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SHECAIRA STRUCHINER Caps 2, 4, 6_compressed (3)

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CAPiTULO 6 
Argumentação teórica no direito 
Este livro tem dado muito m ais atenção à argumentação prá-
tica que à argumentação teórica no direito, isto é, o livro tem 
dado especial a tenção ao silogismo jurídico e aos dem ais ar-
gumentos práticos formulados em defesa da premissa m aior 
do silogismo (argumentos interpretativos, argumentos analó-
gicos, argumentos baseados em precedente etc.). Argumentos 
teóricos formulados em defesa da premissa menor não rece-
beram muita ênfase. É disso que trata o presente capítulo. Os 
conceitos relevantes são: 
• Argumentação teórica substantiva 
• Argumentação teórica institucional 
• Inferência para a melhor explicação 
• Exclusões, ônus e standards de prova 
'• Verdade formal e verdade real 
6.1 Argumentação institucional e argumentação substantiva 
Apresentamos a distinção entre argumentação institucional e 
argumentação substantiva como uma distinção entre tipos de 
argumentação prática, mas a verdade é que uma distinção aná-
loga pode ser feita no que diz respeito à argumentação teórica. 
Fora do ambiente burocrático e institucionalizado do direito, as 
pessoas apelam de maneira mais livre às considerações e evi-
dências que são relevante~ para a fundamentação de suas afir-
mações factuais. No direito, por outro lado, a investigação sobre 
fatos é significativamente engessada por regras e procedimentos 
previamente estabelecidos. Gulliver, como de hábito, reclamou: 
1 4 5 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIOICA 
Ao defender uma causa, [os advogados] evitam cuidadosa-
mente entrar no mérito da questão; mas são estrondosos, 
violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circuns-
tâncias que não vêm a pelo. Por exe111plo, no sobredito caso, 
não querem saber quais os direitos, os títulos que tem o 
meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era verme-
lha ou preta, s~ tinha os chifres curtos ou compridos, se o 
campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, 
se era ordenhada dentro ou fora de casa, a que doenças es-
tava sujeita, e assim por diante. (Swift, 1983: 229) 
Gulliver exagera, é claro, mas por trás da retórica há uma ideia 
plausível e bastante disseminada entre as pessoas comuns. Ad-
vogados e juízes nem sempre vão direto aos fatos e evidênc,as 
que mais interessam. Eles, às vezes, ignoram documentos, tes-
temunhos e outros meios de prova que parecem ter relevância 
imediata para o processo legal. Por essa e por outras razões, 
litigantes altamente suspeitos às vezes prevalecem no processo, 
não por terem bons argumentos para dar em sua defesa, mas 
porque a outra parte não é capaz de provar rigorosan1ente as 
suas alegações. O que explica esses fatos curiosos? 
Antes de mais nada, é importante fazer algumas observa-
ções a respeito da argumentação teórica em geral. Um tipo de 
argumento indutivo particularmente comum no raciocínio 
teórico é aquele que os filósofos costumam chamar de "abdu-
ção" ou "inferência para a melhor explicação" (abreviada aqui 
como IME). A IME tem a seguinte estrutura. 
Esquema geral da I ME: 
1. F é um conjunto de fatos. 
2. A hipótese H explica F~ 
3. Nenhuma outra hipótese explica F tão bem quanto H. 
Logo, 
4. H é verdadeira. 
146 
CAPITULO 6 • ARGUMENTAÇÃO TEÓRICA NO DIREITO 
Inúmeras conclusões sobre fatos, tanto na vida cotidiana 
quanto na academia, baseiam-se em argumentos que se en-
caixam nesse esquema geral. Eu chego à conclusão de que há 
um rato no meu apartamento porque essa é a hipótese que 
melhor explica o sumiço repentino do meu queijo e pelo fato 
de que ouvi um barulho incomum vindo da dispensa no dia 
anterior. Afinal, o meu apartamento não é frequentado pelo 
tipo de pessoa que furtaria um queijo e deixaria migalhas só 
para dar a impressão de que um rato é o verdadeiro culpado. 
Um homem chega à conclusão de que chove lá fora porque 
essa é a hipótese que explica melhor o barulho de chuva que 
ouve do lado de dentro, assim como o fato de que sua esposa 
acaba de entrar em casa com a roupa molhada. Um biólogo 
chega à conclusão de que as espécies evoluem por meio da 
seleção natural porque essa é a hipótese que melhor explica, 
entre outras coisas, a forma como as espécies estão distribuí-
das pelos continentes. Sherlock Holmes conclui que o mordo-
mo matou o aristocrata porque essa é a hipótese que melhor 
explica uma série de evidências espalhadas pela mansão. Aliás, 
vale a pena explorar um pouco mais este último tipo de IME. 
Há uma morte na mansão de uma família fictícia, a família 
Chaves. O sr. Chaves foi assassinado e há pelo menos três hi-
póteses que competem para explicar os fatos que giram em 
torno da sua morte. Talvez o mordomo seja o culpado, tal-
vez a filha única do sr. Chaves, talvez algum ladrão. Os fatos 
sabidos são os seguintes: 1) há muitos furtos e assaltos na re-
gião; 2) nada de muito valor foi levado da mansão, e não há 
sinais de arrombamento; 3) a filha do sr. Chaves não tinha 
uma boa relação com ck~~i, que ameaçava excluí-la de seu 
testamento; 4) a sra. Chaves, que estava fora do país na época 
do crime, jura que a filha amava o pai apesar das desavenças; 
5) o mordomo tinha antecedentes criminais; 6) havia no local 
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
do crime uma luva masculina ensanguentada; 7) o mordomo 
confessou o crime diante de um policial agressivo e sem a 
presença de seu advogado. 
A hipótese de que algum ladrão tenha ~~do o sr. Chaves 
se harmoniza com o fato 1 e não entra en{conflito com os 
fatos 3 a 7. A hipótese tem pouca credibilidade, no entanto, 
porque ela se choca flagrantemente com o fato 2. Sobram 
como suspeitos o mordomo e a filha do patrão. O fato 3 in-
dica que a filha teria motivo para matar o sr. Chaves, mas 
o fato 4, por outro lado, indica que isso não aconteceu. Fi-
nalmente, a hipótese de que o mordomo é o assassino não 
viola nenhum dos sete fatos e se harmoniza particularmente 
com os fatos 5 a 7. Nenhuma hipótese explica os fatos tão bem 
quanto essa; ela é, provavelmente, a hipótese verdadeira. Dize-
mos ((provavelmente, porque a IME é um argumento de -tipo 
indutivo, não dedutivo. Pode ser que ignoremos algutn fato 
relevante. Talvez ninguém tenha percebido o sumiço de um 
objeto de valor, que, na verdade, foi roubado durante o crime. 
Talvez a sra. Chaves costume mentir ou seja incapaz de de-
nunciar a própria filha. Talvez o mordomo seja facilmente 
intimidado por policiais truculentos. E assim por diante. 
O que podemos dizer é que, diante dos fatos revelados, o 
mais provável é que o mordomo seja o autor do crime. É as-
sim que a maioria pensaria. É assim que Sherlock Holmes 
pensaria. Ele consideraria cada fato e sua contribuição, positi-
va ou negativa, para cada hipótese. No entanto, essa maneira 
comum de raciocinar dificilmente seria reproduzida em um 
tribunal moderno. Um promotor que buscasse a condenação 
do mordomo teria que respeitar regras e procedimentos que 
nós e Holmes simplesmente ignoramos. Uma confissão extraí-
da sumariamente por um policial agressivo pode ser conside-
148 
CAPITULO 6 • ARGUMENTAÇÃO TEÓRICA NO DIREITO 
rada ilícita por um tribunal. Antecedentes criminais, muitas 
vezes, são rejeitados como indfcios admissíveis do cometimen-
to de um novo crime. O testemunho favorável de parentes do 
réu é frequentemente considerado inadmissível. Enfim, o pro-
motor terá que omitir uma série de provas que seriam consi-
deradas perfeitamente relevantes fora do processo. 
Como o exemplo do homicídio ajuda a mostrar, o direito 
molda a argumentação teórica por meio de diversos mecanis-
mos~ 1\.1encionaremos apenas três desses mecanismos: exclu-
sões, ônus e standards de prova. A exclusão acontece quandoum meio de prova (documento, confissão, testemunho etc.) 
tem o seu valor probatório inteiramente excluído, ou pelo 
menos limitado, no contexto de um processo legal. A confis-
são do mordomo pode parecer extremamente relevante, mas 
sistemas jurídicos modernos, preocupados como tendem a ser 
com os abusos frequentes das autoridades policiais, preferem 
impedir o uso desse tipo de recurso. Aliás, cada uma das ex-
clusões que o exemplo do mordomo ilustra é comum em sis-
te~as jurídicos modernos. O que as exclusões fazem, essen-
cialmente, é limitar o rol de fatos que podem integrar F no 
esquema geral da IME. Isso dificilmente acontece fora do di-
reito. Pessoas comuns que procuram saber se chove lá fora 
e biólogos que pretendem entender a evolução das espécies 
consideram amplamente as evidências disponíveis. A IME no 
direito, só por causa das exclusões, já é significativamente di-
ferente da IME fora do direito, mas há outràs diferenças dig-
nas de nota. 
O ônus de prova diz r~speito ao fato de que diferentes par-
tes de um processo legál, em diferentes momentos do pro-
cesso, têm a reponsabilidade de apresentar argumentos rela-
tivos às questões de fato suscitadas. O ônus de prova, às vezes, 
é distribuído por meio das ditas "presunções'~ legais. Presu-
149 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
me-se inocente o réu criminal. Essa é outra maneira de dizer 
que não cabe ao réu mostrar que é inocente. Cabe ao acusador 
formular um argumento que comprove a culpa do réu. Se o 
argumento for plausível, o processo ~~eguirá para que o réu 
possa se defender. Da mesma forma, presume-se que o filho 
de uma mulher casada também é filho do seu marido. Em 
outras palavras, quem quiser contestar a paternidade tem o 
ônus da prova. Quando o ônus é claramente de uma das par-
tes, e ela é incapaz de apresentar prova relevante, a outra par-
te sequer precisa se manifestar. Recorde um diálogo hipotético 
apresentado no início do livro. O juiz manda (nos trechos em 
itálico) que se pronuncie em cada momento a parte que te~ 
o ônus da prova. Se a parte não consegue sustentar o ônus, ela 
corre o risco de perder a disputa: 
• 
-Autor: O réu me deve 500 reais. 
