão, 1993, p. 114). 13 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Para Alessandra Amaral Nascimento, em seu artigo: “Candomblé e Umbanda: Práticas Religiosas da Identidade Negra no Brasil”, publicado na Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, em 2010, “A História das Religiões de matrizes africa- nas, assim como toda a parcela de História e cultura afrodescendente no Brasil, tem sido feita quase que anonimamente (...) no inteiro de inúmeros terreiros funda- dos ao longo do tempo”. (Nascimento, 2010, 924). Foram fundados muitos “ter- reiros” em inúmeras localidades ao longo do tempo, porém a escassez de registros e de pesquisas históricas contemporâneas a gênese de muitas dessas religiões que tem forte componente da cultura negra, sofre o mesmo preconceito, marginaliza- ção e discriminação reservada ao negro em nossa sociedade. Nascimento cita que “as manifestações de religiosidade afro-brasileiras, por serem religiões de transe, de culto aos espíritos e em alguns casos de sacrifício animal, têm sido associadas a estereótipos como o de magia negra”. (Nascimento, 2010, p. 924). Entre avanços e recuos próprios do processo histórico, as religiões de matriz africana, que bebem no poço do sincretismo religioso, próprio do brasileiro, co- meça a ser estudada por especialista em história das religiões e em outros campos de pesquisa das humanidades. Neste aspecto, estamos bem melhor que no século XIX, auge do evolucionismo que predominava nos estudos acadêmicos, em que as religiões que estivessem fora do mundo branco europeu, era automaticamente es- tigmatizada como sendo religiões inferiores, tudo isto fruto de “estudos” acadêmi- cos, que corroboravam com a ignorância popular que adjetivava seus frequentado- res como sendo pessoas supersticiosas e ignorantes praticantes de atos diabólicos, Alguns desses atributos foram inclusive reforçados pelos primeiros es- tudiosos no século XIX, que sofreram fortes influências evolucionistas e tradicionalmente baseiam sua produção historiográfica no modelo mono- teísta cristão que denominavam “superiores”, e que tendem a classificar as religiões de matrizes africanas como formas “primitivas” ou “atrasadas” de culto. (Nascimento, 2010, p. 925). De acordo com Negrão, as crenças se racionalizaram e mantiveram a crença na reencarnação dos espíritos/almas, e passaram a se organizar em federações espí- ritas, associando as casas de culto até então totalmente fragmentadas. No ano de 1941, foi realizado no Rio de Janeiro o “Primeiro Congresso Nacional de Umban- da”, a denominação surgiu da necessidade de seus praticantes se distanciarem do termo “macumba”, bastante estigmatizado. Neste congresso, estiveram reunidos os umbandistas que representavam os principais estados das regiões Sudeste e Sul, entre os estados estavam São Paulo, Rio Grande do Sul e o estado anfitrião. As pesquisas sociológicas apontam para o nascimento da umbanda sobre as bases, como não poderia deixar de ser, no tripé fundante das religiões dos povos que se envolveram não apenas na mestiçagem sexual, mas também cultural para chegar à condição de considerar a umbanda religião nacional típica, “surgida e consolidada no momento da expansão do sistema urbano industrial do segundo quartel do século, justamente nos centros urbanos mais importantes das regiões mais desenvolvidas do país” (Negrão, 1993, p. 114). 14 15 Figura 1 - Terreiro de Umbanda Fonte: iStock/Getty Images Negrão cita a análise de Roger Bastide, que fez uma análise sobre as religiões de matriz afro-brasileira, na qual ele privilegia as relações raciais; a partir daí Bastide, “considera a macumba como expressão mágica da marginalidade do negro no período pós Abolição”,enquanto sua análise para a umbanda, “seria expressão ideológica da integração do mesmo à sociedade de classes nascente”. Uma outra análise, a de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, citado pelo mesmo Negrão, mantém a visão “integracionista”, porém com o kardecismo como modelo. Nesta análise, Camargo utiliza o discurso de que a umbanda seria uma forma de adap- tação do migrante rural e das cidades menores à nova forma de vida nos grandes centros urbanos que estão surgindo durante a primeira metade do século XX. Para Negrão, o sociólogo Renato Ortiz radicalizou em sua interpretação, dentro de uma perspectiva estruturalista, Ortiz, percebeu a exigência imposta por uma sociedade moderna, racionalizada e moralizada. Segundo