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Versão eletrônica do livro HARMONIZAÇÃO MENTAL O CASO DE BEATRIZ Autor © Guilherme Tavares, 2021 Edição e revisão: Cláudia Rezende Projeto gráfico e capa: Overleap Studio e Rikearaujo Ilustrações: Rikearaujo Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em partes, sem a prévia autorização do autor. http://www.harmonizacaomental.com.br/ Compartilhe sua opinião usando #harmonizacaomental 2 "Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! Então, compreenderá por que está destinado a ficar doente e, talvez, evite adoecer no futuro." Sigmund Freud Você pode escutar o audiobook completo deste livro em SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 3 BEATRIZ .................................................................................................................... 4 RECORDAÇÕES ......................................................................................................... 9 ANSIEDADE ............................................................................................................ 16 FOBIA ..................................................................................................................... 21 RICARDO ................................................................................................................ 25 TRAIÇÃO ................................................................................................................. 30 DESEJO ................................................................................................................... 36 MARIA .................................................................................................................... 41 BLOQUEIO .............................................................................................................. 45 PLÍNIO .................................................................................................................... 49 PERDÃO .................................................................................................................. 53 CULPA ..................................................................................................................... 57 RESSIGNIFICAÇÃO .................................................................................................. 61 3 APRESENTAÇÃO Um dia você acorda, abre os olhos e percebe que tudo mudou. Não sabe bem o motivo dessa sensação, mas sente que a sua mente não comporta mais os velhos hábitos. Beatriz está cansada, desiludida. Não entende por que, depois de anos casada, hoje está com a cama vazia. Nem seria por falta de opção, jovem, ela ainda atrai o olhar de muitos homens. No entanto, é sempre tudo igual, vazio. Ao vasculhar o passado em busca de respostas, acaba sentindo-se aflita, redescobrindo segredos guardados na mente. Revive emoções do passado, ao recordar a infância, o início de tudo que marcou a vida dela. A sensação de abandono após relatar ter sido molestada e não perceber uma atitude do pai para defendê-la. Ao engolir a frustação, ficou revoltada por anos, e isso a tornou uma pessoa mais dura com os outros e consigo mesma. Desorientada, rodeada de culpa, rancores e remorsos, Beatriz se vê sem saída, até que a dor foi maior que o medo da mudança, e ela buscou ressignificar a própria vida. A história de Beatriz, contada neste livro, serve como base para que possamos nos conectar a nossos traumas. Entender como fatos marcantes em nossa vida servem como base para todas as atitudes que tomamos. Ao enxergarmos a dificuldade do outro, refletida em nós mesmos, podemos lançar um olhar mais racional sobre os nossos atos. É preciso compreender melhor as nossas aflições, os nossos medos e desejos ocultos, para, assim, podermos nos libertar de toda a culpa inconsciente que carregamos. O objetivo deste livro é libertar o leitor de suas amarras mentais, possibilitando o autoperdão e a ressignificação. Harmonizar é o ato de tornar mais belo, mais equilibrado, aquilo que você tem, é um refinamento. Sendo assim, busco auxiliar no seu despertar, lançando e motivando você a um novo olhar sobre a sua vida. Que você possa utilizar as percepções levantadas aqui como mais um impulso transformador. Uma excelente leitura! Um grande abraço, Guilherme Tavares 4 BEATRIZ Eu tinha 8 anos quando tudo aconteceu. Morávamos eu, minha irmã mais velha, Berenice, minha mãe, Maria, e meu pai, Francisco, em uma cidadezinha no interior de Minas Gerais. Dona Maria Flor, como minha mãe era conhecida, fazia os melhores doces da região. Ela era puro amor, lembro-me de acordar de manhã e sentir aquele cheirinho gostoso de café com pão de queijo fresquinho, feito por suas habilidosas mãos. Sempre que podia, eu ajudava na fabricação dos doces. A demanda estava aumentando e preenchia todo o meu tempo livre, mas não me incomodava. Diferentemente da minha irmã, que às vezes reclamava, eu, na verdade, até gostava de estar ali, na pequena cozinha industrial, era um ambiente muito acolhedor. Meu pai era carpinteiro, um homem muito justo, às vezes meio “cabeça-dura”, mas com um grande coração. Lembro-me que, mesmo chegando tarde a nossa casa após o trabalho, sempre arrumava tempo para nos abraçar, com um grande sorriso no rosto. Estava tudo perfeitamente bem, mamãe com várias encomendas e papai com meses de trabalho garantido na igreja, até aquele fatídico dia. Eu e a Berê éramos responsáveis por levar as encomendas. Mamãe cuidava da casa, enquanto nós cuidávamos da entrega dos doces. Mas, na véspera da Páscoa, era diferente. Sempre foi. Muitas entregas para fazer, e, daquela vez, eu precisei ir sozinha. Era uma grande encomenda feita pela paróquia da cidade. Como meu pai estava por lá, minha mãe pediu para que eu fizesse a entrega, enquanto a Berê seguia outra rota. Chegando à igreja, dei um abraço no meu pai e falei que estava com os doces. Ele me disse que o padre estava na casa paroquial e pediu para que entregasse lá. O padre era um senhor muito respeitado, bati na porta, e ele me atendeu. “Entre, minha filha, já te atendo”. A casa tinha cheiro de naftalina e muitos móveis antigos de madeira. O padre veio, sentou-se no sofá e começou a perguntar como estava minha mãe, disse que estava muito satisfeito com o trabalho do meu pai. Aí, me perguntou se eu já era mocinha, achei estranho, mas respondi que não. Então começou a me fazer várias perguntas, algumas que me 5 deixaram muito constrangida, até que ele levantou e colocou a mão sobre meu ombro. Nesse momento, eu simplesmente saí correndo dali. Fiquei com medo e comecei a chorar. Chegando em casa, imediatamente, falei com a minha mãe. Contei que senti algo ruim ali, sozinha com o padre, com aquelas perguntas, com o jeito como ele se encostou em mim. Minha mãe pediu para que eu não contasse nada a ninguém, disse que ela resolveria o problema e contaria para meu pai. Fiquei chorando no meu quarto o restante do dia, minha irmã se aproximou, perguntou o que tinha acontecido, mas eu não quis contar nada. Meu pai chegou, como sempre, veio e me deu um beijo, viu que eu estava triste. Eu disse que estava um pouco doente, ele me abraçou e falou que tudo iria melhorar. Não consegui dormir direito naquele dia, com a raiva que eu fiquei. A Páscoa chegou, e fomos, como todos os domingos, à igreja naquela manhã. Pensei: “agora este padre vai escutar poucas e boas!”. Já estava com nojo de ir à igreja. A missa transcorreu normalmente, e, ao final, fomos para casa. Nada, absolutamente nada aconteceu de diferente. Assim que consegui um momento sozinha com a minha mãe, fui logo desabafando. “Mãe! Por que o papai não xingou o padre?”. Eu queria uma atitude, era meu direito! Então, ela me respondeu: “faleicom seu pai, minha filha, ele disse para não tocarmos nesse assunto e para você não fazer mais entregas sozinha”. Como fiquei decepcionada! Chorei novamente, com raiva agora do meu pai. Ele era meu protetor, meu herói. Como podia deixar alguém se 6 encostar em mim sem fazer nada? Desde então, nunca mais a nossa relação foi a mesma. Senti que, a cada ano, íamos nos afastando mais. Eu ainda o amava, mas algo havia mudado em mim. O tempo passou, eu continuei ajudando a minha mãe com os doces. Fiz Administração de Empresas na capital. Saí de casa cedo, para morar sozinha, comecei a vender doces também na faculdade, trabalhei muito e comecei a conquistar cada vez mais destaque. Na faculdade, eu conheci o Ricardo, e começamos a namorar. Em pouco tempo, ele veio morar comigo, me ajudava com algumas tarefas na casa e na pequena produção de doces que eu fazia. Em certos dias, também pegávamos a estrada para a minha cidade natal e abastecíamos o nosso estoque. Ricardo era bom companheiro, não posso falar que foi um amor de novela, mas estávamos bem com a nossa relação. Confesso que às vezes sentia-me um pouco frustrada com a falta de proatividade dele, mas, como sempre foi prestativo, acabou me ajudando bastante no início da minha carreira. Com o passar do tempo, a pequena empresa de doces começou a vender para o Brasil inteiro. Após me formar em Administração, investimos pesado na fábrica. E, logo em seguida, casei-me com Ricardo. Porém, nunca me senti preenchida de verdade. Via histórias de amor fantásticas, mas, para mim, eram isso, nada além de histórias. Achei que era por falta de filhos, Ricardo queria, e eu deduzi que esse grande amor viria com a chegada de Mariana. Minha filha virou todo o meu objetivo de vida. Meu foco agora era a minha filha e o meu trabalho. Sentia a responsabilidade e o peso de cuidar de tudo. E, infelizmente, Ricardo foi ficando cada vez mais em segundo plano, admito. Às vezes, sentada sozinha na minha sala, pensava: “será que realmente existem relações verdadeiras?”