- Réu: Discordo do autor. 
-Autor: O réu me deve 500 reais porque realizamos um 
contrato válido de compra e venda, eu forneci o produto e 
o réu não pagou. 
- Réu: Reconheço que o autor forneceu o produto e que 
eu não paguei, mas não reconheço que haja entre nós um 
contrato válido. 
- juiz: Autor, prove que vocés têm um contrato válido. 
- Autor: Eis um documento assinado por nós dóis. 
- Réu: Não reconheço a autenticidade deste documento. 
-juiz (ao réu): Visto que o documento parece autêntico, 
prove que ele não é. 
150 
- Réu: Esse laudo encomendado a um laboratório atesta 
que a minha assinatura foi forjada. 
- Autor: O relatório não serve como prova, pois eu tive 
conhecimento dele muito tarde no processo. 
- Juiz: Concordo: a prova não é admissível. 
CAPiTULO 6 • ARGUMENTAÇÃO TEÓRICA NO DIREITO 
Quando os biólogos discordam sobre a evolução das espé-
cies, por exemplo, eles não costumam proceder com base em 
regras claras sobre ônus de prova. Eles apresentam IMEs rivais 
em defesa das suas respectivas teorias acerca da evolução. No 
direito, as coisas são diferentes. Normalmente, o autor de uma 
ação é quem tem a responsabilidade de provar os fatos alega-
dos; o réu costuma ter a responsabilidade subsidiária de reagir 
diante dos argumentos do autor. No direito, portanto, nem 
todo mundo tem que formular sempre o seu próprio argu-
mento teórico, sua própria IME. A responsabilidade é alocada 
de maneira seletiva e variável durante o desenvolvimento do 
processo. 
Finalmente, considere os standards de prova. Essa é uma 
palavra da língua inglesa que diz respeito ao grau de probabi-
lidade com que deve ser estabelecida uma conclusão factual 
em diferentes áreas do direito. Nem todo sistema jurídico es-
tabelece tais standards, mas eles são comuns nos países da 
common law. A culpa de um suposto criminoso deve ser esta-
belecida beyond a reasonable doubt, isto é, se houver dúvida 
significativa sobre a autoria do crime, não se deve condenar o 
réu. Já no campo da responsabilidade civil, em que as conse-
quências de uma eventual condenação são menos graves, bas-
ta que as evidências apontem mais para a culpa que para a 
inocência do réu. Entre esses extremos, standards intermediá-
rios às vezes são estabelecidos. O que os standards fazem, es-
sencialmente, é estipular com que probabilidade deve estar 
correta a conclusão de um argumento teórico, dada a veraci-
dade das pr~ssas. A IME, assim como todo argumento in-
dutivo, está internamente justificada quando a veracidade das 
premissas torna provável a veracidade da conclusão. Não há, 
nessa ideia genérica, qualq~er n1enção precisa ao grau da pro-
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
habilidade em questão. O que o direito faz é estipular níveis de 
· probabilidade próprios para cada área do direito. Ele não che-
ga ao ponto de indicar valores numéricos precisos (51 o/o, 75%, 
95%), mas sugere uma gradação de qualquer forma. 
A Gulliver, len1bre-se, parecia absurda a forma como os 
advogados lidam com os fatos no contexto de processos legais: 
"Ao defender uma causa, [os advogados] evitam cuidadosa-
mente entrar no mérito da questão; mas são estrondosos, vio-
lentos e enfadonhos no discorrer sobre todas a circunstâncias 
que não vêm a pelo." Gulliver exagera, mas os próprios profis-
sionais do direito admitem o caráter relativamente artificial da 
argumentação teórica no direito. Não é por acaso que os pro-
cessualistas distinguem entre "verdade formal ou processual" 
e "verdade material ou real': reconhecendo que os juízes às 
vezes se contentam com o primeiro tipo de verdade no con-
texto de processos legais. A verdade formal diz respeito à con-
clusão a que se chega com base nas provas (licitamente) trazi-
das ao processo; a verdade formal nem sempre corresponde à 
verdade real, isto é, a conclusão a que se chegaria caso fossem 
consideradas todas as evidências relevantes. 
É importante observar que os profissionais do direito só 
reconhecem a artificialidade da argumentação teórica no âm-
bito processual porque acreditam que existem boas razões 
para que as coisas funcionem assim. Por mais estranhos que 
exclusões, ônus e standards pareçam para os leigos, eles não 
existem por acaso. O direito exclui a confissão do mordomo 
coagido para não estimular a truculência policial. O direito 
exclui antecedentes criminais como forma de apostar na ideia 
de que o criminoso pode se regenerar. O direito aloca o ônus 
da prova preferencialmente ao autor da ação para não incen-
tivar acusações infundadas e processos frívolos. O direito es-
152 
CAPiTULO 6 • ARGUMENTAÇÃO TEÓRICA NO DIREITO 
tabelece um standard de prova particularmente rigoroso no 
âmbito do direito criminal sabendo que isso levará à absol-
vição de alguns réus culpados porque, no fin1 das contas, tal-
vez seja "melhor que escapem dez pessoas culpadas do que 
permitir que sofra um inocente'~* Para antecipar o que será 
dito na Conclusão, os advogados certamente fazem coisas que 
ofendem o bom-senso do leigo, mas nem sempre as fazem 
sem ter razões inteligentes para isso. A questão é que essas 
razões nem sempre são óbvias para quem observa a prática do 
lado de fora. 
6.2 Resumo 
• '·É possível distinguir entre argumentação teórica institucio-
nal e argumentação teórica substantiva. A primeira é limita-
da por regras e procedimentos previamente estabelecidos; a 
segunda apela livremente às diversas considerações e evi-
dências relevantes para a defesa de uma conclusão factual. 
• No direito, a argumentação teórica é frequentemente limita-
pa por regras e procedimentos de direito probatório. Demos 
destaque a regras relativasa exclusões, ônus e standards de 
prova. 
• A IME é um tipo particularmente comum de argumento 
teórico. Ela nos serviu, portanto, para ilustrar algumas dife-
renças entre a argumentação teórica desenvolvida dentro e 
fora do direito. 
• No direito, o rol de fatos referidos na IME costuma ser limi-
tado pelas exclusões de prova. A responsabilidade de apre-
sentar IMEs não é rep,.artida igualmente entre as partes do 
processo legal, que recebem ônus de prova diferenciados. 
*A frase, de William Blackstone, é discutida por Schauer (2009: 221; tradução 
nossa). 
153 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURiDICA 
Além disso, o direito eventualmente estipula, por meio de 
standards, a força da relação que deve existir entre as pre-
missas e a conclusão da IME. 
• As peculiaridades da argumentaçãó teórica no direito são 
reconhecidas por aqueles processualistas que distinguem en-
tre verdade formal e verdade real. 
154 
CAPÍTULO 7 
Descoberta e justificação 
A argumentação jurídica diz respeito à forma como os profis-
sionais do direito defendem publicamente as suas conclusões. 
É possível que a defesa pública de uma conclusão não corres-
panda exatamente ao processo psicológico que leva um indi-
víduo a a.ceitá-la. Até certo ponto, a falta de correspondência é 
natural e inócua, mas há circunstâncias en1 que ela levanta 
preocupações mais sérias. Este capítulo explora a ideia de que 
a argumentação jurídica não corresponde necessariamente ao 
que se passa na cabeça dos profissionais do direito. Os concei-
tos apresentados aqui são os seguintes: 
• Processo de descoberta 
• Processo de justificação 
• Vieses e atalhos cognitivos 
7.1 Processo de descoberta e processo de justificação 
A distinção entre processo de descoberta e processo de justifi-
cação é conhecida entre os filósofos da ciência. Há muito eles 
percebem uma diferença entre descrever o processo mental 
através do qual se vislumbra a plausibilidade de uma tese ou 
teoria e dar razões para mostrar que está correta aquela tese 
ou teoria. A diferença é mais óbvia naqueles casos em que o 
cientista consegue se lembrar do momento exato em que per-
cebeu o potencial de uma teoria. Há quem diga que a queda 
de uma maçã inspirou Newton a formular a teoria da gravita-
ção. Se isso é verdade, a história da maçã faz parte do processo · 
de descoberta de Newton. A maçã caiu da árvore (não subiu 
155 
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIOICA 
• O acúmulo de fontes é um fenômeno comum na argumen-
tação jurídica. Argumentos que acumulam fontes são argu-
mentos complexos convergentes. As fontes acumuladas po-
dem interagir de maneiras diferentes, corroborando-se ou 
complementando-se. 
• O acúmulo de fontes em defesa de uma tese não deve ser 
confundido com o uso de diferentes fontes em defesa de te-
ses sobre questões jurídicas distintas suscitadas no contexto 
de um mesmo processo. 
