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1 A LITERATURA INFANTIL AFRO-BRASILEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE REFLEXÃO E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA The afro-brazilian children's literature as a space for reflection and construction of the identity of the black child Luani Borges Carneiro1 Dileno Dustan Lucas de Souza2 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo tratar o papel desempenhado pela literatura infantil afro-brasileira na construção da identidade da criança negra, por meio de uma análise da realidade encontrada em uma escola da rede estadual de Cataguases. A pesquisa leva a refletir sobre a forma como as literaturas que abordam a cultura africana permeiam o universo da biblioteca escolar e como estas podem ser utilizadas em sala de aula. Para isso, foram empreendidas pesquisas bibliográficas que apresentam características da literatura infantil e concepções acerca do processo de construção da identidade da criança. Analisa também, o histórico da inserção da figura do negro e da cultura afro nas obras literárias produzidas no Brasil, pensando em questões que contribuíram para que concepções sobre essa cultura fossem formadas. Compreende, também, que a adequação de um currículo voltado para o desenvolvimento de uma educação étnico-racial pode auxiliar em reflexões que permitam a desconstrução de conceitos pré-estabelecidos sobre o papel do negro e sua importância na nossa sociedade. A análise das obras literárias afro-brasileiras encontradas no acervo da biblioteca escolar, a entrevista realizada com a professora para o uso da biblioteca e a contação de histórias empreendida na turma do quarto ano do Ensino Fundamental, demonstrou que ainda existe um longo caminho a percorrer de lutas e mudanças, que perpassam, essencialmente, pela formação de educadores. Palavras-chave: Literatura Afro-Brasileira. Identidade. Escola. Abstract: The academic work aims to address the role played by Afro-Brazilian children's literature in the construction of the identity of the black child, through an 1 Graduada em Pedagogia (FIC/UNIS); luaniborges@hotmail.com. 2 Breve currículo do Dileno. 2 analysis of the reality found in a public school in Cataguases, in the state of Minas Gerais. The research is a reflection on how literatures that approach African culture permeate the universe of the school library and how they can be used in the classroom. For this purpose, bibliographical researches were carried out showing characteristics of children's literature and conceptions about the process of construction of the child's identity. It also analyzes the history of the insertion of the black figure and the Afro culture in the literary works produced in Brazil, thinking about issues that contributed to the conception of this culture. It also understands that the adequacy of a curriculum aimed at the development of an ethnic-racial education can help in reflections that allow the deconstruction of pre-established concepts about the role of the black and its importance in our society. The analysis of the Afro-Brazilian literary works found in the collection of the school library, the interview with the teacher for the use of the library and the storytelling undertaken in the class of the fourth year of elementary school, showed that there is still a long way to go of struggles and changes, which essentially involve the formation of educators. Keywords: Afro-Brazilian Literature. Identity. School. 1 INTRODUÇÃO “...por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. ” Emília Ferreiro Pensar sobre o processo de construção da identidade infantil, é pensar sobretudo na criança e nas relações que esta constrói com o mundo a sua volta. Desde muito pequena, ela interioriza padrões e atitudes que observa nos sujeitos e no meio onde está inserida, padrões esses que em um primeiro momento são transmitidos pela família e ou pessoas que as cercam, e depois pelos diferentes estímulos que recebe, seja através de desenhos, brinquedos, livros, músicas e histórias. Lev Vygotsky (1896-1934), um grande psicólogo e teórico, reforça tal afirmação em suas obras, nas quais aborda a influência que as crianças recebem do meio e a compreensão de que o ser humano se desenvolve em contato com a sociedade, modificando e sendo modificado pelo ambiente. 