. Eu não conseguia lidar muito bem com os homens, mesmo os funcionários da fábrica. Sentia certo frio na barriga ao dar ordens, principalmente para homens mais velhos. Aquele vazio foi aumentando, eu me sentia cada vez mais sobrecarregada, sozinha. Até que um dia descobri que o Ricardo estava me traindo com uma das funcionárias, no setor em que ele trabalhava, na minha própria fábrica. Foi a gota d’água. Com sete anos de casamento, nos divorciamos. 7 Eu ainda era jovem, estava com meus 29 anos, então comecei a sair com as amigas para me distrair. Sentia-me viva, saí com alguns caras, mas nunca consegui estabelecer uma conexão verdadeira e, em pouco tempo, estava solteira novamente. Minha filha era o meu porto seguro. Na empresa, as coisas começaram a desandar, eu não conseguia mais dar o foco de antes. Até que comecei a fazer terapia. Junto à terapeuta, fui buscando resgatar todas as memórias da minha vida, inclusive aquele caso do padre na minha infância, do qual eu, hoje, aos 32 anos, nem me lembrava mais. À noite, passei a ser atormentada por minhas memórias. Meu pai havia falecido há cinco anos, e, depois que me mudei para a capital, poucas vezes pude ir vê-lo. Nunca pude deixar de pensar: “Como meu pai foi covarde!”. Foi terrível para mim, eu o amava muito, mas sentia por ele um desgosto tremendo. Até que fui orientada a conversar com a minha mãe sobre isso. E assim eu fiz, viajei para a minha cidade natal, fiquei sozinha com a minha mãe e, quando estávamos tomando café com pão de queijo, perguntei. “Mãe, você lembra quando eu fui entregar os doces sozinha lá na casa paroquial?”. Ela me disse: “Sim, minha filha. Mas por que você quer mexer com o passado agora? Isso foi há muito tempo”. “Eu sei, mãe, mas não posso deixar de pensar em como o papai foi omisso. Ele devia ter feito algo”. Então, ela me disse: “Filha, eu menti. Na verdade, nunca disse nada para o seu pai”. Meu mundo caiu. “Como você pôde fazer isso, mãe?”. Ela completou: “Minha filha, me perdoe. Mas eram outros tempos, o padre era muito respeitado na cidade, poderíamos ser julgados da forma errada. Além do mais, seu pai tirava grande parte do sustento da nossa família trabalhando para a igreja e, como conhecia o jeito dele, resolvi não incomodá-lo”. 8 O que eu fiz! Infelizmente, julguei mal o meu pai por todo esse tempo e agora já não posso mais pedir desculpas pelos anos de afastamento. No entanto, eu senti que estava no caminho certo. “Pai, onde o senhor estiver, reconheço que cometi um erro. Mãe, eu te perdoo”. O que ela podia fazer como uma simples doceira de cidade pequena? Eu sei que a minha mãe buscou proteger a família. Hoje, continuo, dia após dia, a minha caminhada. Às vezes, errando feio, às vezes, sentindo-me abençoada, sempre na esperança de poder me tornar um ser humano cada vez melhor. Essa é a minha história, e meu nome é Beatriz. 9 RECORDAÇÕES Que satisfação poder falar mais uma vez com você, caro leitor. Meu nome é Guilherme Tavares, sou analista de sistemas computacionais, administrador de empresas e psicanalista. Esses conhecimentos, ao longo dos anos, me possibilitaram não só escrever este livro, que é o meu segundo — o primeiro, A ciência do medo, foi lançado em 2019 —, como também criar o método de reprogramação pessoal chamado Harmonização Mental. Antes de prosseguirmos, gostaria de começar falando um pouco sobre o que estuda a psicanálise, fundada por Sigmund Freud, um neurologista austríaco, em 1899. Um dos principais desafios da psicanálise é explicar o funcionamento da mente humana através de uma investigação analítica da psique, palavra que vem do grego e significa “respiração”, mas que Freud utilizou para descrever a relação entre os desejos ocultos das pessoas e a forma como esses desejos afetam os comportamentos humanos ao longo da vida. A psicanálise é uma ciência que busca compreender as motivações implícitas do indivíduo, ou seja, aquelas que não estão claras para ele, mas que influenciam diretamente no modo como ele age. O objetivo dessa ciência é conceder um novo significado àquilo que causa desconforto à pessoa ou que possa estar lhe impedindo o crescimento, pessoal ou profissional. Como diria Freud, a psicanálise não é uma investigação científica imparcial, é uma medida terapêutica. A essência dela não é provar nada, mas, sim, simplesmente alterar alguma coisa. Vejamos a história de Beatriz. No inconsciente, ela passou a ter a concepção de que os homens poderiam ser indignos, como o padre, ou poderiam, em algum momento, desampará-la, como o pai. 10 O reflexo disso fez com que ela, sem se dar conta, passasse a intuir que todos os homens, especialmente os mais velhos, eram pouco confiáveis. Algo que prejudicou os relacionamentos pessoais e profissionais que Beatriz desenvolveu ao longo da vida, fazendo com que ela questionasse as próprias atitudes. Isso ocorria quando ela questionava a si mesma sobre a possibilidade de as conexões entre as pessoas serem reais. Quando criança, o nosso cérebro não está completamente formado, e o medo daquilo que ainda não vivenciamos, ou seja, não conhecemos, cria traumas em nós. Esses traumas, ou feridas, são gravados em nossa mente com uma intensidade que irá variar de acordo com a carga emocional envolvida no momento em que a situação aconteceu. A nossa mente, então, junta este grupo de percepções: “Quais pessoas estavam envolvidas?”, “Em qual ambiente eu estava?”, “Quais sentidos foram ativados?”, “Qual foi a carga emocional do momento?”. A partir disso, a mente cria um contexto simbólico e une esse conjunto de sensações (sentimentos e emoções), em busca de dar um significado ao que vivenciamos. Para Beatriz, a carga dessa história fez com que ela passasse a acreditar que nunca poderia se entregar verdadeiramente a uma relação amorosa, pois jamais deveria confiar emhomens. Quando uma simbologia boa, prazerosa, é criada, a mente desejará repeti-la. No entanto, se a simbologia é ruim, a mente buscará dar uma vazão à angústia gerada, ou seja, colocar para fora, limpar, expurgar. 11 O problema ocorre quando isso não acontece, a sensação fica reprimida, e você faz o que a psicanálise chama de introjeção, que é o ato de absorver, engolir aquela angústia. A sua mente, buscando amenizar esse sofrimento, cria um enredo, uma história, para justificar o ocorrido, e isso afeta diretamente os seus comportamentos. Lembre-se de uma coisa: a mente sempre trabalha a seu favor, por um desejo consciente ou não. O nosso cérebro busca eficiência e economia de energia. Então, sempre irá repetir os padrões simbólicos criados por nós quando acontecer algo que ele julgar similar ao ocorrido anteriormente. Por isso, falamos que 95% das nossas ações são obras do inconsciente, porque foram automatizadas pelo nosso cérebro, evitando, assim, um novo processamento mental para cada evento do dia a dia. A utilização da parte racional do cérebro humano, chamada neocórtex, demanda um gasto energético muito maior. Sendo assim, para o nosso cérebro, pensar, só quando for estritamente necessário. Em razão disso, a psicanálise fala que, em nosso cotidiano, grande parte das ações acontece em modo de repetição. Existe, de certa forma, uma compulsão cerebral em fazer isso, repetir. Essas ações comandam a nossa vida. Voltando à Beatriz, a mesma simbologia que a fez ter problemas de relacionamento fez com que ela criasse uma atitude mais proativa em busca da independência. Uma conclusão lógica da mente, “se eu não posso confiar no outro, preciso buscar a sobrevivência por minhas próprias mãos”, algo que ela programou no cérebro aos 8 anos e continua a fazer até os dias de hoje. A todo instante, nós também avaliamos a situação na qual nos encontramos. Se ela nos remete a uma simbologia de prazer, ok, continuamos, mas, se ela nos remete a uma simbologia de angústia, ativamos o nosso modo de defesa. Descrita nos estudos da psicologia como mecanismos de defesa ou de ajustamento, essa proteção da mente reflete as nossas atitudes de negação, formação reativa, projeção, identificação, racionalização, introjeção, isolamento, anulação, transferência emocional, idealização, 12 conversão, regressão e sublimação. Esses são assuntos que eu abordo de forma mais detalhada no meu livro A ciência do medo. No caso de Beatriz, mesmo sem a conhecer, podemos identificar possíveis defesas egoicas que ela carrega. Coisas de que gosta ou não. Café com pão de queijo, doces, cheiro de café e cozinhar são lembranças boas que carrega consigo. Da mesma forma, podemos acreditar que Beatriz detesta o cheiro da naftalina, que a casa dela não tem móveis antigos de madeira, que provavelmente ela não vai à igreja e que a primeira impressão que tem sobre homens mais velhos talvez não seja boa. Outro ponto importante é que o segredo de Beatriz precisou ser guardado, e isso é uma das causas mais frequentes de doenças psicossomáticas. As doenças psicossomáticas têm origem no estresse causado por acúmulo de problemas emocionais e estão diretamente ligadas à saúde mental e física da pessoa. Quando um sofrimento psicológico não é trabalhado, de alguma forma, ele acaba causando ou agravando uma doença física. É como se o inconsciente, que trabalha sempre a nosso favor, tentasse agilizar o processo de morte do indivíduo. Para o inconsciente, se o ser está em sofrimento, a melhor opção é acabar com a vida. Como essa não é uma atitude racional, quando uma carga de estresse se transforma em uma doença, a pessoa acaba levando um grande susto. Em resumo, todo segredo pode causar um adoecimento. Adoecemos porque não nos damos conta de que a angústia tem prazo de 13 validade. Ela pode ficar escondida por anos, mas terá o cheiro ruim de um queijo apodrecendo dentro da geladeira. Você já abriu a porta da geladeira e sentiu aquele cheiro ruim, que não sabe de onde