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2 Antropologia Instituição Credenciada pelo MEC – Portaria 4.385/05 Unis - MG Centro Universitário do Sul de Minas Unidade de Gestão da Educação a Distância – GEaD Av. Cel. José Alves, 256 - Vila Pinto Varginha - MG - 37010-540 Mantida pela Fundação de Ensino e Pesquisa do Sul de Minas – FEPESMIG Varginha/MG Todos os direitos desta edição reservados ao Unis - MG. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou parte do mesmo, sob qualquer meio, sem autorização expressa do Unis - MG. 3 Antropologia 306 F383g. FERREIRA, Paulo de Tarso Motta Guia de Estudo – Antropologia - Paulo de Tarso Motta Ferreira. Varginha: GEaD - UNIS/MG, 2007. 76 p. 1.Antropologia. 2. Cultura 3. Homem I. Título. Atualizado em Janeiro de 2012 pelo professor Ariovaldo Francisco Da Silva 4 Antropologia REITOR Prof. Ms. Stefano Barra Gazzola GESTOR Prof. Ms. Wanderson Gomes de Souza Supervisora Técnica Profª. Ms. Simone de Paula Teodoro Moreira Design Instrucional Prof. Celso Augusto dos Santos Gomes Rogério Martins Soares Coord. do Núcleo de Recursos Tecnológicos Lúcio Henrique de Oliveira Coordenadora do Núcleo Pedagógico Terezinha Nunes Gomes Garcia Revisão Ortográfica / Gramatical Autor PROF. PAULO DE TARSO MOTTA FERREIRA Com formação inicial em História, é especialista em História do Brasil e Avaliação Escolar, respectivamente pela PUC-BH e UNI-BH. Professor há vinte anos de Ensino fundamental e médio, ministra conteúdos na área das ciências humanas nas universidades da região e profere palestras sobre educação e avaliação escolar nas instituições de ensino públicas e privadas 5 Antropologia ÍCONES REALIZE. Determina a existência de atividade a ser realizada. Este ícone indica que há um exercício, uma tarefa ou uma prática para ser realizada. Fique atento a ele. PESQUISE. Indica a exigência de pesquisa a ser realizada na busca por mais informação. PENSE. Indica que você deve refletir sobre o assunto abordado para responder a um questionamento. CONCLUSÃO. Todas as conclusões sejam de idéias, partes ou unidades do curso virão precedidas desse ícone. IMPORTANTE. Aponta uma observação significativa. Pode ser encarado como um sinal de alerta que o orienta para prestar atenção à informação indicada. HIPERLINK. Indica um link (ligação), seja ele para outra página do módulo impresso ou endereço de Internet. EXEMPLO. Esse ícone será usado sempre que houver necessidade de exemplificar um caso, uma situação ou conceito que está sendo descrito ou estudado. SUGESTÃO DE LEITURA. Indica textos de referência utilizados no curso e também faz sugestões para leitura complementar. APLICAÇÃO PROFISSIONAL. Indica uma aplicação prática de uso profissional ligada ao que está sendo estudado. CHECKLIST ou PROCEDIMENTO. Indica um conjunto de ações para fins de verificação de uma rotina ou um procedimento (passo a passo) para a realização de uma tarefa. SAIBA MAIS. Apresenta informações adicionais sobre o tema abordado de forma a possibilitar a obtenção de novas informações ao que já foi referenciado. REVENDO. Indica a necessidade de rever conceitos estudados anteriormente. 6 Antropologia Sumário Apresentação ..................................................................................................................................................... 7 Introdução ......................................................................................................................................................... 8 Ementa............................................................................................................................................................... 9 Objetivos ........................................................................................................................................................... 9 1 - O QUE É O HOMEM? ............................................................................................................................. 10 1.1 O Homem E Seus Temperamentos ......................................................................................................... 11 2 - A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO ......................................................... 15 3. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO .......................................................... 21 4. A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA SE ENTENDER O HOMEM E SUA DIVERSIDADE SÓCIO-CULTURAL ........................................................................................................ 28 5. O HOMEM: UM SER DE CULTURA .................................................................................................... 32 6. O HOMEM: UM SER EM EVOLUÇÃO ................................................................................................ 37 7. O HOMEM: UM SER ÉTICO E CONSCIENTE ................................................................................... 40 8. O HOMEM: UM SER PEDAGÓGICO ................................................................................................... 45 9. O HOMEM NA PERSPECTIVA EVOLUCIONISTA ........................................................................... 48 9. O HOMEM NA PERSPECTIVA FUNCIONALISTA ........................................................................... 50 10. O HOMEM NA PERSPECTIVA ESTRUTURALISTA ...................................................................... 53 11. AS CULTURAS PARALELAS ............................................................................................................... 58 12. A CULTURA AFRO-BRASILEIRA ...................................................................................................... 63 13. MULTICULTURALIDADE NA INFÂNCIA E NA FAMÍLIA ......................................................... 67 13. ANTROPOLOGIA, GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO .................................................................... 69 14. ANTROPOLOGIA PÓS-MODERNA.................................................................................................... 72 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 76 7 Antropologia Apresentação Sejam Bem-vindos! A intenção da disciplina é colocá-los para pensar sobre você e o outro, aquele que faz parte do mundo que o cerca. É uma oportunidade ímpar de sair um pouco da aridez do cotidiano, sem tirar os pés do chão. Vocês perceberão que o material alterna em textos mais leves com uma pitada sutil de humor e textos mais densos como exige o universo acadêmico. É claro que, na nossa convivência, através do ambiente de rede, vamos nos tornando mais próximos, resultando em bate-papos virtuais que tendem a amenizar a aridez de algumas partes do conteúdo. Confesso que é uma experiência nova para mim, entretanto desejada já há algum tempo. Não escrevi textos muito longos para não entediar além da conta. Contemplei o conteúdo de forma sintética e prática. Sucesso e boa sorte na caminhada ! Um abraço, Prof. Paulo de Tarso Caros alunos, também quero desejar a todos que iniciarão essa disciplina, que se sintam a vontade para nos consultar sempre que houver necessidade. Espero que esse guia possa ser um início para uma pesquisa mais detalhada em relação ao homem e seu situar em um contexto social. Prof.Ari 8 Antropologia Introdução A disciplina Antropologia tem por objetivo mostrar que o homem é um ser social, político,cultural, pedagógico, consciente e em permanente evolução, capaz de reavaliar a sua caminhada e rever os seus conceitos sem, no entanto, descaracterizar-se ou abandonar as suas origens. É um ser permeado por rupturas e permanências constantes, indo do coerente ao incoerente na luta pela preservação de seus valores e costumes. É uma oportunidade para perceber a complexidade e profundidade do outro com o qual lidamos todos os dias e que, em sua essência, é uma matéria-prima a ser lapidada pela preciosidade de sua existência. Sim, eu sei, você deve estar pensando que estou me referindo a máxima de que ninguém é uma tábua rasa 1 , e estou mesmo. Muitas vezes, aquele que consideramos ignorante para o nosso meio é um mestre em seu meio, o qual também ignoramos e até tememos. Acredito que lidar com a antropologia é resgatar a ardência perdida pelos anos difíceis em que o homem era visto como um ser assujeitado, ou seja, sem condições de expressar seus desejos e angústias. É uma forma de enxergar o outro através dele e não do nosso próprio umbigo. É nos libertarmos de padrões preconceituosos de comportamento e pensamento, para observarmos as habilidades do outro e a melhor forma de transformá-las em competências. Aconselho você a ler e reler cada parágrafo, internalizá-lo, mas sem aquela atitude de que já sabia e que é apenas teoria. É preciso transportar a teoria para dentro de nós, filtrando-a para a prática e aplicando-a para revê-la ou confirmá-la. Não tenha vergonha, se necessário, de pedir ajuda e reler a mesma frase uma, duas, dez vezes se preciso. Os textos foram escritos de forma mais sintética para isso mesmo. Você se sentirá dentro do texto em algumas vezes e fora dele em outras. Não há nenhum problema nisso. Quero que você perceba que o outro é tão único quanto você, e que cada um tem o seu tempo para aprender ou para cair a ficha, como se diz na gíria. Não tem problema, respire fundo e continue. Quero que acredite que pode aprender e evoluir no mundo acadêmico, assim como o aluno pode ser alguém na vida, como costumavam dizer meus avós, portanto, todos nós podemos aprender e melhorar. PESQUISE. Após essa introdução, como poderemos definir o conceito: ―Antropologia‖? 