3 O povo brasileiro é um povo marcado pela miscigenação, somos descendentes de diferentes etnias e raças: africanos, indígenas, asiáticos, europeus. Em meio a essa diversidade, relacionamo-nos com a sociedade, aprendendo e ensinando, através de práticas sociais nas quais as relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas nos apoiam, excluem ou visam modificar. Tais relações constroem nossas identidades e interferem diretamente no modo como transmitimos nossos valores, posturas, atitudes e ideais. (SILVA, 2007) Há que se cuidar, sobretudo no meio educacional e no processo de construção da identidade infantil, para que as relações elencadas no parágrafo anterior sejam construídas em um clima de respeito e igualdade. Para tanto, torna- se essencial que mudanças ocorram no modo como são realizadas as interações sociais, com o objetivo de quebrar os paradigmas impostos pela sociedade, baseados em conceitos de inferioridade e superioridade. Brasil (2004, p. 7) ressalta que “a educação constitui-se um dos principais ativos e mecanismos de transformação de um povo”. Sendo a escola um espaço transformador do ser social e cultural, deve incentivar a formação de valores e hábitos que respeitem as diferenças e as singularidades dos indivíduos, sobretudo das minorias. O presente trabalho objetiva demonstrar que um dos principais meios para atingir essa transformação é através da leitura de obras literárias, em especial da literatura afro-brasileira, como facilitadora e potencializadora do diálogo sobre representações e significados da cultura negra e como aliada a construção da identidade da criança. A escolha da literatura como objeto de pesquisa e transformação dá-se por acreditar no que afirma José (2009, p. 19): “A literatura pode nos levar a um mundo idealizado, capaz de nos dar, sem nos alienar, o que o cotidiano nos nega. A literatura pode nos levar a conhecer pessoas, as personagens de ficção, que geram em nosso espírito simpatia ou antipatia, e possibilitam que o nosso “eu” se encontre e se reconheça ou se estranhe em diferentes “eus”. Este processo de identificação ou de projeção já nos dá a medida psicológica do texto literário, que age categoricamente sobre o caminho que nos leva à difícil viagem ao nosso interior. Saímos de um conto ou romance tontos de prazer e cheios de perguntas sobre o mundo e as pessoas que nos cercam. Sobre o mundo que somos nós e que, muitas vezes, desconhecemos.” (JOSÉ, 2009, p. 19). Como forma de investigar as possibilidades criadas pelo uso da literatura afro- brasileira no espaço escolar, optou-se por realizar uma pesquisa qualitativa, 4 desenvolvida em três momentos, a ser realizada na Escola Estadual Chica da Silva3, localizada em um bairro periférico da cidade de Cataguases, Minas Gerais. Em um primeiro momento foi analisado o acervo de obras de literatura infantil disponibilizado na biblioteca da escola, com o intuito de verificar quantos e quais livros abordam elementos da cultura afro-brasileira. Em um segundo momento foi realizada uma entrevista com a professora para o uso da biblioteca, procurando identificar de que maneira a literatura afro-brasileira era trabalhada com as crianças. No terceiro momento foi realizada uma contação de estória com uso do livro “O Cabelo de Lelê”, de Valéria Belém, para uma turma do 4° ano do Ensino Fundamental, abordando a herança cultural e racial que recebemos dos africanos, com o objetivo de levar os alunos a uma reflexão sobre suas origens e ao respeitoàs diferenças. 2 O PAPEL DA LITERATURA INFANTIL As obras de literatura infantil passaram por inúmeras modificações ao longo dos anos, a partir da influência trazida pelo contexto social e pelas manifestações culturais dos períodos em que foram criadas. No entanto, um fato a seu respeito não sofreu alteração, o forte impacto que exerce sobre os sentimentos e emoções que envolvem a infância. Alcântara (2010, p. 15) ressalta que: O primeiro repertório de literatura para infância foram as fábulas e os contos de fadas, gêneros que, com a clara marcação da categoria infância, foram devidamente adaptados para “educar” as crianças nos moldes burgueses. Tendo sofrido alterações conforme