veio? É algo nesse sentido que acontece com as nossas angústias reprimidas. Às vezes, o cheiro é fraco, você sabe que tem algo ruim ali, mas não o incomoda, no entanto, em certos casos, o cheiro é forte, e abrir a geladeira sem antes fazer uma limpeza fica cada vez mais difícil. O resultado desse processo de limpeza é o equilíbrio. Para existir, o ser humano possui três pilares de sustentação: em primeiro lugar, a saúde física e mental, seguida pela percepção de prosperidade e, por último, os relacionamentos afetivos. Se estiverem em equilíbrio, esses três pilares indicam que a pessoa está funcional, ou seja, está com a estrutura livre o suficiente para que ele tenha uma vida equilibrada. No entanto, se há desequilíbrio em alguma das bases, a essência da pessoa passa a ficar tensionada, causando desconforto. Durante a vida, é normal passarmos por várias situações que geram desconforto, que nos deixam frustrados, mas somente no início da infância, época em que somos mais emocionais que racionais, é que a mente trabalha bem com os mecanismos de defesa. No entanto, à medida que crescemos, começamos a lidar com a vida em sociedade, e isso acaba sendo muito estressante. A mente trabalha para que nós não desanimemos, sendo assim, às vezes, passa a disfarçar a realidade dos fatos, buscando criar uma narrativa a nosso favor. Estratégia que, convenhamos, é muito boa. 14 Dentro dessa estratégia do cérebro de criar narrativas a favor do indivíduo, podemos entender que, no caso de Beatriz, um impacto resultante seria ela considerar mais “fácil” dizer que não vai à igreja — representação de uma simbologia ruim para ela — porque não gosta de religião que assumir que não vai porque, no passado, foi molestada por um padre. Outra coisa também poderia acontecer, caso ela identificasse que não era tão boa doceira como a mãe. Se ela percebesse, na infância, que cozinhar não traz reconhecimento, muito provavelmente teria empreendido em algo completamente diferente. A verdade é que essas narrativas criadas pela mente influenciam diretamente todos os aspectos da nossa vida, principalmente os relacionamentos, não só com os outros, mas também com nós mesmos. Mascarar a realidade, camuflando-a com as percepções só daquilo que nos convém, sempre criará efeitos colaterais. A nossa verdade nem sempre é absoluta, e o reconhecimento disso é um grande passo para o início do processo de Harmonização Mental. A realidade é que todo procedimento de reconstrução, seja físico, seja mental, é inevitavelmente doloroso. Claro que cada um irá sentir essa dor de uma maneira, mas sempre o indivíduo acaba traumatizado de um jeito ou de outro. Os problemas começam a aparecer porque, à medida que ficamos mais velhos, começamos a aprender mais sobre o mundo e, então, percebemos que certas estratégias passam a não funcionar tão bem quanto antes. Assumir que aquela narrativa criada por você, que é a sua verdade absoluta, pode não ser tão verdadeira assim é um processo que dificilmente a pessoa aceita sem já estar extremamente desgastada. O seu cérebro e a sua mente tentaram esconder essa angústia bem lá no fundo da “geladeira”, no entanto, às vezes, você abre a porta, e o personagem, criado por você, começa a se incomodar, a compreender que há algo errado em você, por ter feito tantas escolhas ruins, e que não dá para ficar culpando o outro sempre. A sua mente não queria isso, ela fez todo o possível para criar uma narrativa perfeita, no entanto há aspectos da vida que não conseguimos controlar e que trazem luz à nossa consciência. Quando isso acontece, 15 as nossas defesas começam a falhar e acabam expondo um pouco daquele ser irracional que lutamos tanto para esconder. É para isso que a psicanálise existe, para poder auxiliar as pessoas na ressignificação de suas memórias traumáticas. Fazendo essa limpeza na “geladeira”. Talvez,certos cheiros ruins continuem, mas o processo de diagnóstico, de entendimento do porquê de escolhas repetitivas tão ruins, já traz um grande alívio para toda essa pressão sentida pela alma. Vamos continuar analisando a história da Beatriz no decorrer deste livro. Espero que, nesta leitura, você possa ter diversas associações com as suas histórias, afinal recordar é viver! 16 ANSIEDADE Dentro do nosso cérebro, existe um local que a mente utiliza para armazenar todas as nossas simbologias, programando, assim, os nossos padrões comportamentais. Entenda a simbologia como um atalho para esse conjunto de sensações ao qual a mente recorre quando fazemos qualquer coisa. Isso acontece o tempo todo, em cada ação que tomamos no dia a dia. É assim que os nossos padrões de comportamento são criados. Esse verdadeiro armazém de sensações faz com que o inconsciente esteja conectado a uma parte mais primitiva do nosso cérebro, a uma porção mais irracional, o sistema límbico, o nosso “cérebro mamífero”. Entre a emoção sentida e a conexão racional com o neocórtex, existe um pequeno atraso de 0.007 m/s no processamento. Sabe quando levamos um susto? Existe a reação instintiva de defesa, depois um processamento emocional e finalmente uma conclusão racional. É importante lembrar que, antes de sermos humanos e, portanto, considerados seres racionais, somos mamíferos. Como tal, compartilhamos grande parte da mesma estrutura cerebral dos demais animais deste grupo. Sendo assim, em todos nós, no profundo da mente, o principal impulso da vida é o da autopreservação. A vida, essa energia da qual somos feitos e que pulsa em nós a cada respiração, tem um objetivo, o de não se esgotar, ou seja, de não morrer. 17 Para isso, a vida utiliza nossos instintos básicos, os quais, por sua vez, seguem duas regrinhas simples. Em primeiro lugar, a obtenção de energia, que, em nosso caso, vem na forma do alimento que ingerimos. Em segundo lugar, a reprodução. Como seres biológicos, todos temos “prazo de validade”, então, a única forma de darmos continuidade à espécie é nos reproduzirmos. Naturalmente, todo ser vivo busca realizar esse processo da forma mais eficiente possível, quer dizer, gastando o mínimo de energia. Sendo assim, instintivamente, buscamos nos alimentar enquanto aguardamos a preparação do corpo para a reprodução, em ambiente limpo, ameno, confortável e protegido. Para ter sucesso nessa empreitada, motivação é fundamental. Afinal, para ter o desejo de viver, é preciso ter vontade para continuar buscando energia. O nosso cérebro, então, trabalha com processos de compensações. Se uma sensação lhe trouxe prazer, ela é boa! Repita-a. Se a sensação lhe causou desconforto, evite-a. A vida basicamente pulsa em busca do prazer, e isso nos motiva a viver um universo de sensações boas. Mas existe um inconveniente em ser da espécie humana, um desafio na verdade: o nosso cérebro precisa conciliar o desejo instintivo de satisfação imediata com o alto nível de inteligência evolutiva que adquirimos. Desenvolvemos uma capacidade única, que é a percepção consciente de tempo, o conhecimento da existência do futuro. Isso nos diferencia de qualquer outro animal e possibilita que tenhamos um planejamento premeditado de nossos atos. Essa capacidade, até então inexistente no reino animal, surgiu com a evolução do nosso cérebro, com o aumento de tamanho do neocórtex. Os animais irracionais vivem o aqui e o agora, eles armazenam as sensações como nós, no entanto não se preocupam com nada além do determinado pelo instinto. São diferentes dos seres racionais, que precisam lidar com o fato da morte, com a ideia de que o fim inevitavelmente chegará um dia. 18 Para entender melhor esse processo, Freud separou a psique humana em três camadas, o inconsciente, que comanda cerca de 95% de nossas ações; uma camada intermediária, o pré-consciente, que é uma parte da mente que conseguimos acessar, porém precisamos “gastar” um pouco mais de energia para utilizá-la. É como a agenda do seu celular, se precisar buscar informações sobre alguém, você sabe onde encontrá- las, mas necessitará de um pequeno esforço de pesquisa. E, finalmente, o consciente, que nada mais é que essa energia vital que tem conhecimento da própria existência. A consciência nos possibilita pensar e planejar. Além das camadas da psique, Freud também identificou uma estrutura na mente, como se existissem três “eus” (vontades) compondo 19 um ser humano, todas em busca de realizar os próprios desejos. Se essa convivência está harmônica, há equilíbrio entre a vontade de viver (pulsões) e os conflitos (traumas). O primeiro “eu”, ele chamou de ID, que vem da identificação dessa força vital em nós. O ID é a nossa vontade instintiva, em busca da satisfação imediata, o nosso animal interior. O segundo “eu” é o Superego. Ele é o filtro ético e moral que pondera sobre as nossas regras mentais, indicando o que culturalmente é aceito ou não. Afinal, o ID precisa ser controlado, pois a vida em sociedade demanda certo grau de regras e costumes: morais e éticos. E, finalmente, o terceiro “eu”, talvez o mais famoso, o Ego, que tenta arquitetar um modo de intermediar as vontades do ID com o filtro cultural imposto pelo Superego. Voltando à história de Beatriz, a percepção instintiva dela poderia estar correta, e o padre, ao se enxergar naquela situação com a Beatriz criança, ativou em si uma “simbologia” que fez despertar o animal interior que havia nele. Talvez o ID do padre gritava pelo desejo sexual de tê-la para si como mulher. O ID quer ter o próprio desejo, como o impulso do desejo sexual, atendido naquele instante, independentemente da vontade de terceiros. A liberação da energia do ID, chamamos de libido. O Superego bloqueia o impulso, pois o ato sexual não é permitido socialmente sem que haja o consentimento do outro. O Ego, então, cria “válvulas de escape” para essa frustração, buscando modos de extravasar o desejo, visando atender o ID, mas sem quebrar as regras do Superego. 