1 Vázio de informações, e que necessita ser preenchido. 9 Antropologia Ementa A análise antropológica da alteridade e da diversidade cultural negro, ìndio. A produção cultural, a expressão e a ordenação do real. O simbólico e sua importância no meio cultural. O pluralismo cultural. O poder simbólico e suas relações com o mundo. O preconceito e suas variáveis: a auto-afirmação e a inserção social, a discriminação, a exclusão e a marginalização cultural. O símbolo e os meios de comunicação. A dimensão simbólica das interações sociais. Cultura e identidade social. Fundamentos antropológicos da comunicação. Comunicação social e pesquisa antropológica. Objetivos Provocar uma reflexão sobre a dimensão e complexidade da existência humana. Estabelecer o diálogo entre antropologia e educação. Desvelar as possíveis culturas da infância e da família como forma de construção dos modos de vida diferentes e não inferiores. Desvelar a riqueza da cultura afro-brasileira em sua diversidade e multiculturalidade. Suscitar a discussão sobre o homem regional e global no contexto do século XXI. 10 Antropologia 1 - O QUE É O HOMEM? No nosso dia a dia, estamos habituados a nos deparar com problemas concretos e de respostas concretas. Portanto, não temos tempo e paciência para ficar pensando quem somos, o que queremos e para onde vamos. Quem tem que trabalhar, arrumar a casa, pagar as contas, pegar os filhos na escola, engolir os sapos do dia-a-dia não pode se dar ao luxo de ficar filosofando sobre as coisas do mundo. Mas aí é que cometemos uma falha irreparável, pois aquele que está ao meu lado é essencialmente diferente de mim, seja meu filho, irmão, marido, esposa, amigo, conhecido ou o companheiro de curso. Ora, se o outro é, por essência, diferente de mim, como posso saber se estou somando na vida das pessoas ou prejudicando-as com minhas atitudes e intenções, mesmo achando que sou do bem? Como eu não penso sobre mim não tenho como pensar sobre os outros, portanto eu apenas vivo e, na maioria das vezes, não percebo o que está rolando, como dizem os jovens. Bem, entender que o outro é tão complexo quanto eu mesmo é um grande passo para lidar com as diferenças. Não estou falando de passar a mão na cabeça dos outros como se fossem coitadinhos, mas enxergá-los como homens. Em grego, homem significa semelhante, portanto, enxergar o outro como meu semelhante, embora único, não é uma tarefa fácil. Por causa disso, apelei para alguns ícones da filosofia para me ajudar, para definirmos o homem: Segundo a Bíblia, para Deus: ―façamos o homem à nossa imagem e semelhança‖. Então, somos um pouco de Deus na vida de cada pessoa. Já para Homero somos como folhas na floresta que o vento a uns dispersa e a outros permite brotar no tempo da primavera, portanto, enquanto uma geração cresce a outra desaparece. Para Aristóteles, somos ―um animal racional‖. Para Giordano Bruno, o homem é o ―cidadão de dois mundos‖, o eterno e o terreno. Para Hobbes, o homem é ―o lobo do próprio homem‖, capaz de aniquilar o outro enquanto ser livre, se não for controlado pela educação e pelo Estado. Para Kierkegaard, o homem é uma ―relação que se relaciona consigo mesma‖. Para Karl Marx, não passa de um ―conjunto de relações sociais‖. O QUE É O HOMEM? 11 Antropologia Para Nietzsche, o homem é ―o animal doente‖, chegando a afirmar que em nós muita coisa ainda é verme, que nós somos mais macacos que os macacos, que somos um cabo sobre o abismo e por aí vai. Para Jean Paul Sartre o homem é uma ―paixão inútil‖. Bem, você já percebeu que não há consenso sobre o que vem a ser o homem. Portanto, o outro com o qual nos relacionamos é um universo à parte, do bem e do mal, otimista e depressivo, feliz e triste, vitorioso e fracassado, coerente e incoerente e por aí afora. Proclamaioverbojesus.blog.terra.com.br 1.1 O Homem E Seus Temperamentos HIPÓCRATES Hipócrates, o pai da Medicina, classificou o homem em quatro temperamentos. São eles: 1) Sanguíneo (popular e festivo) 2) Colérico (forte e ativo) 3) Melancólico (Perfeito e criativo) 4) Fleumático (Sereno, nivelador e pacífico) Para ele, cada um de nós possui um temperamento dominante e outro secundário, além de termos características de cada um em menor proporção. Seja qual for o seu temperamento, procure observar seus amigos e perceberá que possuem algumas das características apresentadas acima, o que dificulta o relacionamento de 12 Antropologia vocês. Exemplo: como você detesta a desorganização de seu marido que é muito popular e festivo e nunca termina o que começa. Para você que é colérica e tem tudo planejado é o fim da picada. E a sua esposa que por ser melancólica nada está bom. Por mais que você se esforce, sempre falta alguma coisa. Você que é sanguíneo quer morrer de ódio, pois você já está fervendo e ela colocando defeito em tudo. Nossa primeira aula está acabando, e eu espero que você tenha parado para refletir que não é fácil entender quem somos nem tampouco o que os outros são. E é esse o papel da antropologia, tentar perceber o homem em sua riqueza de aspectos, sob as quais ele pode ser investigado. E o papel da educação é transmitir a esse homem a sua herança cultural, para que ele a preserve e a transforme se necessário. Por isso a educação é um ato antropológico de vida. É o homem em toda a sua magnitude de mente, alma e corpo através do tempo. E o nosso papel enquanto seres humanos educadores é conhecer, valorizar,compreender, interagir, modificar e lidar com as diferenças como se não fossem fatores de inferioridade ou de desprestígio, mas de originalidade e de desenvolvimento de novas habilidades. CONVIVER COM DIFERENÇAS Um caminho para entender pessoas. A teoria dos quatro temperamentos foi criada por Hipócrates (4OO anos antes de Cristo). Nenhuma pessoa é padrão de um comportamento único'. Nenhum homem é uma ilha! Cada um de nós temos: Um temperamento dominante. Um temperamento secundário Traços de outros temperamentos. Os quatros temperamentos. Sanguíneo ( popular - festivo) Colérico ( Forte - Ativo) Melancólico (Perfeito - Criativo) Fleumático (Sereno - Pacifico) 13 Antropologia SANGUÍNEO - popular, festivo. Personalidade. Atraente. Divertido. Extrovertido. Otimista. Entusiasmado. Movido pela Emoção. Carismático. Aprecia a vida. Fala demais. Atrai e faz amigos. Gosta do Convívio Social. Egoista. Desorganizado. Imaturo.Agitado. Fala sem pensar. Pouco Prático. Faz projetos mirabolantes, mas não executa. Tem pouca memória. Tem iniciativa... Como conviver com eles?.... Ajude a realizar seus projetos. Ajude a dizer não. Elogie-o, dê-lhe presentes. Aprecie seu bom humor. Seu lema: A VIDA É UMA FESTA! COLÉRICO - forte, ativo. Auto-suficiente. Lider nato. Independente. Decidido. Muito Prático. Vontade forte. Organizado. Aventureiro. Raciocínio Rápido. Trabalhador compulsivo. Firmeza inabalável. Solitário. Poucos amigos. Adora desafios. Mandão. Corajoso. Não é dado a análise. Não demonstra emoção. Como conviver com eles?....Reconheça sua liderança.Emenda que ele não quer magoar. Repsite seu desejo de isolamento.Aceite sua frieza. Seu lema: FAÇA DO MEU JEITO, E AGORA! MELANCÓLICO - perfeito, criativo. Perfeccionista. Acomodado. Sério. Analítico. Bem dotado. Organizado. Metódico. Prevenido. Gosta de Silêncio. Exigente. Sensível. Emotivo sabe ouvir. Aprecia a natureza. Desconfiado. Tem compaixão. Pensativo. Introvertido. Artístico. Deprime facilmente.Adia tudo para sair perfeito. Inseguro. Fiel. Confiável. Foge da realidade pela prática do devaneio. Como conviver com eles?....Anime-o para que fique mais ativo. Respeite seus momentos de silêncio. Relaxe seus padrões. Ajude-o a olhar o lado bom das coisas. Elogie-o para elevar sua autonomia. Seu lema: SE É PARA FAZER, VOU FAZER BEM FEITO. FLEUMÁTICO - sereno, pacifico. Amortecedor de emoções. Nivelador. Calmo. Imperturbável. Sociável. Equilibrado. Ótima memória. Pensamento organizado. Simpático. Humilde. Manso. Pacificador. De bom 14 Antropologia coração. Adaptado e feliz com a vida. Raramente revela seus sentimentos. Sabe ouvir. Prático. Eficiente. Bom conselheiro. Indeciso. Resistente a mudanças. Metódico. Como conviver com eles?....Respeite seu ritmo. Não cobre dele muito entusiasmo. Ajude-o a dizer não, pois ele não diz por medo de magoar. Estimule a tomar decisões. Seu lema: NÃO VALE A PENA ME ALTERAR POR ISTO... Esses quatro tipos de TEMPERAMENTOS estabelecem nas ações um equilíbrio. Em suas experiências, você detectou essas situações? Como você lidou com elas? Portanto, esses comportamentos demonstram as diferenças que existem em cada ser humano que encontramos em nossas caminhadas, portanto, convém que olhemos sempre além do imediato. 