68 
CAPITULO 4 
Métodos de interpretação jurídica 
Depois de identificadas pelo profissional do direito, as fontes 
ainda precisam ser interpretadas. O objetivo deste capítulo é 
discutir os diferentes métodos que podem ser usados na inter-
pretação de fontes do direito - a legislação em particular. Os 
diferentes métodos de interpretação podem ser caracterizados 
como sendo mais ou menos institucionais. Os conceitos dis-
cutidos neste capítulo são os seguintes: 
• Interpretação 
• Métodos formalistas 
• Métodos não formalistas 
• Textualismo 
• Propósito: objetivo e subjetivo 
• Interação entre métodos 
. • Interpretação constitucional 
4.1 O que é interpretação 
No contexto do direito, a palavra "interpretar" é usada em dois 
sentidos significativamente diferentes. No primeiro sentido, 
mais amplo, interpretar envolve discernir o sentido de um tex-
to legal. No segundo sentido, mais estreito, interpretar envolve 
discernir o sentido de um texto legal que, a princípio, é difícil 
ou obscuro. No segundo sentido, portanto, interpretar é o mes-
mo que decifrar, dar sen.tido ao que não é claro. Eis um exem-
plo do emprego da palavra "interpretar'' no segundo sentido: 
Cortes supremas servem para interpretar o texto constitu-
cional, nos inúmeros casos em que a letra da lei não oferece 
69 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
resposta explícita. No artigo 5°, a Constituição afirma que 
"todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer 
natureza': No artigo 19, que "é vedado à União, aos Estados, 
ao ~is~rito Federal e ao Município~· criar distinções entre 
brasileiros ou preferências entre si': No artigo 208, que "o 
dever do Estado com a educação será efetivado mediante a 
garantia de ac~sso aos níveis mais elevados de ensino, da 
pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de 
cada um'~ A letra da lei é explícita, cristalina: dispensa inter-
pretação. O STF, simulando interpretá-la, reuniu-se em as-
sembleia constituinte e revogou o princípio da igualdade 
perante a lei.* 
Podem~s ignorar aqui o teor da decisão judicial criticada pqr 
Magnoh. Note apenas como são usados os termos "interpre-
tar" e "interpretação': Para ele, a interpretação só é necessária 
quando o texto a ser interpretado não é claro. Interpretar, nes-
se sentido, envolve um tipo especial de esforço intelectual, uma 
tentativa de identificar o sentido de um texto vago, ambíguo, 
contraditório ou obscuro em algum outro sentido. Para Mag-
noli, o texto claro não exige esforço intelectual especial para 
ser compreendido e, nesse sentido, não exige interpretação. 
Não usaremos as palavras "interpretar" e "interpretação" 
como Magnoli. Para os propósitos deste livro, é mais útil usar 
as palavras em sentido amplo, para abarcar todo ato (inte-
lectualmente exigente ou não) de discernir o sentido de um 
texto legal (obscuro ou não). Interpretar, portanto, envolve 
discernir o sentido de algum texto legal. Essa afirmação requer 
mais uma nota de esclarecimento. A palavra "discernir" sugere 
que o sentido dos textos legais existe antes mesmo que o in-
térprete se ponha a ler os textos e interpretá-los. O sentido 
* Artigo de Demétrio Magnoli. Disponível em: www.estadao.eom.br/noticias/ 
impresso,um-texto-marginal-,871058,0.htm. Acesso em 7 mar. 2016. 
70 
CAPÍTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
já está lá - claramente nos textos claros, menos claramente 
nos textos obscuros -, mas, de uma forma ou de outra, já 
está lá para ser discernido. Alguns autores fariam a objeção de 
que a interpretação jurídica é uma atividade que exige do in-
térprete uma postura mais ativa e criativa: o intérprete não se 
limita a discernir sentidos preexistentes, mas atribui sentidos 
que, de certa forma, ele mesmo cria ou desenvolve, isto é, sen-
tidos que não haviam sido previamente determinados, senti-
dos que o texto não carregava consigo desde a sua promulga-
ção. Há um fundo de verdade nessa objeção, mas ainda não é 
o momento de discuti-la. Isso só será feito depois de explica-
dos os diferentes métodos de interpretação jurídica. Por en-
quanto, usemos a palavra "discernir" como se ela não conotas-
se a existência prévia daquilo que é discernido. 
4.2 Formalismo e não formalismo 
Aos domingos, não é incomum que a circulação de carros seja 
proibida em algumas avenidas e ruas do município do Rio 
de Janeiro. A proibição se efetiva, normalmente, por meio de 
barreiras móveis que são colocadas nos limites dos trechos in-
terditados. Junto às barreiras, é comum haver placas que ex-
pressam as condições e circunstâncias da interdição. Em certo 
condomínio residencial carioca, há uma placa onde se lê: 
"Trecho reservado para pedestres." Nesse caso particular, é 
provável que a placa tenha sido inaugurada depois de os há-
bitos dominicais dos moradores do condomínio já estarem 
razoavelmente consolidados, e esse deve ser o principal moti-
vo pelo qual nunca houve grande controvérsia acerca dosig-
nificado da placa. Queremos propor, no ·entanto, um experi-
mento de pensamento. Suponha, hipoteticamente, que a placa 
tenha sido inaugurada em uma época em que os carros cir- · 
culavam livremente pela rua em qualquer dia da semana. Sem 
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
muito anúncio, a administração do condomínio mandou ins-
talar a placa e as barreiras para a interdição. Nas semanas se-
guintes à inauguração da placa, os moradores do condomínio 
poderiam experimentar alguma incerteza em relação às con-
dições de uso do trecho reservado para "pedestres': Sem dúvi-
da, seria permitido caminhar ou correr na rua. Carros, por 
outro lado, estariam excluídos: além de serem expressamente 
proibidos pela placa, as barreiras tornavam a sua entrada inl-
possível. Entretanto, suponha que um casal queira caminhar 
na rua enquanto seu filho pequeno anda de bicicleta. A entra-
da de bicicletas não é fisicamente impedida pelas barreiras, 
mas a placa restringe-se a permitir a circulação de "pedestres,. 
O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa define pedestre 
como "aquele que anda ou se acha a pé': Se os pais da criança 
tomarem a sério o sentido literal dos termos usados na placa, 
é possível que prefiram levar o filho para pedalar em outra 
rua, onde não correrão o risco .de violar qualquer norma de 
trânsito do condomínio, mas também podem reagir de outra 
maneira. Eles podem supor que, apesar de a linguagen1 da 
placa proibir bicicletas, essa proibição não está etn harmonia 
com o propósito que lhe serve de base. O propósito da nova 
norma de trânsito, diriam, é garantir um ambiente seguro 
para a recreação. Carros, motos e veículos similares oferecem 
uma ameaça à recreação segura, mas patins, skates e bicicletas 
não são ameaçadores- e mais: parte fundamental da recrea-
ção das crianças envolve o uso desses objetos. 
Essa segunda reação parece, a princípio, bastante razoável. 
Para complicar um pouco o caso, suponha que outro mora-
dor do condomínio tenha uma objeção a fazer em relação aos 
argumentos dos pais do ciclista. Ele concorda que a nova nor-
ma de trânsito deve ser interpretada à luz dos seus propósitos 
subjacentes, mas crê que o verdadeiro propósito da norma 
72 
CAPITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURIDICA 
não é aquele que os seus vizinhos identificaram. Para ele, a 
finalidade da placa não é garantir a recreação segura, mas pro-
teger o direito específico daquelas pessoas que querem cami-
nhar ou correr sem a presença de qualquer veículo, brinquedo 
ou atividade que atrapalhe esse tipo de exercício. Nesse caso, 
não só as bicicletas estariam excluídas, mas crianças com bola 
(por exemplo) também não poderiam jogar no espaço reser-
d " d ,, va o para. pe estres . 
Imagine, então, que os condôminos, perplexos com o im-
passe, vão à administração do condomínio para tentar escla-
recer o significado da nova norma de trânsito. Lá, eles ouvem 
do síndico que as três interpretações estão erradas. Por um 
lado, "pedestre" não deve ser entendido literalmente e, por 
outro, as duas tentativas de identificar o "verdadeiro" propó-
sito da norma estão equivocadas. Ele diz que foi ele mesmo 
quem mandou fabricar a placa e que o seu propósito era de 
acatar uma reivindicação dos membros de uma igreja pró-
xima à rua interditada. O barulho provocado por carros e 
outros veículos era, há muito, um empecilho para a realiza-
Ção das missas dominicais. O síndico lamenta apenas não 
ter estendido a proibição expressamente ao jogo de futebol. 
Ele diz que, no momento de encomendar a placa, não se deu 
conta de que crianças jogando bola são capazes de fazer tanto 
barulho quanto veículos motorizados. A escolha do termo 
"pedestre'~ foi infeliz como meio de comunicar o seu verda-
deiro propósito. 
Esse exemplo relativamente banal serve para mostrar como 
a interpretação de texto~ legais pode, em tese, ser feita de acor-
do com métodos bastante diferentes. O exemplo alude a ape-
nas três métodos possíveis: um método literal, um segundo 
método que envolve especulação sobre o propósito presumido 
do texto, e um terceiro método que recorre ao criador do tex-
73 
TEORIA DA ARGUME.NTAÇÃO JURÍDICA 
to para saber qual era o seu propósito original. Repetindo: 
esses são apenas três métodos possíveis. É difícil catalogar os 
vários (e sutilmente diferentes) métodos de interpretação que, 
ao longo da história, foram imaginadós por juristas e postos 
em prática por juízes e advogados. Profissionais do direito têm 
demonstrado bastante criatividade, não só para conceber no-
vos métodos, mas também para batizá-los com nomes curio-
sos. Há, por exemplo, o método gramatical, o método siste-
mático ou sistêmico, o método lógico, o método histórico, o 
método teleológico objetivo, o método teleológico subjetivo, o 
método evolutivo, o n1étodo dinâmico, o método pragmático, 
e assim por diante.* O iniciante, nonnalmente, experimenta 
muita dificuldade para familiarizar-se com essa rica e enigmá-· 
tica terminologia. 