20 Em certos momentos, talvez pequenas doses de desejos transformados em ações aceitas socialmente sejam suficientes, e o ID se conforma. O padre, no caso em análise, somente sorriu e tocou no ombro da menina, ativando, assim, tanto nele quanto nela, uma simbologia que pode ser interpretada de forma positiva ou negativa por parte de cada um deles. Quando o padre recebeu Beatriz em casa com um sorriso, ela reconheceu nele uma autoridade. Como homem respeitado, mais velho, ela se sentiu segura para entrar, uma vez que relacionou essa simbologia com a do seu pai, carinhoso e receptivo. No entanto, essa simbologia foi duramente golpeada quando, na percepção dela, algo pareceu moralmente errado. O Superego e o ID de Beatriz entraram em conflito, e a única maneira que o Ego encontrou para resolver a situação naquele momento foi “gritar”: “corra!”. Muito provavelmente, até os dias de hoje, Beatriz não se sente confortável ao estar em uma sala fechada com um homem mais velho. No entanto, ela pode não lembrar mais o motivo disso. Como empresária, ela precisa estar em reuniões com muitos homens. Hoje ela é uma mulher forte, mas pode ter dificuldade para fechar acordos comerciais por não estar à vontade para falar em um ambiente que remeta a eventos do passado. Assim, de simbologia em simbologia, na busca de apaziguar o ID e confortar o Superego, nós traçamos toda a convivência com os outros e com nós mesmos, determinando as ações que tomamos em nossa vida. E você, o que pensa disso tudo? Como será o desenrolar desta história? O padre molestou Beatriz ou não? De quem á culpa? Da mãe, que não contou nada para o pai? Do padre, que se aproveitou da situação? E Ricardo, o marido de Beatriz, foi um grande traidor? Acompanhe nas páginas do próximo capítulo! 21 FOBIA Um grande sábio disse uma vez: “conheça averdade, e ela vos libertará”1. Mas como eu sei o que é verdade? Não teria a verdade várias faces? A verdade é que sempre vou elaborar só o que for mais conveniente para mim, bem como também escutar só o que se encaixa no meu padrão de crenças. Sendo assim, tomo a minha verdade como absoluta. Esse é um problema dos nossos sistemas sociais, culturais e religiosos. As bases fundamentais dificilmente são questionadas. Se sempre foram assim, é porque funcionam e não devem ser alteradas. No entanto, foram criadas por quem? Por homens carregados de traumas e desejos instintivos. A verdade deve ser buscada, mas com a mente aberta, de forma imparcial e livre de preconceitos. Isso irá acontecer, querendo você ou não, pois faz parte da evolução natural de cada um de nós. Não há como impedir que o conhecimento, a experiência e a maturidade cheguem até você um dia. A questão é que, se você tem um Superego muito rígido, embasado em um monte de crenças limitantes, o trabalho do Ego ficará cada vez mais difícil. A cada nova descoberta, os argumentos mentais criados por você passarão a ser questionados e não serão mais satisfatórios para o ID. Por isso, na busca da sua verdade, você deve também saber reconhecer que o Superego pode ter falhado algumas vezes e que as regras que você vem seguindo podem não ser mais aplicadas a sua vida. Conceitos que funcionavam quando você era criança hoje não funcionam mais. Da mesma forma que conceitos sociais enraizados por décadas podem ruir em pouco tempo. Se você não estiver mentalmente aberto para entender o que está acontecendo de verdade, poderá ser manipulado em algum momento. 1 Passagem bíblica em que Jesus fala aos judeus que o seguiam. Livro de João, capítulo 8, versículo 32. 22 Nem tudo em que você acredita é verdade, nem tudo que você ouviu é real, essas ideologias vêm carregadas de simbologias que você desconhece, pertencentes a outras pessoas. É importante ressaltar que o seu pulsar vital precisa de você motivado e feliz. Para garantir isso, no decorrer da vida, a sua mente subjugou algumas emoções e sensações, o que levou você a algumas escolhas erradas, a conflitos internos e externos, situações que esgotam a sua energia e tiram o foco do que realmente importa, a sua felicidade. O mais louco é que cabe à mente ter consciência das próprias falhas e buscar uma reprogramação para solucioná-las. Na psicanálise, utilizamos um processo chamado associações livres, que consiste em uma abordagem sem filtros, no qual você tem a liberdade de expor os seus pensamentos e angústias, sem restrições ou julgamentos. No caso de Beatriz, a mãe a proibiu de falar do ocorrido, fazendo com que ela “engolisse” a sensação de desamparo que sentiu por parte do pai. Para corrigir isso, é preciso realizar a liberação das memórias traumáticas, expondo as emoções reprimidas. Isso acontece quando contamos a alguém os nossos segredos, aquelas memórias que nos visitam toda vez em que abrimos a “geladeira”. Entretanto, em alguns casos, a simbologia está tão bem-camuflada em nossa mente que o evento origem do trauma fica difícil de ser acessado. Então, as associações livres buscam burlar essa proteção da mente e fazer com que a pessoa consiga relembrar os eventos até ali esquecidos, sem a necessidade de procedimentos como a hipnose. 23 Isso representou um grande avanço no acompanhamento dos casos de traumas mentais sofridos por nós, porque, ao fazermos as associações livres, descobrimos uma trilha que leva a lembranças cada vez mais profundas. Com o caminhar investigativo, acabamos encontrando lembranças ocultas pela mente e conseguimos dar novo significado às sensações que vivemos. Geramos, assim, pequenos processos de ressignificação. Ao expor os seus pensamentos e sentimentos, você revive as sensações. Com isso, uma nova camada de racionalidade é adicionada às memórias antigas, pois o seu inconsciente é atemporal. Quando você abala as estruturas das suas simbologias, torna possível fazer uma “faxina” na mente, o que permite que você coloque para fora, sensações que foram reprimidas e que geraram frustração. A nova simbologia vem reescrita de forma mais elaborada, deixando o ID mais confortável e reduzindo o conflito interno entre o ID, o Superego e o Ego. Como resultado, as suas escolhas passam a ser mais conscientes, isso não evita que você erre, mas o deixa capaz de diagnosticar a origem dos erros. Saber o diagnóstico já é um grande passo para o seu crescimento pessoal. Essa é a grande contribuição da psicanálise para a melhoria da qualidade de vida do ser humano. A possibilidade de liberação dessa carga emocional, às vezes, contida por anos. Freud deu o nome de “catarse” a esse processo, que nada mais é que a limpeza e a purificação da mente. Então, o importante não é saber quem está com a razão, e sim entender que, se você não estiver aberto para a realização de uma revisão nos seus sistemas de crenças, ficará preso em um jogo mental que só fará mal a você mesmo. Beatriz viveu presa, durante sete anos, ao casamento com Ricardo, uma pessoa que tinha qualidades que ela não admirava. Ela o enxergava mais pacato, romântico e sem ambição. Talvez essa tenha sido uma avaliação errada por parte dela ou talvez fosse somente o medo dela de se entregar. 24 O importante é analisar que, se você não está bem, a mente criará “válvulas de escape” para dispersar a energia vital do ID, a libido, seja no trabalho, seja com os filhos, seja na academia. No caso de Beatriz, ela o fazia com a empresa, trabalhando até tarde, chegando em casa cansada e evitando, assim, momentos ociosos que poderiam trazer à tona realidades duras de lidar. Ricardo não passou pelos mesmos traumas que Beatriz, sendo assim, não ativou esse senso de desconfiança com os demais. Confiando nos outros, ele sempre contava que tudo ia dar certo, que sempre alguém estaria ali para ajudar, fato que causava nela desconforto e esfriava a relação dos dois. A desconfiança vinha da própria Beatriz, o contexto de vida de Ricardo era diferente, mas, por medo, ela ficou anos presa a algo que a incomodava, até que o Ego encontrou uma “válvula de escape”, a filha do casal. A energia vital do ID pulsa em nós todos os dias. Essa libido precisa ser extravasada, e o Ego, sempre a nosso favor, buscará um meio de fazer isso acontecer. Ao deslocar todo o amor para a filha, em busca da sensação de ser reconhecida como necessária, Beatriz acabou negligenciando a relação que mantinha com Ricardo. Mas, cá entre nós, o que é o amor? Ou, pelo menos, o que a sociedade considera como amor? Não fique curioso, no próximo capítulo, tem mais sobre esse assunto. 