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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES ÉTNICAS NAS NARRATIVAS RELIGIOSAS DOS BATISTAS EM FEIRA DE SANTANA (1947- 1988) JORGE LUIZ NERY DE SANTANA FEIRA DE SANTANA/BA 2010 JORGE LUIZ NERY DE SANTANA PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES ÉTNICAS NAS NARRATIVAS RELIGIOSAS DOS BATISTAS EM FEIRA DE SANTANA (1947- 1988) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, como exigência para obtenção do título de Mestre. ORIENTADORA: Profª. Drª. Elizete da Silva FEIRA DE SANTANA - BA 2010 Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado Santana, Jorge Luiz Nery de S223p Práticas e representações étnicas nas narrativas religiosas dos batistas em Feira de Santana (1947-1988). / Jorge Luiz Nery de Santana. – Feira de Santana, 2010. 172f. : il. Orientadora: Elizete da Silva Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2010. 1.Protestantes – Bahia. 2.Batistas – Feira de Santana. 3.Afro- brasileiros. 4.Racismo. I.Silva, Elizete da. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título. CDU: 283:323.12 JORGE LUIZ NERY DE SANTANA PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES ÉTNICAS NAS NARRATIVAS RELIGIOSAS DOS BATISTAS EM FEIRA DE SANTANA (1947- 1988) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, como exigência para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Linha 02 – Cultura, Sociedade e Política Data de defesa: 30 de julho de 2010 Resultado:____________________ BANCA EXAMINADORA: _________________________________________ Profª. Drª. Elizete da Silva - Orientadora Universidade Estadual de Feira de Santana _________________________________________ Profª. Drª. Ione Celeste Jesus de Sousa Universidade Estadual de Feira de Santana _________________________________________ Profª. Drª. Sueli Ribeiro Mota Souza Universidade Estadual da Bahia Ás missionárias Batistas afro-cariocas que me acolheram com fé e carinho: Sônia Maria de Sousa (in memoriam) e Eliza de Sousa. Aos meus pais Antonio Máximo de Santana e Elelice Nery de Santana, pelo amor e dedicação fundamental. AGRADECIMENTOS A Deus por sua imponderável graça e cuidado; Aos meus pais pelo amor de me ter e cuidado ao me ver crescer. Antonio Máximo de Santana e Elelice Nery de Santana; A minha irmã Maria Eliene Nery de Santana Martins, por sempre acreditar e investi em minha formação; Aos meus avós Otávia e José Neri (in memoriam) pela vida e inspiração que sempre serão para mim; Ao meu cunhado Juarez Costa Martins, por sua generosidade e idoneidade de vida; Aos meus irmãos Antonio Marcos Nery de Santana e José Walter Nery de Santana pela grata alegria de tê-los na caminhada; A minha querida companheira Rosane Oliveira Santos de Santana por sua paciência com as muitas ausências e seu apoio nas horas difíceis; Ao meu querido filho Yohanan Santos de Santana o menino mais gostoso do mundo e as minhas princesas lindas e queridas Yokebed Santos de Santana e Yaffa Santos de Santana; Aletuza Gomes Leite por ser companheira e colaboradora incansável deste trabalho desde o início partilhando angústias e esperanças; Aos meus pastores e amigos de caminhadas Marcos Adoniram Monteiro, poeta peregrino, Cleise Monteiro e seus filhos Samir e Zailda pelo apoio e carinho. Djalma Torres, profeta que o tempo não esquece e Olusivone seu olhar acolhedor; Ao CNPQ pela concessão da bolsa sem a qual esta pesquisa não chegaria ao fim. Ao programa de Pós- graduação em História da UEFS pela oportunidade de fazer o mestrado. Aos professores da pós-graduação que não deixaram de acreditar e apoiar a minha formação. Aos funcionários Julival Soares, um estímulo e simplicidade de gente e Andrei pelo olhar amigo e prestativo; Aos colegas de mestrado pelo carinho acolhimento e apoio na caminhada; Ao amigo Jedean Gomes Leite pelo exemplo de determinação e incentivo; A Bianca Daeb´s Seixas e Bruno Telles amigos inseparáveis e presentes na jornada, uma poesia em minha vida. Ao amigo e colaborador Zózimo Trabuco, pelas sugestões; À Juciene Sousa por suas contribuições e incentivo na temática; Aos amigos Luiz Nascimento e Joselita Delmondes pelo apoio e colaboração; Aos meus alunos e alunas das Instituições que ensino pela paciência e amizade; Aos professores e funcionários do STBNE pelo afeto dispensado; À Direção do STBNE, na pessoa do Dr. Ágabo Borges de Sousa pela disponibilidade das fontes; À Primeira Igreja Batista de Feira de Santana pelo acesso às fontes e pela secretária que muito colaborou com este acesso Valmira Cerqueira Lima; As irmãs Terezinha Neri, Doralice Freitas Barbosa; Marialva Vasconcelos Ferreira e Maria Mercês dos Santos pela acolhida e disponibilidade nas entrevistas, muito grato; Aos Pastores e Professores José Belarmino do Monte e sua esposa Maria Gomes; Pastor Edson Gama pelas informações e entrevista. Ao senhor Antonio Lourenço Neri (in memoriam) pela inspiração para este trabalho; À banca examinadora Dra. Ione Celeste de Sousa e a Dra. Sueli Mota pela paciência, avaliação e as correções sugeridas; À minha orientadora Dra. Elizete da Silva por sua competência nas discussões teórico- metodológicas, na indicação e sugestão de fontes, nas correções e pela paciência de acompanhar-me generosamente. Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes; mas não aprendemos a singela arte de viver como irmãos. Martín Luther King Jr. RESUMO Neste trabalho investigamos as práticas e representações étnicas afrobrasileiras presentes no protestantismo feirense. Partimos da atuação pioneira do missionário batista Thomas Jefferson Bowen no Brasil do século XIX e o seu projeto de evangelização junto aos centro-africanos escravizados no Rio de Janeiro. Em seguida, analisamamos as narrativas religiosas de batistas feirenses construídas no campo das relações étnico-raciais, seja na convivência com os missionários norte-americanos, os quais exerceram influência no campo da liderança, formação de “pregadores” e no apoio às comunidades batistas, seja no campo religioso marcadamente afro-católico. No estudo investigamos a recepção e apropriação destas representações na construção da auto-estima dos membros afro-brasileiros na Primeira Igreja Batista e no Instituto Bíblico Batista do Nordeste (1947 - 1988). Palavras-Chave: Protestantismo, Batistas, Feira de Santana, Afrobrasileiro, Racismo. ABSTRACT The present study investigates the practices and ethnic representations among Protestant Afro- Brazilians in the city of Feira de Santana. I begin by exploring the pioneer contribution of the North American Baptist missionary Thomas Jefferson Bowen in 19 th century Brazil and his project of evangelization among Central African slaves in Rio de Janeiro. Subsequently I analyze the religious narratives of Baptists in Feira de Santana regarding their ethno-racial relations, both in their convivence with North American missionarieswho exerted influence on local leaders, the education of “preachers”, and offered support to Baptist communities, and also in the strongly Afro-Catholic religious field. This study investigates the reception and appropriation of those representations in shaping self-esteem among Afro-Brazilian members of Primeira Igreja Batista and at the Instituto Bíblico Batista do Nordeste. (1947- 1988). Keywords: Protestantism, Baptist, Feira de Santana, Afro-Brazilian, Racism. LISTA DE FIGURAS Figura 01: Reverend Thomas Jefferson Bowen e Lurenna Henrietta (Davis) Bowen 49 Figura 02: Quatro Gerações de escravos fotografados numa plantação do Sul dos EUA em 1862 59 Figura 03: Contrastes religiosos entre a vivência da religião indígena e cristã 69 Figura 04: O lançamento da pedra fundamental do Orfanato Taylor Egídio em 1946 87 Figura 05: Terezinha Nery (filha) e Antonio Lourenço Nery (pai) 91 Figura 06: |Primeira Igreja Batista (PIB) de Feira de Santana no ano de 1948 92 Figura 07: Templo da PIB em Feira de Santana em 1960 108 Figura 08: Estudantes, professores e funcionários do Intituto Bíblico Batista do Nordeste (IBBNE) e seus diretores 116 Figura 09: O IBBNE seus espaços, estudantes, diretores e suas atividades 119 Figura 10: O Diretor do IBBNE Dr. Robert Elton Johnson, a funcionária do IBBNE, Ana e o Pr. Ebenézer Gomes Cavalcanti 123 Figura 11: Estudantes da primeira turma do IBBNE, em 1960 125 Figura 12: Pr. José Belarmino do Monte (85 anos) e Maria Gomes do Santos (esposa) 128 Figura 13: Dr. José de Sousa Marques, discursando na tribuna da Assembléia Legislativa 132 Figura 14: Miss. Charlotte Vaughn e a Miss. Lou Lanier representantes da União Feminina Missionária Batista do Brasil 134 Figura 15: Sala de aula infantil 136 Figura 16: Crianças participando da Escola Bíblica Dominical (EBD) 137 Figura 17: José Belarmino do Monte ministrando aula em 1987 139 Figura 18: Ex-aluno do IBBNE 141 . Figura 19: Inauguração do Templo da Primeira Igreja Batista de Ruy Barbosa 144 Figura 20: “Pastores de côr”, vindo do Mississipe, EUA 153 LISTA DE TABELAS Tabela 01: Distribuição de evangélicos por denominação religiosa 84 Tabela 02: Cenário desenhado pela pesquisa Fundação Getúlio Vargas 85 Tabela 03: Estatística do Culto Protestante em Feira de Santana – Bahia 1968/1969 94 Tabela 04: Estado civil, gênero e “cor” no Fichário de membros da PIB 96 Tabela05: Profissões 102 Tabela 06: Renda de Negros e proporção da renda de brancos, por setor de atividade 103 Tabela 07: Tabela de profissão dos ingressos no IBBNE 117 Tabela 08: Escolaridade 118 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABM – Aliança Batista Mundial. ANPUH – Associação Nacional de Profissionais de História. CAB – Colégio Americano Batista. CBB – Convenção Batista Brasileira. CBBA – Convenção Batista Baiana. CEBS – Comunidades Eclesiais de Base. CPR – Centro de Pesquisas da Religião (UEFS). EBD – Escola Bíblica Dominical. EUA – Estados Unidos da América. FMB – Foreign Mission Board. IBBNE – Instituto Bíblico Batista do Nordeste. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. INSS – Instituto Nacional do Seguro Social. JMN – Junta de Missões Nacionais. JUERP – Junta de educação Religiosa e Publicações. MDB – Movimento Democrático Brasieliro. OJB – O Jornal Batista. OBB – O Batista Bahiano. PIB – Primeira Igreja Batista (Feira de Santana). PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. PSD – Partido Social Democrata. SBC – Southern Baptist Convention (Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos). STBNB – Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil. STBNE – Seminário Teológico Batista do Nordeste. STBSB - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. SEC - Seminário das Educadoras Cristãs. UDN - União Democrática Nacional. UEFS – Universidade Federal de Feira de Santana. UFBA – Universidade Federal da Bahia. UFMBB – União Feminina Missionária Batista do Brasil. UNESP – Universidade Estadual Paulista. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO 1_______________________________________________________________ DA “SEITA DOS ANABATISTAS”AOS PRETOS-MINAS: A INSERÇÃO BATISTA NO BRASIL E A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL 37 1.1 Missões africanas: A proposta pioneira de evangelização de Thomas Jefferson Bowen 51 1.2 Os “Slaveholders” sulistas nos trópicos: as primeiras Comunidades Batistas no Brasil 58 1.3 Teorias raciais na sociedade brasileira no período 63 CAPÍTULO 2_______________________________________________________________ UM AFROBRASILEIRO LIDERANDO UMA CONGREGAÇÃO BATISTA NA TERRA DE SANTA ANA 72 2.1 Na terra das encruzilhadas: o campo religioso feirense em meados do século xx 77 2.1.1 O Protestantismo em Feira de Santana 81 2.2 Antonio Lourenço Nery e Felipe Neri: pregadores afrobrasileiros nos inícios da PIB de Feira de Santana 86 CAPÍTULO 3_______________________________________________________________ ARAUTOS PELA SALVAÇÃO: OS PREGADORES AFROBRASILEIROS E A EVANGELIZAÇÃO BATISTA 112 3.1 “Modestos obreiros”: Institutos Bíblicos e a preparação de pregadores batistas 112 3.1.1 A ousadia de Zé Gomes: Caminhos de um educador 124 3.2 Recepção à vida e obra de Martin Luther King Jr. entre os Batistas na Bahia 149 3.2.1 Martin Luther King Jr. e o advento da Teologia Negra nos EUA 147 3.2.2 A recepção da vida e obra de Martin Luther King na Bahia 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS 162 REFERÊNCIAS167 ANEXOS 182 INTRODUÇÃO Aulas de piano com Audrey Shults e uma estudante afrobrasileira. Foto extraída do acervo do STBNE. 15 INTRODUÇÃO Na primeira metade da década de noventa do século passado, cursávamos duas graduações, Teologia no Seminário Teológico Batista do Nordeste e História na Universidade Estadual de Feira de Santana. Na primeira, movido pela vocação religiosa, procurávamos refletir os fundamentos bíblico-teológicos das tradições de fé no interior do cristianismo, especialmente do protestantismo e suas implicações para o exercício pastoral nas comunidades de fé onde atuaríamos mais tarde. No segundo, experimentamos um olhar crítico sobre a memória e a realidade sócio-histórica das trajetórias do povo brasileiro. Como estudante de Teologia num Seminário Batista inquietava-nos o tratamento dado por algumas leituras ao fenômeno religioso no Curso de História, os quais reduziam este fenômeno a mero reflexo e projeção das condições de produção e reprodução material da existência. Como graduando em História, inquietava-nos ver nas aulas de Teologia a pouca importância em circunstanciar sócio-historicamente a produção do conhecimento teológico e suas implicações na práxis comunitária. Buscando encaminhar essas inquietações, que traziamos das leituras da Teologia da Libertação, ficamos estimulado a pesquisar sobre o fenômeno religioso. Após o término dos cursos universitários, assumimos, em 1998, a cadeira de História do Cristianismo, no Seminário Teológico Batista do Nordeste (STBNE), onde procuramos estimular nos estudantes uma análise crítica e responsável do processo histórico. Analiticamente o interesse pela temática da pesquisa em questão emerge de uma renovação na produção historiográfica do cristianismo na América Latina. Este, acompanhando o debate da produção historiográfica contemporânea, privilegia uma história “vista de baixo”, que evidencia as diversas vozes e corpos, silenciados e violentados, não poucas vezes com a cumplicidade e legitimação das Religiões. Chamou-nos especialmente atenção as novas abordagens historiográficas e teológicas nas quais as questões de classe, gênero e etnia são vistas em conexão. Como uma das teologias emergente na década de 1970, a Teologia Negra é em parte desdobramentos dos movimentos sociais pelos direitos civis dos afroamericanos e uma resposta às condições destas populações no continente onde experimentou a escravidão e suas conseqüências. As Teologias Feministas são 16 desdobramentos das lutas das mulheres por direitos sócio-políticos e culturais ao longo dos séculos XIX e XX. O contato com estas teologias selaram de vez o nosso desejo em pesquisar sobre protestantismo e questões étnicas. Os estudos sobre as questões étnico-raciais, inclusive a memória da presença das populações de origem africana no Brasil vêm se renovando nas últimas três décadas, especialmente as pesquisas sobre a relação entre o sagrado e as identidades na afro-diáspora. Produções acadêmicas sobre os cultos das religiões Afrobrasileiras já tem notoriedade nas universidades baianas, contudo os estudos sobre protestantismo é algo mais recente. Assim, consideramos que a discussão historiográfica sobre protestantismo e relações étnicas se impõe pela forte presença de afrobrasileiros neste segmento religioso, pela exigüidade de trabalhos empíricos, bem como as políticas de identificação no “campo étnico” baiano. Aqui estabelecemos uma aproximação do conceito de “campo” em Bourdieu (1974) ao apresentar campo como um estado de relações/tensões de forças entre agentes e instituições na distribuição e disputa de certo capital simbólico, no caso que analisamos as identidades e representações étnicas afrobaianas, que acumuladas em parte no curso das lutas anteriores, orienta estratégias ulteriores. Nesta análise nossas intuições foram conectadas também ao campo religioso, mostrando que a afirmação ou não de uma consciência de identidade afrobrasileira (afrobaiana), passa pelas articulações e apropriações das narrativas religiosas e pela configuração de distinções e reconhecimentos frente ao universo afro- católico. QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS Colocando o Problema Os estudos sobre religião no Brasil vêm avançando nos últimos anos. Em primeiro lugar, pela constituição do campo das Ciências da Religião abriu-se novas fronteiras e olhares sobre o fenômeno religioso, que aponta a sua complexidade no debate de seu estatuto epistemológico contemporâneo. Em segundo lugar, pela relação com as Ciências Sociais, que 17 desde seu início, lidou com os desafios de se pesquisar a religião, haja vista as investigações empíricas de Marx, Engels, Durkheim e Weber, entre outros, que buscaram explicar/compreender as relações entre religiões e sociedades. Contudo a produção do conhecimento histórico é componente fundamental para compreensão deste fenômeno, situando-o dentro dos contextos sócio-econômico, político e cultural, contemplando aspectos diacrônicos e sincrônicos que possibilitam uma contribuição diferenciada nas pesquisas em curso. O fenômeno religioso não é redutível a uma só visada epistêmica, o que faz dele um terreno instável para contundências nas conclusões. Em terceiro lugar a historiografia sobre as religiões tem se enriquecido com as proposições da História Cultural e as contribuições dos Estudos Culturais. Os trabalhos sobre práticas e representações de Roger Chartier (1990) e sobre identidades de Stuart Hall (2003) são investigações que trazem noções importantes para discutiu a dinâmica dos processos de construção das identidades culturais e religiosas. Também as contribuições de Pierre Bourdieu (1983) que se constituiu num instrumental teórico significativo para compreendermos o campo religioso brasileiro, sua gênese e estrutura. Em quarto lugar os estudos sobre protestantismo se concentraram durante muitos anos na região Sudoeste do Brasil. A bibliografia de pesquisa histórica e historiográfica sobre a expansão do protestantismo