15 Antropologia 2 - A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO Darwinismo.wordpress.com Por incrível que possa parecer a você, durante muito tempo nem os próprios homens de algumas regiões ou culturas foram considerados como homens, portanto, como iguais. A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberração, exigindo uma justificação. A antiguidade grega designava sob o nome de bárbaro tudo o que não participava da civilização helênica (apelido para grego). No Renascimento, nos séculos XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto é, seres da floresta), opondo assim a animalidade à humanidade. O termo primitivos é que triunfará no século XIX, enquanto optamos preferencialmente na época atual pelo de subdesenvolvidos. Essa atitude que consiste em expulsar da cultura (isto é, para a natureza) todos aqueles que não participam da faixa de humanidade ou civilidade à qual pertencemos e com a qual nos identificamos, é, como lembra Lévi-Strauss, a mais comum a toda a humanidade, e, em especial, a mais característica dos "selvagens". Entre os critérios utilizados a partir do século XIV pelos europeus para julgar se convém conferir aos nativos (americanos ou africanos) um estatuto humano, além do critério A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 16 Antropologia religioso, e que pede, na configuração na qual nos situamos, uma resposta negativa ("sem religião nenhuma", são "mais diabos"), citaremos: a aparência física: eles estão nus ou "vestidos de peles de animais"; os comportamentos alimentares: eles "comem carne crua", e todo o imaginário do canibalismo que irá aqui se elaborar; a inteligência tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam "uma língua ininteligível". Assim, não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso à linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem é apreendido nos modos de uma besta ou animal. E esse discurso sobre a alteridade, que recorre constantemente à metáfora zoológica, abre o grande leque das ausências: sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro. Cornelius de Pauw acrescentará até, no século XVIII: "sem barba", "sem sobrancelhas", "sem pêlos", "sem espírito" "sem ardor para com sua fêmea"(se duvidava até da virilidade dos nativos, pode ?). PESQUISE. Como definiremos o conceito alteridade? Então:... Vamos definir? É a grande glória e a honra de nossos reis e dos espanhóis, escreve Gomara em sua História Geral dos índios, ter feito aceitar aos índios um único Deus, uma única fé e um único batismo e ter tirado deles a idolatria, os sacrifícios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outros grandes e maus pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais; mostramo- lhes o alfabeto sem o qual os homens são como animais e o uso do ferro que é tão necessário ao homem. Também lhes mostramos vários bons hábitos, artes, costumes policiados para po- der melhor viver. Tudo isso — e até cada uma dessas coisas — vale mais que as penas, as pérolas, o ouro que tomamos deles, ainda mais porque não utilizavam esses metais como moeda. Escreve na mesma época (1555) Oviedo em sua História das índias. As pessoas desse país, por sua natureza, são tão ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má 17 Antropologia condição, mentirosas, de mole constância e firmeza (. . .). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfície da Terra... Opiniões desse tipo são inumeráveis, e passaram tranquilamente para nossa época. No século XIX, Stanley, 2 em seu livro dedicado à pesquisa de Livingstone, compara os africanos aos "macacos de um jardim zoológico‖. Mais dois textos irão deter mais demoradamente nossa atenção, por nos parecerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado. São as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes para servir à História da Espécie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado em 1774, e a famosa Introdução à Filosofia da História, de Hegel. 1) DePauw nos propõe suas reflexões sobre os índios da América do Norte. Sua convicção é a de que, sobre estes últimos, a influência da natureza é total, ou mais precisa- mente negativa. Se essa raça inferior não tem história e está para sempre condenada por seu estado "degenerado" a permanecer fora do movimento da História, a razão deve ser atribuída ao clima de uma extrema umidade: Deve existir, na organização dos americanos, uma causa qualquer que embrutece sua sensibilidade e seu espírito. A qualidade do clima, a grosseria de seus humores, o vício radical do sangue, a constituição de seu temperamento excessivamente ―fleumático‖ (Lembra, sereno e pacífico) podem ter diminuído o tom e o saracoteio dos nervos desses homens embrutecidos. Eles têm, prossegue Pauw, um "temperamento tão úmido quanto o ar e a terra onde vegetam", o que explica que eles não tenham nenhum desejo sexual. Em suma, são "infelizes que suportam todo o peso da vida agreste na escuridão das florestas, parecem mais animais do que vegetais". Após a degenerescência ligada a um "vício de constituição física", Pauw chega à degradação moral. É a quinta parte do livro, cuja primeira seção é intitulada: "O gênio embrutecido dos Americanos". 2 Nome do livro: Explorações na África, Pelo Dr. David Livingstone, e Outros, Fornecendo um Relato Completo da Expedição de Pesquisa de Stanley-Livingstone, sob o Patrocínio do New York Herald, conforme Fornecido pelo Dr. Livingstone e o Sr. Stanley. 18 Antropologia A insensibilidade, escreve nosso autor, é neles um vício de sua constituição alterada; eles são de uma preguiça imperdoável, não inventam nada, não empreendem nada, e não estendem a esfera de sua concepção, além do que vêem pusilânimes, covardes, irritados, sem nobreza de espírito, o desânimo e a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inúteis para si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma. Essa separação entre um estado de natureza concebido por Pauw como irremediavelmente imutável, e o estado de civilização pode ser visualizado num mapa-mundi. No século X V II I , a enciclopédia efetua dois traçados: um longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, a África e a Ásia, de outro a América, e um latitudinal dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon 3 , a proximidade ou o afastamento da linha equatorial são explicativos não apenas da constituição física mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filosóficas sobre os Americanos escolhe claramente o critério latitudinal, fundamento aos seus olhos da distribuição da população mundial, distribuição essa não cultural e sim natural da civilização e da barbárie: "A natureza tirou tudo de um hemisfério deste globo para dá-lo ao outro". "A diferença entre um hemisfério e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) é total, tão grande quanto poderia ser e quanto podemos imaginá-la": de um lado, a humanidade, e de outro, a "estupidez na qual vegetam" esses seres indiferenciados: Igualmente bárbaros, vivendo igualmente da caça e da pesca, em países frios, estéreis, cobertos de florestas, que desproporção se queria imaginar entre eles? Onde se sentem as mesmas necessidades, onde os meios de satisfazê-los são os mesmos, onde as influências do ar são tão semelhantes, é possível haver contradição nos costumes ou variações nas idéias? Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os indígenas americanos vivem em um "estado de embrutecimento" geral. Tão degenerados uns quanto os outros, seria 3 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (Montbard, 7 de Setembro de 1707 - Paris, 16 de Abril de 1788) foi um naturalista, matemático e escritor francês. As suas teorias influenciaram duas gerações de naturalistas, entre os quais se contam Jean-Baptiste de Lamarck e Charles Darwin. A localidade de Buffon, na Côte-d'Or, foi o senhorio da família Leclerc. http://pt.wikipedia.org/wiki/Montbard http://pt.wikipedia.org/wiki/7_de_Setembro http://pt.wikipedia.org/wiki/1707 http://pt.wikipedia.org/wiki/Paris http://pt.wikipedia.org/wiki/16_de_Abril http://pt.wikipedia.org/wiki/1788 http://pt.wikipedia.org/wiki/Naturalista http://pt.wikipedia.org/wiki/Matem%C3%A1tico http://pt.wikipedia.org/wiki/Escritor http://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7a http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Baptiste_de_Lamarck http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Darwin http://pt.wikipedia.org/wiki/Buffon http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B4te-d%27Or 19 Antropologia em vão procurar entre eles variedades distintivas daquilo que se pareceria com uma cultura e com uma história. Os julgamentos que acabamos de relatar por excessivos que sejam, apenas radicalizam idéias compartilhadas por muitas pessoas nessa época. Idéias que serão retomadas e expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdução à Filosofia da História, nos expõe o horror que ele ressente frente ao estado de natureza, que é o desses povos que jamais ascenderão à "história" e à "consciência de si". Na leitura dessa Introdução, a América do Sul parece mais estúpida ainda do que a do Norte. A Ásia, aparentemente, não está muito melhor. Mas é a África, e, em especial, a África profunda do interior, onde a civilização nessa época ainda não penetrou, que representa para o filósofo a forma mais nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: "é o país do ouro, fechado sobre si mesmo, o país da infância, que, além do dia e da história consciente, está envolto na cor negra da noite". Tudo, na África, é nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os "negros" não respeitam nada, nem mesmo eles próprios, já que comem carne humana e fazem comércio da "carne" de seus próximos. Vivendo em uma ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles não têm moral, nem instituições sociais, religião ou Estado. Petrificados, em uma desordem inexorável 4 , nada, nem mesmo as forças da colonização poderão nunca preencher o fosso que os separa da História universal da humanidade. Na descrição dessa africanidade estagnante da qual não há absolutamente nada a esperar — e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado à indianidade em Pauw —, o autor da Fenomenologia do Espírito 5 vai, vale a pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filosóficas sobre os Americanos. O "negro" nem mesmo se vê atribuir o estatuto de vegetal. "Ele cai", escreve Hegel, "para o nível de uma coisa, de um objeto sem valor". Você percebeu que a desigualdade entre os homens é fruto de um preconceito de que aquele que é diferente de nós é selvagem e bárbaro para o convívio conosco. Portanto, historicamente, a cultura de algumas civilizações, no caso a Européia, construiu a falsa idéia de que os povos não-europeus são desprovidos de civilidade. Então, digno seria o homem civilizado. Mas pergunto: civilizado sob qual cultura ? Ora, um nativo africano, um esquimó dos pólos ou um servo medieval são igualmente homens independentemente de seus valores ou hábitos. E a criança ou adolescente com o qual lidamos não nos parece muitas vezes esse bárbaro selvagem que provém de nosso preconceito, mais do que da própria realidade ? 