25 RICARDO Sabe aquela história do amor impossível? Bem-vindo à minha história, o meu nome é Ricardo, e eu me apaixonei perdidamente por uma estudante de Administração. Nasci em uma família bem tradicional, hoje moro na capital paulista, mas os meus pais são do interior de São Paulo. Somos uma família muito unida. Lembro-me que todos os anos fazíamos uma grande festa no Natal. A casa da minha avó estava sempre cheia de gente. Cada um ajudava com o que podia. Quantas recordações das risadas soltas pelo ar… O meu desejo era construir uma família como a dos meus pais, grande, com muitos filhos, e ter uma casa aberta, sempre pronta para receber os amigos. Comecei a estudar Engenharia, como meu pai, mas confesso que a grande influenciadora foi a minha mãe. O meu pai trabalhava em uma construtora, ganhava muito bem, nos levava sempre para viajar. Enxergar o olhar de admiração da minha mãe toda vez que ele chegava em casa fazia com que eu pensasse: “quero essa vida para mim”. Quando entrei para a faculdade, sentia o orgulho pular dos olhos dela. “Que felicidade!”, dizia a minha mãe. Ela chorou, fez um jantar comemorativo, convidou a parentada toda. O meu pai também gostou, falou que, em breve, conseguiriame indicar como estagiário na empresa. Até que, em um belo dia, andando pelo campus, vi uma menina correndo com um cesto de brigadeiros na mão. “Como ela é linda!”, pensei. Estava toda agitada, porque tinha perdido o tempo de intervalo e chegaria atrasada à sala de aula. 26 No dia seguinte, comecei a comprar os brigadeiros dessa moça, mesmo não sendo muito fã de chocolate. O objetivo não era comer os doces, era conseguir conhecer mais sobre ela. Conversa vai, conversa vem, descobri que tinha vindo recentemente do interior e, claro, me ofereci para mostrar a cidade. Ela relutou por algumas vezes, até que acabou aceitando. Foi o maior ato de coragem que eu já fiz. Começamos a sair, a namorar. Nunca pude mensurar o quanto estava apaixonado. Não conseguia me focar em mais nada. Com o tempo, comecei a ajudar na produção dos brigadeiros. Ficava mais na casa dela que na minha, então decidimos que me mudar para lá seria a melhor opção. Quanto mais próximo pudesse ficar de Beatriz, melhor. Os anos foram se passando, ela acabou se formando em Administração, e eu decidi largar a Engenharia. Nós nos dedicamos de corpo e alma à expansão da pequena indústria de doces da família dela. Beatriz era mais racional que eu. Às vezes, eu a sentia fria e distante, mas não me importava. A sensação de estar ao lado dela suprimia qualquer falta de afeto. Eu precisava dela para mim! Havia dias em que me sentia inseguro, não conseguia entender se a estava sufocando, se estava tudo bem, no caminho certo. Então, senti 27 um forte impulso de ser pai. Passava dias imaginando como seria maravilhoso um filho nosso. Ela relutou um pouco no início, como de costume, até que um dia o mais extraordinário presente da minha vida chegou: a nossa filha, Mariana. No começo, foi tudo perfeito, até eu perceber que a minha ideia acabou resultando em um grande problema para a nossa relação. Eu procurava Beatriz à noite, mas ela estava sempre cansada, sobrecarregada com o trabalho e com a atenção à nossa filha. Se antes já não havia um relacionamento tão carinhoso, como eram os dos meus pais, na parte sexual, o negócio literalmente desabou. O foco de Beatriz foi tornar-se mãe em tempo integral, empresária nas horas vagas, e eu acabava como coadjuvante. Acabei perdido entre a tristeza de viver em segundo plano e o amor que tinha pelas duas. Eu e Beatriz começamos a discutir com mais frequência. Nesses momentos, ela aproveitava para jogar na minha cara “toda essa falta de atitude”, que passou a virar o mantra dela. Falta de atitude? Eu sempre estive ao lado dela, sempre apoiei as decisões que tomava, sempre a coloquei no mais alto patamar. Na visão de Beatriz, a empresa só chegou aonde chegou pelo pulso firme dela, que esse era o jeito dela e que eu já deveria saber disso. Eu sabia, ela tinha um gênio forte, mas achava injusto não reconhecer que eu também estava ali, trabalhando todos os dias no chão da fábrica. Trabalhava na Gerência de Matérias-primas e controlava a qualidade dos doces. Sempre tive o carinho e a admiração dos funcionários, dentre eles, Valéria, uma estagiária de Engenharia Alimentícia. 28 Ficávamos horas debatendo sobre diversos assuntos. No início, eram coisas mais relacionadas à fábrica, no entanto assuntos mais pessoais sempre vinham à tona. Num belo dia, percebi que havia começado a reparar Valéria com um olhar diferente. Trabalhar todos os dias passou a ser um grande prazer para mim. O meu humor mudou, a minha disposição mudou, até as brigas com a Beatriz deram um tempo. Não foi nada planejado, quando vi, havia me apaixonado por Valéria. Fiquei muito confuso, eu amava Beatriz e, ao mesmo tempo, não conseguia parar de pensar no olhar de Valéria, principalmente quando eu falava de minhas experiências profissionais. Então, uma força que não consegui controlar me levou à atitude da qual eu mais me envergonho, a traição. A destruição de tudo que era puro para mim, a família. Não gosto de falar muito sobre os detalhes dessa história, mas, para resumir, fomos descobertos por Beatriz em um descuido, dentro da própria empresa. Eu me afastei de Valéria, mas o estrago já havia sido feito. Não houve reconciliação com Beatriz. Aquele cristal se quebrou, e sei que nunca mais voltaria a ser o mesmo. Ela ficou furiosa, falou que não confiava mais em mim, que todo homem era igual. Precisei vender a minha parte na empresa e retornei para a casa dos meus pais. Como minha mãe está doente, hoje eu ajudo a cuidar dela. Em alguns dias, me pego pensando no passado: “será que deveria ter continuado na Engenharia? Será que realmente me acomodei com a situação, acreditando na segurança que havíamos estabelecido em nossas vidas?”. Não sei se consigo emprego em outra indústria. O dinheiro da venda da minha parte, ao menos, me deixou um pouco mais seguro. No entanto, hoje tudo é meio sombrio. O que me dá força é Mariana, a minha filha, que faz com que eu não desanime de vez. Aprendi que a vida é um processo de idas e vindas, tenho ciência dos meus erros, carrego a vergonha de ter destruído a minha família, fardo com que eu sei que precisarei lidar. O amor? O amor se tornou algo inexplicável para mim. Hoje não sei mais o que pensar. O amor seria essa dependência emocional que eu ainda tenho de Beatriz? Seria essa sensação de ser 29 admirado que percebi em Valéria por mim? Qual é a origem dessa força tão intensa que quebrou todos os meus conceitos morais e fez com que eu traísse quem eu mais amava? Sinceramente, não sei. __ E agora, leitor? Ricardo é um traidor? Beatriz é culpada? Depende. Na verdade, sempre irá depender de quem gerou mais significação para você. Normalmente, acabamos tendo empatia por um dos lados. Talvez você tenha passado por algo parecido ou vivenciou a situação de alguém muito querido que sofreu de forma similar. Vamos entender um pouco mais sobre a verdade no próximo capítulo, aguardo você lá! 30 TRAIÇÃO Lembra que basicamente seguimos os nossos instintos e mascaramos isso com “verdades” utilizadas para justificar os nossos atos? Bem, das fragilidades que buscamos esconder do mundo, talvez a maior delas seja a solidão. Você pode imaginar o quão traumático foi quando você descobriu que dependia de outro ser para viver? Ao longo da vida, acabamos gerando uma dependência muito grande de afeto. A necessidade de socialização acende em nós um alerta: “preciso ser amado e reconhecido como necessário pelo outro” (mesmo que você não admita isso). Não adianta esconder essa dependência. Nós nascemos dependendo do outro, para sermos alimentados, protegidos, aquecidos, limpos, e acabamos morrendo dependendo do outro também. Assim, desde o início da vida, começamos a nossa corrida pelo amor. Não pelo amor ao próximo, mas pela percepção de sermos amados. Afinal, “se eu não convencer que sou necessário, que precisam de mim, como terei êxito na minha sobrevivência?”. Com isso, toda a sua biologia entra em cena, e você passa a buscar por um laço, uma conexão com qualquer ser que lhe proporcione as sensações de segurança e prazer necessárias à sua automotivação. Afinal, o que é bom deve ser mantido, e qualquer ação minha que resultar em algo que me traga satisfação deverá ser repetida. Contanto que você receba atenção, que se sinta importante, está tudo bem. Sim, o nosso amor é egoísta, ou pelo menos o que chamamos de amor. Ele, de certa forma, resume-se à interdependência entre consciências. Você precisa de mim, e eu preciso de você, e, enquanto essa equação estiver ao meu favor, eu me sentirei reconfortado. 31 Na verdade, você não se preocupa com o outro, não nos relacionamentos pessoais, você o ama condicionalmente. Então, demanda uma condição. Eu amo você enquanto perceber que sou importante para você e enquanto isso me trouxer segurança. Posso também amar a necessidade que gerei a respeito de você (mesmo que eu afirmeo contrário, ou como você acha que podem existir relações abusivas?). A mente humana cria laços tão elaborados que a percepção racional fica praticamente impossível. Há casos em que a criança identifica a relação violenta entre os pais com a forma como ela entende o amor. A mente sente falta do que viveu, independentemente de a simbologia ter sido positiva ou negativa. Isso faz com que, inevitavelmente, o ciclo seja muito difícil de ser rompido. Se eu convivi com pais violentos, há uma grande chance de eu me tornar violento também, porque foi dessa forma que aprendi. Eu poderia também ter uma atitude contrária e acabar buscando alguém que me violente das mais variadas maneiras possíveis. Claro, isso não é uma regra, é uma tendência e acontece porque é a forma como a pessoa se identifica com o amor, algo difícil de compreender e, principalmente, de aceitar. 32 Dói, dá medo perceber que, relação após relação, você escolhe o mesmo tipo de pessoa e que a culpa não está no seu “dedo podre”, na sua má sorte com o outro, mas, sim, no seu desejo inconsciente de repetir a forma de amor que você significou na infância. Afinal, é lá que começamos a aprender, a entender o mundo que nos rodeia. Já imaginou o impacto que isso tem na sua vida? Simbologias podem ser criadas quando adultos, acontece o tempo todo, entretanto, como eu disse, demanda maior processamento mental. Então, só acontece quando necessário. É o que experimentamos quando aprendemos a dirigir. No início, o carro o domina, você precisa analisar cada movimento. Depois, você vai encontrando equilíbrio e, com o tempo, nem lembra mais o que está fazendo, pois fica tudo automatizado no seu cérebro. A simbologia criada para o amor, a dependência, vem da infância. Na verdade, essa deve ser uma das primeiras — se não, a primeira — simbologia criada por nós. O aconchego de ter um corpo colado ao nosso, doando-se a nós, tratando-nos como o mais precioso dos presentes… Convenhamos, isso deve marcar bastante. A maturidade dos anos ajuda a filtrar os impactos das frustrações diárias, coisa que não acontece muito bem na fase infantil. Freud usava a fase infantil para explicar essas repetições de padrões comportamentais na vida adulta, algo que faz total sentido. Na psicanálise, falamos que a mente sente falta do que viveu. Guarde bem isso, você só sente falta do que sabe que existe, independentemente de essa vivência ter sido boa ou má. Podemos dizer que todas as relações que temos com os gêneros feminino e masculino foram criadas na infância, bem cedinho, e que, a partir dessa simbologia, desse modelo, comandamos todos os nossos relacionamentos até hoje. Veja o caso de Ricardo, que se apaixonou por Beatriz porque reconheceu nela algo que o remeteu à referência que ele tinha de amor feminino, a própria mãe. Talvez tenha identificado a mesma mulher forte que ele sempre amou e, desse modo, ocorreu uma conexão pessoal, tão intensa que o fazia comer chocolate — algo de que declaradamente ele não gostava —, a fim de conquistar a atenção de Beatriz. 