no Nordeste e suas representações é recente. Os trabalhos de Teixeira (1975) e (1983) e Silva E. (1982), (1998), (2006) e (2007) atestam este pioneirismo. Assim as pesquisas sobre a interiorização dos protestantismos e suas representações na Bahia despontam como enorme desafio, dada à carência de sistematização das fontes. As pesquisas em andamento no Centro de Pesquisas da Religião (CPR) da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), coordenado pela professora Elizete da Silva, apontam diversas possibilidades de leituras do campo religioso feirense e sua pluralidade de agências e atores. Como discutiu Silva E. (1996) “A análise sistemática da participação ou da relação das confissões reformadas com as questões sociais do país encontra-se em um patamar quase embrionário”. No Brasil os textos de Leonard (2002) e Willems (1967) foram os pioneiros nesta abordagem histórica e sociológica. Quanto à Bahia Guimarães (2001, p. 30), que foi membro do CPR, assinalou: “[...] Faz-se necessário estudar 18 as representações construídas pelo protestantismo, também no sertão baiano, analisando as formas de apreensão da realidade e os embates com a sociedade sertaneja”. A interiorização protestante na Bahia se efetuou dentro das estratégias dos missionários das denominações como assinala Silva E (2004, p. 03 grifo do autor): Ao que parece o acordo entre o Rev. Taylor, missionário batista fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil e o missionário Schneider, de origem presbiteriana, foi levado a sério, pelo menos nas duas últimas décadas do século XIX: os batistas expandiram-se para o Recôncavo baiano, sudeste,sul e norte da Bahia, enquanto os presbiterianos avançaram para a Região de Feira de Santana e Chapada Diamantina [Wagner]. A presença protestante no interior da Bahia remonta ao século XIX, com os presbiterianos em Wagner, na Chapada Diamantina e também no Recôncavo, na Comarca de Cachoeira em 1875. O missionário presbiteriano Chamberlain, mais especificamente, nos idos de 1889, com serviços de colportagem de livros e Bíblias chegou à Feira de Santana, mas experimentou rejeição, como informou o Jornal Folha do Norte (1940, p. 04 apud SILVA E. 2007, p. 127): [...] é vaiado o pastor protestante Chamberlain, cidadão norte-americano, ao iniciar na Praça João Pedreira, uma conferência de propaganda religiosa. A polícia intervém no sentido de dispersar os agressores, que retornavam de uma procissão. Estabeleceram-se correrias e tumultos. Sahem feridos, a pedra, diversas pessoas. O protestantismo se estabeleceu sistematicamente em Feira de Santana a partir de 1930 com a “Igreja Evangélica Unida”, como era conhecida (GILLANDERS, 1990, p.23). Feira de Santana, uma das principais vila da Comarca de Cachoeira no século XIX, foi elevado à categoria de cidade em 1873. Em divisão territorial datada de 18 de agosto de 1988, o município é constituído de 8 distritos: Feira de Santana, Bonfim da Feira, Governador Dr. João Durval Carneiro, Humildes, Jaguara, Jaíba, Maria Quitéria e Tiquaruçu. A sua posição geográfica situa-se no limite do Recôncavo com os tabuleiros semi-áridos e, na confluência das zonas da mata e do litoral. Com 1363Km² e população estimada em 2007, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 571.997. Importante 19 entrocamento rodoviário ligando as regiões nordeste/sul e o interior do estado da Bahia à capital, Salvador1. Foi no século XX que o crescimento demográfico em Feira de Santana deu-se de forma mais ampla na afirmação de sua força como comércio polarizador em relação a inúmeras cidades e povoados circunvizinhos. Segundo Cruz (1999, p. 208, 259), Feira de Santana assumiu e se consolidou a partir das décadas de 1940 e 1950 como o grande eixo rodoviário do Norte e Nordeste, com o aumento significativo de sua população nos fluxos e refluxos migratórios, que nela estabeleceram. Nos anos de 1970, Feira de Santana veio a se configurar como um pólo urbano-industrial (FREITAS, 1998). Em meio a estas mudanças demográficas e urbanas chegaram a Feira de Santana missionários protestantes. As memórias da missionária neozelandesa, Srª Isobel Gillanders, que juntamente com seu esposo o Missionário Roderick Gillanders (GILLANDERS, 1990, p. 05) narrou os inícios da primeira congregação protestante que se tem notícia em Feira de Santana em 1935, a qual foi organizada em 1937 com o nome de “Igreja Evangélica Unida”. Nesta comunidade local de fé, um pouco incomum para o protestantismo da época, congregavam pessoas de muitas denominações religiosas protestantes. Consideramos, portanto esta experiência uma espécie de laboratório, sementeira e plataforma de lançamento para consolidação da pluralidade do campo religioso feirense. O conceito de Denominação, aqui utilizado segue as discussões de Richard Niebhur (1992) sintetizadas por Mendonça (1995, p. 51): A palavra “Denominação” sugere que o grupo referido é apenas membro de um grupo maior, chamado ou denominado por um nome particular. A afirmação básica da teoria denominacional de Igreja é que a igreja verdadeira não deve ser identificada em nenhum sentido exclusivo com qualquer instituição particular... Nenhuma Denominação afirma representar toda a igreja de Cristo. Nenhuma Denominação afirma que todas as outras igrejas são falsas. Nenhuma Denominação insiste que a totalidade da sociedade e igreja devem submeter-se aos seus regulamentos eclesiásticos. No entanto, todas as denominações reconhecem sua responsabilidade pela totalidade da sociedade e esperam cooperar em liberdade e respeito mútuo com outras denominações e cumprir tal responsabilidade. 1Ver mapas nos anexos, extraídos de fontes online do IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em 24 ago. 2009. 20 Essa discussão se põe logo após as contribuições de Weber (1905) e Troeltsch na construção das tipologias de Igreja e Seitas. O termo seita e igreja fazem parte das categorias e conceitos sociológicos no estudo do fenômeno religioso investigado por Weber e Troeltsch. Na definição de Troeltsch encontramos: “A Igreja é um tipo de organização fundamentalmente conservadora, que até certo ponto aceita a ordem secular e domina as massas; em princípio, portanto é universal – ou seja, deseja abarcar a totalidade da vida da humanidade. As seitas, por outro lado, são grupos relativamente pequenos, que aspiram à perfeição interior do indivíduo, tendo como objetivo um companheirismo pessoal e direto entre os membros de cada grupo [...] a Igreja plenamente desenvolvida utiliza o Estado e as classes dominantes, incorporando estes elementos à sua própria vida; ela torna-se então parte integrante da ordem social vigente; nesta situação, pois a Igreja ao mesmo tempo estabiliza e determina a ordem social; ao fazê-lo, porem, ela se torna dependente das classes dominantes e do desenvolvimento destas. Já as seitas estão ligadas às classes dominadas, ou ao menos àqueles elementos da sociedade que se opõem ao estado e à Sociedade; elas atuam de baixo para cima e não de cima para baixo (TROELTSCH, 1981. p. 102 grifo do autor). O termo “denominação” é o mais apropriado, para os batistas, pois estão no intermédio dos conceitos de Igreja e seita. O termo “Igreja” referindo-se aos batistas aparecerá na medida em que as fontes se autodenominarem. Este trabalho utiliza os termos congregações ou comunidades entendidas dentro de suas peculiaridades de autonomia local e livre associação, como princípios fundadores. Historicamente os batistas crescem inicialmente nas camadas mais empobrecidas, sejam artesãos e camponeses na Inglaterra do século XVII, seja entre afroamericanos no século XIX e afrobrasileiros no nordeste brasileiro. Dentro do processo de urbanização e favelização das grandes cidades baianas, fruto também das condições históricas advindas do pós-abolição, onde as populações afrobrasileiras abandonadas pelo Estado e sem nenhuma reparação aos danos da escravidão, formaram os cinturões de empobrecidos que cercaram os bairros da aristocracia. No interior da Bahia, especialmente no sertão, a presença de afrodescendentes, foi em grande parte ruralizada (RIOS, 2003) ou mantidas no cinturão de miséria que rodeia as cidades, notando-se também populações negras resultantes da existência de remanescente de quilombos (Quilombolas) (CARVALHO, 2008)3. Não foi diferente com Feira de Santana, 2 Texto da versão inglesa do The Social Theaching of the Christian Churches. Tradução de Paulo Henrique Brito Chicago e Londres, the Universit of Chicago Press, Phoenix Edition, 1981. 