O estudo dos métodos de interpretação é facilitado quando 
os diversos métodos são preliminarmente separados em duas 
grandes categorias, entre as quais há significativa diferença 
de grau. Em outro trabalho, um de nós distinguiu essas duas 
categorias pelos termos "formalismo" e "não formalismo, 
( Shecaira, 201 O). A proposta, naquele contexto, era de que os 
diversos métodos de interpretação fossem descritos como for-
malistas ou não formalistas. No contexto deste livro, os méto-
dos formalistas também poderiam ser chamados de métodos 
institucionais, e os métodos não formalistas poderiam ser di-
tos métodos substantivos. Afinal, o que distingue esses dois 
tipos de método é justamente o fato de que uns dão menos 
* Veja, por curiosidade, a longa lista de métodos reconhecidos por um minis-
tro do STJ em um voto da década de 1990 (REsp 35.518/SP [1993)): cclndu-
vidoso, outrossim, que ao lado dos métodos literal, histórico, comparado e 
lógico-sistemático, outros métodos de exegese, mais modernos, vêm se im-
pondo nos arraiais da hermenêutica, tais como o teleológico, o evolutivo, o 
axiológico e o calcado na lógica do razoável." 
74 
CAPÍTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
margem que outros ao emprego de considerações substantivas 
por parte do intérprete de textos legais. 
O método formalista ou institucional paradigmático é aque-
le que toma e aplica os textos legais literalmente. É o método 
que também costuma ser chamado de "gramatical'~ Outros ró-
tulos possíveis são ('textualismo" e "literalismo'~ Quando uma 
placa proíbe a entrada de "cães" e1n um prédio público, por 
exemplo, textualista é aquele que considera proibida a entrada 
de qualquer ser no prédio que se encaixe no sentido literal da 
palavra "cão'~ Para o textualista, todo cão está proibido, inclusi-
ve os cães-guias e os mais dóceis cães de colo. Da mesma forma, 
são textualistas aqueles moradores do condomínio que evitam 
andar de bicicleta em uma rua cujo uso é expressamente reser-
vado a "pedestres'~ 
O textualismo é um método pouco flexível. A sua aplica-
ção exige apenas a compreensão do sentido literal das pala-
vras que compõem o texto. Se o sentido literal do texto é claro 
e preciso, não há possibilidade de recurso a considerações 
de natureza extralinguística, muito menos a considerações de 
natureza moral, política, econômica (enfim, substantiva). Há 
muitos intérpretes que se insurgem contra a rigidez do tex-
tualismo, contra a sua falta de sensibilidade em relação a con-
siderações substantivas pertinentes, mas nem todos os que se 
insurgem contra o textualismo o fazem com o mesmo grau de 
convicção. Uma maneira relativamente radicalde se insurgir 
contra a rigidez do textualismo envolve afirmar que a inter-
pretação de um texto legal deve ser feita sempre à luz dos 
fins ou propósitos implícitos no texto. Trata-se de um tipo de 
interpretação que, no Brasil, às vezes é rotulada de "teleoló-
gico-objetiva'~ Para que serve o texto? Que valores ele quer . 
promover? Que fins ele quer atingir? O usuário do método 
teleológico objetivo faz valer o propósito que está por trás do 
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
texto, mesmo quando o propósito recomenda algo incompa-
tível com o que é explicitamente prescrito pelo texto. Assu-
mindo-se, por exemplo, que o propósito da placa no prédio 
público seja o de impedir a entrada de animais que gerem 
risco à segurança e à tranquilidade das pessoas, não haveria 
razão alguma para proibir a entrada de cães-guias, isto é, o 
cão-guia, por ser muito bem-comportado, deveria ser tratado 
como uma exceção. 
O método teleológico-objetivo é menos institucional que o 
textualismo. Não há procedimento consensual e preciso a ser 
seguido para a atribuição de um propósito ao texto legal. Di-
ferentes intérpretes tendem a atribuir propósitos diferentes, 
dependendo de suas opiniões sobre qual fim deve ser atribuí-
do ao texto. O intérprete nem sempre admite que considera-
ções substantivas o orientam na escolha de algum propósito 
específico,* mas, mesmo assim, o recurso à deliberação subs-
tantiva frequentemente é inevitável. É razoável supor que o 
propósito da placa contra cães seja garantir a segurança e a 
tranquilidade dos frequentadores do prédio, mas também é 
razoável supor que o propósito da placa seja manter o prédio 
limpo. É possível dizer até que o propósito da placa envolva, 
simultaneamente, todas essas preocupações: segurança, tran-
quilidade, asseio. Note que a identificação de um propósito 
específico tem consequências práticas significativas: cães-guias 
são perfeitamente dóceis e, portanto, não devem ser hnpedi-
dos, caso o propósito seja o de garantir a segurança no prédio, 
mas se o propósito da placa envolver preocupação com higie-
ne, talvez até o cão-guia tenha de ser impedido. 
>t O propósito costuma ser anunciado pelo intérprete como estando implfcito 
no texto. A retórica sugere que o propósito já está lá, "dentro" ou "por trás" 
do texto, e que ao intérprete cabe apenas revelá-lo. 
76 
CAPÍTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
É importante enfatizar que, se até mesmo uma placa trivial 
sobre a entrada de cães em um prédio público pode gerar de-
sacordo substantivo entre usuários da interpretação teleoló-
gico-objetiva, imagine a quantidade e a profundidade do de-
sacordo que não seria gerado por textos legais menos triviais. 
Qual é o "verdadeiro" fim de textos legais que regulam as-
suntos como casamento entre pessoas do mesmo sexo, fideli-
dade partidária, duração do mandato presidencial, isenção 
tributária para entidades filantrópicas, regulação do mercado 
financeiro, proibição do jogo de azar, anistia para crimes polí-
ticos, ação afirmativa, demarcação de reservas indígenas, vio-
lência doméstica, maioridade penal, uso da maconha, aborto, 
pesquisa com células-tronco, distribuição de royalties da pro-
dução de petróleo etc.? É sobretudo no que diz respeito à in-
terpretação de textos que regulam assuntos politicamente sen-
síveis que o emprego do método teleológico-objetivo se revela 
menos institucional e, portanto, mais distante da rigidez que 
caracteriza o textualisn1o. * 
. Há diversos métodos intermediários entre os extremos do 
textualismo e da teleologia objetiva. Nesta seção, basta discutir 
um método particularmente influente: o método comumente 
chamado de "teleológico-subjetivo" ou "his'tórico". Esse méto-
do, por ser teleológico, também olha através do texto, para 
seus fins subjacentes. Contudo, em contraste com a teleolo-
gia objetiva, os fins em ·questão não são formulados pelo pró-
prio intérprete à luz do que ele considera mais razoável; são 
fins que os sujeitos reais que estiveram por trás da criação do 
texto legal queriam buscar com a sua promulgação. A finali-
dade real do autor da placa no prédio público poderia ser, por 
>t Voltaremos a discutir o caráter substantivo do método teleológico-objetivo 
no próximo capitulo, quando tratarmos da noção de princípio. 
77 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
exemplo, garantir a segurança no prédio. Pode ser que ele te-
nha criado a placa para reagir a algum incidente específico 
envolvendo um cão agressivo que entrara no prédio e assustou 
os funcionários. Se um intérprete usa·'o propósito real da pla-
ca para permitir a entrada excepcional de um cão-guia dócil, 
ele se desvia do sentido literal da placa e, assim, abandona o 
textualismo. Note· que ele não recorre necessariamente à deli-
beração substantiva. Ele age com o objetivo de promover os 
fins do criador da placa, fins previamente existentes e (pelo 
menos nesse caso) identificáveis, independentemente de deli-
beração moral, política, econômica etc. 
O método de interpretação que busca o propósito real, his-
tórico, do autor do texto é mais institucional que o método 
teleológico-objetivo, que envolve a formulação de um pro-
pósito pelo próprio intérprete. Por outro lado, o método te-
leológico-subjetivo costuma dar mais margem à deliberação 
substantiva que o textualismo. Dizemos isso por duas razões 
relacionadas entre si. Primeiro, o método teleológico-subjeti-
vo exige um tipo de pesquisa muito mais complexo (e mais 
facilmente distorcido por preconceitos ideológicos) do que 
o método textualista. No contexto de questões jurídicas mi-
nimamente complexas, o método teleológico-subjetivo exige 
' pesquisa histórica acerca das reais pretensões do criador do 
texto legal. Essas pretensões nem sempre são facilmente dis-
cernidas: no caso da legislação, exige-se estudo cuidadoso dos 
debates parlamentares que antecederam a promulgação da lei, 
assim como de eventuais pareceres de comissões legislativas 
especializadas, análises jornalísticas e doutrinárias sobre o 
contexto de criação da lei, pronunciamentos do Executivo em 
caso de tentativa de veto, e assim por diante. Juízes e advoga-
dos (cuja formação dogmática não é caracterizada por fami-
liaridade com a pesquisa histórica), muitas vezes, permitem 
78 
.~ 
CAPiTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
que tendências ideológicas informem a sua análise da comple-
xa história legislativa. 