Negrão, “Em que pese as contribuições significativas dos autores para o conhecimento da realidade estudada, há que se apontar a insuficiência de suas perspectivas” (Negrão, 1993, p. 115), o autor questiona as fontes de Bastide que têm como referência de suas reflexões uma concepção “paradigmática de candom- blé” e sua pesquisa empírica se concentrou nas teses dos anais do congresso de 1941. Para Negrão, o autor desconhece o cotidiano e a realidade da religião vivida nos terreiros, reproduzindo os preconceitos da imprensa da época. Quanto aos pontos frágeis da análise de Ortiz, segundo Negrão, ele comete o mesmo erro de seu mestre, Roger Bastide, ao omitir o cotidiano dos terreiros ao se deter em “in- telectuais orgânicos”, conceito forjado pelo italiano Antônio Gramsci, que revela intelectuais presos ao seu meio social e que reproduzem o status quo deste gru- po. Neste caso, reproduziram preconceitos as expressões religiosas afro-brasileira como, por exemplo, a Umbanda que estamos analisando aqui. De acordo com Negrão, quem melhor analisou a complexidade do “campo es- pírita” foi Ferreira de Camargo que tentou “dar conta de sua realidade através da 15 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil noção do continuum mediúnico” (Camargo, 1961, apud Negrão, 1993). Ferreira analisou casos concretos de terreiros de Umbanda e concentrou sua análise sobre a constituição da umbanda a partir de um polo branco; o kardecismo, outro polo ne- gro, a umbanda, entre esses polos haveria inúmeras fórmulas intermediárias. Para Negrão, o instrumental teórico utilizado por Ferreira foi o mais adequado à realidade estudada, porém, ainda assim, não deu conta de desvelar totalmente a compreensão sobre a umbanda por estar concentrado no kardecismo como paradigma de espiri- tismo, impedindo que Ferreira compreendesse melhor a Umbanda. As pesquisas de Negrão vêm demonstrado a complexidade da umbanda em São Paulo: Federações de terreiros e estes próprios constituem um subcampo específico dentro do campo religioso global, assumindo as primeiras o caráter de uma ortodoxia exercida por presidentes e líderes, frente à contestação mágica dos segundos, exercida pelos pais-de-santo. São os terreiros as instâncias criativas do culto, lócus da construção mítica e ritual, onde a umbanda é vivida em seu cotidiano encantado de crenças e práticas mágicas, voltado para as necessidades de seu público interno. (Negrão, 1993, p. 114) De acordo com Nascimento, a criação da Umbanda se insere em um contexto de valorização do orgulho de ‘ser brasileiro’, proporcionando a integração no plano mítico de todas as classes sociais, com ênfase nas excluídas, contestando a “superiori- dade” dos valores dominantes da classe média representados pelo catolicismo e pelo kardecismo, e dando maior abertura às formas populares das representações de fé e de religiosidade afro-brasileiras, “depurando-as em favor de uma mediação no plano religioso, que representou a possível convivência entre os três principais grupos étni- cos formadores da cultura brasileira” (Nascimento, 2010, p. 937). Para Nascimento, a Umbanda representaria uma forma de resistência africana no Brasil, assim como o Candomblé, que veio com os negros que foram escraviza- dos no Brasil, encontraram em sua religião força espiritual para resistir à opressão da elite branca, porque o candomblé “reinventa a religiosidade da África no Brasil como forma de expressar as dificuldades e as restrições encontradas pelos negros para se estabelecerem social e culturalmente como negros brasileiros no seio da sociedade brasileira”. (Nascimento, 2010, p. 942). Nesta mesma perspectiva de re- sistência, a Umbanda acaba tendo grande participação em seus cultos, bem como a presença da classe média branca, além de outros segmentos menos favorecidos da população, “em sua maioria negra e mulata, refazer a ideia de Brasil inserindo a África, o africano e sua cultura como elemento da constituição da nação brasileira, ainda que de forma depurativa”. (Nascimento, 2010, p. 942). Candomblé A religiosidade dos negros africanos e de seus descendentes não pode ser ex- pressada plenamente por causa das contingências históricas, na qual o negro foi coisificado, era tratado como uma mercadoria; não tinham direito algum, mas nun- ca deixaram morrer sua cultura, a religião africana era praticada sobre o manto da 16 17 clandestinidade, a religião oficial do império português era a católica. Neste