3 Trabalho apresentado no IV encontro da ANPUH (Associação Nacional de profissionais de História) em Vitoria da Conquista, BA. 21 cidade de fronteira entre o Sertão e o Recôncavo, onde a presença e o trânsito da mão-de-obra escrava foram constantes. Como analisou Freire (2007, p. 06): Localizada numa zona de transição entre o litoral e o sertão, a fertilidade do solo da região permitiu que nele se desenvolvessem fazendas de gado e exploração de culturas agrícolas como o tabaco, algodão, cana-de-açúcar e mandioca, dentre outras. Essa diversificação de culturas agrícolas nas fazendas de gado justifica a grande presença do trabalho escravo na região. Atuando por vezes em atividades não muito comuns no meio rural, além dos serviços diretamente ligados à lavoura, os escravos exerceram outras atividades complementares aos serviçosda fazenda, como ferreiro, marceneiro, sapateiro, alfaiate, costureira e até músico, ocupações que destoavam daquelas voltadas para o trato com a terra e a lida com o gado, como os escravos da enxada, da roça e os vaqueiros. Dessa forma, a criação e comercialização do gado, o cultivo de gêneros agrícolas, a posse de escravos e os ativos foram os principais meios responsáveis pela formação e acumulação de riqueza dos fazendeiros e da economia em geral da região de Feira de Santana. Além da escravidão, os processos de migração das populações por conta da expansão da fronteira agro-pecuária fizeram crescer a mestiçagem. Mesmo com as intervenções de modernização da cidade, e no seu bojo o “branqueamento” do espaço urbano, a presença de afro-brasileiros em Feira de Santana permaneceu nos bairros mais empobrecidos (SILVA, R., 2005). A composição das “seitas protestantes” traz consigo esta condição de afro-brasileiros, tanto entre os chamados protestantes históricos quanto os pentecostais. Um dos líderes da congregação dos batistas em seu início, 1942, era um afrobrasileiro, Antônio Nery, atuando na Congregação Batista em Feira de Santana, no Tanque da Nação, mudando-se depois para as Baraúnas e em seguida para Rua do Meio, hoje Conselheiro Franco.4 Ele Inicialmente pertencia à classe baixa, mas depois se tornou funcionário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e entre 1954 a 1958 foi vereador em Feira de Santana.5 Interessa-nos nesta pesquisa evidenciar as apropriações, práticas e representações étnicas construídas entre os afrobrasileiros na composição da Primeira Igreja Batista (PIB) em Feira de Santana e no Instituto Bíblico Batista do Nordeste (IBBNE) entre 1947 e 1988. Analisaremos ainda as relações destas instituições com os processos sócio-educativos 4 Entrevista realizada com o Sr. Antônio Lourenço Nery pelo autor em 01 de dezembro de 1995 na sua residência. 5 Informação retirada do site http://www.camarafeiradesantana.ba.gov.br/ vereadores. Acesso em: 06 Jul. 2010. 22 mediados pelos missionários brancos norte-americanos, especialmente do Sul dos Estados Unidos da América (EUA), de forte herança segregacionista. Uma primeira questão derivada dessas inquietações que podemos afirmar em sintonia com os estudos de Bastide (1971) sobre o negro e o protestantismo brasileiro, é sobre a relação de sedução entre os afrobrasileiros e as comunidades batistas na expectativa de ascensão social. Isto acontecia devido à possibilidade da escolarização/alfabetização como instrumento de mobilidade social, na tentativa de vencerem os estigmas da sociedade feirense, muitas vezes expressas nos discursos das elites letradas (NOVAIS, FLORIANO, 1985). As Fontes Nas análises que fizemos sobre o pioneirismo do missionário Batista norte- americano Thomas Jefferson Bowen no Rio de Janeiro em 1860, utilizamos as correspondências catalogadas e traduzidas pela memorialista Betty Antunes de Oliveira, em seu livro “ Centelha de restolho seco” na sua última edição de 2005. Também utilizamos uma monografia que traça a trajetória de Bowen e família: Roberson Cecil, “Bowen or na Evidence of Grace”, manuscrito não publicado, existente na Jenkins Library da Foreign Mission Board em Richmond, Virgínia, 1969. Este documento foi gentilmente enviado pelos responsáveis do arquivo da Missão Batista de Richmond, EUA. Utilizamos também os Jornais da FBM – SBC nos períodos de 1849 a 1860, disponíveis online. A dissertação de mestrado de Alverson Souza sobre Bowen na África, defendida na Universidade de Natal, África do Sul em 2002, também foi útil, além dos livros do próprio Thomas Jefferson Bowen especialmente Central Africa: Adventures and Missionary Labors in several countries in the interior of Africa from 1849 to 1856, na edição de 1968. Utilizamos as atas da PIB de Feira de Santana (1947-1988). Também utilizamos o fichário de membros com 167 fichas entre 1945 a 1975, uma importante fonte da PIB as quais informam no geral sobre genitores, nascimento, naturalidade, cônjuges, profissão, ingresso e saída da comunidade. Algumas fichas trazem ainda fotografia, a partir das quais busquei cotejar informações, bem como nas entrevistas feitas com os membros mais antigos, sobre a categorização étnico-racial dos membros, sujeitos desta pesquisa. 23 Trabalhamos também com fontes iconográficas do acervo particular dos membros da PIB e do acervo presente no STBNE sobre a PIB. Estas contam mais de quarenta imagens entre elas da Cerimônia de fundação, são fotos antigas e recentes. Além destas fontes consultamos esboços e sermões escritos do pastor Newell Mack Shults, missionário norte- americano que foi fundador e pastor da Igreja Batista de Campo Limpo em Feira de Santana, Bahia e Diretor do STBNE; e os do pastor Jonas Barreiras de Macedo Filho, afrobrasileiro, que foi pastor na PIB e professor no STBNE. Deste último acessamos também a sua Dissertação de mestrado e um pequeno relato autobiográfico, encontrado no acervo do STBNE. O sermão do Pr. Newell Mack Shults encontrado num acervo pessoal do membro da Igreja Batista do Campo Limpo, o irmão Natanael Guedes. Os sermões e a dissertação de mestrado do Pr. Jonas B. M. Filho foram acessados através da Professora Jamim Macedo, viúva do Pr. Jonas Filho, em seu acervo pessoal. Recolhendo as fontes orais entrevistamos quatro afro-brasileiras membros da Primeira Igreja Batista de Feira de Santana: Marialva Vasconcelos Ferreira; Doralice Freitas Barbosa, Terezinha Neri e Antonio Lourenço Neri, hoje falecido, pai de Terezinha Neri e um dos fundadores da PIB de Feira, entrevistado pelo autor em 1995. Entrevistamos também a senhora Maria das Mercês dos Santos, 80 anos, uma afro-brasileira que atualmente é membro da Igreja Batista Belém, em Alagoinhas-Ba, e que na década de 1950 foi empregada do casal White em Salvador, e membro da Igreja Batista dos Mares, a Igreja responsável pela organização da PIB de Feira de Santana. Entrevistamos ainda, professores do IBBNE, hoje STBNE: Profª. Jamim Peixoto Macêdo; Pr. José Belarmino do Monte, 85anos, que foi estudante do IBBNE em 1960 e tornou-se professor da Instituição em 1978, foi também membro, na década de 1960, da PIB de Feira de Santana; e o Pr.Edson Gama de Oliveira que foi um adolescente muito presente juntos aos missionários no IBBNE e como estudante pré-seminarista no colégio Taylor- Egídio em Jaguaquara. Na década de 1970 ele estudou no Colégio Americano, em Recife-Pe, e no Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB). Outras fontes utilizadas foram os Jornais Denominacionais: O Jornal Batista (OJB) (1936 a 1988); e O Batista Baiano (1947 a 1988). Estes foram encontrados nos acervos 24 presentes na sede da Convenção Batista Baiana (CBBA) e no STBNE; E ainda O Correio Doutrinal parte do acervo pessoal da professora Jamim Macedo. Das fontes memorialísticas analisadas constam: as memórias escritas pelo professor e Pr. Jonas Barreiras de Macedo Filho sobre IBBNE e outros institutos bíblicos contemporâneos a ele sob o título de “Notas de Apreciação sobre os Institutos” por onde trabalhou no desempenho do seu Ministério Evangélico; O trabalho apresentado por Clóvis Torquato Jr. à disciplina de História da Teologia no Brasil, STBNB intitulado “História do Instituto Bíblico Batista do Nordeste em 1992” (TRABUCO, 2009); e “Uma História inacabada” (Gillianders, 1990) são memórias que relatam a inserção da Igreja Evangélica Unida em 1937, primeiro grupo organizado de protestante em Feira de Santana, fundado pela própria autora das memórias, Isabel Gillanders juntamente com seu marido Roderick Gillanders. Analisamos ainda atas das juntas administrativas (1960 a 1988) e do corpo docente do IBBNE (1975 a 1988) encontradas no acervo do STBNE . Referencial Teórico A experiência religiosaé constituinte das configurações de representações e relações sociais conforme François Houtart (1984, p. 13): [...] a religião situa-se no universo das representações e intervém ao mesmo tempo na definição do sentido e na orientação das práticas [...] se necessário ela pode fornecer a explicação e a justificação das relações sociais. A força da religião como um poder estruturante na sociedade não pode ser minimizado ou reduzido a mero reflexo das condições materiais. Ela tem uma dinâmica própria que interage com outras forças da sociedade. A representação religiosa tecida no imaginário coletivo de uma sociedade é instituidora de mundos simbólicos, espaços para distinções, disputas e reconhecimentos. Um dos grandes investigadores da História Cultural, o historiador francês Roger Chartier (1991), ao argumentar nas suas discussões sobre práticas e representações, observa que a idéia de representação liga-se à construção de “imagens” acerca de si ou do outro, 25 “imagens” estas que visam atribuir sentido(s) a determinadas práticas sociais, construindo assim realidades sociais. [um deles quando se] pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou resistência, que cada comunidade produz de si mesma; [e o outro] que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que cada grupo dá a si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma demonstração de unidade (CHARTIER, 1991, P.183). Segundo CHARTIER (1990) pensar as representações é fundamental nas construções da História Cultural. Como ele mesmo discute nos ensaios presentes na sua obra História Cultural: entre práticas e representações [...] as percepções do social não são de forma nenhuma neutras: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas” (CHARTIER, 1990, p. 17). Salienta-se que a construção das representações se dá num campo de competições e concorrências: As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1990, 17). As investigações de Chartier indicam que tais representações, práticas não são desencarnadas socialmente, e que as categorias aparentemente invariáveis devem ser pensadas na descontinuidade das trajetórias históricas. Isto nos ajuda a pensar ainda mais a questão das identidades e campo étnico como sendo espaços de embates e conflitos de representações, jogos de poder simbólico na demarcação de fronteiras e territórios, cada vez mais fluídos e internamente contraditórios. [...] O que leva seguidamente a considerar estas representações como matrizes de discursos e de práticas diferenciadas - mesmo as representações colectivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos - que tem por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua (CHARTIER, 1990, p. 18). Somam-se a estas investigações teóricas sobre identidade, as importantes análises dos estudos culturais, onde se destaca o pensador jamaicano Stuart Hall, que ver os embates no campo movediço das constituições de identidades como espaço dinâmico em constante 26 reconfiguração, longe de qualquer compreensão essencialista. “A identidade tornou-se uma festa móvel: formada e transformada continuamente em relação às maneiras pelas quais somos representados ou tratados nos sistemas culturais que nos circundam. Ela é histórica, não biologicamente definida (HALL, 1997, p. 10)”. A discussão de Hall (1997) insiste em avisar, que esta festa móvel, caleidoscópica que faz a experiência de identidades nos sujeitos do mundo globalizado, rompendo fronteiras e territórios, são experiências plurais e pluridimensionais. [...] A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças – de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de que estes antagonismos se recusam o ser alinhado; simplesmente não se reduzem um ao outro, se recusam a se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação. Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes. Cada uma delas tem para nós o seu ponto de profunda identificação subjetiva. Essa é a questão mais difícil da proliferação no campo das identidades e antagonismos: elas freqüentemente se deslocam entre si (HALL, 1997, p. 328). A discussão fundante, para muitos autores, sobre identidades, vem atrelada à questão de grupos étnicos, etnicidade. É Frederik Barth (1969), antropólogo norueguês, que procura dar uma definição de identidade étnica. O conceito de grupo étnico, para Barth, não se limitava a uma ”unidade portadora de cultura”, mas definia-se acima de tudo como “um tipo organizacional”, designando uma população que: a)“se perpetua principalmente por meios biológicos”; b) “ compartilha de valores culturais fundamentais, postos em prática em formas culturais num todo explícito”; d) “tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem” (BARTH,1969, p. 10-11). Pinho (2004) afirma que neste processo de identidade étnica proposto por Barth diversos elementos são utilizados como mecanismos de identificação, definindo fronteiras que excluem os “outros” e incluem o “nós”. “Nós” somos aqueles que temos um passado comum; os “outros” são aqueles que não reconhecem nossos valores nem compartilham da nossa tradição. Os grupos étnicos seriam, portanto, sistemas de definição de limites e fronteiras, onde o contraste funciona como detonador dos processos de construção das identidades. A idéia de fronteiras se soma hoje a idéia de origem, de pertencimento. 27 Neste mundo em constante fragmentação, a identidade passa a ser pensada e experienciada como não - fixa desprovida de permanência e essencialismos. Como argumenta Pinho (2004, p. 78): [...] as identidades são pensadas e vividas como alternativas de significação da experiência social e não como acopladas essencialmente aos sujeitos. Além disso, as identidades estão em relação com as correntes de subjetivação que transversalizam o mundo como um todo, expressando-se como articulações de poder que agem e reagem segundo tradições socialmente construídas e segundo elementos simbólicos disponíveis na estrutura da sociedade envolvente, o que significa dizer, que as identidades são expressas através de representações, entendendo representações como algo constitutivo e não meramente reflexivo da realidade. Retomando Hall (1996), para este as categorias de “raça” e “negro”, tão caras aos grupos que constroem suas identidades enquanto étnicas e afro-referenciadas, são construções sociais que não existem em si mesmas. A ênfase, portanto, deve estar nas representações, nos significados distintos que conceitos como “raça” e “negro” adquirem em conformidade com o local, o espaço e o tempo que ocupam. O antropólogo Livio Sansone, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), defende a tese de que na América Latina as relações interétnicas e a racialização dos grupos sociais seguem um padrão comum. De um lado os casamentos mistos de diferentes fenótipos, um continuum racial, uma cordialidade transracial nas horas de lazer,entre as classes baixas, uma longa história de “sincretismo”6 no campo da religião e da cultura popular. Por outro lado, uma organização política relativamente fraca com base na “raça” e na etnicidade, a despeito de uma longa história de discriminação racial. Esta última contribuiu para a pouca fomentação da mobilização étnica e a formação de grupos étnicos, dando espaço para uma forte manipulação da identidade racial, sobretudo no plano individual. Ele conclui: A esta peculiaridade, veio associar-se o cultivo de uma cegueira formal para cor na sociedade, através da criação do já mencionado mito da democracia racial, que, apesar de imposto de cima para baixo às classes inferiores, tem sido mais poderoso do que se costuma dizer, porque, nas próprias classes mais baixas, a maioria das pessoas sonham com uma sociedade que não enxergue a cor (SANSONE, 2003, p. 20). 6 O conceito de sincretismo vem sendo alvo de muitas discussões, alguns pesquisadores vem trabalhando com os conceitos de hibridismos, multiculturalismo. Para Ferreti (1995, p. 217) “podemos constatar a existência de três variantes principais no conceito de sincretismo, que são próximas, englobando outros sentidos do termo, a saber: mistura, paralelismo e convergência, ao lado de separação, em que não existe ou não identificamos sincretismo.” O sincretismo e a tradição são conceitos ambíguos, experimentam as dificuldades consensuais entre os teóricos das ciências sociais que também tem dificuldades com os conceitos de etnia e identidade. 28 Nas entrevistas realizadas com os membros da Congregação Batista aparecem designações como: cor de jambo, cor de formiga, morena clara, negra, preto. A representação que somos irmãos e filhos do mesmo Pai, não temos cor, temos Jesus, O Espírito Santo, a Salvação. Mas, a insistência no silêncio da cor, nem sempre é a única postura. Alguns relatos constatam que a conversão religiosa serviu para auto-aceitação da cor da pele, da estética, como no caso de uma entrevistada: “[...] antes alisava os cabelos e buscava a “boa aparência”, mas depois que aceitei Jesus, entendi que preciso me aceitar do jeito que Deus me fez, pois Ele me ama.”7 Nas narrativas que exploramos no decorrer do texto, aparece desde a cegueira em relação a cor, à suspeita que os negros sabem fazer e acontecer quando tem oportunidades. Estas ambigüidades de certa maneira dizem que a identidade é negociada, tecida com diferentes estratégias no cotidiano. As invenções do cotidiano na vida dos sujeitos da pesquisa mostram-se não só continuidades com as representações dos missionários, mas também descontinuidades. As práticas sociais instituídas pelas ações dos missionários norte-americanos e a recepção dos conversos afrobrasileiros às representações posta em circulação, reificam a cultura dos primeiros em detrimento da cultura do segundo. No entanto não podemos pensar que esta recepção, feita pelos fiéis seja passiva e não-conflitante, como se fossem objetos a serem conformados. Existe na recepção espaço para recriações e resistências mesmo que silenciosa. Segundo Donald (apud SILVA T., 2000, p. 65) uma parte da história do sujeito encontra-se nas “[...] improvisações da vida cotidiana que, embora sejam pouco reconhecidas, são bastante engenhosas”. É na vida cotidiana que os sujeitos se vêem diante do dilema da reprodução cultural e da transgressão cultural, articulando a sua identidade no encontro com as diferenças. Assim, quando a vida cotidiana adquire novos contornos, mudam também os processos de construção da identidade cultural. Este trabalho foi construído também através das fontes orais, entendendo que a História Oral é uma ferramenta, uma metodologia importante para investigação da memória de um povo. Esta, porém se apresenta entre limites e possibilidades. Gandon (1997, p. 135) nas suas investigações sobre a memória advindas das fontes orais adverte “[...] que a história real, vivida, nem sempre coincide com o discurso sobre esta história.” A história de vida, traz 7 Entrevista com Doralice Freitas ao autor em 29 de maio de 2009 na sua residência. 