Em segundo lugar, deven1os manter em mente que textos 
jurídicos, tais como leis emanadas de parlamentos reais, são 
muito diferentes de placas em prédios públicos ou condo-
mínios. O autor de cada placa nos nossos exemplos hipoté-
ticos é um só; podemos encontrá-lo e pedir que esclareça o 
seu verdadeiro propósito. Leis em sistemas jurídicos maduros, 
por outro lado, costumam ser criadas por amplos grupos de 
parlamentares, muitas vezes divididos por antagonismos vio-
lentos. É verdade que até mesmo parlamentos heterogêneos 
frequentemente são capazes de convergir em torno de propó-
sitos comuns, mas isso n~ sempre acontece; mesmo quando 
acontece, a aferição da existência de u1n consenso não é nada 
simples. Há um exemplo brasileiro famoso de recurso ao mé-
todo teleológico-subjetiv<? que, embora plausível, parece-nos 
uma tentativa um pouco amadora de realizar algo que exige 
mais cuidado e rigor. Discutia-se, no HC 82.424/RS (2003), o 
sentido de uma cláusula constitucional que proíbe o "racis-
mo" no que diz respeito a um caso envolvendo suposta dis-
criminação contra judeus. Um dos votos dos ministros do STF 
dizia o seguinte: 
O elemento histórico [ ... ] converge para dar a "racismo" o 
significado de preconceito oude discriminação racial, mais 
especificamente contra a raça negra. Com efeito, a Emen-
da Aditiva 2P00654-0 do Constituinte Carlos Alberto Caó 
("A prática do racismo constitui crime inafiançável e im-
prescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei"), 
apresentada em 12.01.1988, a qual deu origem ao artigo 5.0 , 
XLII, da Constituição, tinha a seguinte justificação: "Passa-
dos praticamente cem anos da data da abolição, ainda não 
se completou a revolução política deflagrada e iniciada em 
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TEORIA OA ARGU M ENTAÇÃO JURID ICA 
1988. Pois imperam no país diferentes formas de discrimi-
nação racial [ .. .]': 
Moreira Alves, o autor desse voto, cita Caó, menciona breve-
mente as opiniões de mais um constituinte favorável à emen-
da aditiva e conclui que o propósito "do legislador" era coibir 
a discr iminação racial - mais especificamente, a discrimina-
ção contra o negro. Moreira Alves argumenta, mais ad iante, 
que os judeus não compõem realmente uma raça e que, por-
tanto, não há que se falar em racismo contra judeus. Para 
nós, ficam as seguintes dúvidas. Como sabe Moreira Alves 
o que pensavam os demais parlamentares que aprovaram a 
emenda (além dos dois constituintes mencionados)? Talvez 
eles tivessem em mente uma noção mais ampla de "racismo", 
isto é, uma noção que englobasse a d iscriminação con tra gru-
pos que, com o os judeus, sen tem-se culturalmente ligados e 
estimulam em alguma medida a endogamia.* E se os dema is 
parlamentares tivessem de fato uma noção ampla de racismo 
em mente, haveria razão pa ra assumir que a noção mais es-
treita de Caó tem prioridade? Como promotor da emenda, 
Caó presumivelmente gozava de certa in fl uência, mas, no final 
das contas, a emenda dependeu da aprovação de outros parla-
mentares, cuja opin ião não poderia ser democraticamen te ig-
norada. Na verdade, há uma dúvida ainda mais fundamental 
do que todas essas. O discurso de Caó sugere que ele estava 
particularmente preocupado com o racismo contra negros. 
Mas como saber se Caó também não tinha uma simpatia não 
• Durante o processo, o ministro Maurício Corrêa expressou dúvidas pareci-
das com essas: "Será que todos os constituintes votaram a disposição tão só 
com esse desiderato? Ou haveria elastério maior para incluir, como no caso, 
discriminações tidas como de racismo contra outros segmentos da socieda-
de brasileira?" Alves ofereceu resposta a essas considerações, mas as respostas 
são pouco convincentes. 
80 
CAP ITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO J URÍD I CA 
divulgada pela causa judia e se ele não gostaria que a discrimi-
nação contra os judeus fosse igualmente proibida pela "sua" 
emenda? Permanece a suspeita de que Moreira Alves preferiu 
ignorar essas complicações. Afinal, elas poderiam servir de 
obstáculo à in terpretação que lhe parecia m ais razoável do 
ponto de vista substan tivo. Para resumir: o método teleológi-
co-subjetivo tem potencial para ser institucional, mas apenas 
quando envolve pesquisa histórica meticulosa. 
Cabe uma última observação sobre os diferentes tipos de 
métodos de in terpretação que existem. O leitor pode achar 
estranho que pouca atenção tenha sido dada ao famoso méto-
do "sistemático" ou "sistêmico" de interpretação. Trata-se de 
um método a que os juristas brasileiros sempre fazem men-
ção, o que sugere que ele é importante e rivaliza com os méto-
dos discutidos aqui. De fato, os profissionais do direito falam 
exatamente assim: como se o método sistemá tico fosse um 
método autônomo, aplicável independentemente dos demais 
métodos de interpretação (textualismo, teleologia subjetiva, 
teleologia objetiva etc. ). Duvidamos de que o método siste-
mático goze de tal autonomia. 
Por um lado, a expressão "método sistemático" é usada 
para fazer referência a um conjunto grande e diverso de estra-
tégias argumentativas. Considere, por exemplo, um decreto 
m unicipal que pro íbe a entrada de veículos em parques públi-
cos. Suponha também que, tendo dúvidas sobre a aplicabili-
dade da palavra "veículo" a patinetes, um intérprete recorra a 
outros dispositivos dentro do mesmo decreto. Pode ser que o 
in térprete encontre um dispositivo que efetiva mente esclareça 
o sentido de "veículos", !~cl i cando, por exemplo, que se trata 
apenas de veículos motorizados (o que de ixaria de fora opa-
tinete). Na falta de um dispositivo tão esclarecedor, o intér-
prete poderia socorrer-se da jurisp rudência, isto é, da forma 
8 I 
' TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
como outros juízes têm entendido a palavra "veículo" em ca-
sos anteriores. O intérprete pode valer-se também daquilo que 
os juristas têm escrito sobre o assunto. Todos esses procedi-
mentos - o recurso a outros disposítivos, à jurisprudência, à 
doutrina - já foram descritos como envolvendo o emprego 
do "Jllétodo sistemáticd: 
Mas o problema não é só decifrar o que o intérprete tem 
em mente quando usa a expressão "método sistemáticd: Pare-
ce que a esse suposto método falta também autonomia em 
relação aos demais métodos. O apelo a outros dispositivos 
dentro da mesma lei, por exemplo, pode ser feito com o sim-
ples objetivo de encontrar dispositivos literalmente claros que 
sejam capazes de esclarecer o dispositivo em foco. Esse proc~­
dimento poderia ser classificado como "sistemático-textualis-
ta": ele combina diferentes dispositivos (nisso ele é sistemáti-
co), mas interpreta cada dispositivo literalmente (nisso ele é 
textualista). Por outro lado, o apelo a outros dispositivos tam-
bém pode ser feito com o objetivo de encontrar indícios do 
que seja o propósito comum dos vários dispositivos. O exercí-
cio de interpretação, nesse caso, poderia ser classificado como 
"sistemático-teleológico': Suponha, por exemplo, que o intér-
prete não encontre qualquer dispositivo que esclareça direta-
mente o problema do patinete, mas encontre dispositivos que 
permitam, por exemplo, o exercício de algumas atividades re-
creativas no parque. Isso pode indicar que o propósito da lei 
como um todo é promover o lazer no parque, o que não leva à 
proibição do patinete. Se outros dispositivos indicassem, pelo 
contrário, que o objetivo do parque é proporcionar um am-
biente silencioso e tranqui1o para pessoas que queiram afas-
tar-se momentaneamente do conturbado ambiente urbano, a 
proibição de patinetes poderia ser encarada como correta. 
82 
CAPITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
A ideia, portanto, é que o método sistemático depende do 
auxílio de considerações que dizem respeito a outros méto-
dos: textualista, teleológico etc. O apelo ao método sistemático 
não quer dizer que o intérprete esteja evitando os demais ti-
pos de método. Quem usa o método sistemático est~nde o 
alcance do seu método preferido ( textualista, teleológico etc.) 
para além do dispositivo ou pedaço de texto em destaque. A 
extensão pode levar o intérprete a outros dispositivos dentro 
da mesma fonte, a outras fontes do mesmo tipo (por exemplo, 
outras leis) e até a fontes de outros tipos (a jurisprudência, a 
doutrina), mas, seja como for, a extensão nunca dispensará a 
adoção de algum outro método: textualista, teleológico etc. 
4.31nteração entre os métodos de interpretação 
O objetivo da seção anterior foi mostrar que a interpretação 
jurídica pode, em princípio, ser realizada de acordo com di-
ferentes métodos, e que esses métodos variam significativa-
mente no que diz respeito à liberdade dada ao intérprete para 
raciocinar em termos substantivos (isto é, morais, políticos, 
econômicos etc.). Por motivos didáticos, os métodos foram 
apresentados de maneira um pouco artificial. A seção anterior 
pode dar ao leitor a ideia enganosa de que diferentes juízes e 
advogados se comprometem com métodos específicos e os 
aplicam de maneira exclusiva eintransigente. É como se al-
guns juízes e advogados fossem textualistas em tempo inte-
gral, outros aplicassem sempre a teleologia objetiva, e assim 
por diante. Embora seja verdade que alguns intérpretes têm 
tendências mais formalistas e outros menos, é possível que os 
diferentes métodos sejam combinados de diferentes maneiras 
nos argumentos de um mesmo intérprete. Embora o conflito 
entre métodos seja um fenômeno comum (pense nas contra-
83 
TEOR IA DA ARG U MENTAÇÃO JURÍDICA 
vérsias acerca das placas sobre pedestres e cães), os diferentes 
métodos eventualmente são capazes de combinar-se. 
A lógica do acúmulo, tão marcante no que diz respeito ao 
emprego das fontes do direito, também tem influência sobre a 
fo rma como os pro fissionais do direito usam os diferentes 
métodos de interpretação. Nos exemplos hipotéticos da seção 
anterio r, supusemos que o sentido literal das placas não estava 
de aco rdo com o propósito real dos seus autores. Os autores 
escolheram termos que não representavam muito bem os seus 
verdadeiros fins: lembre-se, por exemplo, do caso do autor da 
placa sobre "cães", que queria proibir apenas cães propensos à 
violência, e não pensou com antecedência sobre a aplicabili-
dade da palavra "cães" a cães-guias. Também há muitos casos, 
hipotéticos e reais, em que os diferentes métodos estão em 
harmonia. Basta no tar que a própria placa sobre "cães" proi -
biria a entrada de um pit buli comum de acordo com qualquer 
interpretação plausível dos seus termos. Literalmente, o pit 
buli é um cão. Além disso, o propósito real do autor da placa 
(propósito que diz respeito à segurança no prédio) recomenda 
a proibição do pit buli. E o pro pósito objetivo também parece 
recomendar a proibição do pit buli: afinal, é difícil imaginar 
um propósito objetivo plausível (segurança, tranquilidade, 
limpeza etc.) que não determine que cães relativamente gran-
des, atléticos e propensos à violência caiam sob o escopo de 
uma placa que proíbe "cães" genericamente. Esse é um caso 
em que todos os métodos apontam no mesmo sentido: o pit 
buli não pode entrar no prédio, qualquer que seja a aborda-
gem do intérprete da placa. 