sentido, o Candomblé precisou resistir séculos para florescer apenas no final do século XIX. A origem da palavra Candomblé é creditada ao grupo linguístico Bantus e foi composta pelo encontro das palavras “kandombe-mbele” e em tradução livre sig- nifica: “pequena casa de iniciação dos negros”. Segundo Nascimento, alguns pes- quisadores avaliam que o Candomblé é uma modificação fonética de Candombé, atabaque de negros Angola; outra possibilidade seria o uso da palavra Candonbi- dé, que significaria o ato de louvar, de pedir por alguém ou por alguma coisa. O Candomblé é um culto familiar a um orixá, sendo uma religião totêmica, ou seja, o sagrado pode estar em um objeto, em um animal ou em uma planta que re- presentaria de forma simbólica a divindade. Segundo Nascimento, diferente do que pensa o senso comum, o candomblé é uma religião monoteísta e cultua um deus único, o que pode causar certa confusão é que para cada nação a nomenclatura se faz de forma diversa: na Nação ketu o nome de Deus é Olorum, na Nação Bantu ele é identificado como Zambi, para a nação jeje é Mawu. A base do Candomblé é a “anima” da natureza, e por isso, chamada de anímica, “foi desenvolvida no Brasil a partir do conhecimento de sacerdotes africanos que foram escravizados e trazidos da África para o Brasil juntamente com seus orixás, sua cultura e seus dialetos entre 1549 e 1888” (Nascimento, 2010, p. 935). Esta religião não é praticada apenas no Brasil, na América Latina o Candomblé também se desenvolveu em países como a Argentina, o Uruguai e a Venezuela. De acordo com Nascimento, “este culto da forma como aqui é praticado não existe na África, o que existe lá é o que chamamos de culto à orixá, ou seja, cada região africana cultua um orixá” (Nascimento, 2010, p. 935), sendo assim, a pa- lavra que daria origem à prática dos negros no Brasil. O Candomblé “foi apenas uma forma para denominar as reuniões feitas pelos escravos para cultuar seus deu- ses, pois também era comum no Brasil chamar as festas ou as reuniões de negros de Candomblé, devido seu significado em iorubá” (Nascimento, 2010, p. 936). A base da organização social do Candomblé são os terreiros e está estruturado com base nas “famílias de santo” que tem toda uma hierarquia de cargos e de fun- ções, é necessário que o “filho de santo” adote um nome religioso africano quando de sua iniciação. Os filhos de santo têm um compromisso pessoal com seu deus de cabeça, com seu pai ou mãe-de-santo, isso contribui para restabelecer aos negros e aos afrodescendentes vínculos baseados em laços de parentesco religioso do qual foram destituídos devido à escravidão. Segundo Nascimento, o candomblé começou a se expandir no pós escravidão como forma dos negros reelaborarem sua cultura em um contexto dedesamparo social e de discriminação racial; a religião socializava os negros e a matriz religiosa de origem africana nunca deixou de ser praticada, e isso, “passou a ser visto por muitos historiadores como a “reinvenção” da África no Brasil por ser, entre outros fatores, reconhecidamente marcada pela necessidade dos grupos afrodescendentes de reelaborar sua identidade” (Nascimento, 2010, p. 936). 17 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Figura 2 - Mãe Meninha do Gantois, uma das mais importantes personagens do Candomblé no Brasil. Imagem do Terreiro de Mãe Menininha do Gantois Fonte: iStock/Getty Images A partir da Proclamação da República e com a influência dos ideais positivistas de “ordem e progresso”, o país buscava se inserir no rol das nações civilizadas, tendo como padrão o pensamento eurocêntrico. Era preciso civilizar o Brasil e desde o terceiro quarto dos oitocentos o “clareamento” da nação estava em voga, o imigrante branco europeu é incentivado a migrar para cá. A ciência explicava o mundo, ser negro ou ser mestiço, segundo os padrões científicos seguidos por muitos acadêmicos brasileiros era sinal de atraso. Consequentemente, a religião dos descendentes de africanos no Brasil representaria um forte atraso. Neste contexto, se buscou justificações científicas para inferiorizar o negro e sua cultura. Um pesquisador pioneiro no estudo de religiões afro-brasileiras foi o médico baiano Nina Rodrigues, que escreveu o livro “O animismo fetichista dos negros bahianos”, no qual justificava que a religiosidade do negro continha aspecto doentios. Para Rodrigues, o transe era uma histeria e defendeu que o fato de a religião do africano e de seus