4 Inexorável: que não cede. Que não se move à compaixão. Implacável, austero. 5 Filósofo - Hegel 20 Antropologia De fato , não é moleza entrarmos em nosso eu para revermos uma série de preconceitos que estão cristalizados. Mas é preciso estabelecer um ponto de equilíbrio entre os novos paradigmas e os tradicionais. No próximo item, veja uma inversão que o fará pensar ainda mais. Proposta: Leia a primeiraparte do livro Aprender Antropologia, de François Laplantine, intitulado de ―Marcos para uma História do Pensamento Antropológico‖, disponível na biblioteca do UNIS, para aprofundar a sua reflexão.Caso você queira aprofundar mais nesse assunto. Fique a vontade!... 21 Antropologia 3. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO Juntosomos-fortes.blogspot.com ―Em 2009, na conferência da ONU sobre o clima, em Copenhague...‖ A figura de uma natureza má na qual vegeta um selvagem embrutecido é eminentemente suscetível de se transformar em seu oposto: a da boa natureza dispensando suas benfeitorias para um selvagem feliz. Os termos da atribuição permanecem, como veremos, rigorosamente idênticos, da mesma forma que o par constituído pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natural). Mas efetua-se dessa vez a inversão daquilo que era apreendido como um vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna um mais. O caráter privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religião organizada, sem clero, sem sacerdotes, sem polícia, sem leis, sem Estado — acrescentar-se-á, no século XX, sem Complexo de Édipo — não constitui uma desvantagem. “O Selvagem não é quem pensamos”. PESQUISE. Se possível assista ao filme: ―Na Natureza Selvagem‖. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 22 Antropologia Evidentemente, essa representação concorrente (mas que consiste apenas em inverter a atribuição de significações e valores dentro de uma estrutura idêntica) permanece ainda bastante rígida na época na qual o Ocidente descobre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem só encontrará sua formulação mais sistemática e mais radical dois séculos após o Renascimento: no rousseauísmo 6 do século XVIII, e, em seguida, no Romantismo. Não deixa porém de estar presente, pelo menos em estado embrionário, na percepção que têm os primeiros viajantes. Américo Vespúcio descobre a América: As pessoas estão nuas, são bonitas, de pele escura, de corpo elegante. . . Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo é colocado em comum. E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua mãe, sua irmã, ou sua amiga, entre as quais eles não fazem diferença. . . Eles vivem cinqüenta anos. E não têm governo. Cristóvão Colombo, aportando no Caribe, descobre também o paraíso: "Eles são muito mansos e ignorantes do que é o mal, eles não sabem se matar uns aos outros (. . .) Eu não penso que haja no mundo homens melhores, como também não há terra melhor". PENSE. O que vocês concluem com a afirmação acima? Toda a reflexão de Léry e de Montaigne no século XVI sobre os "naturais" baseia-se sobre o tema da noção de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela primeira vez, instaura-se uma crítica da civilização e um elogio da "ingenuidade original" do estado de natureza. Léry, entre os Tupinambás, interroga-se sobre o que se passa "aquém", isto é, na Europa. Ele escreve, a respeito de "nossos grandes usurários 7 ": "Eles são mais cruéis do que os selvagens dos quais estou falando". E Montaigne, sobre esses últimos: "Podemos portanto de fato chamá-los de bárbaros quanto às regras da razão, mas não quanto a nós mesmos que os superamos em toda sorte de barbárie". Para o autor dos Ensaios, esse estado paradisíaco que teria sido o nosso outrora talvez esteja conservado em alguma parte. Esse fascínio exercido pelo indígena americano, e em especial por lê Huron, protegido da civilização e que nos convida a reencontrar o universo caloroso da natureza, 6 Filósofo Jean-Jacques Rousseau 7 Agiota. Aquele que empresta com usura. Avarento, sovina, ganancioso. 23 Antropologia triunfa nos séculos XVII e XVIII. Nas primeiras Relações dos jesuítas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: Eles são afáveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que freqüentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre nós". Seu ideal: "viver em comum sem processo, contentar-se de pouco sem avareza, ser assíduo no trabalho. Do lado dos livres-pensadores, é o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: "Ah! Viva os índios que sem lei, sem prisões e sem torturas passam a vida na doçura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses". Essa admiração não é compartilhada apenas pelos navegadores estupefatos. O selvagem ingressa progressivamente na filosofia — os pensadores das Lumières —, e também nos salões literários e nos teatros parisienses. Em 1721, é montado um espetáculo intitulado O Arlequim Selvagem. O personagem de um índio trazido para Paris declama no palco: Vocês são loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de coisas inúteis; vocês são pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez de simplesmente gozar da criação, como nós, que não queremos nada a fim de desfrutar mais livremente de tudo. PESQUISE. Qual é o nome do autor do espetáculo: O Arlequim Selvagem? Quem são Montaigne e Léry? É a época em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau acabou de escrever, a época em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. Manifestações essas que constituem uma verdadeira acusação contra a civilização. Depois, o fascínio pelos índios será substituído progressivamente, a partir do fim do século XVIII, pelo charme e prazer idílico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquipélagos polinésios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Páscoa, e sobretudo o Taiti. Aqui está, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980): 24 Antropologia Seja dia ou noite, as casas estão abertas. Cada um colhe as frutas na primeira árvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ócio é compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar é sua mais preciosa ocupação. Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. As mulheres pareciam não querer aquilo que elas mais desejavam. Tudo lembra a cada instante as doçuras do amor, tudo incita ao abandono. Todos os discursos que acabamos de citar, e, especialmente, os que exaltam a doçura das sociedades "selvagens", e, correlativamente, fustigam tudo que pertence ao Ocidente ainda são atuais. Se não os fossem, não nos seriam diretamente acessíveis, não nos tocariam mais nada. Ora, é precisamente a esse imaginário da viagem, a esse desejo de fazer existir em um "alhures" uma sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial, cujas virtudes se estendam à magnificência da fauna e da flora (Chateaubriand, Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu sucesso com o público. O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar ao Ocidente mortífero lições de grandeza, como acabamos de ver, não é novidade. Mas grande parte do público está infinitamente mais disponível agora do que antes para se deixar persuadir às sociedades constrangedoras da abstração, do cálculo e da impessoalidade das relações humanas. Opõem-se sociedades de solidariedade comunitária, abrigadas na suntuosidade de uma natureza generosa. A decepção ligada aos "benefícios" do progresso (nos quais muitos entre nós acreditam cada vez menos) bem como a solidão e o anonimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos só aspirem a se projetar nesse paraíso (perdido) dos trópicos ou dos mares do Sul, que o Ocidente teria substituído pelo inferno da sociedade tecnológica. Mas convém, a meu ver, ir mais longe. O antropólogo, como o militar, é recrutado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a sua, as mesmasinsatisfações, angústias, desejos. Se essa busca do Último dos Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo "vento dos coqueiros" (que é na realidade uma etnologia selvagem), contribui para a popularidade de nossa disciplina, ela está presente nas motivações dos próprios antropólogos. Malinowski terá a franqueza de escrever e será muito criticado por isso: Um dos refúgios fora dessa prisão mecânica da cultura é o estudo das formas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades longínquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romântica para longe de nossa cultura uniformizada. 