a necessidade de cada época, os contos sobreviveram como manifestações culturais de diferentes grupos sociais. Os textos sofreram significativas transformações para atender os propósitos pedagógicos da cultura burguesa, que se utilizava da literatura para transmitir e consolidar valores (ALCÂNTARA, 2010, p. 15). Durante muito tempo a literatura infantil serviu como um instrumento para as classes dominantes educarem as crianças de acordo com os padrões comportamentais, sociais e morais que acreditavam ser o correto. A menina, chamada de donzela ou princesa, aparecia nos contos de fada de forma indefesa, e construía sua vida à espera do príncipe encantado, que chegaria para libertá-la de 3 Escola Estadual Chica da Silva: Nome fictício. 5 sua vida monótona e sem emoção, montado em um cavalo branco. Ao ser apresentada a essas estórias, através da oralização ou do contato com os livros, a criança vai buscar identificar nos personagens principais, seja ele um herói ou heroína, um animal, um príncipe ou princesa, uma fada, uma bruxa, dentre outros, características físicas e atitudinais relacionadas a si mesma ou às pessoas que estão ao seu redor. Contudo, não são raras as vezes em que os personagens parecem distantes de sua realidade. Portanto, torna-se extremamente importante o papel que os professores exercem na escolha das obras literárias a serem utilizadas com as crianças, sempre pensando na diversidade, despertando nos pequenos leitores, senso crítico, pois a literatura infantil pode influenciar de forma definitiva no processo de construção de identidades, servindo, muitas vezes, como fonte de significados existenciais que poderão ser aplicados à vida. (MARIOSA; REIS. 2011). [...] a sala de aula é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um campo importante para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua utilidade. Por isso, o educador deve adotar uma postura criativa que estimule o desenvolvimento integral da criança. (ZILBERMAN, 2003, p.16) Pensar em desenvolvimento integral é pensar em desenvolver as múltiplas dimensões que formam o indivíduo: física, intelectual, social, emocional e simbólica. A falta de um projeto pedagógico, baseado na literatura infantil, que favoreça o diálogo, a reflexão e a quebra de paradigmas, que envolvem a construção das identidades dos sujeitos, nega à criança a possibilidade de enxergar, valorizar e respeitar as diferenças, entre elas, as étnico-raciais. Cabe, portanto, criar no espaço escolar uma literatura que descolonize a infância, aborde as diversidades étnico-raciais, de orientação sexual, de gênero, do corpo, das deficiências, dentre outras, e que sua aplicação para as crianças se afaste do objetivo pedagógico baseado nas lições moralizantes dos adultos, que muitas vezes buscam incessantemente domesticar e governar a infância. (PEREIRA, 2017). Sobre isso: A inserção da diversidade nos currículos implica compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenômenos como etnocentrismo, racismo, sexismo, homofobia e xenofobia. Falar sobre diversidade e diferença implica posicionar-se contra processos de colonização e dominação. É perceber como, nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e 6 inferiorizadas sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. É entender os impactos subjetivos destes processos na vida dos sujeitos sociais e no cotidiano da escola. É incorporar no currículo, nos livros didáticos, no plano de aula, nos projetos pedagógicos das escolas os saberes produzidos pelas diversas áreas e ciências articulados com saberes produzidos pelos movimentos sociais e pela comunidade (GOMES, 2007, p. 25) Sendo assim, torna-se fundamental que a escola e os professores pensem e trabalhem com a rica cultura literária que forma o nosso país, na qual está inserida a literatura afro-brasileira. 