descendentes serem politeísta e animista confirmava a inferioridade do negro em relação ao branco, cuja religiosidade se fundava no monoteísmo, forma que exigia abstrações mais sofisticadas do pensamento. Com o crescimento das cidades, o espaço urbano pode ser frequentado cada vez mais pelos negros libertos, que com a abolição tiveram maior autonomia e liber- dade. Os escravos das fazendas, durante o período que predominou a escravidão, cultuavam seus deuses, ou seu Deus, conforme defendem alguns pesquisadores, sob a sombra dos santos católicos. Desde a Constituição de 1824, as religiões não católicas poderiam se reunir em espaços privados, desde que não fizessem prose- litismo e/ou utilizassem símbolos exteriores; isso poderia ter criado um dispositivo legal de proteção à religião dos negros, fato que na prática não ocorreu por causa do forte preconceito racial e, consequentemente, pela religião de origem africana. 18 19 No final dos oitocentos, a moradia dos negros libertos, por uma séria deficiência político-social em relação à nova situação do negro, ficou relegada aos cortiços e a casebres, em geral, espaços coletivos que também se tornaram locais de culto, relativamente protegidos da repressão policial. Segundo Nascimento, “o uso do mesmo espaço para a moradia dos negros e para o culto de seus deuses (...) foi uma característica dos primeiros templos das religiões afro-brasileiras, que possibilitou a existência dos calundus em meio ao regime de escravidão”. O Brasil, na década de 1930, procurou através de alguns intelectuais valorizar nossa cultura e nosso povo que se constituiu a partir da reunião de três povos, a saber, o nativo, chamado de indígena, o branco europeu e o negro africano escravizados pelos colonizadores e trazidos à força para cá. Portanto, o Brasil neste período já estava abandonando as teorias racistas de Rodrigues, entre outros, e começa a dar espaço à exaltação do “povo miscigenado” e à frágil teoria de democracia racial, teoria que estava sendo criada com a publicação de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire no ano de 1933. Mas a possibilidade utópica de democracia racial não se dava na prática, assim como não se dá ainda hoje, porém naquele contexto um evento dificultou a liber- dade religiosa dos negros, foi com a promulgação, em 1934, de uma nova Cons- tituição e da volta à cena política do catolicismo, capitaneada pelo cardeal do Rio de Janeiro, D Leme, que articulou junto às autoridades políticas da época inúmeros acertos para favorecer a instituição reavivando seu poder. Com isso foi revigorada perseguição às religiões de matriz africana que passou por um longo período de clandestinidade, pois “até 1976 não havia um só Estado da Federação Brasileira que permitisse a existência legal de terreiros sem documentação expedida pela Polícia-Delegacia de Jogos e Costumes” (Nascimento, 2010, p. 937). Foi só recentemente, se contarmos a antiguidade das práticas religiosas africa- nas desde sua chegada ao Brasil, que o candomblé deixou a clandestinidade para ser reconhecido oficialmente como religião. Desde o início, mesmo que em núme- ro bem menor, outros grupos frequentavam seus cultos, mesmo que “escondidos”. O Candomblé foi tornando-se, após muita perseguição, símbolo de resistência e de promoção da cultura africana em que por meio da religiosidade, percebemos este mesmo processo com relação à Umbanda. No entanto, “enquanto que no Candomblé a popularização se fez trazendo consigo uma forte folclorização da religião e sua representatividade como resistência negra, na Umbanda devido a ide- ologias diferenciadas, seguiu-se por outros caminhos” (Nascimento, 2010, p. 941). O Espiritismo no Brasil Neste tópico, vamos nos concentrar no “surgimento” do Espiritismo Kardecista no Brasil, o que é e quando começou a ser praticado no país; para isto nos concen- tramos de forma sucinta nas duas análises a seguir. Fernanda Flávia Martins Ferreira, em sua dissertação de Mestrado, Espiritismo kardecista brasileiro e cultura política, diz que o mito fundador do espiritismo karde- 19 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil cista se fundamenta, segundo os espíritas, nos fenômenos paranormais, psíquicos ou mediúnicos ocorridos em Hydesville, Califórnia (EUA), com as irmãs Fox, no ano de 1848. O livro The History of Spiritualism (1928)7 do espiritualista Arthur Co- nan Doyle é a fonte mais completa que encontramos sobre esses aconte- cimentos, descrevendo