33 Por outro lado, ela se via solitária em uma grande cidade, sem amigos, insegura. De alguma forma, também passou a ver Ricardo como ponto de apoio, um companheiro. Motivações bem diferentes. Não havia admiração mútua, já que, pelo menos por parte de Beatriz, esse sentimento não existia. O que havia entre os dois, biológica e mentalmente falando, basicamente não passava de pura conveniência. Ricardo buscava o reconhecimento de Beatriz, mas esse reconhecimento nunca viria, porque o conceito que ela tinha dele já havia sido formado. Para Beatriz, ele sempre seria um cara pacato demais (mesmo que não o fosse). Ela já tinha formada a imagem do que Ricardo era para ela. O ID de Beatriz, por outro lado, lutava por liberdade. O Ego trabalhava para que ela demonstrasse, de maneira sútil até mesmo para ela, que Ricardo não se encaixava ali. O Ego de Ricardo, por mais que entendesse os sinais inconscientes de Beatriz, lutava por aprovação. Em um processo constante de reafirmação, ele a colocou como objetivo de vida. Ricardo estabeleceu como meta conquistar verdadeiramente o coração de Beatriz, era como ele encontrava o motivo para se relacionar com ela. As coisas foram assim até que o corpo respondeu a um estímulo instintivo maior e começou a sabotar a mente de Ricardo, ativando os hormônios da paixão e forçando o ID para outra “válvula de escape”. Ricardo estava triste, possivelmente deprimido, e esse conjunto de fatores, incluindo agora o próprio Ego, fez Ricardo ser descoberto com outra mulher por Beatriz, na fábrica. Isso, de certa forma, tirou-o dessa situação entendida pelo Ego como de desconforto. 34 Ao perceber uma conexão simbólica entre Ricardo e Valéria, o Ego encontrou ali um objeto transitório perfeito e necessário para uma mudança da dependência emocional que Ricardo tinha de Beatriz, fazendo-o se apaixonar por Valéria, ao menos por um período. Um objeto transitório é uma artimanha mental. Naquele contexto, foi criada para retirar Ricardo daquela situação, tanto que, depois que o Ego concluiu o objetivo, a paixão dele por Valéria imediatamente acabou. Beatriz tinha a mesma artimanha elaborada a seu lado. Ao focar a libido na criação de Mariana, deu brecha para que pudesse reafirmar a própria “verdade”, de que nenhum homem é digno de confiança, pois qualquer um pode abusar de você ou te abandonar quando mais precisar de apoio, proteção… A eficiência cerebral busca repetir padrões. Quando associamos eventos presentes a outros já registrados no passado, torna-se plausível pensar que você só se relaciona com mulheres e homens da mesma forma com que se relacionava com as suas figuras representativas materna e paterna. Então, pode haver uma atitude mais submissa por parte da pessoa que busca a figura paterna ou a materna nos relacionamentos, porque, na infância, para ela, foi identificado que, agindo assim, receberia mais atenção. Desse modo, continua buscando a mesma recompensa, até hoje, nas relações afetivas. Também pode haver uma identificação mais dominadora, em que, em vez de demonstrar submissão com relação às pessoas à sua volta, o sujeito passa a “imitar” a atitude do amor que o dominava, mantendo bem lá no fundo um desejo de ser dominado. A compreensão desse paradoxo é um dos pilares da psicanálise. As suas figuras materna e paterna irão influenciar toda a sua trajetória de vida, principalmente a relação com o outro. No fundo, você só se relaciona com essas duas figuras, que são as simbologias representativas criadas por você de amor. Quer um exemplo? Se não reconheceu a autoridade paterna como dominante na relação que você percebeu entre os seus pais, dificilmente um homem em uma posição superior lhe trará credibilidade, e você buscará confiar mais em mulheres. É como um bloco de mármore, cada impacto sentido na sua vida desenha ranhuras na sua mente. Essas ranhuras viram caminhos padronizados para cada atitude que você toma no 35 dia a dia. Imagine agora como isso influencia nos seus relacionamentos com companheiros, amigos, nos ambientes de trabalho e até mesmo na escolha da profissão. A busca do reconhecimento, do amor, norteia as nossas escolhas, a sua formação acadêmica, os seus parceiros sexuais, a forma com que você gerencia as suas frustrações, as perdas e as recompensas. Está tudo conectado às simbologias criadas na sua infância, e esse não é o problema, isso é comum a todos nós. O problema é quando a elaboração das simbologias conflita com a formação das crenças pessoais. A sua vida começa a ser impactada quando o seu sistema de crenças ¾ pessoais, filosóficas, religiosas, etc. — entra em atrito com modelos mentais simbólicos, criados por você desde o seu nascimento. Às vezes, a rigidez do Superego é muito grande, e o Ego fica sem opções para poder trabalhar pelo ID. Acabamos dando uma importânciairreal aos fatos que ocorreram no passado. Sendo assim, eles precisam ser ressignificados. Expurgados da mente, traumas reprimidos de qualquer época abrem espaço para novos conceitos, novas emoções e ajudam a reescrever novas simbologias. Qual é a origem das crenças? De onde vêm esses desejos que tomam conta da nossa vida? Para conhecer mais sobre a história de Beatriz, veja, no próximo capítulo, qual é a origem dos nossos desejos. 36 DESEJO E Deus disse: “Faça-se a luz!”2. E a luz foi feita. Quando nascemos, somos frutos de alguém que nos deu à luz. A própria origem do universo remonta ao início da dispersão dessa luz em todas as direções. O que é a luz? A luz é uma onda eletromagnética visível, uma energia, como tudo o que compõe o universo. Somos feitos da mesma energia, que continua o movimento de expansão, evoluindo através do espaço e do tempo. É como Carl Sagan, cientista e astrônomo norte-americano, disse: “Somos uma maneira do universo de conhecer a si mesmo”3. Estamos imersos no universo e somos parte dele. É impossível não filosofar. Qual será, então, o nosso papel nisso tudo, nesse grande movimento energético que é a vida? Acredito que, da mesma forma que os astrônomos vasculham o passado para compreender o presente e o futuro, nós precisamos investigar as nossas origens, para entendermos o porquê de nossas atitudes no agora. Só assim podemos construir um futuro menos prejudicial para nós mesmos. Como foi a educação que os nossos antepassados tiveram, quais dogmas e circunstâncias originaram os possíveis bloqueios e limitações criados por nós? Livrarmo-nos de nossas amarras mentais é o único caminho para que possamos saber aonde ir. Esse é o ponto de partida para a sua jornada de autoconhecimento. Fazer uma autoanálise, compreender que você faz parte de um todo muito maior que você mesmo, isso vai além das crenças religiosas criadas pela sociedade. A questão é física, cada átomo do seu corpo foi forjado por essa energia. Acredite, você é a prova viva da consciência do universo. Ao percorrer o caminho do autoconhecimento, você passará a entender que não existe mágica, mas que, ainda assim, tudo é mágico. A 2 Gênesis, capítulo 1, versículo 3. 3 Fala proferida no “The Shores of the Cosmic Ocean [Episode 1]”, Cosmos: A Personal Voyage, PBS, 28 September 1980. 37 vida é uma obra incontestavelmente bela, tão forte e pulsante e, ao mesmo tempo, tão frágil e divina. Quando penso que somos um fragmento do universo, como uma célula do nosso corpo, que, enquanto vive a própria independência, compõe uma consciência maior, vejo o quanto a vida é extraordinária. A energia nunca acaba, ela se transforma. Não há desperdício na natureza, só a mudança de estados físicos da energia. Uma hora você é uma estrela supermassiva, na outra, trilhões de átomos reunidos, tendo consciência de si mesmo. Graças a essa contínua mudança de estado físico, a nossa capacidade cognitiva chegou a um ponto evolutivo capaz de questionar o universo no qual está inserida. Só então passamos a ponderar sobre o nosso objetivo nisso tudo. Claro que isso é importante, no entanto vale ressaltar aqui a própria conquista da consciência em si. Como foi marcante esse passo de chegar à autoconsciência. Opa! Eu existo! Por quê? O porquê, talvez nunca saibamos, mas a percepção da autoconsciência é um ponto muito relevante, pois isso nos difere dos outros animais. Os animais irracionais estão conectados à natureza de uma maneira diferente, talvez até mais profunda, pois, para eles, não há dúvidas, só existe o momento, e isso já basta. Nós não, nós questionamos. Buscamos formas de justificar o porquê, de medir as possibilidades, para negar ou confirmar que tudo não seja puramente obra do acaso. E acabamos criando um monte de crenças e histórias só para validar algo muitas vezes simples. 