2.1. A Literatura Afro-Brasileira: construindo identidades As pesquisas e censos demográficos mostram que o Brasil é a nação que possui a segunda maior população negra do planeta. A Figura 1 traz um paralelo entre a investigação étnico-racial presentes nos censos de 1872, anos antes do sancionamento da Lei Áurea, e no censo de 2010. Uma rápida análise da figura permite observar um crescente no número de pessoas que se enxergam negras e/ou pardas no país. Torna-se importante lembrar que ser negro no Brasil não se restringe às características físicas, trata-se, também, de uma escolha política, portanto, as estatísticas disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresentam o número de pessoas que se definem branca, parda, preta, amarela ou indígena. Figura 1 – A Investigação Étnico-Racial nos censos Fonte: Disponível em:< https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de- noticias/noticias/21206-ibge-mostra-as-cores-da-desigualdade>. Acesso em 15 jun. 2019. 7 Simultaneamente à transformação na forma como o povo brasileiro se identificava, ocorreu uma série de mudanças nas obras literárias, principalmente na forma como os personagens negros apareciam nas histórias. Jovino (2006) aponta o surgimento de personagens negros na literatura infantil entre os anos de 1920 e 1930, no entanto os enredos dessas histórias apontavam os negros como subalternos, analfabetos e ignorantes. Durante muitos anos, as características que marcaram homens e mulheres negros na literatura infantil poderia ser definido da seguinte forma: O preto? Ora, somente ocupa funções de serviçal (setor doméstico ou industrial, e aí pode ter um uniforme profissional que o defina enquanto tal e que o limite nessa atividade, seja mordomo ou operário...). Normalmente é desempregado, subalterno, tornando claro que é coadjuvante na ação e, por conseqüência, coadjuvante na vida... Se mulher, é cozinheira ou lavadeira, gordona e bunduda. Seu ótimo coração e seu colo amigo são expressos no texto ou talvez nas entrelinhas... Importa que sua apresentação física não seja das mais agradáveis, das mais audaciosas ou belas... Altivos e elegantes?? Nunquinha... (ABRAMOVICH, 1989, p. 36-37) Segundo Jovino (2006), somente a partir de 1975 é que a abordagem étnico- racial passa a ser inserida na literatura infantil, na tentativa de abordar questões até então consideradas impróprias, como o preconceito racial: [...] somente a partir de 1975 é que vamos encontrar uma produção de literatura infantil mais comprometida com uma outra representação da vida social brasileira; por isso, podemos conhecer nesse período obras em que a cultura e os personagens negros figurem com mais frequência. O resultado dessa proposta é um esforço desenvolvido por alguns autores para abordar temas até então considerados tabus e impróprios para crianças e adolescentes como, por exemplo, o preconceito racial. O propósito de uma representação mais de acordo com a realidade, nem sempre é alcançado. Embora muitas obras desse período tenham uma preocupação com a denúncia do preconceito e da discriminação racial, muitas delas terminam por apresentar personagens negros de ummodo que repete algumas imagens e representações com as quais pretendiam romper. Essas histórias terminavam por criar uma hierarquia de exposição dos personagens e das culturas negras, fixando-os em um lugar desprestigiado do ponto de vista racial, social e estético. Nessa hierarquia, os melhores postos, as melhores condições, a beleza mais ressaltada são sempre da personagem feminina mestiça e de pele clara. (JOVINO, 2006, p. 187) Apesar da preocupação dos escritores em denunciar o preconceito e a discriminação racial nas suas obras literárias, apresentando o personagem negro sobre um novo prisma, estes se mantinham em um plano camuflado de narrações e imagens preconceituosas, as quais eram sustentadas pelo mito da democracia 8 racial, evidenciando, por exemplo, a mestiçagem. Figurou-se assim, durante anos, uma literatura infantil na qual os protagonistas representavam, em sua maioria, personagens brancos ou mestiços, e quando apresentados como negros, carregavam consigo uma carga de traços estigmatizados pela sociedade. Na contemporaneidade já é possível encontrar obras e textos literários voltados para o público infantil que buscam romper com os estereótipos que caracterizavam e inferiorizavam os negros e sua cultura. Essas obras os apresentam em momentos comuns do cotidiano: em casa, na escola, com a família, enfrentando preconceitos, pesquisando, questionando e conhecendo suas origens, construindo suas identidades. Alguns livros trazem em sua construção símbolos da cultura afro- brasileira, tais como as religiões