experimentos, pesquisas, biografias dos médiuns ou paranormais (ou para muitos, simplesmente charlatões), conflitos explicativos, bem como a fundação de sociedades psíquicas em função desses fenômenos, considerados como motivo para constituição de uma nova ciência. (Ferreira, 2008, p. 22). Para aprofundar o tema ler a dissertação: FERREIRA, Fernanda Flávia Martins. Espiritismo Kardecista Brasileiro e Cultura Política: História e Novas Trajetória. Dissertação de Mestrado, Departamento Ciência Política, UFMG, 2008. Ex pl or Ainda de acordo com Ferreira, a dogmática do espiritismo kardecista se funda- menta na assistência social no campo espírita devido ao valor central desta doutrina que é a caridade por causa da ênfase na religião. Ou seja, “Ambos: assistência so- cial e preponderância cristã são características fundamentais da formação da iden- tidade espírita no Brasil”. (Ferreira, 2008, p. 24). A literatura espírita kardecista até hoje fundamenta seus estudos nas seguintes obras: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865), A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo (1868), e livro de Allan Kardec O que é o Espiritismo (1859) e Obras Póstumas (1890). O livro dos Espíritos e o Livro dos Médiuns são considerados a síntese dos ensinamentos espíritas, e no Brasil há um consenso sobre este aspecto, pois são considerados a base doutrinaria desta religião. Figura 3 - Chico Xavier Fonte: Wikimedia Commons Figura 4 - Allan Kardec Fonte: Wikimedia Commons Segundo a análise de Rainer Sousa, no final do século XIX, houve inúmeros relatos sobre pessoas que indicavam receitas médicas para pessoas adoentadas sem ter conhecimento. Essas pessoas declaravam que tinhamcontato com entidades espirituais que intervinham no mundo material e ficaram conhecidas como “médiuns receitistas” ou “médiuns curadores”, havia certo paralelo entre estas e a doutrina 20 21 que estava sendo forjada por Allan Kardec que escreveu uma síntese doutrinaria espírita no ano de 1857, no livro intitulado “Livro dos Espíritos”. Segundo Sousa, “Em pouco tempo, já na década seguinte, os primeiros exemplares desta obra apareceram em solo brasileiro. Concomitantemente, os primeiros grupos espíritas brasileiros tomavam forma”. SOUSA, Rainer Gonçalves. “Espiritismo no Brasil”; Brasil Escola: https://goo.gl/jQZ3sB Ex pl or No Brasil, o médium Bezerra de Menezes impulsionou a nova prática religiosa, para Menezes o espiritismo é “o ápice” da fé cristã. No mesmo contexto, outro médium carioca praticava curas espirituais na cidade do Rio de Janeiro, era João Gonçalves do Nascimento. A aceitação da prática espírita pela população brasileira tem muito a ver com a capacidade desta religião em articular os elementos do culto e do popular, ou seja, com a origem de uma pessoa. A prática espírita foi bem aceita por uma parcela da população devido à sua ca- pacidade de articular elementos cultos e populares, na qual uma pessoa de origem simples poderia incorporar figuras de prestígio. Alguns dos adeptos naquele con- texto de formação do espiritismo no Brasil assinalavam que a nova religião andava em acordo com os princípios liberais e científicos do final dos oitocentos. Temos como exemplo dessa associação o fato de muitos republicanos e abolicionistas sim- patizarem com o espiritismo. Mas, como “não podia” ser diferente, a nova religião sofreu oposição aberta do catolicismo em contexto histórico no qual esta instituição tinha grande presença. A perseguição era “institucionalizada”, pois nos códigos de lei e até na medicina psiquiátrica, o espiritismo foi estigmatizado. Segundo Sousa, “no receituário de alguns psiquiatras, o espiritismo era considerado uma manifestação de insanidade mental. A forte oposição sofrida foi combatida no momento em que, em 1884, foi criada a Federação Espírita Brasileira” (Sousa, 2018, Brasil Escola). A Federação Espírita Brasileira sistematizou a doutrina e as práticas do espiritismo, ajudando a população a conhecer melhor a nova religião. A doutrina espírita começou a ganhar adeptos e respeito no Brasil “principal- mente com o surgimento de uma figura emblemática dessa religião: o médium Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Por meio de suas obras psicografadas, passou a popularizar ainda mais o espiritismo” (Sousa, 2018, Brasil Escola). Chico Xavier lançou inúmeros trabalhos para divulgar a doutrina e seu trabalho, entre eles podemos citar: “Brasil, Coração