29 a trajetória dos sujeitos e suas mediações culturais, o lugar da fala e suas interfaces, os diversos outros que povoam e provocam a memória. Nas investigações empíricas de Gandon, sobre a história dos bairros de Salvador, ela experimentou os etnotextos, recolhendo narrativas e memórias. [...]fontes orais segundo o método da pesquisa com etnotextos, onde documentos são criados a partir de entrevistas gravadas, entrevistas que visam captar o discurso cultural de uma comunidade ou de um grupo. A preocupação principal na análise destes documentos é a de perceber o sentido de um discurso cultural a muitas vozes, na dinâmica de diferentes momentos vivenciados pelo grupo em questão. Vale lembrar que este discurso nos conduz sempre ao cerne da questão identitária, seja através de reminiscências relatadas, seja nos elementos veiculados na tradição oral (GANDON, 1997, p. 135 grifo do autor). Nas análises de Gandon (1997), uma pesquisa com fontes orais não despreza os documentos escritos, mas utiliza-os no aprofundamento e no levantamento de questões. A questão identitária, aparece, nas pesquisas dela, como dado recorrente nas entrevistas, produto da intersubjetividade experimentada na ativação das memórias em diálogo como o mundo que se vive, onde se tece a trama e o drama da existência. Numa investigação da história do tempo presente, a subjetividade é fator preponderante, envolvendo a todos na criação destas fontes orais. Chartier (1996, p. 216) discute: [...] O historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e, portanto partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais. Ele é, pois o único que pode superar a descontinuidade fundamental que costuma existir entre o aparato intelectual, afetivo e psíquico do historiador e o dos homens e mulheres cuja história ele escreve. [...] Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói. São nestes distanciamentos/proximidade que operamos as análises, cotejando as fontes escritas, iconográficas e orais sobre os batistas feirenses. Aqui o fato de ser um especialista da religião (pastor batista) e investigador do fenômeno religioso, se apresenta como desafio do distanciamento epistemológico e também das contribuições do olhar privilegiado de quem participa. A herança positivista já bastante questionada nas Ciências Humanas contemporânea, especialmente no campo do estudo da Hermenêutica, busca notoriamente nas Ciências da Religião, evidenciar que tanto o pressuposto anti-religioso, o 30 famoso ateísmo metodológico, bem como o olhar ingênuo e apologético do pesquisador religioso são pólos que não contribuem para um melhor acercamento do fenômeno religioso e sua complexidade. A vigilância epistemológica e metodológica deve aferir o percurso da pesquisa. A delimitação temporal para este trabalho toma como marco inicial o ano de 1947, data de organização da Primeira Igreja Batista em Feira de Santana, situada à rua Monsenhor Tertuliano Carneiro, nº 40, na época da organização, em 02 de março de 1947. Era sede, então, da antiga Congregação Batista. Hoje esta Igreja encontra-se situada à rua Visconde do Rio Branco, Centro. Nesta comunidade de fé, nos interessa a composição étnica, como se auto-identificaram e os significados que emprestaram a estas auto-identificações. O termo afrobrasileiro aqui utilizado quer identificar pessoas com traços (fenótipo) e ascendência de populações africanas escravizadas e nelas referenciadas a partir das relaçõesétnico-raciais no Brasil. Estas, nos dados do Censo 2000, são aquelas pessoas que se identificam como não brancos e não índios: os pardos, mulatos, morenos, pretos, negros e outras gradações. Segundo o Censo IBGE de 2000, entre negro e branco existem nominados pelos entrevistados em 136 gradações de cores. Os termos “Pessoas de cor”, “Preto”, “Negro”, “Afrobrasileiro” são representações sociais que vão sendo nominados em diferentes momentos e circunstâncias da história da sociedade brasileira e em seus recortes regionais. Estas variações de representações tornaram-se presentes na historiografia das elites, nas lutas e resistências dos movimentos e agremiações negras, nas propostas de integração à sociedade, ou mesmo de protesto contra a discriminação racial bem como contra o mito da democracia racial em solidariedade às lutas do povo africano (SANSONE, 2003) em seus países. Os movimentos pan-africanistas e afro-centrados traduzidos nos Blocos Afro de Carnavais (PINHO, 2004) entraram também nesta composição e disputa das representações etnoraciais no campo étnico baiano. Outro marco temporal importante para este estudo, uma vez que foi pesquisado sobre representações étnicas dos batistas, é o ano de 1988, ano da promulgação da Constituição Cidadã, na busca para se assegurar direitos sociais, políticos e culturais a todas as populações no Brasil. A Constituição de 1988 vem na esteira dos processos de 31 redemocratização em curso na sociedade brasileira e da lutas e conquistas dos movimentos negros, que põe também em discussão a data de 13 de maio das celebrações oficiais do centenário da escravidão, haja vista a memória esquecida da resistência afro em cerca de quatrocentos anos de escravidão. O nome de Zumbi como símbolo desta resistência, especialmente o seu aniversário de morte 20 de novembro, é assumida pelos movimentos negros como uma data mais significativa. Na discussão sobre as questões étnicas entre os protestantes, especialmente os Batistas em sua inserção no Brasil em meados do século XIX, tomamos como antecedente a figura do Missionário da Southern Baptist Convention (SBC), Thomas Jefferson Bowen (1814 - 1875), pioneiro nas Missões Batistas no Brasil, vindo de sua experiência na África Central (1849 - 1856), hoje Nigéria, bem como as questões sulistas envolvendo a escravidão nos Estados Unidos que originam a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, SBC, e seus desdobramentos nas missões no Brasil. Anotamos as recepções nos jornais denominacionais das discussões sobre o racismo por ocasião do Nazismo, no período entre guerras e sua deflagração na Europa na década de trinta do século XX, ocasião em que a Aliança Batista Mundial (ABM) produziu documento onde rejeitava todas as formas de discriminação racial numa reunião feita em Berlim em 1935. Nos jornais também encontramos as representações étnicas presentes nos artigos de missionários norte-americanos e de brasileiros que concluíram seus estudos nos centros de formação teológica nos Sul dos Estados Unidos. O IBBNE é também uma importante instituição, Fundada por missionários, sul - estadunidenses, inicialmente em 1945, em Triunfo, Pernambuco, pelo ex-diretor do STBNB em Recife o missionário, engenheiro, pastor e professor Dr. Arnold Edmund Hayes, missionário atuante no Norte/Nordeste brasileiro desde 1919. Em 1960, sob a direção de outro ex-diretor do STBNB e Missionário no Norte/Nordeste do Brasil, desde 1934, Pr. Dr. Robert Elton Johnson, a sede do IBBNE foi transferida para Feira de Santana, na época com o apoio e orientação do Missionário Burley E. Cader, no período, também membro da PIB em Feira de Santana. O IBBNE se tornou um relevante pólo de formação de pastores, missionários(as) e educadores(as) dos Batistas para interior da Bahia e outros estados do Brasil, bem como para países na América Latina e África. Até 1998 o STBNE fora dirigido por missionários estadunidenses. 