25 Antropologia Ora, essa "nostalgia do pré-histórico", de que fala Alfred Métraux 8 e que esteve na origem de sua própria vocação de antropólogo, é encontrada em muitos autores, especialmente nas descrições de populações preservadas do contato corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparência. O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que são caracterizadas pela riqueza das trocas simbólicas, foi certamente o de "autêntico" (oposto à alienação das sociedades industriais adiantadas), termo proposto por Sapir em 1925, e que é erroneamente atribuído a Lévi-Strauss. A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) não parou, portanto, de oscilar entre os pólos de um verdadeiro movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: era um monstro, um "animal com figura humana" (Léry), a meio caminho entre a animalidade e a humanidade mas também que os monstros éramos nós, sendo que ele tinha lições de humanidade a nos dar; levava uma existência infeliz e miserável, ou, pelo contrário, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esforços os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da indústria; era trabalhador e corajoso, ou essencialmente preguiçoso; não tinha alma e não acreditava em nenhum deus, ou era profundamente religioso; vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia; era um anarquista, sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, até, e inclusive, suas próprias mulheres; era admiravelmente bonito, ou feio; era movido por uma impulsividade criminalmente congênita, quando era legítimo temer, ou devia ser considerado como uma criança precisando de proteção; era um embrutecido sexual, levando uma vida de orgia e devassidão permanente, ou, pelo contrário, um ser preso, obedecendo estritamente aos tabus e às proibições de seu grupo; era atrasado, estúpido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo; 8 Alfred Métraux (1902 em Lausana, Switzerland- Abril 12, 1963 em Paris, France), descrito frequentemente como ―ethnographer ethnographer, ―era um dos antropólogos os mais significativos e dos líderes das direitas humanas do vigésimo século. http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/1902 http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Lausanne http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Switzerland http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/April_12 http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/1963 http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Paris http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/France http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Ethnography 26 Antropologia era um animal, um "vegetal" (de Pauw), uma "coisa", um "objeto sem valor" (Hegel), ou participava, pelo contrário, de uma humanidade da qual tinha tudo como aprender. Estaria nessas definições as desigualdades entre as culturas e as raças? Tais são as diferentes construções em presença (nas quais a repulsão se transforma rapidamente em fascínio) dessa alteridade fantasmática que não tem muita relação com a realidade. O outro — o índio, o taitiano, mais recentemente o basco ou o bretão — é simplesmente utilizado como suporte de um imaginário, cujo lugar de referência nunca é a América, Taiti, o País Basco ou a Bretanha. São objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas a exploração econômica, quanto ao militarismo político, à conversão religiosa ou à emoção estética. Mas, em todos os casos, o outro não é considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele. Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em vão, talvez anacrônico 9 , descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento antropológico, tão problemático, como acabamos de observar ainda no final do século XX. Não basta viajar e se surpreender com o que se vê, para tornar-se antropólogo (não basta mesmo ter numerosos anos de "campo", como se diz hoje). Porém, numerosos viajantes, nessa época, colocam problemas (o que não significa uma problemática) aos quais será necessariamente confrontado qualquer antropólogo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente irá se tornar a antropologia. Jean de Léry, entre os indígenas brasileiros, pergunta-se: é preciso rejeitá-los fora da humanidade? Considerá-los como virtualidades de cristãos? Ou questionar a visão que temos da própria humanidade, isto é, reconhecer que a cultura é plural? Através de muitas contradições (a oscilação permanente entre a conversão e o olhar, os objetivos teológicos e os que poderíamos chamar de etnográficos, o ponto de vista normativo e o ponto de vista narrativo), o autor da Viagem não tem resposta. Mas as questões (e para o que nos interessa aqui, mais especificamente a última) estão, no entanto, implicitamente colocadas. Montaigne (hoje às vezes criticado), mesmo se o que o preocupa é menos a humanidade dos índios do 9 Fora do tempo - cronologia 27 Antropologia que a inumanidade dos europeus, seguindo, nisso, Léry que transporta para o "Novo Mundo" os conflitos do antigo, começa a introduzir a dúvida no edifício do pensamento europeu. Ele testemunha o desmoronamento possível deste pensamento, menos inclusive ao pronunciar a condenação da civilização do que ao considerar que a "selvageria" não é nem inferior nem superior, e sim diferente. REVENDO. Ao terminar essa fala, o que podemos notar, é a grande tônica de trabalhar com o que nos é diferente. Portanto, o diferente retrata sempre a necessidade de superação e interação. Somente através de atitudes de mudanças, que será possível o equilíbrio entre os membros das culturas. 28 Antropologia 4. A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA SE ENTENDER O HOMEM E SUA DIVERSIDADE SÓCIO-CULTURAL A passagem da antropologia social (particularmente desenvolvida na França e mais ainda na Inglaterra) para a antropologia (especialmente americana) corresponde a uma mudança fundamental de perspectiva. De um lado, a antropologia se torna uma disciplina autônoma, totalmente independente da sociologia. De outro, dedica-se uma atenção muito grande menos ao funcionamento das instituições do que aos comportamentos dos próprios indivíduos, que são considerados reveladores da cultura à qual pertencem. Quanto a isso, uma história da antropologia como a de Kardiner e Preble (1966) — que está longe de ser uma das melhores histórias de nossa disciplina, mas essa não é a questão — é muito característica dessa atitude americana. Trata tanto da personalidade dos principais pesquisadores apresentados, quanto de suas idéias. Já de início, coloca o que é uma constante da prática antropológica nos Estados Unidos: sua relação à psicologia e à psicanálise. Para compreender a especificidade dessa abordagem, freqüentemente qualificada (de forma um pouco pejorativa) de "culturalista", parece-me importante especificar bem o significado dos conceitos de social e de cultura.1- Social: O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação) que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região, nação. . .) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. 2-Cultura: A cultura por sua vez não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas). A antropologia social e a antropologia têm portanto um mesmo campo de investigação. Além disso, utilizam os mesmos métodos (etnográficos) de acesso a esse objeto. A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA SE ENTENDER O HOMEM E SUA DIVERSIDADE SÓCIO-CULTURAL 29 Antropologia Etnografia: Ramo da antropologia que trata da origem e filiação de raças e Cultura. Estudo e descrição da cultura de um determinado povo. Finalmente, são animadas por um objetivo e uma ambição idênticos: a análise comparativa. Mas, o que se compara no primeiro caso é o social enquanto sistema de relações sociais, sendo que, no segundo, trata-se do social tal como pode ser apreendido através dos comportamentos particulares dos membros de um determinado grupo: nossas maneiras específicas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, distrair-se, reagir frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte). É difícil dar uma definição que seja absolutamente satisfatória da cultura. Kroeber, um dos mestres da antropologia americana, levantou mais de 50. Propomos esta: a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros. Daí a relação entre educação e antropologia. Detenhamo-nos um pouco para sublinhar que, a nosso ver, apenas a noção de cultura, ao contrário do da sociedade, é estritamente humana. Você concorda com essa afirmação? 