do Mundo Pátria do Evangelho”, obra em que narra a intervenção de alguns espíritos que em diferentes momentos participaram dos acontecimentos da história nacional. Segundo Rainer Sousa, com o passar dos anos o espiritismo angariou prestí- gio junto a diferentes classes e instituições no Brasil. Em contrapartida, os cultos afro-brasileiros continuaram a sofrer perseguição de órgãos policiais. Apesar das 21 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil religiões afro-brasileiras serem acolhedoras e fazer assistencialismo, elas eram pra- ticadas em sua maioria por negros, enquanto que o kardecismo atraiu desde o início a população branca, mas uma “desculpa” para explicar a maior aceitação do espiritismo kardecista seria pela sua política assistencialista. Este forte acento na caridade acabou sendo um ponto fundamental do espiritismo, para ter sobre si uma visão positiva sobre essa fé aproximada da razão. A Relação do Cristianismo com outras Expressões Religiosas Desde a efetiva colonização do Brasil a partir de 1549, a Igreja Católica esteve atrelada ao poder político de Estado, os colonizados, índios e negros, e me refiro aos negros também porque ao ser imposta uma cultura e uma religião que está “fora” de sua cosmovisão, essas populações passam a ser colonizadas em sentido lato. Sob a aliança com o império português, através do regime de padroado, o ca- tolicismo impôs sua “fé e seus dogmas” a toda população que estivesse habitando os domínios portugueses. Aqui, podemos perceber que no início da colonização não houve uma “relação” com outras religiões, mas uma imposição de cultura e de religião sobre os dominados. Segundo Negrão, “sob o jugo da coroa portuguesa, o catolicismo foi imposto no Brasil, desde os primórdios da colonização, como religião oficial do Império e a única com permissão para realizar cultos públicos ou domésticos” (Negrão, 2008, p. 262). A aliança entre os reis católicos da península ibérica, em especial com a monarquia portuguesa e a “Santa Sé” legitimou as conquistas de “terras e almas” ao império português e assim justificar seus métodos de atuação. O pretexto da dominação foi o de salvar as almas e de difundir a fé e a cultura cristãs, mas a real intenção era mesmo justificar o empreendimento colonial dentro do sistema mercantilista que vigorava naquele contexto. Mas, a relação do catolicismo com a monarquia portuguesa era desproporcional no plano material, pois a coroa exercia um amplo domínio sobre a administração eclesiásticas, era função da coroa receber e administrar a cobrança e o recebimento dos dízimos a ela devidos, nomeava padres e bispos, e era responsável pela remu- neração paga a eles. O clero secular era dependente do poder real e alijado de uma relação de proximidade com a Santa Sé, pois, qualquer documento pontifício para ter efeito nos domínios portugueses precisava de passar pelo crivo da Mesa de Cons- ciência e Ordens, instância administrativa portuguesa para seus domínios coloniais. As Ordens Religiosas, nos dois primeiros séculos do período colonial conse- guiram alguma autonomia diante do poder real e conseguia maior proximidades com seus superiores na Europa. De modo geral, a igreja não passava de um braço administrativo do império português em seus domínios ultramarinos. No entanto, em matéria religiosa os privilégios estavam todos do lado do catolicismo por ter o 22 23 status de religião oficial, com isso qualquer religião que tentasse se instalar por aqui recebia pressão dos poderes “temporal e espiritual”, segundo Negrão, O catolicismo foi, no passado colonial brasileiro, uma religião obrigatória: os que aqui nasciam o aceitavam por pressuposto de cidadania, exceto os indígenas, aos quais se exterminava ou se convertia. Os que aqui não nasciam tinham que adotá-lo, mesmo que não o compreendessem: os negros escravizados eram batizados no porto de procedência ou de desembarque. Já os judeus, sob a pressão de serem perseguidos pelos inquisidores, de perderem seus bens ou mesmo suas vidas, preferiram, em geral, tornar-se “cristãos novos” (Negrão, 2008, p. 263) A religião oficial era obrigatória, porém, segundo Negrão, “Dessa maneira, impor- tava mais parecer do que ser católico. Era vital ir à missa e rezar publicamente, res- peitar os dias santos, batizar seus negócios com nomes de santos católicos” (Negrão, 2008, p. 264). Esta era uma situação ambígua que serviu de refúgio para indígenas perseguidos pelos colonizadores