32 Este recorte temporal também compreendeu momentos significativos nas lutas e debates das questões étnicas, no país de origem dos missionários, como: os movimentos pela luta dos direitos civis dos afro-americanos liderado pelo Reverendo Batista, Martin Luther King Jr. e o movimento dos negros Mulçumanos liderados por Malcom X que inspirou o Black Power e a emergência da Black Theology (Teologia Negra). A recepção à estes movimentos que foram amplamente noticiados na mídia, mereceu especial atenção, nesta pesquisa, haja vista que os movimentos negros em re-organização no período foram decisivamente influenciados e o silêncio permaneceu entre os protestantes em geral, com raras exceções. Nesse período no Brasil deflagrou-se o Golpe Militar em 1964, e paralelamente, a luta e resistência dos movimentos estudantis, os quais agregavam várias bandeiras e utopias de transformação da sociedade brasileira. A efervescência destes movimentos se conectava aos processos de descolonização e emergências de novos atores e protagonistas na História Contemporânea. Na América Latina fervilhavam as lutas revolucionárias e a resistência e crítica ao imperialismo americano. No campo religioso brasileiro, temos a emergência das teologias contextuais e em especial a Teologia da Libertação que animou vários movimentos, entre eles as Comunidades Eclesiais de Base (CEBS). A Teologia da Libertação apoiava uma igreja progressista e engajada no enfrentamento da Ditadura e das questões políticas e sociais e ancorava-se em um discurso teológico que assumia a opção preferencial pelos pobres, fazendo uma leitura da realidade, mediado pelas Ciências Sociais, principalmente o enfoque da Sociologia crítica, marxista. Aqui lembramos que este fermento revolucionário, progressista e ecumênico, tem suas raízes e presença nos protestantismos brasileiros desde a década de 1950, animado pelo missionário reformado Richard Shaull, Waldo Cesar, Jaime e Paulo Writhe, Rubem Alves, João Dias de Araújo, dentre outros (as), são exemplos de uma geração de jovens estudantes e líderes comunitários, que atuaram em várias frentes de resistência, como intelectuais orgânicos e militantes. Nas pesquisas de Silva E. (2007) é notório a participação popular e juvenil em Feira de Santana, nas lutas políticas e na resistência ao Golpe Militar de 1964. 33 Ao desencontro destes movimentos, outros grupos protestantes, os Batistas em especial, acomodaram-se no Regime Militar vigente e realizaram as famosas Campanhas de Evangelização “Jesus Cristo é a Única esperança”. O conceito de “Igreja Espiritual” traduz a idéia que a preocupação da igreja é com a salvação das Almas, o corpo é responsabilidade do Estado. Este conceito reflete resquícios advindos de uma teologia pietista, evangelical e fundamentalista do Sul dos Estados Unidos, muito configurada a partir das circunstâncias escravagista que está no fundo das questões sócio-políticas e religiosas destas missões. Logo, a manutenção desta dualidade é relida no Golpe Militar, circunscrevendo a idéia de liberdade ao plano individual e a esfera da propaganda religiosa. As questões étnicas não ocupavam a devida importância que merecia, uma vez que eram lidas mesmo nas Ciências Sociais, como reflexo das desigualdades de Classe. No protestantismo, não foi muito diferente da sociedade brasileira, as concepções de democracia brasileira e a resistência em discutir as desigualdades etnoraciais. Com exceção de alguns (in)fiéis, que tomaram posições diferente das lideranças oficiais da denominação e de comunidades locais, a exemplo da Igreja Batista de Nazareth liderada pelo Pr. Djalma Torres, as congregações batistas na sua maioria, permaneceram alinhadas ideologicamente, muitas vezes com discursos e práxis convergentes as autoridades políticas e militares da época. No seu artigo, “protestantes e o governo militar: convergências e divergências.” A Denominação BatistaBrasileira desenvolveu práticas, discursos e representações muito peculiares sobre o regime militar instalado no País em 1964 e as afinidades eletivas entre o conservadorismo batista e a ditadura militar produziu convergências ideológicas e cooperação efetiva da Convenção Batista com as autoridades e governo militares (SILVA E., 2009, p.19). Apresentação dos Capítulos O plano desta dissertação na introdução justifica as motivações e relevância da pesquisa, delimitando e descrevendo os sujeitos da pesquisa e a problematização, apresentando as fontes e suas possibilidades de análises. No primeiro capítulo, Da “Seita dos Anabatistas”, aos pretos-minas: A Inserção Batista no Brasil e a Questão Étnico-racial, percorremos o seguinte caminho: Primeiro: 34 Missões africanas: a proposta pioneira de evangelização de Thomas Jefferson Bowen; em seguida: Os “Slaveholders” sulistas nos trópicos: as primeiras Comunidades Batistas no Brasil; Logo depois: Teorias raciais na sociedade brasileira no período. Neste capítulo procuramos circunstanciar historicamente as relações dos batistas e o problema da escravidão no século XIX, e seus ideais de civilização, evangelização no convívio com a escravidão. A figura de Thomas Jefferson Bowen é emblemática. Sendo Missionário da Baptist Missionary of the Foreign Mission Board (FMB) of the Southern Baptist Convention, United States (Missionário da Junta de Missões Estrangeiras da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos da América) viveu sete anos na África (1849 – 1856). Chegaram ao Brasil em 1860, ficando oito meses e dezenove dias, trouxe na sua trajetória de vida inquietações sobre a relação evangelização e civilização, no século XIX quando a grande mercadoria são os africanos escravizados. Após seu retorno à terra natal, por motivos contraditórios, chegaram ao Brasil colonos sulistas, escravistas, refugiando-se das conseqüências da Guerra Civil e aqui estabelecendo igrejas, em 1871. O segundo capítulo, Um afrobrasileiro liderando uma congregação Batista na Terra de Santa Ana. Neste segundo capítulo analisamos as configurações históricas, sociais, culturais e políticas de Feira de Santana do período delimitado, em seguida consideramos o campo religioso através da presença católica, religiões de matriz afro, protestantismos e outros. Discutimos também a constituição e origens dos Batistas feirenses e suas relações com este campo religioso, bem como seus desdobramentos tomando como sujeitos os membros da PIB. Nesta trajetória utilizamos as fontes orais, as atas, um sermão de um dos antigos pastores da PIB, fichários de membros, fotografias e jornais. No terceiro capítulo, Arautos pela salvação: os afrobrasileiros e a evangelização Batista. Avaliamos o IBBNE como pólo de preparação dos especialistas religiosos como anotou Bourdieu e Weber, e a recepção e apropriação das representações e práticas sócio- culturais dos missionários. Utilizamos sermões à luz de conceitos-chave retirados da bibliografia utilizada nas aulas e nos recursos didáticos, fontes iconográficas (imagens, gravuras e outras literaturas); Analisamos ainda entrevistas de estudantes e professores, bem como atas e correspondências, notícias de jornais e fichários dos alunos. A trajetória do pastor José Belarmino do Monte como um estudante afrobrasileiro da primeira turma (1960) e 35 depois professor do IBBNE, ajudou-nos a perceber a relação com os missionários e suas representações. A recepção à militância do pastor batista e líder afro-americano nos EUA Martin Luther King Jr. na imprensa batista e nas congregações locais, bem como no IBBNE, serviu-nos para analisar o “silêncio” dos missionários às questões etnoraciais. Nas considerações procuramos identificar a trajetória percorrida e os resultados alcançados, bem como as análises desenvolvidas em cada capítulo. Sempre orientado pelas questões que alimentaram as investigações, discutimos os limites e possibilidades nas análises das fontes e sugerimos possíveis leituras que brotaram do desafio das fontes ou ausência delas. Apontamos, ainda, para a necessidade um olhar mais cuidadoso no trato da negação ou afirmação das identidades negra entre comunidades protestantes, depois de considerar o debate teórico sobre identidade já apresentado nesta introdução. CAPÍTULO 1 Reverend Thomas Jefferson Bowen e Lurenna Henrietta Bowen. Foto de 31 de maio de 1853 por Wedding Picture. 37 CAPÍTULO 1_______________________________________________________________ DA “SEITA DOS ANABATISTAS” AOS PRETOS-MINAS: A INSERÇÃO BATISTA NO BRASIL E A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL. "Não é sábio, no entanto, para cometer os erros comuns, supor que a nossa forma de civilização é exemplar para toda a terra.” Thomas Jefferson Bowen A historiografia dos batistas no Brasil vem sendo alvo de novas perspectivas, problemas e abordagens, especialmente no que se refere às origens. Oferecemos neste capítulo uma contribuição sobre o pioneirismo dos batistas no Brasil e a relação deste pioneirismo com a escravidão. A presença histórica dos batistas no Brasil principiou com o pioneirismo do missionário Thomas Jefferson Bowen, definido como “homem de Coragem e Fé” pelos seus biógrafos nos Estados Unidos (ROBERSON, 1969) e na África (AYANDELE, 1968, p. 30). Sua passagem de sete anos na “África Central” e sua rápida passagem de pouco mais de nove meses na capital do Brasil do século XIX, estas duas, estiveram ligadas por uma ambição própria dos missionários protestantes anglo-saxônicos, mas que em T. J. Bowen (1814 -1875) trouxeram algumas peculiaridades. Sua experiência na África o credenciava a estar entre africanos escravizados no Rio de Janeiro, apostando na evangelização como “redenção” da África. Dizem que um pastor americano procedente de Richmond, traz a intenção de converter as almas desgarradas as doutrinas da seita dos anabatistas, que professa”. Começou a exercer a sua missão pregando aos pretos-minas, cuja língua fala perfeitamente, ao que nos informam. Espíritos supersticiosos e timoratos, esses pobres pretos começam a tributar veneração pelo missionário. Tal pregação pode criar diversos prosélitos entre as inteligências broncas e incultas, e estabelecer no país uma seita cuja manifestação é inconvenientissima. A autoridade compete a verificação deste fato (1860, apud OLIVEIRA B., 2005, p. 113). O registro