38 Talvez você só esteja aqui como parte representativa da energia que o criou, para manter esse eterno movimento de transformação e evolução. Para aprender, principalmente com os seus erros, sem que eles efetivamente indiquem que você está errado. O erro faz parte do aprendizado, faz parte da evolução. Então, não crie tantas histórias para justificar os seus erros, aceite-os como algo natural, inevitável. Compreenda que talvez estejamos perdendo um pouco da conexão com algo maior por gastarmos tempo demais nos punindo por erros que, tecnicamente, não existem. Acabamos desperdiçando a nossa energia vital com algo que é relevante, somente, como ponto de aprendizado e nada mais. Por defendermos as nossas verdades absolutas, nos esquecemos do que realmente importa, a nossa conexão com a energia que nos criou e da qual fazemos parte. Não esqueça que você é energia viva, autoconsciente e interconectada a tudo e a todos. Não interrompa o fluxo dessa energia remoendo coisas do passado, ao invés disso, agradeça. As barreiras foram criadas para possibilitar o seu crescimento. Fazemos parte de algo maior, que extrapola a ordem cerebral com a qual estamos acostumados. Algo que talvez ainda esteja no início dos estudos por parte da ciência, mas que você sente, está dentro de você. 39 Não é preciso nenhuma crença para justificar isso. Você é parte da natureza do universo e, como tal, deve continuar o seu fluxo de transformação. Para melhorar o seu estado de espírito, evite entrar nesse conflito do individualismo e aceite o seu desejo instintivo de crescimento universal. Falo de crescimento universal como crescimento de toda a coletividade da qual você faz parte. Pensar no outro é pensar em você mesmo, porque nós somos um, somos seres sociais. No entanto, o nosso egocentrismo, disfarçado de racionalidade, vive pelo prazer imediato da recompensa, mascarando a nossa verdadeira essência e rompendo a conexão com a nossa origem. Convenhamos, não há como manter a carga energética alta se você anda desconectado, concorda? Lembre: você, como produto da natureza, pode escolher como deseja passar por essa existência. Quanto mais rapidamente você remover os “queijos podres”, causados pelos traumas, de dentro da sua “geladeira” mental, mais rapidamente poderá lidar com as frustrações que pesam tanto a sua alma. Beatriz, por exemplo, passou anos carregando uma relação vazia, que ela buscava preencher com trabalho, depois, com a filha, até o ponto 40 em que perdeu o relacionamento afetivo que mantinha há mais de sete anos. Como nunca se relacionou verdadeiramente, acabou vivendo ao lado de alguém de forma impessoal. E você, lembra que o inconsciente sempre trabalhará ao seu favor? Não adiantou Beatriz esconder, através de autoafirmações, que estava tudo bem. Nas entranhas da mente, o ID precisava extravasar a libido, e o Ego fez isso, utilizando fugas inconscientes, como fazendo-a passar cada vez mais tempo com a filha, quem sabe até dormindo com ela, para evitar dormir com o marido; passar horas extras intermináveis no trabalho, situação que representava para ela mais prazer que aproveitar os momentos com a família. Faz parte dos nossos desejos mais ocultos, o desejo de sentir-se vivo, em movimento. Que tal, então, entendermos um pouco mais sobre a origem dos traumas de Beatriz? Talvez a mãe da nossa protagonista nos forneça mais detalhes, acompanhe a história de Maria Flor no próximo capítulo! 41 MARIA Venho de uma família rural, sem instrução, gente simples mesmo. Gente do campo, que se orgulha das tradições e costumes. A minha mãe, imigrante italiana, era uma católica muito devota à Nossa Senhora. A família chegou ao Brasil fugindo da guerra, passando fome, navegando dias pelo mar até chegar aqui. Minha mãe dizia que nunca mais veria o mar e que trabalharia para nunca mais passar fome. Meus avós imigraram para o interior de Minas Gerais, onde começaram uma pequena lavoura de café. Nasci ali, naquela fazenda. Minha mãe nunca deixoufaltar nada em casa, tomou as rédeas da família. Ela era uma mulher forte. O meu pai era um lavrador, a família dele era de uma cidade próxima. Era um homem pacato, do campo, que trabalhava o dia inteiro. Não tínhamos uma ligação muito forte, mas eu sabia que ele era um bom homem. Com a minha mãe, aprendi a arte de fazer doces, algo que, me orgulho em dizer, é responsável pelo sustento das minhas filhas e netas. Sou Maria das Flores, uma caipira simples, que está sempre disposta a ajudar o próximo, como o Nosso Senhor ensinou. Sou a filha do meio. A minha irmã Tereza e eu sempre ajudávamos em casa, enquanto o meu irmão mais novo, o Pedro, desde cedo, acompanhava o nosso pai na roça de café. Como grande devota de Nossa Senhora, minha mãe sempre nos colocou no caminho do Senhor, então venho tentando cumprir esse papel. Mesmo pecando, busco levar a família para a igreja. Infelizmente, tenho uma filha que ainda não encontrou o caminho do bem, Beatriz. Na igreja, conheci o meu marido, Francisco, um homem honesto, trabalhador, que foi bom companheiro. Ajudou a criar as meninas. Nunca arrumava confusão, trabalhava como carpinteiro e não bebia. Que Deus o tenha em bom lugar. Ele morreu quando as meninas tinham por volta dos 25 anos e já estavam criadas. Foi logo após o nascimento da minha neta Mariana. 42 Sempre fiz a maior parte do serviço de casa, às vezes me sentia sobrecarregada. Mesmo tendo duas filhas, para me ajudarem, era aquele sufoco. Nem sei como Beatriz conseguiu morar sozinha na capital, aquela menina não ajudava em nada. Se não fosse eu, nem sei. Ela sempre foi mais arteira, diferente da Berenice. Berê era mais calminha, ajudava sem reclamar, gostava de ir à igreja. Eu me lembro do dia em que pedi para as meninas me ajudarem na entrega das encomendas de Páscoa. Pedi para Beatriz ir à igreja, mais próximo aqui de casa, enquanto Berenice, que era mais velha, foi para a casa da família Duarte, um pouco mais longe. Acredita que Beatriz, aquela malandrinha, chegou aqui chorando e falando que o padre Plínio havia feito safadeza com ela? Não acreditei no que ela havia inventado! Só não bati em Beatriz naquele dia porque eu estava com muita coisa para resolver. Mas a coloquei de castigo! Onde já se viu falar algo assim? Essa menina não tem juízo. Depois disso, começou a não querer mais fazer as entregas, ficava só na cozinha. Para evitar confusão, acabei falando com Francisco para arrumar um rapaz que pudesse fazer as entregas, engraçado que ele nem me perguntou o porquê, também, graças a Deus, os pedidos estavam muito bons. Dei aquele assunto como encerrado, mas a diabinha veio com o mesmo papo depois da missa. “Mãe, o pai precisa xingar o padre!”, dizia ela. Agora eu pergunto pra você, como? Como eu iria acreditar em uma criança arteira como Beatriz e causar esse alvoroço na cidade? Imagina o falatório que seria com o meu nome: “Dona Maria Flor, a doceira, falou que o padre fez ‘coiso’ com a filha dela”. A menina não ficou nem 2 minutos lá, como pode ser tão mentirosa, isso só pode ser obra do diabo. Além do mais, se eu falasse algo assim com Chico, iria escutar uma bronca, porque tinha deixado a menina andar sozinha por aí, ele poderia querer tirar satisfação com o padre e quem sabe até perder o trabalho. Já imaginou um bafafá desse chegando ao ouvido do santo bispo? Ninguém na cidade compraria mais meus doces, a nossa família ficaria falada. Eu não ia permitir isso, não na minha família. Precisei mentir, falei para ela que o pai estava sabendo de tudo e já tinha resolvido, que ele disse para não tocarmos mais no assunto. 43 Um belo dia, Beatriz, já com a filha no colo, veio me questionar sobre essa história. Falei: “Minha filha, para de revirar o passado, deixa ele quietinho lá, que é lugar dele. Tem vezes que a gente acha coisas que nem são… Vai por mim”. Mas ela insistiu, falando que tinha ficado chateada com o pai, e o coitado nem estava lá mais para se defender. Acabei falando a verdade, que eu não tinha contado nada para ele, e ela ficou brava comigo. Dá pra ver que, mesmo moça velha, ainda não sabe nada da vida. Isso é falta de Deus, é o diabo colocando coisas naquela cabecinha de vento. Falei para ela começar a ir à igreja. Tem uma do lado da casa dela, lá na cidade. Mas não, é abusada. O marido não aguentou, trocou ela por uma moça mais nova. Olha o rumo que essa menina está tomando na vida. Ainda bem que Berê é diferente. Não me dá trabalho, nunca deu! Mora a duas quadras aqui de casa, vai à igreja todo domingo, vem aqui em casa sempre e tem uma família unida. A outra está perdida, separada do marido, na vida mundana e querendo arrumar confusão. Deus sabe a cruz que sempre carreguei por essa família! Mas quer saber? Na graça de Deus, eu sou feliz. Ainda cozinho meus doces e tomo todo dia o meu cafezinho. Paz, não é isso que importa? ___ É, caro leitor, esta trama daria um belo filme, mas a minha praia é a análise, melhor deixar isso pra lá, ou não? Netflix, olhe eu aqui! Agora 44 falando sério, o que dizer da dona Maria Flor? Qual a sua opinião sobre tudo? Ela, uma protetora da família e dos bons costumes, vai saber os segredos que guarda e os bloqueios que criou… Normalmente a vida prega umas peças na gente, às vezes as coisas parecem ciclos intermináveis, concorda? Continuamos o desenrolar desta história nos próximos capítulos, onde iremos analisar como os bloqueios e os segredos que guardamos podem nos prejudicar. Espero você lá! 45 BLOQUEIO Já reparou como a vida é feita de círculos, assim como a Terra girando ao redor do Sol? A nossa vida parece girar sempre em torno de um eixo, como uma espécie de carma, do qual é difícil se desvencilhar. Não há como afirmar isto, mas talvez a própria dona Maria Flor já tenha passado por algo similar ao que foi vivido por Beatriz, para ter ficado tão incomodada com a história da filha, a ponto de colocá-la de castigo. Isso, nunca iremos saber. No entanto, é