que queriam escravizá-los, muitos nativos preferiam viver sob os olhos e as leis dos jesuítas do que se submeter à escravidão e para isto viveram nos aldeamentos onde eram catequizados e doutrinados pelos padres. Em relação aos negros escravizados que chegavam no Brasil e eram proibidos de praticar a religião de seus ancestrais, o jeito foi homenagear seus deuses de forma indireta, utilizando o subterfugio de cultuar os santos católicos; assim podiam reali- zar seus rituais diante de altares. Não eram apenas negros e índios que precisavam ocultar sua fé diante dos olhares da igreja e do império, os judeus também precisam camuflar suas práticas, e para isso, eles frequentavam as missas e acompanhavam as rezas. Segundo Negrão, “criou-se umareligião necessariamente formal e exte- rior, muito pouco internalizada ou de convicção pessoal, traço que ainda persiste em boa parte dos católicos brasileiros” (Negrão, 2008, p. 263). No final do período colonial, um fato começou a mudar um pouco a situação dos “não católicos”, foi a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. Ao se instalar no Rio de Janeiro, a Corte começou a estruturar sua “Nova capital” e com isso novas leis foram dando um novo compasso para a administração do império português, entre elas, a que nos interessa aqui foi a lei da “Abertura dos Portos” às nações amiga. Esta lei favoreceu os aliados de longa data dos portugueses, os ingle- ses, que agora poderiam comerciar com o Brasil a uma taxa bastante favorável. O regente D. João com isso “autorizou” “que o culto protestante fosse realizado em terras brasileiras, desde que não em templos e desde que não houvesse proselitis- mo a favor dele e contra a religião oficial” (Negrão, 2008, p. 264). A abertura dos Portos e a chegada de muitos comerciantes estrangeiros com suas religiões começaram a ampliar a “oferta” religiosa no país, era uma medida política necessária naquele contexto. Os monarcas D. Pedro I e depois D. Pedro II conti- nuaram com a política de D. João VI, que apesar de restringir a atuação de outras confissões religiosas no país, tornou-as toleradas, isto não quer dizer que não houve muitos protestos do catolicismo que não deseja apenas ser “oficial” o clero e os bis- pos pretendiam que a religião católica fosse também exclusiva. 23 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil O catolicismo impunha suas leis em diversos aspectos da vida e do cotidiano da população, um fato curioso foi o atrito do catolicismo com outras confissões religiosas em relação aos “enterramentos” no século XIX. No final do século XVII, por inúmeros fatores como, por exemplo, um maior conhecimento sobre as doenças transmitidas por contato com miasmas cadavéricos fez com que médicos sanitaristas começassem a exigir cemitérios mais salubres, em céu aberto. Como no Brasil os cemitérios eram controlados pela igreja, bem como os enterramentos, segundo Gomes, O enterramento a céu aberto estava reservado aos acatólicos, protestantes, mulçumanos, judeus, escravos e/ou criminosos até que por procedimentos de higiene devido a urbanização, crescimento das cidades e aumento da população os católicos começaram a realizar seus sepultamentos em cemi- térios coletivos próprios para seus fiéis; o aumento desenfreado da popu- lação não permitia mais que se fizesse o enterro nas igrejas e capelas que não comportavam o aumento da população. (Gomes, 2009, p. 124-125) O controle e os absurdos da ingerência do catolicismo no cotidiano não paravam por aí, houve um caso no Rio de Janeiro em que um padre se recusou a enterrar um defunto por ele se declarar protestante e ter se suicidado; o suicida no caso era David Thompson. Segundo Gomes, o caso chegou a ser debatido entre o Ministério dos Negócios do Império e a hierarquia eclesiástica, o caso finalmente chegou ao Parlamento do Império que passou a debater um projeto de lei de laicização dos cemitérios. O ano era 1869, esta situação se deu porque apesar dos cemitérios a “céu aberto” serem criados a partir de 1850, eles eram destinados apenas aos católicos que tinham seus terrenos “benzidos” pelos padres e para se enterrar um defunto a eles era necessário pedir uma solicitação; o agravante é que no caso, os cemitérios, eram públicos. Segundo Negrão, os protestantes que se instalaram no Brasil durante o império no século XIX, com a crescente imigração de europeus para o país, puderam trazer para suas colônias seus ministros