Q uando diferentes métodos de interpretação servem para 
estabelecer um mesmo resultado, os profissionais do direito 
comumente fazem referência a todos eles. A lógica do acúm u-
lo sugere que é melhor mostrar que um texto determina o 
84 
CAPITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇ ÃO JURÍDICA 
resultado X quando interpretado literal ou teleologicamente 
do que mostrar que X só decorre de um desses tipos de inter-
pretação, mas não necessariamente do outro. O profissional 
do direito se sente mais à vontade quando pode d izer que o 
texto em que baseia o seu argumento deve se r entendido da 
mesma forma, seja qual for o método de interpretação que 
se ado te. Quanto mais fontes, melhor. Da mesma maneira, 
quanto mais métodos atribuírem um mesmo sen tido a uma 
fonte, melhor. 
Considere um exemplo real. Segundo a ministra Mar ia 
Thereza de Assis Moura, um policial milita r do estado do Pa-
raná alegou em recurso ao STJ (RMS 19.6 12-PR) que 
[ ... ] o tempo de serviço na at ividade privada deve ser com-
putado para o deferimento do pedido de transferência para 
a reserva remunerada, em razão do que determina o art. 
201 , § 9.0 , da Constituição Federal. Em contrarrazões, o es-
tado do Paraná afirma que o referido dispositivo constitu-
cional é aplicável somente à aposentadoria do militar e não 
para a sua reforma.* 
Na ementa da sua decisão, a ministra acolhe o pedido do po -
licial nos seguintes termos (entre colchetes e~ t ão comentários 
nossos): 
2. Se tanto a reserva remunerada como a aposentadoria, 
para os militares, conduzem, de certo modo, a uma mesma 
defmição, qual seja, a de que se trata da passagem do militar 
para a inatividade, por tempo de serviço, com o percebi-
,. Diz o referido dispositivo constitucional: "Para efeito de aposentadoria, é 
assegurada a contagem reciproca do tempo de contribuição na administra-
ção pública c na at ividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diver-
sos regimes de previdência social se compensarão financeiramente, segundo 
critérios estabelecidos em lei." 
85 
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
mento de seus proventos, razão não há para que o art. 201, 
§ 9.o da Constituição seja interpretado restritivamente, sem 
que o verdadeiro sentido lhe seja extraído. Aplicabilidade 
dos métodos de interpretação sistemático e teleológico. 
[Pouco importa que o método sistemático não seja real-
mente autônomo; a ministra presume a sua autonomia e o 
acumula ao método teleológico.] 
3. Quando a Constituição determina que para efeito de apo-
sentadoria é assegurada a contagem recíproca do tempo de 
contribuição na administração pública e na atividade priva-
da, tal disposição deve ser lida também para fins de reserva 
remunerada do militar, na medida em que não há razão ló-
gica, sistemática ou teleológica para uma distinção que leve. 
a uma interpretação restritiva do dispositivo constitucional. 
[Aqui aparece uma terceira razão, "lógica': que se soma às 
razões derivadas do emprego dos outros dois métodos de 
interpretação.] 
4. Recurso ordinário provido. 
Outro exemplo interessante aparece no famoso caso america-
no de Riggs v. Palmer ( 1889), um caso em que o réu, Elmer 
Palmer, matou seu avô para garantir que não fosse excluído 
do testamento. A maioria dos membros do tribunal decidiu 
que Palmer não teria o direito de herdar, apesar de o testa-
mento ser formalmente válido e a legislação em vigor na épo-
ca não fazer qualquer restrição aos direitos de herdeiros que 
tirassem a vida do testador. Entre colchetes estão comentários 
nossos: 
86 
Foi a intenção dos legisladores que os beneficiários de um 
testamento recebessem os bens. Mas nunca poderia ter sido 
a sua intenção que um herdeiro que matou o testador para 
efetivar o testamento pudesse ser beneficiado. Se tal caso 
tivesse passado pelas suas cabeças [ ... ] não há dúvida de que 
CAPÍTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
o teriam regulado. [Até aqui o voto do tribunal parece usar 
o método teleológico-subjetivo, embora não apresente evi-
dências históricas concretas das intenções dos legisladores, 
mas simplesmente especule sobre o que eles teriam dito so-
bre o assunto.] [ ... ] Além disso, toda lei, assim como todo 
contrato, pode ter seus efeitos controlados por máximas ge-
rais do common law. Ninguém tem a permissão de lucrar a 
partir da sua própria fraude, ou tirar vantagem do próprio 
ato ilícito, ou adquirir própriedade a partir do próprio cri-
me. Essas máximas são ditadas por considerações de política 
públie3: [public policy, no original], têm seu fundamento no 
direito universal aplicado em todos os países civilizados e 
não foram em lugar algum revogadas pela lei. [A segunda 
parte do argumento pode ser associada ao método teleoló-
gico-objetivo; afirma-se que a interpretação da lei deve ser 
feita de acordo com princípios gerais implícitos no common 
law_e ao mesmo tempo recomendados por considerações de 
política pública.] (Golding, 2001: 85; tradução nossa) 
Tão importante quanto o acúmulo entre métodos que se cor-
roboram (isto é, que levam ao mesmo resultado) é o acúmulo 
entre métodos que se complementam. É comum que os intér-
pretes recorram a um método, percebam sua incapacidade 
para indicar com precisão o sentido do texto legal e, portanto, 
sirvam-se de um segundo método com o objetivo de suprir 
a insuficiência do primeiro. O método textualista frequen-
temente requer esse tipo de complementação. Sempre que o 
texto legal (literalmente compreendido) é ambíguo, vago ou 
irremediavelmente inconsistent~, o método textualista mos-
tra-se pouco útil. Voltaremos a discutir esses fenômenos de 
imprecisão textual no próximo capitulo; por enquanto, bas-
ta considerar um exemplo. Trata-se do exemplo clássico de 
Herbert Hart, a que já se aludiu: "É proibidaa entrada de veí-
87 
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TEORIA DA h.RGUM ENTAÇÃO JURIDICA 
culos no parque." A palavra "veículo", tomad a no seu sentido 
convencional, cobre claramente carros, caminhões e motoci-
cletas (esses objetos estão proibidos pela regra do parque) . 
Entretanto, a palavra "veículo" não cobre claramente obje-
tos como bicicletas, patins, carros elétricos de brinquedo etc. 
O intérprete textualista não seria capaz de resolver uma dúvi-
da sobre a permissibilidade de patinetes no parque apenas 
com base na apreciação do sentido literal da regra. Ou ele 
desiste de resolver o caso (opção indisponível quando o intér-
prete é uma autoridade oficialmente incumbida da tarefa de 
solucionar o problema), ou ele apela a algum método comple-
mentar. O intérprete pode, por exemplo, investigar as inten-
ções do legislador para saber se ele entendia "veículo" em sen-
tido mais ou menos amplo, se ele tinha a intenção de impor 
limites específicos sobre as atividades recreativas permissíveis 
no parque, e assim por diante. Se o método teleológico subje-
tivo também não produzir uma resposta precisa, o intérprete 
pode recorrer a um terceiro método que dê conta do recado, 
e assim por diante. 
É importante observar que a complementação de um mé-
todo por outro nem sempre é necessá ria quando o primeiro 
método a que se recorre é insuficiente. Por exemplo, os sis-
temas jurídicos às vezes consagram regras de interpretação 
(também ditas "câno nes" ou "máximas" de interpretação) que 
são úteis para solucionar dúvidas sobre o sentido literal do 
texto legal. No direito penal, por exemplo, é comum que, entre 
as interpretações possíveis de um texto ambíguo, adote-se a 
interpretação mais favo rável ao réu. Alguns cânones recebem 
rótulos latinos, como ejusdem generis, uma regra que requer 
que termos vagos sejam entendidos como se abrangessem 
apenas coisas similares àquelas explicitamente mencionadas 
88 
CAPITULO 4 • MÉTODOS OE INTERPRETAÇÃO JURIDICA 
no texto. Schauer dá um exemplo hipotéti co e outro real do 
emprego dessa regra: 
Um dispositivo legal exigindo inspeção governamental de 
"frutas, legumes, grãos e outros produtos" deve, de acordo 
com esse cânone, ser entendido como incluindo apenas ali-
mentos entre "outros produtos", e não veículos motorizados 
ou televisores. E assim, em Circuit City Stores, Inc. v. Adams, 
a Suprema Corte decidiu que um dispositivo na Lei Federal 
de Arbitragem, que aplicava uma parte da lei a "marinhei-
ros, ferroviários ou qualquer outra classe de trabalhadores 
envolvidos em comércio internacional ou interestadual", de-
via ser interpretado como sendo aplicável apenas a trabalha-
dores de transporte, e não aos demais trabalhadores empre-
gados no comércio internacional e interestadual. (Schauer, 
2009: 169; tradução nossa) 
Os cânones operam de maneira limitad a e intermitente: eles 
dizem respeito à maneira correta de interpreta r textos com 
características específicas, em contextos específicos. Q uando 
os ·cânones consagrados em d ado sistema jurídico não d ão 
conta da dúvida experimentada pelo usuári o de um méto do 
de interpretação, é natural que ele recorra a algum método 
complementar. 
O que aprendemos sobre a interp retação jurídica até agora? 