possível identificar uma forte crença em Maria. Não entrarei em aspectos religiosos, esse não é o intuito. Na minha visão, toda crença é importante e deve ser respeitada, pois ela acaba se tornando uma grande “válvula de escape” para nossas frustrações. Isso não quer dizer que não devemos sempre buscar reavaliar os nossos conceitos. Ficar preso a dogmas morais, religiosos ou culturais impede que você tenha as próprias convicções. Infelizmente, não mudar o jeito de ser é muito conveniente para o indivíduo. Muitos pensam que, se foi predeterminado por alguém ou se sempre foi assim, então não precisam procurar outras possibilidades. Afinal, pensar demanda muita energia vital, e o nosso cérebro vai sempre em busca da eficiência. Nos relatos de Beatriz e de Maria, é importante observar a discrepância nas percepções das duas, entre o que Beatriz acha que é para Maria e o que Maria acha realmente de Beatriz. Beatriz vê a própria figura quando criança como prestativa, que ajudava nas entregas e na feitura dos doces, que não reclamava do tempo livre perdido, para aproveitar mais o tempo com a mãe. Já Maria tem uma visão completamente diferente em relação à da filha. Enxerga Beatriz como uma pessoa difícil de lidar, que não demonstra, desde criança, muito afeto e que possivelmente era mentirosa. Podemos compreender melhor esses julgamentos recorrendo ao conceito desenvolvido pelos pesquisadores Joseph Luft e Harrington Ingham, em 1955, denominado a “Janela de Johari”. Os dois ponderavam sobre a seguinte questão: Será que a percepção que eu tenho de mim é igual à percepção que os outros têm de mim? 46 Joseph e Harrington perceberam que nem sempre a atitude que nós tomamos com um intuito é entendida pelo outro da mesma forma. Imagine um armário, sei que eles chamaram de “janela”, mas avalio que o armário pode ilustrar melhor a situação. Nesse armário, você tem quatro gavetas. Em cadagaveta, há uma particularidade. A primeira gaveta é aberta, não tem trancas. Ali, o que você passa para as pessoas é justamente aquilo com o que elas concordam sobre você. Por exemplo, você se considera pontual, e essa característica também é percebida pelos outros. As pessoas dizem: “O Guilherme é sempre pontual, nunca vi ele se atrasar para uma reunião!”. E eu reafirmo isso a mim mesmo com frases como: “Eu sempre chego no horário! Acho uma falta de respeito chegar atrasado”. Nessa gaveta, encontramos a nossa maior zona de conforto, porque, se a imagem que eu gostaria de passar sobre mim corresponde à imagem que o outro enxerga de mim, fica tudo certo. A segunda gaveta representa tudo o que eu não sei que expresso para as pessoas, mas que as pessoas enxergam sobre mim. Essa é uma gaveta fechada para mim, a chave está com os outros com quem me relaciono no dia a dia. Então, pode ser que eu queira passar uma imagem de honestidade, sendo metódico, mas acabo visto pelos outros como uma pessoa paranoica e chata. Tanto Maria Flor quanto Beatriz tinham uma visão de que Francisco não aceitaria bem o ocorrido e reagiria de alguma forma, no entanto a percepção delas sobre ele pode ser algo que talvez não refletisse a real personalidade do marido e pai. Vai saber. 47 A terceira gaveta é aquela da qual só você tem a chave e onde você guarda seus segredos. É nela que você oculta aquilo que ninguém deve saber e que só você sabe sobre você. Maria sabia que tinha mentido para a filha e para o marido, tanto que guardou isso na “gaveta” por mais de 20 anos. A sensação a incomodava, pois ela não esqueceu o fato e entrou em conflito com a filha quando o assunto veio à tona. O segredo da mentira estava lá, “cheirando mal” na gaveta da geladeira. Maria criou um sistema de proteção muito bom, que lhe permitiu manter o segredo guardado nessa gaveta. Ela usou um processo de reafirmação para se justificar, afirmando a si mesma ter feito a melhor escolha ao não contar o ocorrido para o marido, para continuar protegendo a família. Quando ela finalmente pôde contar a verdade, mesmo sem perceber, acabou deslocando o segredo para a gaveta aberta, atitude que certamente a aproximará um pouco mais daquela paz que ela tanto busca. A quarta e última gaveta está trancada. Nem você nem os outros têm a chave. É onde o inconsciente guarda os eventos que contêm tanta carga emocional para você que não puderam nem ser guardados na gaveta dos segredos. A mente então os prende, escondendo a chave. Percebe o porquê de nem sempre sermos entendidos? Em certos momentos, a imagem que passamos para as pessoas não condiz com a imagem que desejamos passar. Isso não é percebido por nós, mas nos caracteriza no grupo de pessoas com que convivemos. Um conflito pode ocorrer porque existem características minhas desconhecidas para mim, mas que a pessoa ou o grupo enxergam como “coisas minhas”. Isso acontece em todos os ambientes, nos familiares, no trabalho, na escola, etc. Criamos personagens ou padrões de comportamento em busca de demonstrarmos um modelo ideal de nós mesmos, mas que às vezes não reflete quem somos de verdade, e essa falha acaba sendo percebida pelos outros. Da mesma forma, na gaveta dos segredos, existem coisas que eu sei sobre mim, mas que eu não compartilho com ninguém. Segredos que 48 às vezes nos machucam, mas que preferimos esconder, com medo dos julgamentos dos outros. De acordo com a Janela de Johari, é na gaveta trancada para mim e para os outros que ficam guardados os eventos que assombram o inconsciente, que causam incômodos, podendo se refletir no corpo com reações psicossomáticas que a mente consciente não consegue acessar diretamente. Em geral, só nos sentimos totalmente confortáveis com a gaveta aberta, quando o que eu penso que sou é igual ao que o outro pensa que sou, e isso está em sintonia com o que eu penso que o outro pensa que sou. Porém, cá entre nós, quem não tem segredos? Quem nunca passou por situações constrangedoras, que deveriam ser esquecidas? E o padre? Qual a história de vida dele? Está gostando das análises? Você já tem uma opinião sobre o culpado da história? Ela continua. Veja o que o padre Plínio tem a dizer, no próximo capítulo. 49 PLÍNIO Será que Deus realmente existe? Sei que, como padre, essa é uma pergunta absurda, quem sabe até blasfêmia. Lembro, como se fosse ontem, toda a dor e toda a vergonha pelas quais passei. Pensava: “será que Deus existe mesmo? Por que Ele permite que eu sofra tanto?”. Morávamos em São Paulo, eu, minha mãe, Judite, e meu pai, Antenor. Meus pais eram comerciantes, tinham uma loja de tecidos na cidade. O meu pai era muito violento, viciado em jogo. Por causa disso, acabamos perdendo tudo, e ele começou a chegar em casa cada vez mais bêbado. Brigava com a minha mãe, batia muito nela. Até que um dia ela tropeçou com um empurrão que ele deu, bateu a cabeça na quina da cadeira e não resistiu. Eu tinha 8 anos quando isso aconteceu. Morria de medo de morrer como minha mãe, mas não tinha como sair de casa com aquela idade. Se eu contasse para alguém, quem iria acreditar? Fiquei em silêncio, comecei a ler a Bíblia, escondido no quarto, evitando ao máximo qualquer tipo de diálogo com o meu pai. Buscava entender Deus, queria encontrar uma resposta para isso tudo. A revolta morava no meu corpo, eu não a deixava sair. Comigo sozinho em casa, meu pai passou a me violentar. Eram visitas frequentes, eu já não tinha reação. Pensei em me matar algumas vezes, fugir, mas não achava justo isso. Por que comigo? Por que eu não poderia ter uma vida comum, digna? Não sabia mais o que fazer, foi então que encontrei na igreja um refúgio. Aos 12 anos, passei a participar de qualquer atividade disponível na igreja, para sair do inferno em que eu vivia. Assim, quando tive a oportunidade de me tornar seminarista, de sair da cidade, não pensei duas vezes. Apeguei-me à igreja, me recolhi aos estudos e às orações. Aquele foi o lugar onde encontrei a paz que nunca tinha experimentado na vida. Finalmente tinha material suficiente para encontrar a minha resposta à pergunta “Deus existe?”. 50 Foram anos de trabalho, missas, aconselhamentos, casamentos, anos de dedicação e doação à comunidade, na ajuda aos mais necessitados. Porém, nem todo esse tempo foi suficiente para eu encontrar, com clareza, resposta à minha pergunta de criança. Talvez, tenha me tornado tão pecador, tão sujo e indigno, que Deus tenha decidido não falar comigo. Será que nem todos esses anos foram suficientes para lavar a minha alma? Porque ainda acordo atormentado com as lembranças do passado. Como se aquele garoto de 8 anos ainda estivesse escondido dentro de mim. Achei que estava protegido, dentro do ambiente sagrado da igreja, mas o diabo um dia veio me visitar. Senti o calor do inferno no meu pescoço, a vergonha aflorou em mim como uma chama sem controle. Era uma tarde como outra qualquer, estava cheio de afazeres na igreja com os eventos da Páscoa, estressado com os preparativos, quando a campainha da casa paroquial tocou. Era uma menina linda, um verdadeiro anjo, na mão, uma caixa de chocolates que ela mal podia carregar. Tão carinhosa e ingênua, como eu era aos 8 anos. Me enxerguei naquele anjo, me identifiquei com tudo que aconteceu há mais de 50 anos. Senti inveja de toda a inocência ali intacta, enquanto a minha havia sido arrancada tão cedo. Dentro de mim, começaram a surgir cenas de nojo, que mexeram comigo de uma maneira ruim, algo impensável para um homem de Deus como eu. Pensamentos pecaminosos surgiam como sussurros do diabo em meus ouvidos. Então, decidi pedir para a menina ir embora, me levantei e toquei no ombro dela. 51 Talvez por ser tão pura, aquela criança de alguma maneira conseguiu enxergar o monstro sujo que estava dentro de mim e subitamente saiu correndo. Eu nunca ia fazer nada
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