de origens africanas, as danças, a capoeira e as lendas. Outras abordam aspectos da riqueza natural do continente africano e das relações que os povos construíram com a natureza, em especial com a árvore Adansonia digitata, o Baobá. A afro-literatura brasileira poderia ser entendida, ainda, como aquela produção que: possui uma enunciação coletiva, ou seja, o eu que fala no texto traduz buscas de toda uma coletividade negra...Para que o livro seja uma obra de referência, não basta trazer personagens negras e abordagens sobre preconceitos. É importante levar em consideração o modo como são trabalhados o texto e a ilustração (PIRES; SOUSA; SOUZA, 2005, p. 1 apud MARIOSA; REIS, 2011, p. 46) O papel ocupado pelo protagonista negro, em paralelo com a valorização da identidade, da cultura, da religião e dos contos de tradição africana, presentes nas obras de literatura afro-brasileira, ganharam ainda mais espaço, sobre os moldes de uma literatura de enfrentamento étnico-racial, quando em 2003 o Ministério da Educação sancionou, entre outras ações, a Lei nº 10.639/03, que trazia, entre outras medidas, a alteração da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelecia as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade de se trabalhar com a "História e Cultura Afro-Brasileira". Outra conquista considerável foi a publicação, em 2004, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. As diretrizes citadas anteriormente apresentam em um capítulo políticas de reconhecimento e valorização de ações afirmativas sobre a figura do negro na sociedade, entre as quais pode-se citar: 9 Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra. (BRASIL, 2004, p. 12). Esse reconhecimento, passa, inevitavelmente, pelos ambientes de ensino, que necessitam estar comprometidos com uma educação onde negros e brancos tenham os mesmos direitos e oportunidades, possam “relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação” (BRASIL, 2004, p.12). Outro ponto importante, é que a educação das relações étnico-raciais deve ser conduzida, tomando como base os princípios de consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidades e de direitos, ações de combate ao racismo e a discriminações. Sendo assim, torna-se urgente que a escola e os educadores repensem seu papel na formação de seus alunos, em especial na formação de leitores, de maneira que a literatura infantil seja vista e utilizada como uma ferramenta essencial na discussão de temas relevantes para a sociedade e não apenas como um artifício pedagógico da disciplina de Língua Portuguesa, utilizada nos momentos de consolidação do gênero literário para crianças, ou como um momento de distração. 3 METODOLOGIA Conforme salientado na introdução, o presente artigo foi construído com base em pesquisas bibliográficas e pesquisa qualitativa, realizada na Escola Estadual Chica da Silva, localizada em um bairro periférico da cidade de Cataguases, Minas Gerais. Atualmente a escola atende cerca de setecentos alunos distribuídos nos seguintes níveis de ensino: Ensino Fundamental Anos Inicias e Finais, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA). A pesquisa foi realizada no Ensino Fundamental Anos Iniciais em três etapas. Na primeira foi analisado o acervo de literatura infantil da biblioteca da escola, com o objetivo de identificar as obras que se enquadram na literatura infantil afro-brasileira e quais as abordagens utilizadas pelos autores dos livros para trabalhar o papel do 10 negro e/ou as histórias e influências africanas. Na segunda etapa foi realizada uma entrevista focalizada com a professora para o uso da biblioteca, a fim de conhecer a forma como a literatura infantil é desenvolvida pela escola, que tipo de livros e/ou histórias são selecionados e com quais objetivos são trabalhados. A terceira etapa foi realizada na turma do 4° ano do Ensino Fundamental, através de uma sequência didática envolvendo a contação da história do livro “O Cabelo de Lelê”, de Valéria Belém. A seguir serão apresentados os resultados obtidos no decorrer da pesquisa. 