Aprendemos que há dife rentes métodos de interpretação, u ns 
mais institucionais que outros. Aprendemos que esses méto-
dos podem entrar em conflito, mas que eles também podem 
acumular-se, corroborando-se ou complementando-se. Ago ra 
o terreno está p reparado · para que reconsideremos u ma d ú-
vida mencionada no início deste cap ítulo: a interpretação de 
um texto legal diz respeito ( 1) à descoberta de um sentido 
preexistente no texto ou , pelo contrário, (2) à atribu ição de 
89 
TEORIA OA ARGU M ENTAÇÃO JURÍDICA 
um sentido que o texto não carrega consigo, independente-
mente do intérprete? Humberto Ávila, influente jurista bra-
sileiro, parece defender a opção 2 quando diz que "a interpre-
tação não se caracteriza como um' ato de descrição de um 
significado previamente dado, mas como um ato de decisão 
que constitui a significação e os sentidos do texto" (Ávila, 
2012: 34). Essa afirmação não é falsa, mas também não deve 
ser aceita sem ressalvas. Como foi dito no início do capítulo, 
ela tem (apenas) um fundo de verdade. 
O fu ndo de verdade da afirmação de Ávila diz respeito ao 
fato, já discutido neste capítulo, de que há mais de um método 
possível de interpretação jurídica. Um m esmo pedaço de texto 
(por exemplo, uma mesma placa sobre "pedestres" ou "cães") 
pode ser entendido de maneiras diferentes por intérpretes que 
adotem métodos distintos de interpretação. Como o texto não 
costuma determinar qual método deve ser usado na sua pró-
pria interpretação, a escolha acaba ficando a cargo do intér-
prete. Se o intérprete escolhe o método, ele também escolhe o 
sentido do texto. 
Quais ressalvas devem ser feitas? A afirmação genérica de 
que o intérprete constitui ou escolhe o sentido dos textos le-
gais parece sugerir que o intérprete sempre tem a capacidade 
de op tar entre d iferentes sentidos possíveis do texto. O texto 
nunca traz consigo um sentido único e inegociável: o texto 
nunca engessa, nunca amarra, nunca limita a discricionarie-
dade do intérprete. Mas isso é um exagero. A existência de 
diferentes métodos de interpretação faz com que o intérprete, 
muitas vezes, tenha a capacidade de exercer suas próprias es-
colhas interpretativas. Em muitas outras ocasiões há fatores 
que tornam a pluralidade de métodos um fato inócuo. 
Em primeiro lugar, para que o intérprete tenha discricio-
nariedade, os métodos precisam chocar-se efetivamente. A es-
90 
CAPÍTULO G • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
colha de um método específico é inócua para fins práticos 
quando os vários métodos apontam no mesmo sentido, o que 
não é um fenômeno incomum. Note, por exemplo, que o tex-
tualista e o partidário da teleologia subjetiva frequentemente 
concordam sobre qual sen tido atribuir aos textos legais, mes-
mo enquanto discordam sobre o método que deve ser usado 
na identificação do sentido do texto. A convergência no que 
diz respeito ao resultado do emprego dos referidos métodos 
não é nada surpreendente. O legislador que queira fazer valer 
certas prescrições normalmente não encontra melhor estraté-
gia do que expor as prescrições que tem em mente de maneira 
clara e objetiva no texto legal que cria. A falta de harmonia 
entre o sentido literal do texto e a intenção do legislador é, 
portanto, uma aberração, um desvio do que esperamos que 
aconteça normalmente. O desencontro entre o sentido literal 
e o sentido pretendido pelo legislador decorre de erros t riviais 
de digitação (pense na lei em que se usa, por engano, um "ou" 
em vez de um "e") ou de problemas mais sérios, como aqueles 
que podem ocorrer quando o legislador não percebe ou é sim-
plesmente incapaz de prever as consequências das suas pala-
vras para casos concretos inusitados ("Nossa, não pensei no 
cão-guia quando criei a placa!"). Não havendo desencontro 
entre texto e intenção, o fato de existir a possibilidade de esco-
lha entre os métodos textualista e teleológico não faz qualquer 
diferença prática. O intérprete pode até escolher um método, 
mas o resultado, o sentido que ele acaba rá atribuindo ao texto 
para solucionar algum caso concreto, será inevitavelmente o 
mesmo. Nesse sentido, o intérprete está engessado. 
Além disso, embora os sistemas jurídicos reais dific ilmente 
estabeleçam hierarquias claras entre os diferentes métodos de 
interpretação, é comum que haja pelo menos consenso tácito 
de que alguns métodos devem ser preferidos ou privilegiados 
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'TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
em relação aos demais. É con1o se alguns métodos gozassem 
de presunção relativa (não absoluta) a seu favor. Como prevê 
a tese institucional,* os métodos favorecidos por tal presunção 
são justamente os métodos mais institucionais. Há compa-
ratistas que dizem que, em diversos países, até mesmo entre 
os juízes de tribunais recursais (a que chegam os casos mais 
complexos e politicamente sensíveis}, presume-se que os tex-
tos legais devem ser aplicados literalmente (Vogenauer, 2006}. 
Derruba-se a presunção apenas quando há razões importan-
tes para isso: por exemplo, quando o sentido literal do texto 
está em flagrante conflito com o seu propósito subjacente ou 
quando a aplicação literal do texto levaria a resultados muito 
insatisfatórios do ponto de vista substantivo. 
Os vários métodos de interpretação ( textualista, teleológico 
etc.) estão, em tese, disponíveis ao juiz, o que não quer dizer 
que, na prática, os juízes tenham plena liberdade para valer-se 
do método que lhes pareça substantivamente mais recomen-
dável. Há pressão da comunidade jurídica para que os juí-
zes recorram com moderação a métodos mais substantivos, 
métodos que permitam que o intérprete dê vazão às suas opi-
niões morais, políticas, econômicas etc. Trata-se, aliás, de mais 
uma instância da pressão que a comunidade jurídica exer-
ce contra aquilo que é geralmente conhecido como ativismo 
judicial. 
4.4 Interpretação constitucional 
Será que tudo o que foi dito até aqui se aplica sem ressalvas à 
interpretação do texto constitucional? Para concluir este capí-
tulo, vamos considerar algumas peculiaridades interessantes 
* Isto é, a tese, discutida em capítulos anteriores, de acordo com a qual a ar-
gumentação jurídica é predominantemente institucional. 
92 
CAPITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
da interpretação constitucional, quando contrastada com a 
interpretação de textos legais infraconstitucionais. 
Os textos constitucionais em sistemas jurídicos contem-
porâneos têm duas características que são dignas de nota no 
contexto de uma discussão sobre interpretação jurídica. Pri-
meiro, as constituições, sobretudo aquelas que incluem um rol 
de direitos fundamentais, empregam termos particularmente 
vagos e moralmente carregados, cuja aplicação tende a gerar 
controvérsia. "Dignidade'~ "privacidade,~ "liberdade,, "igualda-
de, etc. são palavras cujo significado varia de acordo com as 
convicções morais e políticas do intérprete. Além disso, essas 
palavras fazem referência a valores que, de tão genéricos e 
abstratos, frequentemente têm implicações conflitantes para a 
regulação de casos concretos. A discussão contemporânea so-
bre a permissibilidade da publicação de biografias não autori-
zadas, por exemplo, pode ser interpretada como uma discus-
são sobre a importância relativa de valores constitucionais 
como liberdade (de expressão do biógrafo) e privacidade (do 
biografado). Ainda que não haja dúvida sobre o status consti-
tu'cional desses dois valores (liberdade e privacidade), é natu-
ral que haja dúvida sobre as suas implicações para casos espe-
cíficos, como o caso das biografias não autorizadas. 
É quase banal dizer que a presença de linguagem vaga e 
moralmente carregada na constituição faz' da interpretação 
constitucional um tipo mais aberto, mais livre, mais substan-
tivo de interpretação. Isso tende a ser reconhecido até mesmo 
por entusiastas do dito "teste de proporcionalidade", o exem-
plo mais disseminado de procedimento deliberativo que tem 
por objetivo solucionar oonflitos entre valores constitucionais. 
O teste de proporcionalidade é celebrado entre os seus defen-
sores como uma forma de estruturar e racionalizar a argu-
mentação jurídica em casos de conflito entre valores constitu-
93 
TEORIA~ DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
cionais. No entanto, é dificil encontrar quem ouse dizer que 
o teste é capaz de eliminar, ou mesmo reduzir significativa-
mente, a discricionariedade do juiz que o aplica. Pelo contrá-
rio, costuma estar implícita nas eventuais defesas do teste a 
ideia de que a sua função é tornar transparente o raciocínio 
do juiz, permitindo que os seus interlocutores percebam as 
considerações com base nas quais o juiz julga a importância 
relativa dos valores constitucionais. As próprias constituições 
não estabelecem hierarquia entre os valores em questão e na . , , 
falta de regras precisas para a solução do conflito (por exem-
plo: lex superior, lex posterior etc.), o teste de proporcionalida-
de servirá, na melhor das hipóteses, para organizar e facilitar 
a compreensão das considerações substantivas a que inevita-
velmente se recorre. 
Considere um exemplo. Trata-se do voto do ministro Marco 
Aurélio no já mencionado HC 82.424/RS (2003), que discutia, 
entre outras coisas, a permissibilidade da publicação de livros 
que mantinham uma posição revisionista em relação ao Holo-
causto. Transcrevemos um longo trecho do voto do ministro: 
94 
A aplicação do princípio [ou teste] da proporcionalidade 
surge como o mecanismo eficaz a realizar a ponderação exi-
gida no caso concreto, devido à semelhança de hierarquia 
dos valores em jogo: de um lado, a alegada proteção à digni-
dade do povo judeu; de outro, a garantia da manifestação do 
pensamento. O conteúdo centra1 do princípio da proporcio-
nalidade é formado por subprincípios [ ... ] . São eles a ideia de 
conformidade ou de adequação dos meios, a exigibilidade ou 
necessidade desses meios e a proporcionalidade em sentido 
estrito. Passo, então. à análise do acórdão do Tribunal de 
Justiça do Rio Grande do Sul - pronunciamento condena-
tório -, a partir desses subprincípios, sob um ângulo dife-
rente daquele efetuado pelo ilustre ministro Gilmar Mendes. 
CAPÍTULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 
A. O subprincípio da conformidade ou da adequação 
dos meios [ ... 1 examina se a medida adotada é apropriada 
para concretizar o objetivo visado, com vistas ao interesse 
público. Assim, cabe indagar se condenar o paciente e proi-
bi-lo de publicar os pensamentos, apreender e destruir as 
obras editadas são os meios adequados para acabar com a 
discriminação contra o povo judeu ou com o risco de se 
incitar a discriminação. 
Penso que não, uma vez que o fato de o paciente que-
rer transmitir a terceiros a sua versão da história não signi-
fica que os leitores irão concordar, e, ainda que concordem, 
não significa que vão passar a discriminar os judeus, mesmo 
porque, ante a passagem inexorável do tempo, hoje os en-
volvidos são outros. 
É preciso nesse ponto fazer uma reflexão sobre a neces-
sária distinção entre o preconceito e a discriminação. Pre-
conceito, no sentido etimológico, quer dizer conceito prévio, 
opinião formada antecipadamente, sem maior ponderação 
ou conhecimento dos fatos, ideia preconcebida. Ora, todos 
nós temos "pré-conceitos" acerca de muitos fatos da vida, de-
senvolvidos com base em experiências nutridas ou em ideais 
que perseguimos. Preconceito não quer dizer discriminação, 
esta sim, condenável juridicamente, porque significa separar, 
apartar, segregar, sem que haja fundamento para tanto. Muito 
menos, preconceito revela óptica racista. A maior parte dos 
preconceitos ficam apenas no âmbito das ideias, das reservas 
mentais, não chegando a ser externada. E ninguém sofre pena 
pelo ato de pensar, já dizia o brocardo latino. O preconceito, 
se1n se confundir com o racismo, só se torna punível quando 
é posto em prática, isto é, quando gera a discriminação, ainda 
em seu sentido aquém do racismo, sem que se tenha, nesse 
caso, a cláusula da imprescritibilidade. 
B. O segundo subprincípio é o da exigibilidade ou da 
necessidade [ ... 1, segundo o qual a medida escolhida não 
95 
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURIDICA 
96 
deve exceder ou extrapolar os limites indispensáveis à con-
servação do objetivo que pretende alcançar. Com esse sub-
princípio, o intérprete reflete, no caso, se não existem outros 
meios não considerados pelo Tribunal de Justiça que po-
deriam igualmente atingir o fim almejado, a um custo ou 
dano menor aos interesses dos cidadãos em geral. Paulo Bo-
navides registra que esse cânone é chamado de princípio 
da escolha do meio mais suave. Na hipótese, a observância 
desse subprincípio deixa ao Tribunal apenas uma solução 
cabível, ante a impossibilidade de aplicar outro meio menos 
gravoso ao paciente: conceder a ordem, garantindo o direito 
à liberdade de manifestação do pensamento, preservados os 
livros, já que a restrição a tal direito não garantirá sequer a 
conservação da dignidade do povo judeu. 
C. Finalmente, o último subprincípio é o da proporcio-
nalidade em sentido estrito [ ... ] , também conhecido como 
"lei da ponderação'~ O intérprete deve questionar se o re-
sultado obtido é proporcional ao meio empregado e à car-
ga coativo-interventiva dessa medida. É realizado um juízo 
de ponderação no qual se engloba a análise de adequação 
entre meio e fim, levando-se em conta os valores do orde-
namento jurídico vigente. Robert Alexy, relativamente a 
esse subprincípio, aduz: "Quanto mais grave é a intervenção 
em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser 
as razões que a justifiquem." E Celso Antonio Bandeira de 
Mello explica: "É que ninguém deve estar obrigado a su-
portar constrições em sua liberdade ou propriedade que 
não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público." 
Assim, cumpre perquirir se é razoável, dentro de uma socie-
dade plural como a brasileira, restringir-se determinada ma-
nifestação de opinião por meio de um livro, ainda que pre-
conceituosa e despropositada, sob o argumento de que tal 
ideia incita a prática de violência, considerando-se, todavia, 
o fato de inexistirem mínimos indícios de que o livro causa-
CAPITULO 4 • MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO JURIDICA 
rá tal revolução na sociedade brasileira. E mais, se é razoá-
vel punir o paciente pela edição de livros alheios, respon-
sabilizá-lo por ideias que nem sequer o [sic] pertencem, ten-
do em vista que há outras maneiras mais fáceis, rápidas e 
econômicas de a população ter acesso a tais pensamentos, 
como a internet. 
Mesmo porque, à folha 484 do apenso n.0 4 deste habeas, 
tem-se a notícia de que a Editora Revisão, de propriedade 
do paciente, também edita livros outros cujo conteúdo na-
da revela de discriminatório, como os títulos Heráclito, de 
OswaldG Spengler, As veias abertas da América Latina, de 
Eduardo Galeano, Garibaldi e a Guerra dos Farrapos, de Lin-
dolfo Collor, Os imigrantes alemães e a Revolução Farroupi-
lha, de Gern1ano Oscar Moehiecke, História da Guerra de 
Espanha, de Robert Brasillach e Mauríce Bardeche e El Le-
viathan en la teoria dei Estado de Thomas Hobbes, de Carl 
Schn1idt. 
A par desse aspecto, avocar ao Judiciário o papel de cen-
sor não somente das obras dos próprios autores, responsa-
bilizando-os, como sobretudo daquelas simplesmente edita-
. das enseja um precedente perigosíssimo. Senão, vejamos. 
Vários livros escritos por autores que já faleceram conti-
nuam sendo publicados, e, em alguns deles, pode-se obser-
var conteúdo discriminatório e até racista. Assim, caberia 
ao Judiciário exterminar essas fontes de conhecimento do 
cenário nacional? [ ... ] Esses exemplos não são de livros já 
sabidamente discriminatórios, como Minha .luta, de Adolf 
Hitler, mas de livros que, durante toda uma geração, foram 
tidos como ícones reveladores do pensamento nacional. 
r ... J .· 
Assim, aplicando o princípio da proporcionalidade na 
hipótese de colisão da liberdade de manifestação do pacien-
te e da dignidade do povo judeu, acredito que a condenação 
efetuada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande 
97 
TEORIA DA ARGU MENTAÇÃO JU RÍ DI CA 
do Sul - por sinal, a reformar a sentença do Juízo - não 
foi o meio mais adequado, necessário e razoável." 
Marco Aurélio segue a tendência de diversos tribunais consti-
tucionais ao redor do mundo e sub~ete o conflito entre valo-
res constitucionais a um procedimento composto de três fases 
ou etapas. Na p~ im eira fase, o ministro pergunta se a proibi-
ção das publicações seria adequada para promover o fim de 
combater a discriminação contra judeus. Ele responde negati-
vamente com base no que parece ser a afirmação empírica de 
que é improvável que um livro revisionista a respeito do Ho-
locausto pudesse motivar o antissemitismo (talvez o ministro 
esteja certo, embora não apresente qualquer dado empírico 
que pudesse corroborar a sua afirmação). 
Na segunda fase, o ministro considera a possibilidade de 
alguma medida alternativa que seja capaz de contribuir para 
combater o antissemitismo sem impedir por completo que os 
livros circulem. O ministro descarta a existência de qualquer 
alternativa. Não menciona a possibilidade de se impedir a 
venda dos livros em livrarias populares, permitindo a sua cir-
culação em bibliotecas acadêmicas ou, então, a possibilidade 
de se permitir a venda do livro com a inclusão obrigatória de 
um prefácio desabonador, redigido por algum órgão do go-
verno. Talvez o ministro pense que essas medidas alternativas 
não poderiam, por motivos jurídicos ou políticos, ser determi-
nadas pelo STF. Afinal, ele se mostra muito preocupado com 
o risco de que o tribunal venha a cumprir a função de censor 
público. 
Os receios substantivos do ministro revelam -se de maneira 
ainda mais clara na terceira fase do teste de proporcionali-
• Todas as notas de rodapé presentes no voto original foram excluídas desta 
transcrição. 
98 
CAPÍ TULO 4 • MÉTODOS DE INTE RPRE TAÇÃO JURÍD ICA 
dade. É nessa fase que ele enfatiza as consequências perigosas 
para a cultura nacional de se proibir a circulação de livros 
com conteúdo supostamente racista. Atuando como censor, é 
possível que o STF acabasse por impedir a circulação de livros 
tidos como "ícones reveladores do pensamento nacional". 
O uso do teste de proporcionalidade pelo ministro Marco 
Aurélio tem o grande mérito de tornar a sua argumentação 
mais organizada e transparente. No entanto, organização e 
transparência não são sinônimos de ausência de discriciona-
riedadc. Outro juiz que aplicasse o teste ao m esmo caso pode-
ria chegar a conclusões diferentes, se variassem, por exemplo, 
as suas estimativas dos riscos que preocupam Marco Aurélio 
ou se variassem as suas opiniões substantivas a respeito da 
função política que o STF deve exercer. 
A primeira característica da linguagem constitucional que 
nos interessa, portanto, é sua vagueza e teor moral. Outra ca-
racterística importante é a estabilidade ou rigidez do texto 
constitucional. As constituições são feitas para durar (mais em 
algu ns países, como os Estados Unidos, menos em outros, 
como o Brasil). Elas não são tão facilmente emendadas ou 
refeitas quanto a legislação infraconstitucional. Esse é um fa-
tor que pode servir como incentivo para que os intérpretes da 
constituição utilizem métodos mais abertos ou substantivos, 
mesmo no que diz respeito à interpretação de dispositivos 
constitucionais que não incluem linguagem vaga e m oralmen-
te carregada. A ideia é relativamente simples. Um juiz pode 
aplicar literalmente um dispositivo legal que lhe parece subs-
tantivamente ruim, sem tanto peso na consciência, caso seja 
possível prever que o dispositivo será modificado ou alterado 
pelo legislado r no futuro próximo. Quando, por outro lado, a 
rigidez do texto constitucional torna a perspectiva d e mudan-
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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
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