acima, nos oferece evidências para pensarmos o campo religioso na capital do Império do Brasil, no universo dos medos e temores das elites urbanas a possíveis 38 sublevações escravas, à semelhança da rebelião escrava dos Malês em 1835 em Salvador (REIS, J., 2003). Um pastor vindo de um país, que começou a estabelecer parcerias comerciais com Brasil, e este na descrição do articulista do jornal Diário de Notícias, pertencia à seita dos anabatistas, “cuja manifestação é inconvenientíssima”, falando aos pretos-minas, “inteligências broncas e incultas”, em sua própria língua e despertando grande admiração entre eles. Nesta descrição um cenário delicado se desenhou, uma vez que estes elementos juntos ofereciam, no imaginário das elites, uma ameaça ao sistema escravista estabelecido, cabendo às autoridades da época investigar este fato, finaliza o repórter. O Rio de Janeiro em meados do século XIX tinha, em números absolutos, a maior concentração urbana de escravos existente no mundo desde o final do Império romano: 110 mil escravos para 266 mil habitantes (ALENCASTRO, 2004, p. 25). O Rio de Janeiro era o maior porto negreiro das Américas, antes da proibição do tráfico de 1850. As tensões sociais advindas da relação senhor/escravo, se fez sentir entre os cativos e entre os libertos, estes últimos compunha cerca de 5 % da população (ALGRANTI, 2007). Os viajantes estrangeiros relatavam a estranhezade estar na África e não no Brasil, quando ao meio dia somente os cativos circulavam nas ruas da capital do Império brasileiro. Em seu livro “Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginário das elites do século XIX”, Azevedo (2004) cita a preocupação com a proporção numérica entre habitantes escravos e livres no País, que segundo calculava, estaria na razão de três para um. Isto foi declarado pelo brigadeiro do Exército, bacharel em Matemática e Filosofia pela universidade de Coimbra, nascido em Salvador, José Eloy Pessoa da Silva, o qual escreveu em suas memórias : Esta população escrava, longe de dever ser considerada como um bem é certamente grande mal. Estranho aos interesses público, sempre em guerra doméstica com a população livre, e não poucas vezes apresentando no moral o quadro físico dos vulcões em erupção contra as massas que reprimem sua natural tendência; gente que quando é preciso defender honra, fazenda, e vida, e o inimigo mais temível existindo domiciliada com as famílias livres (SILVA, J. apud. AZAVEDO, 2004, p. 35). Quanto ao campo religioso afro-carioca, como denomina a historiadora norte- americana Mary C. Karasch, nele era visível nestas descrições de viajantes as variações e ambigüidades que cercavam a conversão dos africanos à religião católica e as invenções religiosas como resposta aos sofrimentos infligidos pelos senhores. Sem seus parentes, vizinhos e comunidades africanas, os estrangeiros que se reuniam na cidade encaravam o desafio de criar suas próprias comunidades em meio a senhores hostis que queriam isolá-los uns dos outros ou incorporá-los a suas famílias, ou, ao menos, a suas estruturas religiosas e sociais. Porém, os africanos resistiam, pois essas estruturas não satisfaziam suas necessidades nem 39 correspondiam aos seus sistemas de valores. Alguns, é claro, sucumbiam à influência dos donos e se convertiam ao catolicismo, enquanto outros tomavam emprestadas certas crenças e imagens religiosas católicas. [...]Eles buscavam líderes e grupos religiosos em reação à bruxaria e à feitiçaria que os cercavam e formavam novas religiões que davam “força” a suas vidas (KARASCH, 2000, p. 341). Segundo Karasch, a tradição religiosa dominante entre os escravos no Rio de Janeiro na metade do século XIX, não era nem o catolicismo nem o candomblé, mas vinham da vasta região do Centro-Oeste Africano. Segundo Karash(2000) a religiosidade centro- africana,diferentemente do conservadorismo da religião dos Yorubá, mantinha uma pluralidade e inventividade constante, abertos a novas adaptações e uma “solidariedade “ecumênica” e “sincrética”. Isto se constituía em traços característicos da religiosidade da África Central, lugar que o missionário Bowen viveu. Sobre a África Central Bowen apresentou um relato detalhado da vida religiosa, além de demonstrar intenso conhecimento da língua através da produção de uma gramática e um léxico (BOWEN, 1857). Esta gramática apresenta peculiaridades em comparação a outras produções, feitas por outros missionários, do mesmo período. O historiador africano, Ayandele (1968) numa apologia a Bowen anota este esforço. O ponto importante a notar sobre o esforço de Bowen para produzir essa gramática é que ele não aceitou acriticamente o trabalho já feito sobre a língua por Samuel Ajayi Crowther. Em vez disso, ele realizou uma pesquisa independente e, assim, conseguiu produzir uma obra que ganhou a aclamação de linguistas. [...] Em particular, ele dedicou uma grande parte de sua gramática para formação de palavras (especialmente a formação de substantivos), e uma descrição das várias formas verbais. No que diz respeito a estas duas características, pelo menos, a gramática de Bowen é mais avançada do que a de Crowther. Sua apreciação da importância dos padrões formais na descrição de uma língua é, provavelmente, responsável pelo sucesso moderado de sua gramática, e isso deve ser dito que este tipo de consciência era algo bastante incomum no campo dos estudos ioruba durante o seu tempo (AYANDELE, 1968, p. 14 tradução nossa). A preocupação de Bowen com a interpretação da pregação missionária foi um dos motivos para a sua investigação da língua Yorubá, posto que conceitos abstratos da teologia e da filosofia careciam de melhor tratamento na língua africana. O esforço do missionário no vocabulário e na gramática trouxe maior sensibilidade quanto à cultura dos centro-africanos demonstrados nos seus relatos e descrições da vida e religiosidade africana na sua obra Adventures for Central Africa de 18581. As ações de Bowen estão circunstanciadas no interior 1 O historiador norte-americano e “brasileiro” Robert W. Slenes, em conversa conosco no III Seminário de História do Mestrado em História da UEFS, 08 de julho de 2010, após palestra, Escravidão e Identidades: fontes 40 dos movimentos missionários e suas relações com a expansão comercial norte-americana. Pensar a evangelização atrelada ao binômio comércio-civilização, com investimentos a longo prazo em educação podia ser visto indiretamente como instrumento de integração aos interesses do mercado de consumo. Ainda remetendo à notícia do Jornal Diário do Rio de Janeiro, de 1860, Bowen era visto como um suspeito que se aproximava dos escravos ao quais buscavam notícias de sua terra e de seu povo e estes podiam conversar em sua língua, lembranças perigosas para quem estava no exílio e no cativeiro. Bowen era visto também como aquele que apostava na inteligência dos escravos, chamados pelo Jornal de “inteligências broncas e incultas” risco de tê-los como prosélitos seguidores dos “Anabatistas”. A memória que relampeja num instante podia acender o fogo da liberdade, uma “centelha em restolho seco”2(OLIVEIRA, 2005). A presença de missionários lendo a Bíblia para os centro-africanos escravizados seria uma possibilidade de ampliar as metáforas e linguagem sobre a realidade, sobre a experiência histórica do cativeiro, à semelhança das apropriações que os afro-americanos fizeram nos EUA. A música dos “Negros Spirituals” evidenciou as formas e estratégias de resistências dos afro-americanos inspirados nas metáforas bíblicas do Êxodo. O canto “Marcha Moisés” é um exemplo: Go down Moses, way down in Egypt-s land / Tell old Pharahoh, let my people go." Desça, Moisés, desça às terras do Egito / Diga ao velho faraó que deixe meu povo ir-se." As apropriações que os afrobrasileiros fizeram do catolicismo na América Portuguesa, também ilustram as ressignificações. A indicação de expressões religiosas concorrentes, especialmente as “seitas protestantes” era vista como suspeita pela Igreja e elites católicas. As contribuições de Bourdieu (1974, p. 57-59) nos ajudam a pensar as estruturas do campo religioso, quando analisa o papel monopolizador do sagrado pela Instituição detentora dos bens de salvação. No século XIX no Império do Brasil, a Igreja Católica exerceu este patrulhamento às alternativas religiosas, operando restrições junto ao aparato jurídico do Estado onde: [...] tende a impedir de maneira mais ou menos rigorosa a entrada no mercado de novas empresas de salvação (como por exemplo, as seitas, e todas as formas de comunidade religiosa independente), bem como a busca individual de salvação (por exemplo, através do ascetismo, da contemplação e da orgia). [...] Por sua vez o e possibilidades, indicou que os missionários que investigaram a língua dos povos africanos no século XIX, ao perceberem a complexidade delas inevitavelmente tendiam a mudar sua perspectiva antropológica. 2Expressão que se encontra numa frase escrita por Thomas Jefferson Bowen ( 1814 – 1875) “ Meus fracos esforços entre os milhões da África parecem como gota d’ água na areia do deserto.
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