30 Antropologia Da mesma forma que existe (isso não é mais sequer discutido hoje) um pensamento e uma linguagem entre os animais, existem sociedades animais e até formas de sociabilidade animal, que podem ser regidas por modos de interação antagônicas 10 ou comunitárias, bem como de modos de organização complexos (em função das faixas de idade, dos grupos sexuais, da divisão hierarquizada do trabalho). Indo até mais adiante, existe o que hoje não se hesita mais em chamar de sociologia celular. Assim, o que distingue a sociedade humana da sociedade animal, e até da sociedade celular, não é de forma alguma a transmissão das informações, a divisão do trabalho, a especialização hierárquica das tarefas (tudo isso existe não apenas entre os animais, mas dentro de uma única célula!), e sim essa forma de comunicação propriamente cultural que se dá através da troca não mais de signos e sim de símbolos, e por elaboração das atividades rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais são capazes de muitas coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo de aniversário. É a razão pela qual, se pode haver uma sociologia animal (e até, repetimo-lo, celular), a antropologia é por sua vez especificamente humana. Fechemos aqui esse parêntese, que não nos afasta de forma alguma do nosso propósito, mas, pelo contrário, define-o melhor, e examinemos mais adiante os traços marcantes dessa antropologia que qualifica a si própria de cultural. Deter-nos-emos em três deles, que estão, como veremos, estreitamente ligados entre si. 1) A antropologia estuda os caracteres distintivos das condutas dos seres humanos, pertencendo a uma mesma cultura, considerada como uma totalidade irredutível à outra. Atenta às descontinuidades (temporais, mas sobretudo espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos à sociedade à qual pertencemos. 2) Ela conduz essa pesquisa a partir da observação direta dos comportamentos dos indivíduos, tais como se elaboram em interação com o grupo e o meio no qual nascem e crescem esses indivíduos. Procurando compreender a natureza dos processos de aquisição e transmissão pelo indivíduo de uma cultura, sempre singular (a forma como esta não apenas informa, mas modela o comportamento dos indivíduos, sem que estes o percebam), várias preocupações são comuns aos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Utiliza-se, portanto, freqüentemente, os modelos conceituais destes, bem como suas técnicas de investigação (por exemplo, os testes projetivos, utilizados pela primeira vez em etnologia por Cora du Bois). 10 Contrárias, opostas. (Michaelis Dicionário Escolar Língua Portuguesa) 31 Antropologia Assim, esse campo de pesquisa, designado pela expressão "cultura e personalidade", extremamente desenvolvido nos Estados Unidos e relativamente negligenciado na França e Grã-Bretanha, impõe-se, a partir dos anos 30, como uma das áreas da antropologia na qual a colaboração pluridisciplinar se torna sistemática. 3) Finalmente, a antropologia estuda o social em sua evolução, e, particularmente, sob o ângulo dos processos de contato, difusão, interação e aculturação, isto é, de adoção (ou imposição) das normas de uma cultura por outra. 32 Antropologia 5. O HOMEM: UM SER DE CULTURA Um certo número de obras representativas dessa abordagem — escritas em sua maior parte por americanos — merece ser citado. 1927: Margaret Mead publica Corning of Age in Samoa, que será retomado em Hábitos e Sexualidade na Oceania, em 1935, um livro que foi um marco. 1934: Amostras de Civilização, de Ruth Benedict, certamente a obra mais característica do culturalismo americano; 1939: Kardiner, O Indivíduo e Sua Sociedade; 1943: Roheim, Origem e Função da Cultura, que desenvolve a idéia de que a cultura é uma sublimação decorrente da imperfeição do feto humano ao nascer. O que mostram essas diferentes obras, sempre baseadas em numerosas observações, é que convém não atribuir à natureza o que diz respeito à cultura; ou seja, não considerar como universal o que é relativo. Essa compreensão da irredutível diversidade das culturas — que é o eixo central da antropologia — aparece ao mesmo tempo: a.) ao nível dos traços singulares dos comportamentos; b.) ao nível da totalidade da nossa personalidade cultural, qualificada por Kardiner de "personalidade de base". Como essa corrente de pesquisa, que procuraremos apresentar o mais fielmente possível, multiplicaremos os exemplos. 1) A variação cultural pode ser encontrada em cada um dos aspectos de nossas atividades. Assim, até na maneira em que descansamos. Nas sociedades nas quais os homens dormem diretamente no solo, dificilmente suportam a maciez de um colchão. Inversamente, sentimos dificuldade em dormir em uma rede, e não nos passaria pela cabeça descansar, como alguns na Ásia, apoiando-nos em uma só perna. Tomemos um outro exemplo: a divisão do trabalho entre os sexos. Nas sociedades do oeste africano, as mulheres se dedicam à cerâmica, enquanto os homens vão para a roça, quando, na ilha de Alor, são as mulheres que cultivam a terra, enquanto os homens cuidam da O HOMEM: UM SER DE CULTURA 33 Antropologia educação das crianças. Assim também é na sociedade Chaumbuli, na qual os homens se dedicam aos filhos, enquanto as mulheres vão pescar. Consideremos agora os comportamentos adotados para penetrar nos edifícios religiosos. Na Europa, ao penetrar numa igreja, observamos que os fiéis tiram o chapéu e permanecem com os sapatos. Inversamente, em uma mesquita,os muçulmanos tiram os sapatos e permanecem com o chapéu. As formas de hospitalidade também testemunham uma extrema diversidade, podendo, como no exemplo acima, consistir na inversão pura e simples daquilo que tomávamos espontaneamente por natural. Assim, em Baúle (Costa do Marfim), como hóspede, o convite de uma refeição é preparada em sua homenagem, mas deve ser consumida isoladamente, isto é, em um cômodo e separadamente dos hospedeiros, enquanto estes, por outro lado, reservavam um presente muito inesperado para um ocidental, que não era nada menos que a filha mais bonita da casa. Diferenças significativas, decorrentes da cultura à qual pertencemos, podem também ser encontradas nos menores detalhes dos nossos comportamentos mais cotidianos. Assim, nas sociedades árabes, sul-americanas e sul-européias, desviar o olhar é considerado como um sinal de má educação, enquanto que nas sociedades asiáticas e norte-européias, olhar fixamente alguém, com insistência, causa um incômodo que se traduz por uma impressão de ameaça e agressividade. A saudação visual consistindo em levantar rapidamente as sobrancelhas, acenar a cabeça e sorrir, assinala um encontro amigável na Nova Guiné ou na Europa, mas é censurada por ser considerada indecente no Japão. As trocas de contatos cutâneos entre dois interlocutores são extremamente reduzidas nos países anglo-saxônicos, assim como no Japão. Impõe-se pelo contrário, como expressão normal do prazer de encontrar o outro nas sociedades mediterrâneas e sul-americanas. Esses mesmos interlocutores, sentados no terraço de um bar ou passeando na rua, irão manter um certo espaço entre si na Europa do Norte ou na Ásia, sob pena de sentir um certo mal-estar; tenderão a diminuir a distância que os separa nas sociedades árabes ou latino-americanas. Finalmente, as formas de comportamento sexual detiveram particularmente a atenção dos observadores. De um lado, a educação sexual é eminentemente variável de uma sociedade para outra. Na Melanésia, por exemplo, meninos e meninas são, na idade da puberdade, iniciados nas técnicas amorosas por monitores experimentados, enquanto os Vluria da índia (cf. Elwin, 1959) institucionalizavam essa prática preservando um espaço (por assim dizer, 34 Antropologia uma casa da juventude) que tem como objetivo encorajar os jogos sexuais. Por outro lado, os rituais amorosos são profundamente diferentes, não apenas de uma civilização para outra, mas dentro de uma mesma civilização. Aqui está um exemplo recolhido por Margaret Mead que merece ser relatado. Durante a última guerra mundial, soldados americanos estavam mobilizados na Grã- Bretanha. Esses soldados e as jovens inglesas que freqüentavam acusavam-se mutuamente de má educação nas relações amorosas. Os soldados americanos consideravam as inglesas mulheres levianas; as inglesas achavam que os americanos comportavam-se como marginais. Cada um dos grupos reagia normalmente, mas a norma era diferente de uma cultura para outra: para os americanos, o beijo, que intervém muito cedo nas relações de namoro, não tinha grandes consequências, enquanto que, para as inglesas, era a última etapa antes do ato sexual. As inglesas ficavam, portanto, chocadas que os americanos quisessem beijá-las tão precipitadamente; e estes não entendiam que as inglesas fugissem deles por causa de um ato tão insignificante quanto um beijo na boca, ou que passassem tão rapidamente para a etapa seguinte, quando tinham aceito o beijo. Quiproquós 11 desse tipo pontuam nossas relações interculturais. 2) O peso da cultura não se manifesta apenas nas formas diversificadas de comportamentos e atividades facilmente localizáveis de uma sociedade para outra (como a alimentação, o habitat, a maneira de se vestir, os jogos), mas também nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas, constitutivas da própria personalidade. A antropologia foi assim levada a retomar, nos fundamentos da observação e da análise etnopsicológica, o que os folcloristas, mas também os escritores, (Chateaubriand, Georges Sand.) chamavam de "alma" ou "gênio" de um povo. Assim, tentou evidenciar a preocupação dos japoneses em nunca perder a face em sociedade, sob pena de um desmoronamento da per- sonalidade que se traduz por um sentimento de vergonha e culpa extremo, ou ainda, o receio dos franceses frente à natureza que deve ser domesticada pela razão; receio que se expressa tanto no caráter "bem-comportado" dos nossos contos populares (sempre menos extravagantes que os contos escandinavos, russos ou alemães) quanto em nossos jardins, qualificados precisamente de "jardins à francesa". Mas é sobretudo ao estudo das formas contrastadas da personalidade nos povos das sociedades "tradicionais" que a antropologia deve a sua fama. Margaret Mead (1969), ao 11 Equívoco; confusão de uma coisa com outra. Situação cômica resultante de equívoco. 