religiosos, inclusive houve uma crescente imigra- ção de missionários protestantes estadunidenses. Entretanto, não houve alteração significativa no panorama religioso do país durante o século XIX e início do século XX, “Ao iniciar-se o século XX, não havia no Brasil vestígio de Protestantismo (...) os indivíduos de religião protestante que por aqui passaram não deixaram traço no sistema religioso da sociedade” (Ribeiro, 1973, p. 15 apud Negrão, 2008, p. 265). O panorama religioso começa a mudar no final do século XIX com a queda do Império e a Proclamação da República. No dia 7 de janeiro de 1890 ficou decre- tada a separação entre o Estado Brasileiro e a Igreja Católica; o decreto é o de número 119-A do Governo Provisório da República. Teoricamente, o país passava a ser um país laico e com plena liberdade religiosa, e na constituição de 1891, a primeira da República, ficava proibida a subvenção a qualquer confissão religiosa. Segundo Negrão, “A proclamação republicana, contudo, não significou a per- da da hegemonia católica e de sua influência na vida cultural e política brasileira. A Igreja Católica continuou a cooperar eventualmente com o Estado Republicano” 24 25 (Negrão, 2008, p. 266), e nem as perseguições religiosas por parte do clero e da for- ça policial em diversas regiões, como vimos acima em relação às religiões de origem africana, nem mesmo as manifestações culturais do povo negro foram respeitadas, segundo Hauck. “É interessante notar o inconformismo dos brancos contra este re- nascimento cultural e religioso dos ex-escravos, apelando para a repressão da polícia, para o patriotismo, para a honra e bom nome da pátria” (Hauck, 2008, p. 287). Segundo Hauck, em relação aos protestantes, a missão protestante atingia toda a América Latina. O artigo 12 do Tratado Comercial com a Inglaterra, citado acima, estipulava “liberdade religiosa” aos súditos britânicos, com isso houve a entrada de um bom número de clérigos anglicanos no país. O primeiro templo protestante foi inaugurado no Rio de Janeiro no ano de 1820, a partir de 1824 os alemães se instalam com seus pastores nas cidades de Nova Friburgo (RJ) e São Leopoldo (RS). No entanto, apesar da “liberdade religiosa” percebida durante o Império, apenas os matrimônios católicos tinham efeito jurídico. A “ilegalidade” das uniões protestantes no país levou o ministro prussiano do Comércio, Indústria e Obras Públicas, August von der Heydt, “a revogar todas as concessões que visavam a promover a emigração de seus conterrâneos ao Brasil” (Hauck, 2008, p. 248). A situação foi regularizada por D. Pedro II no ano de 1863, por meio da Lei no. 1.144, de 11 de setembro, que estendia os efeitos legais ao casamento de acatólicos e de registro civil a seus filhos, assim como o direito de certidão de óbito e sepultamentos. Estas leis foram contestadas durante todo o período imperial pelo clero católico. Como vemos, não foi pacífica a relação entre católicos e protestantes, mas não foi um “inferno” o tempo todo porque as relações cotidianas de sociabilidade entre a população pobre muitas vezes ultrapassam o legalismo das instituições de poder que compõem o aparelho de Estado. 25 UNIDADE Religiões Afro-Brasileiras e Espiritismo no Brasil Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura Espiritismo Kardecista Brasileiro e Cultura Política: História e Novas Trajetória FERREIRA, Fernanda Flávia Martins. Dissertação de Mestrado, Departamento Ciência Política, UFMG, 2008. https://goo.gl/yfnwUV Livros Crenças, Sacralidades e Religiosidades: entre o Consentimento e o Marginal ISAIA, Artur Cesar. Florianópolis: Insular, 2009. Religiosidade e Escravidão, Século XIX: Mestre Tito XAVIER. Regina Célia Lima. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008. Vídeos A Umbanda e as Umbandas https://goo.gl/mXVSXE Religiões Indígenas do Brasil - Presença & Harmonia https://goo.gl/QfTYhX 26 27 Referências BEOZZO, José Oscar et. ali. História da Igreja no Brasil: Segunda Época – Século XIX. Petrópolis: Vozes, 2000. FERNANDES, Paulo Cesar da Conceição. As origens do espiritismo no Brasil. Dissertação de Mestrado, Departamento de Sociologia, UnB, 2008. HAUCK, João Fagundes; et. al. História da Igreja no Brasil: Ensaiosde inter- pretação a partir do povo, Segunda Época – Século XIX. Petrópolis: Vozes, 2008. HOORNAERT, Eduardo et. ali. História da Igreja no Brasil: Primeira Época – Período Colonial. 5. ed. 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