4 O ACERVO LITERÁRIO E AS PRÁTICAS DE LITERATURA A Base Nacional Comum Curricular destaca a importância da literatura para o desenvolvimento da empatia e do diálogo, por permitir a aproximação com diferentes valores, comportamentos, crenças, desejos e conflitos, contribuindo assim para que as crianças reconheçam e percebam modos distintos de ser e estar no mundo, compreendendo a si mesmo e desenvolvendo uma atitude de respeito e valorização do que é diferente. Na análise feita no acervo de literatura infantil da biblioteca escolar com o objetivo de selecionar os livros cujos títulos e ilustrações fizessem referência ao negro e à cultura afro, foram selecionados sete livros, a saber: A Semente que veio da África; Plantando as árvores do Quênia: a história de Wangari Maathai; Contos ao redor da fogueira; Chica e João; Betina; O herói de Damião: em a descoberta da capoeira e Obax. 11 Figura 2 – Livros do acervo da biblioteca Fonte: O próprio autor. A análise das obras literárias permite identificar que a temática em foco é desenvolvida em duas perspectivas: a primeira, diz respeito à valorização da tradição cultural dos países africanos através da narrativa de lendas e contos populares; a segunda caracteriza-se pelo empenho em transformarà histórica invisibilidade da etnia negra através do protagonismo dos personagens. No livro “A Semente que veio da África” os autores utilizam diferentes formas literárias para explorar o tema do livro, que gira em torno da árvore de nome científico Adansonia digitata (o baobá), entre elas: lendas, mitos, relatos, informações científicas, ilustrações, imagens, jogos e até mesmo a história pessoal de dois dos autores (Georges Gneka, nativo da Costa do Marfim, e Mário Lemos, nascido em Moçambique). Os autores ressaltam, nas entrelinhas, que o ser humano é capaz de aprender de diferentes formas, e apresentam para os leitores um continente rico em culturas e belezas naturais. Seguindo a mesma perspectiva, a obra “Contos ao Redor da Fogueira” contém dois mitos de origem africana que estimulam a imaginação e a criatividade, nos quais o autor, inspirado em fatos transmitidos pela cultura oral, de geração em geração, recria lendas originais do continente africano, em torno de seus personagens e da forma como estes encaram as superstições entranhadas na sociedade em que vivem. 12 As demais obras analisadas seguem a perspectiva de valorização do protagonismo negro. O livro “Plantando as Árvores do Quênia” narra a história de Wangari Maathai, primeira mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2004. Por meio da história de Wangari, os leitores são levados a refletir sobre o mundo e a necessidade de cuidar e proteger o Meio Ambiente, além de pensar sobre o papel da mulher ativista na sociedade. Na obra “Chica e João” o autor aborda de forma envolvente e com uma linguagem simples a história de uma das figuras mais marcantes do período escravo no Brasil, Chica da Silva, sendo contada na visão da própria personagem, passando para o leitor um sentimento de diálogo e identificação com a personagem. Em “Betina” o leitor é apresentado a história da menina Betina, que diferentemente da maioria dos livros de literatura infantil, é uma menina negra. O livro aborda o relacionamento da neta com sua avó e os cuidados que essa tem com suas tranças, e inicia a discussão sobre a identidade da criança negra ao abordar a relação que a personagem principal tem com seu corpo e seu cabelo, ressaltando em diversos momentos a beleza do povo negro. O livro “O Herói de Damião” conta a história de um garoto que não se reconhece em nenhum dos heróis que vê nos filmes e na televisão e a partir dessa inquietação, em sua busca por um herói, Damião descobre na capoeira uma forma de tornar ele mesmo seu próprio herói. Por último, a obra “Obax” a partir de uma mistura de textos e riquíssimas ilustrações, permite que a criança faça uma viagem a riqueza do continente africano, abordando questões como a relação afetiva de mãe e filha, culturas e tradições africanas, fauna e flora, além dos sentimentos que cercam esse continente. O diálogo com a professora para uso da biblioteca retrata uma realidade que, infelizmente, pode ser observada em muitas escolas do Ensino Fundamental, o uso da literatura e da contação de histórias como um momento de lazer, de abordagem de datas comemorativas e como um mero artifício pedagógico, sem um planejamento que leve a reflexão e à construção de conhecimentos e identidades. Sendo assim, a professora destacou que, na maioria das vezes, as histórias e livros utilizados no momento de contação, são escolhidos com base no tema que está sendo desenvolvido na escola, ou com base em datas importantes de determinado mês, sem a preocupação de utilizar a história do livro como um momento de debate e de solidificação de aprendizagens emocionais. 