35 Antropologia confrontar duas populações vizinhas da Nova Guiné, considera que uma, a dos doces e ternos Arapesh, só deseja paz e serenidade, enquanto a outra, a dos violentos Mundugumor, é comandada por uma agressividade propriamente canibal. O que é então considerado como personalidade desviante entre os primeiros (o indivíduo violento), aparecerá, entre os segundos, como perfeitamente normal, isto é conforme ao ideal do grupo, e inversamente. Na mesma ótica, Ruth Benedict (1950) opõe a sociedade "apoloniana" dos índios Pueblos do Novo México à exaltação e rivalidade permanentes que mantêm entre si os habitantes da ilha de Dobu, este povo de feiticeiros (R. Fortune, 1972). Se houver, entre estes, indivíduos que não tenham nenhum sentimento de suspeição, nenhum gosto pelo roubo, e detestem brigar, não deixarão de aparecer como marginais, enquanto estariam perfeitamente bem adaptados (e considerados como conformistas) na sociedade pueblo. A partir de exemplos desse tipo, Ruth Benedict elabora sua teoria do "arco cultural". Cada cultura realiza uma escolha. Valoriza um determinado segmento do grande arco de círculo das possibilidades, da humanidade. Encoraja um certo número de comportamentos em detrimento de outros que se vêem censurados. Através de um processo de seleção (não biológico, mas cultural), todos os membros de uma mesma sociedade compartilham um certo número de preocupações, sentem as mesmas inclinações e aversões. O que caracteriza uma determinada sociedade é uma "configuração cultural", uma lógica que se encontra ao mesmo tempo na especificidade das instituições e na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido dos indivíduos. Cada um de nós possui em si todas as tendências, mas a cultura à qual pertencemos realiza uma seleção. As instituições (e, em especial, as instituições educativas: famílias, escolas, ritos de iniciação) pretendem — inconscientemente — fazer com que os indivíduos se conformem aos valores próprios de cada cultura. Críticas, frequentemente severas, não faltaram ao culturalismo americano, que está longe de fazer a unanimidade entre os antropólogos, sobretudo na França onde o mínimo que se pode dizer é que não tem boa reputação. Trabalhando com uma abordagem muito empírica (a localização das funções, dos conflitos e das significações, em detrimento da investigação das normas, das regras e dos sistemas, de acordo com os termos de Michel Foucault aos quais nos referimos acima), tende a efetuar uma redução dos comportamentos humanos a tipos, e a esboçar tipologias que devem muito mais à intuição e à própria personalidade do pesquisador, do que à construção rigorosa de um objeto científico. Além disso, e em conseqüência mesmo dos pressupostos que são seus (a observação daquilo que, em uma sociedade, é manifesto, em detrimento daquilo que é recalcado e inconsciente), desenvolve uma concepção do relativismo 36 Antropologiacultural (expressão forjada por Herskovitz) que o impede de dar o passo que separa o estudo das variações culturais da análise da variabilidade da cultura. Discussões acadêmicas a parte, podemos notar que a Antropologia contribuiu de maneira decisiva para compreendermos que o mundo que nos cerca é essencialmente e simultaneamente igual e diferente de nós, mas, como já citamos anteriormente, nem superior ou inferior, apenas diferente. Isso não quer dizer que o homem não evolua, como veremos a seguir. 37 Antropologia 6. O HOMEM: UM SER EM EVOLUÇÃO A evolução humana é independente da sua vontade. O que quero dizer é que o homem é capaz de evoluir mesmo não optando por isso. Por exemplo, na Idade Média, entendida por muitos como a Idade das Trevas (uma alusão à idéia de que nada evoluiu durante mil anos), o homem foi capaz de evoluir em vários setores, mesmo com todo o controle da fé e dos senhores feudais. O comércio renasceu e se modernizou, surgiu o renascimento cultural e científico, a burguesia se formou e as cidades ressurgiram quase que das cinzas. Portanto, duvidar que o homem nada produziu em mil anos é suspeitar da sua própria capacidade inventiva. Resumindo, mesmo em condições adversas, o homem é capaz de criar, produzir e inovar. É assim que o homem produz a sua cultura e a transmite às futuras gerações através da educação. Tudo bem, eu sei que você já ouviu falar que a educação surgiu com as primeiras civilizações como uma forma do Estado controlar as diferenças sociais, a escrita, a difusão das informações e a produção da ciência. Ou seja, a educação foi uma arma em poder do Estado para transmitir as futuras gerações o que elas deveriam saber e preservar sem direito de questionar ou pensar. Está certo, você deve estar pensando que a educação alienou as sociedades primitivas e continua alienando hoje. Porém, a educação é uma faca de dois gumes, porque o processo de construção de conhecimento ou a aprendizagem não está sob controle do educador. Essa é a grande questão da educação atual. Os, educadores, não sabem cientificamente como interferir na construção do conhecimento dos educandos, porque não sabem como ele acontece. Ora, então, um aluno é capaz de processar o conhecimento independentemente da vontade e intervenção de um outro. O lado bom da coisa é que se configura aí uma certa liberdade de pensamento. Tal liberdade é essencial para que as pessoas formem a sua própria opinião sobre si mesmo e o mundo que o cerca. É por isso que o ser humano não pára de evoluir. Se não há como controlá-lo absolutamente, não há como impedir que mude de opinião, repense seus conceitos e construa novos conhecimentos. Divirta-se um pouco com o ensaio abaixo de Ziraldo e Darcy Ribeiro sobre as vantagens e desvantagens da evolução humana. Os homens em sua evolução foram ganhando coisas e perdendo coisas. Algumas perdas foram graves. Os ganhos foram poucos. O HOMEM: UM SER EM EVOLUÇÃO 38 Antropologia O olfato, por exemplo, foi uma perda essencial. Qualquer bicho tem faro melhor que o nosso, se orienta por ele para procurar comida e namorada. Andam até no escuro, guiados pêlos cheiros. Grave, também, foi a perda do focinho e o encolhimento da boca, mas teve a vantagem de permitir que a gente abandonasse o hábito de usar a boca antiga para carregar as coisas. Para isso, começamos a usar as mãos, que também se aperfeiçoaram com o polegar, que permite manipulações delicadas. A perda do pelame foi lamentabilíssima. Um cachorro ou um macaco, ao natural, quer dizer, nus, estão vestidos. Nós, nuelos, provocamos escândalos. Isso porque nos faltam os pêlos, que é a vestimenta natural dos seres. Sem eles, tem-se que fabricar roupa e também que ficar na moda, sobretudo as mulheres, o que fica muito caro. A perda mais grave, a meu juízo, foi a do belo rabão dos macacos. Trocamos o rabo pela bunda acolchoada que temos. Mau negócio. Nada podia ser mais útil do que bons rabos. Com eles, nos verteríamos em primatas desbundados. A única vantagem que trouxe foi nos dar a possibilidade de usar cadeiras para sentar, mas não seria ruim sentar no rabo enrodilhado no chão. Pense só na beleza que seria passear, pulando de galho em galho, com a garantia que o rabo dá para se equilibrar. Melhor, ainda, seria nas fábricas, nas escolas, em toda parte, os seres providos de rabos teriam os pés e as mãos livres para fazer coisas. A professora, por exemplo, ficaria controlando a turma, pendurada pelo rabo no lustre. Em lugar de carteiras, teríamos traves, de parede a parede, onde o pessoal se dependuraria, liberando as patas e as mãos para o trabalho. Dependurado nas traves, você podia segurar o livro com a mão esquerda, pegar a caneta com a mão direita, usar a pata esquerda para consultar o dicionário e, ainda, a pata direita para coçar a orelha. Formidável, não é? A perda mais radical foi a da posição quadrúpede, que usamos durante muitos milhões de anos, para a posição ereta. Como quadrúpedes, púnhamos as quatro patas no chão, o que dava muito mais solidez. Sobre duas patas, ficamos sempre meio desequilibrados e, depois, quando se perde uma, fica muito complicado viver e trabalhar. A consequência principal da adoção da posição bípede foi a dor ciática, que castiga demais os velhos. É uma dor terrível no traseiro. Dizem que é a saudade da nossa posição quadrúpede, porque, enquanto tínhamos quatro patas no chão, as vísceras se dependuravam na espinha, postas em posição vertical. 39 Antropologia Levantando os braços, as vértebras se comprimem umas nas outras, o que provoca aquela dor insuportável. O ganho único foi a possibilidade de subir escadas. Você acha que valeu a pena? Bem ,não preciso dizer que pensar sobre a evolução humana e o que o homem é capaz de fazer é assustador. Porém, o que quero com esse texto é mobilizar você para compreender que o homem é capaz de reavaliar a si mesmo e ao mundo que o cerca de uma forma livre e democrática. Mas, para isso, o educador/profissional deve ser o provedor dessas condições , enxergando um campeão enquanto a maioria vê apenas uma criança ou um aborrecente. Não desistir do outro é não desistir de você mesmo. Ora, se o homem é capaz de evoluir sobre as mais áridas condições, por que não podemos interferir na realidade daqueles que pretendemos ajudar ? Já sei, você vai dizer que eu mesmo afirmei que não podemos interferir no processo de construção do conhecimento, que o outro goza de certa liberdade para isso, entretanto, todos nós precisamos de referências de pensamento, trabalho e vida. Ninguém é uma ilha completa e cresce isolado do mundo que o cerca. O meio interfere na construção do conhecimento de uma pessoa, assim como a genética e ao que tem acesso. É uma soma de fatores que se entrelaçam para edificar um homem. E o seu papel (você que está lendo o texto) é o de ser esse agente de contato dele com o mundo que o cerca, através da sua conduta profissional. 40 Antropologia 7. O HOMEM: UM SER ÉTICO E CONSCIENTE O homem não está "ligado ao meio ambiente", não vive na imediatidade. Sempre "se distanciou", vive na mediação da liberdade, formando o seu mundo humano, cultural. Face a essa distinção, que caracteriza a existência humana em geral, há uma segunda distinção, que pertence ao indivíduo como tal. Embora ele viva num mundo humano comum e esteja enredado na sua comunidade, ele se distingue de tudo que não é ele; sabe que ele é "ele- mesmo". Essa experiência fundamental exprimimos com a palavra "eu". Cada um de nós se experimenta como este "eu", único e irrepetível. Quando perguntamos: O que é o homem?, então perguntamos conjuntamente: O que sou eu? Não atingiríamos o que é propriamente ser homem, se cada um de nós não se conhecesse e compreendesse como um "eu", se não tivesse essa auto-experiência original.No mundo inteiro, só há um único ponto que me pertence de modo primordial: sou eu mesmo. É o espaço iluminado da minha consciência, em que estou junto de mim e em que o mundo penetra na luz do meu conhecimento. E é o espaço da liberdade, em que disponho sobre mim mesmo, em que me posso e devo decidir e em que estou entregue à minha responsabilidade, sem poder escapar. Este ponto — meu "eu" — necessariamente é o centro do meu mundo, a partir do qual eu vejo e compreendo tudo o mais. Isto não é "egoísmo", no sentido moral do termo, mas simplesmente um fenômeno fundamental da auto-experiência humana. Só posso conhecer a partir de mim mesmo a realidade e, portanto, experimentar-me como o centro do meu mundo. Daí resulta a grandeza e dignidade do homem, porque o "eu", e irrepetível, não pode ser substituído por nada e por ninguém. Mas também se revela a sua pequenez, pois esse "eu" é apenas um ponto na incomensurável totalidade do ser e do acontecer, do mundo e da história. O indivíduo, limitado no espaço e no tempo, se sente como que perdido na realidade global. O que significa o termo "eu"? Pode significar duas coisas: eu-centro e eu- totalidade: Eu conheço, eu quero. . . Mas também posso dizer: eu ando na rua, eu sou O HOMEM: UM SER ÉTICO E CONSCIENTE 41 Antropologia empurrado no ônibus. . . No segundo caso, temos um "eu" mais amplo, pois inclui o meu corpo pelo qual o eu-centro se exprime, se realiza e se situa no mundo. O "eu", no sentido de eu-centro, nunca é dado em si mesmo, de modo imediato; não é cognoscível objetivamente, mas somente com-dado atematicamente em cada ato consciente. É com-experimentado e com-conhecido em cada ato, enquanto eu o realizo como meu ato. Por isso forma uma evidência original e imediata, que também se mantém na dúvida — como viram AGOSTINHO e DESCARTES. E KANT esclareceu que toda a multiplicidade do conhecimento objetivo, enquanto é "meu conhecimento", é condicionada por um princípio último de unidade: o "eu penso". Vamos desenvolver este assunto, tratando da consciência, que é a propriedade mais característica do "eu". Na nossa vida, a consciência de objeto está, tematicamente, em primeiro plano. Percebemos coisas e fatos. Pensando, esforçando-nos, agindo, estamos dirigidos ao outro. O outro é o "tema" da intenção, é o conteúdo "temático" (tético, posicional) dos nossos atos. Mas o outro somente nos é dado enquanto o aprendemos com os nossos atos. Só conheço algo quando eu o conheço, quando o torno objeto por um ato meu. Isso significa que a nossa consciência de objeto é condicionada e sustentada pela consciência de ato. Sempre que conheço algo, sei, eu conheço. Esse saber não é dado tematicamente em toda clareza como um conteúdo objetivo, mas é com-dado imediatamente e pode ser tematizado pela reflexão sobre o ato. Na consciência, percebemos uma pluralidade e uma diversidade DOS ATOS, que se sucedem num fluxo permanente. Contudo, os atos não estão isolados, porque na sua multiplicidade há, simultaneamente, consciência de unidade. É uma pluralidade unida, porque cada ato é dado como elemento no fluxo da "minha consciência" e experimentado como "meu ato". Isso mostra que na base da unidade da consciência deve haver um princípio de unidade, um elemento que constitui a unidade e que se mantém idêntico na pluralidade. Esse princípio de unidade dos "meus atos" se denomina "eu". Assim, o desenvolvimento inteiro da consciência é condicionado, sustentado e penetrado pela consciência do eu, que sempre e necessariamente é com-dada em cada ato. Mas o "eu" não é perceptível diretamente em si mesmo. Só o experimentamos como centro-de-atos não-objetivo, como origem e fundamento da unidade do acontecer inteiro da consciência. Por isso, não pode ser pensado como sendo ele mesmo um ato. Max SCHELER o faz: compreende o "espírito como ato, como acontecer, e não como ser, como substância. 42 Antropologia Contudo, segundo ele, o acontecer espiritual é referido a um centro, que se mantém inalterado no decurso dos atos, denominado "pessoa" . Em todo caso, o desenvolvimento da consciência pressupõe um centro-de-atos como seu fundamento. Pois eu me experimento como o mesmo sujeito de atos sucessivos. Eu sou o mesmo "eu" que leio, passeio, vejo TV etc, o mesmo ontem e hoje. KANT fez a célebre distinção entre eu empírico e eu transcendental. O eu empírico é o eu ou sujeito, enquanto se exprime e se experiência na realização de seus atos conscientes; é a totalidade concreta de minha auto-experiência consciente. O eu transcendental, ao contrário, é o último ponto de unidade, que precede a toda experiência, também a auto-experiência, mas é a condição de possibilidade disso, que todos os conteúdos da experiência são dados na unidade da "minha" consciência. Para KANT, é o puro "eu penso", não como conteúdo empírico, mas como grandeza transcendental-apriórica, isto é, como "apercepção transcendental", que é o princípio da "unidade transcendental da autoconsciência". Portanto, é válida a idéia de que o "eu" pode ser estudado em vários níveis de profundidade. Vejamos o mesmo assunto sob um outro prisma (Cf. B. MONDIN, O Homem, quem é ele?, p. 96-105). Os filósofos de quase todas as correntes aceitam a diferença entre autoconsciência concomitante e autoconsciência reflexiva. Quando a consciência está voltada para o outro, a um objeto, tem concomitantemente ("obliquamente", diziam os Escolásticos) uma consciência de si mesma: Quando vejo este texto, percebo concomitantemente que eu o vejo. O próprio termo 'consciência’ designa isto: enquanto tenho "ciência" de algo, tenho consciência de mim mesmo. O conteúdo imediato de autoconsciência indireta é a parte do sujeito envolta na respectiva ação: vista, mão, etc... Mas vai em direção ao sujeito inteiro. Esse último, todavia, não é apreendido como algo de preciso, com limites bem delineados, mas como algo de confuso. A autoconsciência reflexiva é o momento do conhecimento, em que o sujeito não se concentra sobre o objeto, mas sobre o seu ato e sobre si mesmo. Presto atenção sobre o meu ato de ver este texto, sobre mim mesmo que estou vendo. A reflexão é um dobrar-se sobre si mesmo. Mais exatamente: o todo se dobra sobre si mesmo e não uma parte sobre parte sobre outra parte. O todo como que se duplica, continuando a ser o mesmo. È sujeito e objeto ao mesmo tempo. A expressão lingüística é o pronome reflexivo: conhecer-se, amar-se a si mesmo etc, ou o prefixo "auto" (do grego "autos": o mesmo), como nas expressões: autoconsciência, auto-experiência. 43 Antropologia A autoconsciência, concomitante ou reflexiva, não se dissocia da consciência objetiva, direta, voltada a um objeto exterior à consciência. A atenção do sujeito a si mesmo e ao seu ato é inseparável da consciência de objeto. Mais ainda: o objeto delimita o horizonte do meu ato de autoconsciência. Isso é importante para a avaliação do fenômeno da reflexão, do exame de consciência, da revisão de vida. Posso refletir-me como "um que gosta de música popular". Sou mais do que isso. A reflexão nunca é total: o sujeito nunca se agarra totalmente, nunca se recupera na integralidade do seu ser, porque a reflexão se efetua no horizonte que lhe é imposto pelo objeto, com que o ato de autoconsciência está ligado. Por isto é válido afirmar: Eu sempre sou mais do que sei de mim de modo introspectivo, objetivamente. Nunca atinjo o fundo ontológico de mim mesmo, nunca estou totalmente auto-iluminado, nunca a presença a mim mesmo é completa. Não há autotransparência total. O mesmo vale do elemento volitivo. Nunca tenho pleno domínio de mim mesmo, plena autopossessão.
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