13 Questionada sobre o acervo literário da biblioteca e sobre a presença das obras de literatura afro-brasileira, a professora disse não ter conhecimento. Segundo ela, não lembra de ter utilizado nenhuma obra com características da literatura afro- brasileira durante seus anos de atuação na biblioteca escola, mas disse que isso pode ter acontecido durante a semana da Consciência Negra. Urge, portanto, a necessidade de um estudo aprofundado entre os profissionais da escola acerca do processo de construção das aprendizagens infantis e do papel que a literatura exerce sobre ele, pois a ausência de um projeto pedagógico de literatura infantil que aborde os processos identitários dos sujeitos, diminui as oportunidades de a criança construir diálogos e valorizar as diferenças, entre elas, as étnico-raciais. 5 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: “O CABELO DE LELÊ” “Descobre a beleza de ser como é Herança trocada no ventre da raça Do pai, do avô, de além-mar até [...] Lelê ama o que vê! E você?” (Trecho do livro “O Cabelo de Lelê”. Valéria Belém) A obra O Cabelo de Lelê, da escritora Valéria Belém, foi publicada em 2007 pela Companhia Editora Nacional. O livro caracteriza-se entre as literaturas infantis afro-brasileiras como aquela que busca desenvolver no leitor o sentimento de pertencimento e conhecimento de suas origens, desenvolvendo a autoestima favorável ao leitor negro e o contato, pelo leitor não negro, de uma visão dos personagens negros que dificilmente é explorada nas obras infantis. A imagem da personagem negra, que é transmitida pela obra, não é baseada no passado histórico de escravidão dos negros no Brasil, mas é apresentada com características e questões que são intrínsecas às de qualquer outro cidadão. Com um narrador em terceira pessoa, O Cabelo de Lelê aborda as inquietações de uma menina acerca de seu cabelo e da forma como utilizá-lo. Partindo dessas inquietações, a menina descobre que as características físicas que possui é herança de sua família, que teve origem nos países africanos. Em suas pesquisas, Lelê percebe que as pessoas são belas devido à sua essência e história, e assim passa a aceitar e explorar as diversas formas como sua imagem pode ser refletida no espelho. 14 O livro foi explorado com os alunos do 4° ano do Ensino Fundamental através de uma sequência didática. Em um primeiro momento, foi utilizada uma caixa com um espelho dentro para desafiar os alunos a descobrirem e em seguida descreverem o que viam dentro da caixa. Por meio dessa dinâmica foi possível observar a dificuldade das crianças em olhar sua imagem refletida em um espelho e em seguida descrevê-la para a turma, principalmente por parte dos alunos negros, que em sua maioria descreveram-se como “morenos” de “olhos castanhos”. Além disso, foi possível notar um certo preconceito por parte de alguns alunos que riam e faziam comentários depreciativos nos momentos onde os alunos pardos ou negros iam se olhar e descrever. A segunda parte da sequência didática explorou as imagens do livro e a contação da história “O Cabelo de Lelê”. Em uma das partes do livro, a ilustradora Adriana Mendonça, apresenta diversos penteados possíveis de serem feitos com o cabelo da menina Lelê, como pode ser observado na Figura 3. Durante a contação de histórias, ao chegar nessa determinada parte do livro, a maioria dos alunos riram e criticaram os penteados apresentados, comparando-os com outras imagens de sua realidade. Figura 3 – Penteados Fonte: BELÉM, Valéria. O Cabelo de Lelê. 1. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. No entanto, ao chegar no final da contação, os alunos perceberam, juntamente com a menina Lelê, que cada criança tem características diferentes, bem como cabelos diferentes, e que cada uma dessas características precisa ser 15 valorizada e respeitada, pois trazem consigo uma herança familiar e uma história de vida. Em um terceiro momento os alunos foram convidados a fazerem uma viagem pelo continente africano, conhecendo através de fotografias, características culturais e naturais desse continente. Durante a “viagem” os alunos puderam construir uma nova imagem acerca da África e de sua importância para o povo brasileiro. Muitos alunos disseramfrases como: “Como a África é linda!”, “Como as roupas são coloridas.”, “A capoeira!! Ela veio da África né tia?”, “Eu quero conhecer a África um dia.”. Por último, os alunos foram estimulados a fazerem um autorretrato, apontando no desenho as belezas que os diferem de outras pessoas. Diante disso, a prática realizada com os alunos, permite inferir que quando a escola apresenta ao aluno uma variedade dos grupos raciais, promovendo uma educação antirracista, que prevê, necessariamente, um cotidiano escolar que respeite, não apenas com palavras, mas também com atitudes, as diferenças raciais, está desenvolvendo não apenas a autoestima do aluno negro, mas também criando possibilidades para que os demais alunos conheçam novas etnias e raças. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O ocultamento da figura do negro nas obras literárias infantis vem contribuindo para que as crianças negras cresçam com o sentimento de não pertencerem à sociedade. O desconhecimento das experiências de ser, viver, pensar e realizar dos descendentes de africanos faz com que ensinemos como se vivêssemos numa sociedade monocultural. Sendo assim, conclui-se que a escola, enquanto agente de inclusão e transformação cultural, social e educacional, que objetiva o desenvolvimento integral do indivíduo e a formação de um cidadão apto para atuar em sociedade, repense o seu papel na formação de leitores e avalie a literatura infantil afro-brasileira como instrumento para o debate de temas fundamentais, a exemplo das relações étnico-raciais e não apenas como uma postura utilitário-pedagógica. A prática e pesquisa realizada em campo nos possibilitou refletir que ainda existe um longo caminho a percorrer, de estudos, informação e conscientização acerca das potencialidades da literatura. Além disso, foi possível notar que o uso da literatura afro-brasileira em sala de aula, permite que as crianças negras enxerguem 16 a si mesmo como peças centrais do ensino, proporcionando o crescimento de sua autonomia e autoestima, que por sua vez, contribuem para o desenvolvimento de sua aprendizagem. Pode-se afirmar ainda que a diversidade cultural pode e deve ser trabalhada nas escolas e em sala de aula, com o objetivo de preparar as novas gerações para um mundo sem preconceito racial ou de qualquer outro gênero, possibilitando as crianças, a oportunidade de serem críticos e capazes de viver em sociedade, de maneira harmoniosa, e ativamente. No entanto, reconhecemos que esse é um caminho de luta que inclui, necessariamente, a formação de educadores com base em uma educação étnico- racial, que estejam preparados para trabalhar com os desafios encontrados no dia-a- dia do ambiente escolar. 17 REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989. ALCÂNTARA, Flávia. Representações de infância e literatura para crianças: duas faces de uma mesma moeda. In: COENGA, Rosemar (org.). A leitura em cena: literatura infanto-juvenil, autores e livros. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2010. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas. Brasília, 2004: Conselho Nacional de Educação. GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial e educação no contexto brasileiro: algumas reflexões. In: GOMES, Nilma Lino (Org.). Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. JOSÉ, Elias. Literatura infantil: ler, contar e encantar crianças. Porto Alegre: Mediação, 2009. JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In. SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (Org). Literatura Afro-Brasileira. Centro de Estudos Afro- Orientais, Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006 MARIOSA, Gilmara Santos; REIS, Maria da Glória dos. A influência da literatura infantil afro-brasileira na construção das identidades das crianças. Estação Literária. Londrina, Vagão-volume 8 parte A, dez. p. 42-53, 2011. 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